Entre ruas que subjetivam, registros do governo da vida e da morte na cidade

Discente: Wanderson Vilton Nunes da Silva / Orientadora: Profa. Dra. Simone Maria Hüning

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                    UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
GRUPO DE PESQUISA PROCESSOS CULTURAIS, POLÍTICAS E MODOS DE
SUBJETIVAÇÃO

WANDERSON VILTON NUNES DA SILVA

ENTRE RUAS QUE SUBJETIVAM,
REGISTROS DO GOVERNO DA VIDA E DA MORTE NA CIDADE

Maceió
2013

WANDERSON VILTON NUNES DA SILVA

ENTRE RUAS QUE SUBJETIVAM,
REGISTROS DO GOVERNO DA VIDA E DA MORTE NA CIDADE

Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal de Alagoas, como
requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Psicologia.
Orientadora:
Hüning

Maceió
2013

Profa.

Dra.

Simone

Maria

Catalogação na fonte
Universidade Federal de Alagoas
Biblioteca Central
Divisão de Tratamento Técnico
Bibliotecária Responsável: Fabiana Camargo dos Santos
S586e

Silva, Wanderson Vilton Nunes da.
Entre ruas que subjetivam, registros do governo da vida e da morte na cidade /
Wanderson Vilton Nunes da Silva. –2013.
166 f. : il.
Orientadora: Simone Maria Hüning.
Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Federal de Alagoas. Instituto de
Ciências Humanas, Comunicação e Artes. Departamento de Psicologia. Maceió, 2013.
Bibliografia: f. 161-166.
1. Moradores de rua. 2. Governo – Políticas públicas. 3. Espaços urbanos – Psicologia
social. 4. Modos de subjetivação. 5. Governo – Crítica. I. Título.

CDU: 159.9:316.3

FOLHA DE APROVAÇÃO

Wanderson Vilton Nunes da Silva

Entre ruas que subjetivam, registros do governo da vida e da morte na cidade.

Dissertação de Mestrado submetida ao corpo
docente do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal de
Alagoas e aprovada em 22 de abril de 2013.

____________________________________________________________
Profa. Dra. Simone Maria Hüning
Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
(Orientadora)

BANCA EXAMINADORA:

____________________________________________________________
Prof. Dr. Pedro Paulo Gastalho de Bicalho
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

____________________________________________________________
Profa. Dra. Neuza Maria de Fátima Guareschi
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Dedico este trabalho às pessoas que vivem nas
ruas das cidades brasileiras, especialmente às
que vivem em Maceió. E de modo particular à
memória daquelas que foram assassinadas
e/ou

que

continuam

sendo

violadas

constantemente pelas diversas práticas em
nossa sociedade, dita civilizada.

AGRADECIMENTOS

À minha mãe, Gedalva ou Joana, pela dádiva da vida e por sua compreensão e apoio durante o
incurso deste processo de formação acadêmica, por cada palavra e interesse dedicados, enfim,
pelo investimento afetivo em minha formação como pessoa.
À minha orientadora, Simone Hüning, pela parceria dedicada, pela escuta de tantas angústias
ao longo desse processo e pela competência, cuidado, afeto e confiança importantes para
continuar em curso. Agradeço a disponibilidade e o olhar atento a cada transformação
silenciosa que ocorreu no percurso desses anos que estamos trabalhando juntos. Ao longo
destes anos cresceu minha admiração pela pessoa, amiga e pesquisadora que é.
Aos professores Dr. Pedro Paulo Bicalho e Dr. Marcos Mesquita, pelos apontamentos
competentes, claros e disparadores de inúmeras contribuições e questões centrais para pensar
o problema desta dissertação. Meus agradecimentos e minha admiração.
À profa. Dra. Neuza Guareschi pelo acolhimento em seu Grupo de Pesquisa durante minha
estada em Porto Alegre, pelas inúmeras contribuições para pensar as questões desta
dissertação, pela confiança e oportunidade.
Aos amigos e colegas de Porto Alegre, do PPGPSI da UFRGS e de outros espaços de
interlocução relacionados ao Núcleo e-politics, Alessandra, Karen, Lutiane, Tiago, Zuleika,
Carla, Carol, Guilherme, Édio, Pablo, Oriana, Fernanda, Luciana, Ananda, Daniel, enfim, a
todos pelas conversas e contribuições atentas com este trabalho e na minha vida social durante
minha estada em POA.
Aos amigos bergamóticos, Ori, Pablo, Alê, Maíra, Édio, Lilian, Rita, pelos nossos encontros
marcados pela inventividade e descontração, atentos aos nossos percursos de pesquisa,
agradeço todas as contribuições que marcaram esta dissertação e minha estada em POA.
A Lutiane pela disposição e contribuições que marcaram este trabalho, pela sua atenção às
dúvidas e questões que me acompanharam nos primeiros momentos de escrita deste texto.
A Éverson e a Leandro pela acolhida e pela amizade durante a estada em Porto Alegre.
Aos amigos Maxwell, Mick, Raí, Fábio, Melson, Thiago, Ivanildo, Carlinhos pelos convites a
sair do lugar e entrar em novas empreitadas, agradeço a parceria constante.
A Patrícia Tóia pela leveza e amizade durante todo esse processo e por ter me aturado em
determinados momentos. Agradeço a atenção ao longo destes anos de mestrado. Obrigado!

Aos amigos, Cristiano e Makena, pela atenção e preocupação dispensadas em todos esses
anos.
Aos amigos de formação e parceiros em minha vida, Jacyara, Natália, Lívia, Giselle, Victor,
Laura, meus agradecimentos e minha amizade.
Aos meus familiares, Guiomar e Gilva, que estiveram sempre na minha vida, marcando-a com
todo amor e carinho que me tornam um homem melhor. Não há palavras para descrever
minha gratidão.
Aos colegas do Grupo de Pesquisa, Patrícia, Paulo, Aline, Graciele, Carlysson, Juliana,
Larissa, pela parceria e momentos de conversa e de descontração ao longo destes dois anos,
dividindo angústias e alegrias.
A Jacyara pela parceria e atenção constantes ao longo desses anos.
À trupe Luciano, Bruna e Renata, pelos muitos momentos de parceria, de aproximações e de
distanciamentos, necessários neste processo do mestrado.
À Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Advogados do Brasil em Alagoas, nas
pessoas do presidente Gilberto Irineu, bem como do secretário administrativo Diego Omena,
que se mostraram disponíveis ao contribuir com esta dissertação.
À turma do mestrado, Renata, Luciano, Dayse, Patrícia, Juliana, Zaíra, Raquel, Alex,
Alcimar, Sara, Analine, Mariana, Kyssia, por todos os momentos que tivemos juntos e que
serviram para nos mantermos motivados ao longo do processo de mestrado.
Às ruas de Olinda e ao seu belo carnaval que me fizeram sonhar em ruas habitadas e
atravessadas pela cultura.
A todos que de uma maneira ou de outra fazem das suas vidas um exercício de liberdade
constante e que vivendo em condições precárias de existência insistem em fazer de suas vidas
uma obra de arte.
E, por fim, à CAPES pelo investimento necessário para a efetivação do percurso desta
dissertação.

(...). A rua resume para o animal civilizado
todo o conforto humano. Dá-lhe luz, luxo,
bem-estar, comodidade e até impressões
selvagens no adejar das árvores e no trinar
dos pássaros.
A rua nasce, como o homem, do soluço, do
espasmo. Há suor humano na argamassa do
seu calçamento. Cada casa que se ergue é
feita do esforço exaustivo de muitos seres, e
haveis de ter visto pedreiros e canteiros, ao
erguer as pedras para as fronteiras, cantarem,
cobertos de suor, uma melopeia tão triste que
pelo ar parece um arquejante soluço. A rua
sente nos nervos essa miséria da criação, e
por isso é a mais igualitária, a mais socialista,
a mais niveladora das obras humanas.
(João do Rio, A alma encantadora das ruas)

RESUMO

A partir de julho de 2010, os jornais de Alagoas e do país começam a noticiar assassinatos de
moradores de rua no Estado. Naquele ano, a imprensa nacional e local abordou o
acontecimento, associando-os a um massacre. Numa perspectiva não-individualizante da
Psicologia Social, considerando as contribuições de Michel Foucault e do filósofo e jurista
Giorgio Agamben, tomamos estes assassinatos como acontecimento. Ao tomar como
referencial as leituras em Foucault, que concebe os modos de subjetivação associados aos
modos de governo dos sujeitos e à produção de subjetividades a partir de tecnologias de
poder, circunscrevemos esta dissertação numa perspectiva genealógica. E tem como objetivo
produzir uma crítica do presente e dos modos de governo da vida e da morte a partir da
problematização das mortes dos moradores de rua em Maceió, registradas pela mídia e outros
documentos públicos. Para isso, desde a perspectiva da Psicologia Social e dos estudos
foucaultianos, colocamos esse acontecimento em análise a partir dos conceitos de modos de
subjetivação, governo e relações de poder/saber. Interessa-nos construir atravessamentos
históricos, a partir dos discursos em textos midiáticos e documentos públicos elaborados no
período, de julho de 2010 e Agosto de 2012, em que os assassinatos de moradores de rua em
Maceió começam a ser veiculados nas mídias como fato verdadeiro na vida da polis e a serem
elaborados documentos que tentam sistematizar este acontecimento. Partimos da análise de
discurso foucaultiana relacionada às relações de poder/saber, considerando três analisadores
teórico-conceituais relacionados aos textos midiáticos e documentos públicos neste trabalho:
1) o abandono da vida e a produção de vida nua; 2) as drogas como um dispositivo biopolítico
de regulamentação da vida; e 3) a produção de mortes e as estratégias de governo para a
população de rua. A partir da análise histórica do que chamamos nesta dissertação de
acontecimento, procuramos contribuir criticamente com políticas públicas que visam os
diversos modos de existir na cidade, ocupando-nos das contribuições que a produção de
conhecimento em Psicologia Social pode fazer ao pensar os espaços urbanos, os modos de
governo e os processos de subjetivação.
Palavras-chave: Governo. Modos de subjetivação. Cidades. Moradores de rua. Crítica.

ABSTRACT

From July 2010, the newspapers of Alagoas and the country begin to report murders of
homeless people in the state. In that year, the national and local press took up the event,
linking them to a massacre. From a non-individualistic perspective of Social Psychology,
considering the contributions of Michel Foucault and of the philosopher and jurist Giorgio
Agamben, we take these murders as an event. Taking as reference the readings of Foucault,
who conceives the forms of subjectivity as associated with the modes of governing the
subjects and with the production of subjectivities from power technologies, this dissertation is
circumscribed in a genealogical perspective. It aims to produce a critique of the present and of
the modes of life and death government from the problematization of the deaths of homeless
people in Maceio, recorded by the media and other public documents. In order to accomplish
this, from the perspective of Social Psychology and Foucault studies, we analyze this event
from the concepts of modes of subjectivity, government and relations of power / knowledge.
We are interested in constructing historical crossings, from the speeches in media texts and
public documents published during the period between July 2010 and August 2012, when the
murders of homeless people in Maceio started running in the media as true fact in life of the
polis and the documents that attempt to systematize this event were developed. We start from
the Foucaultian discourse analysis related to the relations of power / knowledge, considering
three theoretical-conceptual analyzers related to public documents and media texts in this
work: 1) the abandonment of life and the production of bare life, 2) drugs as a biopolitical
apparatus of life regulation, and 3) the production of deaths and the government strategies for
the street population. From the historical analysis of what we call event in this dissertation,
we intend to contribute critically with public policies that aim the various modes of existing in
the city, focusing on the contributions that the production of knowledge in Social Psychology
can make in thinking urban spaces, modes of government and the processes of subjectivity.
Keywords: Government. Modes of subjectivity. Cities. Homeless people. Critique.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO - MORADORES DE RUA: UMA DEMANDA DE GOVERNO ....... 11
1.1 Governo, política e psicologia ............................................................................................ 15
1.2 Psicologia e Política: construção de problematizações ...................................................... 18
1.3 As mídias, acontecimento e produção de verdades ............................................................ 20
1.4 Produzindo verdades e visibilidades: mídia e documentos públicos .................................. 23
1.5 Sobre a análise dos materiais .............................................................................................. 25

2 A CONSTRUÇÃO DE UMA POPULAÇÃO DE RUA: ATRAVESSAMENTOS
HISTÓRICOS DE UMA MONOCULTURA DA VIDA .................................................... 28
2.1 Violência e homicídios no paraíso das águas ..................................................................... 31
2.2 A monocultura e uma economia da vida ............................................................................ 35
2.3 De moradores de rua para uma população de rua ............................................................... 40

3 O INVESTIMENTO NA VIDA: AS RUAS E OS SEUS MORADORES ...................... 47
3.1 O paradoxo da rua: uma exterioridade perigosa no interior da cidade ............................... 55
3.1.1 O perigo da degenerescência da espécie ........................................................................ 58
3.2 Os moradores de rua: moradia e rua objetivadas e materializadas em sujeitos .................. 62

4 ENTRE TEXTOS E NOTÍCIAS: A CONSTRUÇÃO DE PISTAS PARA A ANÁLISE
.................................................................................................................................................. 65
4.1 Algumas pistas: uma trajetória possível para análise dos textos ........................................ 70
4.2 Seguindo as pistas... ............................................................................................................ 73

5 DE MORADOR DE RUA A CRIMINOSO: IDENTIDADE BIOGRÁFICA E A
PRODUÇÃO DE VIDA NUA ................................................................................................ 85
5.1 “Talvez porque (fossem) moradores de rua” ...................................................................... 87
5.2 A vida nos registros do poder ............................................................................................. 91
5.3 Negros e pobres: criminosos até que provem o contrário .................................................. 95
5.4 Produção de vida nua e de abandono ............................................................................... 101
5.5 Para continuar existindo... ................................................................................................ 105

6 AS DROGAS E UM CERTO FASCÍNIO SOBRE OS DISCURSOS COMPETENTES
................................................................................................................................................ 109
6.1 “Mas tudo converge para a questão das drogas” .............................................................. 110
6.2 Um dispositivo para pensar o presente histórico .............................................................. 114
6.3 O dispositivo das drogas e o morar nas ruas de Maceió ................................................... 119
6.4 Moradores de rua e o “resgate” de uma humanidade ....................................................... 123

7 PRODUÇÃO DE MORTES E AS ESTRATÉGIAS DE GOVERNO NAS POLÍTICAS
PÚBLICAS PARA A POPULAÇÃO DE RUA EM MACEIÓ ........................................ 129
7.1 A morte como um espetáculo midiático e um desafio ao poder ....................................... 131
7.1.1 Onde há vida, há poder ................................................................................................. 134
7.2 “Questão de polícia, não. Questão de estado, de políticas públicas.” .............................. 143
7.2.1 Planos, ações e metas: um espaço de reforma da vida dos outros ............................... 145

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 156
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 161

11

1 INTRODUÇÃO - MORADORES DE RUA: UMA DEMANDA DE GOVERNO

Uma série de assassinatos de moradores de rua em Maceió está preocupando as
autoridades em Alagoas. Em 2010 já foram registrados nove assassinatos e três
tentativas de homicídio. Das mortes, quatro foram registradas entre junho e julho. O
último dos crimes [até julho de 2010] aconteceu na noite da última segunda-feira
(19), quando um morador de rua foi morto no Mercado da Produção, no centro da
capital alagoana. Todos os crimes aconteceram durante a noite ou na madrugada.
Apenas três das nove mortes registradas foram por disparos de arma de fogo. As
demais mortes foram a pedradas, facadas ou mesmo incêndio. 1
Morte de 32 pessoas no ano [até novembro de 2010] revela falta de políticas sociais
para a população em situação de risco.2
A morte de Estranho é a sexta de moradores de rua registrada em Maceió em 2011.
No dia 21 de fevereiro, um outro morador foi morto com seis tiros na cabeça, no
bairro Rosane Collor. No dia anterior, o adolescente Nataniel Iraquitan da Silva, 17,
estava dormindo na calçada de um estabelecimento comercial quando foi morto.
Outra vítima morta em fevereiro foi Alexandra Barbosa Aragão, 28, assassinada em
um terreno no bairro da Levada. Em janeiro, um morador de rua foi morto na rua
presidente Agostinho da Silva Neves, no bairro do Poço.3
Uma criança de rua, cujo nome ainda é desconhecido, foi assassinada a pedradas na
madrugada deste sábado [1 de dezembro de 2011], quando se encontrava em frente
ao Maikai, no bairro Jatiúca. De acordo com testemunhas, o crime foi praticado por
um homem não identificado, que fugiu sem deixar pistas. 4
Um homem encapuzado se aproxima, dispara alguns tiros e foge. Assim descreveu
um morador de rua um assassinato que presenciou recentemente em Maceió. Até a
última sexta-feira (15), dezesseis pessoas que viviam nas ruas foram mortas este ano
[2012] no Estado. A maioria dos crimes, treze mais especificamente, foi praticada
com arma de fogo enquanto a vítima dormia. 5

Estes trechos de sites de notícias de Alagoas e do país ocupam-se em narrar os
assassinatos de pessoas nas ruas de Maceió entre 2010 e 2012. Estes espaços urbanos são
descritos como um campo de violência e de morte: desde 2010 foram registrados 88

1

Matéria do site de notícias UOL Notícias em 22 de julho de 2010, intitulada “Após nove assassinatos em 2010
MP
suspeita
de
grupo
de
extermínio
de
moradores
de
rua
em
Maceió”:
<http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2010/07/22/apos-nove-assassinatos-em-2010-mp-suspeita-de-grupo-deexterminio-de-moradores-de-rua-em-maceio.jhtm>.
2

Matéria do site de notícias Carta Capital em 18 de novembro de 2010, intitulada “Maceió vive onda de
violência contra moradores de rua”: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/maceio-vive-onda-de-violenciacontra-moradores-de-rua>.
3

Matéria do site de notícias do Jornal Tribuna União, intitulada “Polícia registra sexto assassinato de morador de
rua em Maceió este ano”, visitado em 9 de julho de 2011: <http://www.tribunauniao.com.br/?p=2&id=15454>.
4

Matéria do site de notícias Tudo na Hora em 1 de dezembro de 2011, intitulada “Criança de rua é morta a
pedradas
em
frente
a
bar
localizado
na
Jatiúca”:
<http://tudonahora.uol.com.br/noticia/policia/2011/10/01/156877/crianca-de-rua-e-morta-a-pedradas-em-frentea-bar-localizado-na-jatiuca>.
5

Matéria do site de notícias Tudo na Hora em 17 de junho de 2012, intitulada “Em 2012 dezesseis moradores de
rua foram mortos em AL: <http://tudonahora.uol.com.br/noticia/maceio/2012/06/17/192745/em-2012-dezesseismoradores-de-rua-foram-mortos-em-al>.

12

assassinatos de moradores de rua6, conforme os sites de notícias e a Comissão de Direitos
Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil em Alagoas (OAB/AL).
A partir de julho de 2010, os jornais de Alagoas começam a noticiar assassinatos de
moradores de rua no estado. A mídia nacional veicula nos noticiários a investigação que o
Estado e o Município de Maceió empreendiam sobre um possível grupo de extermínio,
compreendido pelo Ministério Público como “uma quadrilha especializada em ‘limpar a
cidade”7.
Naquele ano, a imprensa nacional e local abordou o acontecimento em Alagoas
associando os assassinatos de moradores de rua a um massacre. Colocavam-se em questão os
motivos de tais mortes e a responsabilidade do Estado em termos das investigações e da
elaboração de políticas públicas destinadas a essa população, sendo o Estado e o Município
alvos de diversas investidas de órgãos governamentais e não-governamentais relacionados aos
direitos humanos.
Em 2011, os assassinatos continuaram e foram veiculados nas versões eletrônicas de
jornais locais. A OAB/AL construiu um relatório sobre os assassinatos, entregue aos
governantes, visando à implementação de políticas públicas para essa população e cobrando
medidas efetivas que garantissem direitos humanos a esses sujeitos. Nos anos de 2010 e 2011,
foram notabilizados 65 assassinatos de moradores de rua no Estado; até novembro de 2012,
23 moradores de rua foram assassinados, segundo sites de notícias.
Em meio a isto, destacamos o fato de que anteriormente ao estopim destas denúncias
de violação dos direitos humanos, a cidade de Maceió, desde setembro de 2004, já havia
registrado nas mídias jornalísticas assassinatos ou até mesmo atentados à vida de moradores
de rua. No entanto, somente em julho de 2010, devido ao número elevado de homicídios de
pessoas que vivem nas ruas houve uma formalização destas denúncias.
Em 17 de setembro de 2004, o jornal Folha de São Paulo noticiava no caderno
Cotidiano a seguinte notícia: Morador de rua é morto em Maceió; no mesmo caderno, em 25
de outubro de 2005, encontramos uma matéria intitulada Três moradores de rua sofrem
atentado em AL; este mesmo jornal, em 9 de agosto de 2008, noticia que Moradores de rua
6

Há uma série de dados variados e destoantes sobre o número dos assassinatos de moradores de rua em Maceió
nos anos de 2010 e 2011, conforme as agências de notícias, organizações não-governamentais e dados da polícia
civil, como indicam o relatório elaborado pelo Ministério Público Estadual.
7

Conforme matéria publicada no Jornal Folha de São Paulo em 31 de julho de 2010, com o título “Alagoas
investiga grupo de extermínio”, no Caderno Cotidiano. Recuperado em 20 de agosto de 2011, de
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff3107201024.htm>.

13

são queimados em Alagoas. Em 2 de março de 2010, O Jornal, de circulação na capital
alagoana, traz em sua capa a seguinte chamada: Grávida de 7 meses é morta a pedradas;
tratava-se de uma moradora de rua, conhecida como Lú, que fora assassinada a golpes de
cacete e de pedradas numa calçada de uma associação nas ruas de Maceió. Na matéria, o
crime foi associado à violência contra a mulher, não contra uma moradora de rua; em algumas
matérias posteriores às denúncias, contudo, foi reportado como sendo o primeiro assassinato
de moradores de rua em Maceió registrado no ano de 2010.
Neste período, encontram-se registros, no site da Prefeitura, de iniciativas e discussões
da Secretaria de Promoção da Cidadania e de Assistência Social de Maceió (Sempcas) quanto
à situação dos moradores de rua da capital. Tais iniciativas vão desde a construção de
parcerias com entidades privadas, públicas e ONGs, até a retirada destas pessoas das ruas do
centro e da orla da cidade. Além disso, a partir de 2006 a Secretaria Municipal de Assistência
Social (Semas), através do Projeto Acolher Cidadão, inicia uma “contagem de mendigos e
pedintes que estão no centro da cidade, orla e outros lugares”8, com o objetivo de promover
ações que visassem a modificação da situação destas pessoas, garantindo políticas de moradia,
trabalho e educação.
A abordagem dos integrantes da equipe de trabalho responsável pelo levantamento,
chega próximo ao pedinte e, verbalmente, pede para que ele responda algumas
perguntas, entre elas nome completo e endereço. Com essas informações os
recenseadores conferem os dados e terminam por descobrir qual o perfil dos
moradores
de
rua
da
capital
alagoana.
O trabalho terá continuidade nesta quarta-feira (26), pela manhã, a partir das 8h,
ainda no centro da cidade. Segundo Alves de Souza, o trabalho já está surtindo
efeito positivo no centro da cidade, conforme informação dos próprios consumidores
e de representantes de entidades ligadas ao comércio local. "Agora precisamos de
policiamento constante da Praça dos Martírios, de onde recebemos muitas queixas",
finaliza o coordenador do Projeto Acolher Cidadão.9

Ainda no mesmo ano, a Semas, discutindo a possibilidade de remoção de moradores
de rua do centro da cidade, afirma que há uma dificuldade, pois estas pessoas não possuem
documentação, dificultando “a compra de passagens para que essas famílias retornem aos
municípios de origem.”10
Pelo que pudemos descrever, tais ações são motivadas por diversos argumentos
relacionados à garantia de direitos constitucionais e de dignidade. Para isto, contam com
8

Conferir no site da Prefeitura de Maceió a matéria Projeto Acolher Cidadão começa o levantamento de
mendigos,
postada
em
25
de
julho
de
2006.
Disponível
em
<http://maceio.id5.com.br/noticias/index.asp?vCod=3536&idioma=pt>.
9

Idem.

10

Notícia do site da Prefeitura de Maceió, Semas discute remoção de moradores de rua, postada em 31 de julho
de 2006. Disponível em <http://maceio.id5.com.br/noticias/index.asp?vCod=3581&idioma=pt>.

14

parcerias diversas, desde o auxílio de cidadãos até a utilização da polícia para efetivar suas
atividades. Em nenhum momento são mencionados aspectos referentes a assassinatos ou a um
risco de morte destes sujeitos, que justificassem estas ações, apesar de estes acontecerem com
alguma frequência.
Sobre a menção aos riscos das drogas para a sociedade civilizada, é necessário
fazermos uma ressalva. A partir de uma pesquisa realizada pela prefeitura em setembro de
2009, com base em 66 pessoas que viviam nas ruas da capital, afirmou-se que 97 por cento
dos moradores de rua de Maceió consomem algum tipo de droga, apontando o crack como a
mais utilizada11.
A partir daí inicia-se a campanha “Não dê esmolas, promova cidadania”, afirmando
que as esmolas são as financiadoras das drogas ilícitas, da evasão escolar, da prostituição, da
exploração e da violência contra crianças e adolescentes.
Segundo o promotor da área de direitos humanos do MP [Ministério Público],
Flavio Gomes, o uso de drogas por moradores de rua é apenas um reflexo das
péssimas condições de vida dessas pessoas. "Para mudar essa situação é preciso a
intervenção em conjunto de todos. São necessárias as secretarias de Saúde, para
tratar das DSTs [doenças sexualmente transmissíveis], dos problemas psicológicos;
de Assistência Social do Estado, para 'devolver' as pessoas que são de outras
cidades; de Educação, para mandar as crianças para escola; do Instituto de
Identificação, para tirar os documentos deles; dos conselhos tutelares e até da Defesa
Social. [...]", afirmou. 12

Vemos aí a complexidade da rede acionada para lidar com os moradores de rua, numa
racionalidade que visa à transformação das vidas destes sujeitos. Trata-se de administrar a
saúde física e psicológica, realocá-los em suas cidades de origem ou mesmo conduzi-los à
escola, documentá-los e construir tutela para suas vidas através das instituições competentes.
Em outros termos: conduzir condutas e requalificar suas vidas numa suposta garantia de
direitos.
Em função disto, são encaminhadas ações que visam retirar/remover estes sujeitos das
ruas, pois ali tornam-se um problema para a vida na cidade. Contudo, somente isto não é
suficiente; é necessário garantir direitos que promovam a dignidade de suas vidas e a sua
inserção em instituições de cuidado e de tutela. Ou seja, seus modos de viver devem ser
reconduzidos, transformados: seria isto um higienismo por outros meios?

11

Ver matéria no site de notícias do Uol Pesquisa aponta que 97% dos moradores de rua de Maceió usam
drogas,
publicada
em
9
de
novembro
de
2009.
Disponível
em
<http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2009/11/09/ult5772u5995.jhtm>.
12

Idem.

15

O que está em jogo nestas práticas que visam a dignidade humana desses sujeitos?
Estariam em jogo as suas condições de vida e o que podem produzir delas? O que está em
jogo é uma forma de fazer política que elege e dispõe a vida através de seu rearranjo numa
determinada racionalidade do poder. Ou estaria em questão uma determinada forma de
higienismo visando uma limpeza social? Talvez essas questões não estejam em polos opostos;
ao contrário, pensamos que se encontram e se complementam nas práticas que visam a
qualificação destas vidas. É isto que veremos ao longo da dissertação.
Como pudemos perceber, as práticas de qualificação da vida visam, principalmente,
reconduzir e transformar as vidas dos sujeitos que são tocados por elas. Ou seja, nas práticas
de garantia de direitos há algo que está relacionado a uma retirada destes sujeitos de uma
lógica de consumo indesejada para outra lógica socialmente aceita nas sociedades capitalistas,
como veremos nos próximos capítulos.

1.1 Governo, política e psicologia
Com o abandono das práticas de suplício no final do século XVIII, e a entrada em
cena de um governo estatal – relacionados ao governo sobre a vida (a biopolítica), não mais
sobre a morte dos outros, há uma passagem de um governo ocupado em “fazer morrer e
deixar viver” para outro que se ocupará em “fazer viver e deixar morrer”13. A partir daí a vida
será operada como um bem, numa relação positiva (FOUCAULT, 1999), e é neste contexto
que a psicologia é chamada a contribuir para o governo dos sujeitos (ROSE, 2008).
Foucault (2008), numa de suas aulas no Collège de France, dedica-se ao que chama de
arte de governar. Nela o filósofo afirma que, no final do século XVIII, há uma passagem de
um poder soberano que se relacionava à administração do território através da obediência à lei
e ao soberano, para uma lógica do governo das coisas e dos homens; neste caso, a população
aparece como meta final do governo, que se efetiva através da disposição das coisas e dos
homens de modo a “conduzi-las a um fim conveniente” (FOUCAULT, 2008, p. 283).
13

Ao falarmos de um abandono e uma passagem relacionados às práticas de suplício (poder soberano) até uma
racionalidade de governo que operará visando potencializar a vida (biopoder), diferentemente de afirmarmos
uma eliminação das práticas de suplício na racionalidade de governo, estamos afirmando que tais práticas, como
veremos ao longo da dissertação, ganharam outras características e formas de execução no cotidiano. A ideia de
abandono, por tanto, é importante para pensarmos algo que Agamben (2004, 2007, 2008, 2009, 2010) nos aponta
sobre a política contemporânea: uma cisão entre práxis e ontologia, ou seja, uma divergência importante entre a
maneira de intervir sobre as vidas e a concepção de protegê-las, que legitima aquela ação. A partir disto,
pensamos que o abandono das práticas de suplício diferentemente de remeter a sua eliminação, deixa tais
práticas a mercê de quaisquer um, ao dispersar e distribuir na cidade, em diferentes proporções, o poder soberano
entre os citadinos.

16

O governo é definido como uma maneira correta de dispor as coisas para conduzilas não ao bem comum, como diziam os juristas, mas a um objetivo adequado a cada
uma das coisas a governar. (FOUCAULT, 2008, p. 284).

É nas relações de poder que se estabelecem os regimes de verdade como forças que
determinam formas de governo do outro, produzindo subjetividades. Para Foucault (1979), o
poder é da ordem da produção, não da opressão e da negatividade. Neste caso, podemos
pensá-lo como sendo produtor de realidades, modos de ser, de viver e, por que não, de morrer.
Ao propor isso, afastamo-nos do modelo do direito, elegendo o modelo guerreiro ou
estratégico para pensar as relações de poder, nas quais o poder não é uma propriedade de
alguém, mas exerce-se numa luta entre forças.
Na problematização do acontecimento14 dos assassinatos de moradores de rua em
Maceió, incide uma outra forma de governo que caracteriza nossas questões: o governo da
morte de alguns sujeitos. E nesta possibilidade de argumentação nos aproximamos das
teorizações do filósofo e jurista Giorgio Agamben.
Agamben (2010), em seu livro Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I, tece
algumas considerações sobre o que chama de vida nua: uma vida desprotegida do ponto de
vista jurídico e religioso, vida que, excluída da polis, pode ser exterminada - uma “vida
matável e insacrificável do Homo sacer” (AGAMBEN, 2010, p.16, grifo do autor). O homo
sacer é uma figura do direito romano que, após cometer um delito e por ele ser julgada e
condenada, era excluída do mundo político e tinha sua vida sacralizada, ou seja, tinha sua vida
excluída tanto do âmbito da política quanto da religião: as leis humanas e as religiosas não
mais legislavam ou o protegiam, podendo ser morto sem que aquele que o matasse sofresse
qualquer penalidade, pois não se trata nem de um crime, nem de um sacrilégio.
Neste sentido, o poder que governa a morte e a vida do Homo sacer, segundo Pinto
Neto (2008), configura-se no que Foucault chama de biopoder, pura e simplesmente, pois não
admite ser pensado como poder jurídico, incidindo diretamente sobre os corpos sem qualquer
mediação. Esse autor desenvolve seu argumento a partir de uma análise sobre a prisão de
Guantánamo15, considerando a morte iminente, e certa, de alguns prisioneiros, no contexto da
suspensão de qualquer lei e legislação.
14

Mais adiante retomaremos a ideia de acontecimento, a partir das contribuições dos estudos foucaultianos.
Trata-se de uma prisão militar norte-americana construída na baia de Guantánamo em Cuba destinada a
prisioneiros de guerra, tidos como terroristas. Nela tais sujeitos são submetidos a torturas e maus tratos, já que os
direitos humanos não operam sobre sujeitos tidos como terroristas/inimigos: há uma suspensão dos direitos
básicos de defesa da vida humana. Desde sua abertura, já passaram por Guantánamo 775 prisioneiros sem
acusação formada, sem processo constituído e, obviamente, sem direito a julgamento. (Ver no site Folha.com:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u106105.shtml>).
15

17

O biopoder estatal parece, naquele momento, ser o limite máximo do poder
ontológico, poder de matar e não cometer assassinato, ou pelo menos, como atestam
já inúmeras fontes e sequer mais se esconde, torturar indivíduos que foram
despersonalizados e transformados em “combatentes inimigos”, sem Rosto e
imersos na massa. (PINTO NETO, 2008, p. 34).

O autor sinaliza ainda que uma forma eficiente de suspensão da lei e da legislação para
a instauração de um estado de exceção16 – em que o Estado se autoriza à regra da guerra, ou
seja, a exercer seu poder de morte sobre certos sujeitos – acontece ao retirar do sujeito a sua
nacionalidade, sua identidade17: torná-lo um anônimo, desprezando sua historicidade. Neste
sentido, suspendem-se todos os direitos e leis que venham a proteger aquela vida,
massificando corpos e vidas, tornando-as descartáveis18.
Mas o que a psicologia tem a ver com isso?
Rose (2008) constrói uma série de teorizações que encerram o saber psicológico no
âmbito das ciências sociais, argumentando que historicamente durante o século XX, a
psicologia produziu uma psicologização das vidas no campo das individualidades e da
coletividade, forjando aspectos da vida cotidiana em termos psicológicos. Ela produziu e
inventou novas formas de gerenciar a vida na modernidade, construindo práticas competentes
de produção de subjetividades que estão intrinsecamente relacionadas às formas como
falamos de nós mesmos e do mundo. Para esse autor, a psicologia foi formulada em locais de
práticas, comprometida com a regulação social da conduta problemática coletiva e individual
que eram responsabilidade das autoridades que visavam seu controle em fábricas, prisões,
salas de aula, entre outros. A psicologia, por este viés, acaba por se comprometer
historicamente com a produção de subjetividade e com sua normatividade, contribuindo para
o governo de sujeitos, sua adaptação e regulação.
Com isto, podemos pensar a produção e o governo da vida e da morte através das
contribuições da psicologia social, numa perspectiva não-individualizante. Neste sentido, nos
interessa um domínio particular do poder-saber que isola um acontecimento para objetivá-lo,

16

Agamben (2004) propõe pensar o estado de exceção como regra das atuais formas de governo. Caracteriza-o,
entre outras coisas, pela “abolição provisória da distinção entre poder legislativo, executivo e judiciário” (p.19),
afirmando que nessa medida o conceito de necessidade (necessitas legem non hablet) aparece como fundamento
do estado de exceção. Neste conceito aparecem dois sentidos opostos, mas que se complementam: “a
necessidade não reconhece nenhuma lei” e “a necessidade cria sua própria lei”.
17

Identidade aqui se refere ao processo de tornar alguém legitimado em termos jurídicos, garantindo direitos
civis do ponto de vista do Estado, em termos de proteção da vida.
18

Ver: Pinto Neto, Moysés da F. (2008). A farmácia dos direitos humanos: algumas considerações sobre a prisão
de Guantánamo. Panóptica, Ed.13.

18

“que o faz suscetível a certas formas de saber que o mobiliza em uma rotina de práticas”
(HOOK; HÜNING, 2009, p. 117).
Ao trazermos os assassinatos de moradores de rua em Maceió à análise, colocamos em
discussão a constituição dos próprios saberes psicológicos relacionados aos processos de
subjetivação e governo do outro, governo da vida e da morte na sociedade contemporânea.
Dimensionamos assim o caráter político da psicologia, implicado nos processos de gestão da
vida humana, considerando aspectos como a constituição do que Coimbra (2001) chama de
territórios perigosos e a naturalização da relação entre pobreza e marginalidade, bem como da
violência urbana na contemporaneidade.
1.2 Psicologia e Política: construção de problematizações
O fato é que moradores de rua em Maceió estão sendo mortos, homens, mulheres,
crianças e jovens reais de carne e osso, mortes produzidas no seio da cidade e da vida pública,
através de processos de banalização da vida que decidem sobre a sua dignidade (PINTO
NETO, 2008), mantendo-os em anonimato, como vidas matáveis.
Neste cenário insalubre de sobrevivência da vida de muitos, inscrevemos a relevância
desta dissertação, tomando tal acontecimento que ocorre numa ilegalidade aceitável e num
cenário em que a vida é tomada de corpos na maioria das vezes marcados pela invisibilidade e
pela indiferença dos cidadãos da polis e das políticas públicas que não os alcançam, mas que
mesmo assim, como afirma Coimbra (2001), tais sujeitos permanecem numa teimosia em
continuar existindo e resistindo.
Essas questões de imediato nos impõem interrogações amplas: como se torna possível
falar na produção de vidas qualificadas ou não para a existência? Que condições se
relacionam à produção de tais formas de vida e de política na contemporaneidade?
Para avançarmos nessas reflexões, torna-se necessário pensarmos sobre o presente e
colocá-lo em análise. Essa é a motivação desta dissertação, que assume como pretensão a
construção de alternativas no campo das práticas de produção de conhecimento em psicologia.
Não podemos deixar de lado o pesar que os assassinatos destas pessoas em situação de
rua nos acomete, pois são pessoas que tinham uma história, marcadas por uma vida de
exclusão e total invisibilidade, ou quando muito, uma visibilidade momentânea como um
estorvo à cidade, na qual é materializada uma ameaça. Infelizmente, nossa proposta de
pesquisa torna-se viável ou pensável a partir de tais acontecimentos em que os sujeitos sobre
os quais escreveremos, pessoas assassinadas nas ruas da cidade, já não podem falar.

19

É diante dessa situação de extermínio da vida de determinadas pessoas que esta
dissertação se inscreve no universo acadêmico, da política e da vida, a partir do que
visibilizamos como possibilidade de abordagem dessa problemática. Assim, dimensionamos,
além das ferramentas teóricas mencionadas, a partir das quais constituímos nosso objeto e
problema de pesquisa, a viabilidade de efetivar este estudo no contexto e curso do mestrado.
Nesse processo, emergiu a opção de o realizarmos a partir da análise dos materiais midiáticos
e documentais.
A seguir, apresentamos as perguntas que nortearão essa pesquisa:
- No contexto da cidade de Maceió, como se constituiu esta população de
moradores de rua? Quais condições de possibilidade podem ser associadas a sua produção
nos campos histórico, político, econômico e social?
- Como a mídia eletrônica19 veicula e produz o acontecimento das mortes dos
moradores de rua em Maceió? O que se diz sobre isso?
- Nos meios de comunicação e documentos públicos que relatam este
acontecimento, quais explicações são veiculadas?
- Como a mídia e os documentos objetivam esses sujeitos moradores das ruas de
Maceió?
- Quais soluções são veiculadas nestes documentos midiáticos e de domínio público
para o enfrentamento desses assassinatos e da própria condição de morar nas ruas? Quais
entidades da sociedade são mobilizadas/convocadas para implementar tais soluções?
- Nos documentos analisados, quais saberes/discursos são convidados ou impelidos
a responder por tais mortes em Maceió? Quem e o que falam sobre as mortes de moradores
de rua nesta cidade?
Essa pesquisa tem como objetivo principal produzir uma crítica do presente e dos
modos de governo da vida e da morte a partir da problematização dos assassinatos de
moradores de rua em Maceió, registrados pela mídia e outros documentos públicos. Para isso,
desde a perspectiva da Psicologia Social e dos estudos foucaultianos, colocaremos esse
acontecimento em análise a partir dos conceitos de modos de subjetivação, governo e relações
de poder/saber.

19

A opção pela mídia eletrônica deu-se em função da facilidade de acesso e recuperação do material.
Eventualmente os materiais acessados pelas mídias eletrônicas foram também veiculados em outras mídias.

20

A partir do objetivo geral, podemos assinalar os seguintes objetivos específicos para
esta dissertação:
- discutir as condições de possibilidade que podem ser associadas à produção de uma
população moradora de rua em Maceió, considerando aspectos históricos, políticos,
econômicos e sociais do município e de Alagoas;
- analisar como a mídia e os documentos públicos veiculam e produzem verdades
sobre o morrer dos moradores de rua em Maceió e sobre esses sujeitos, considerando o que é
dito sobre, que campos de saber e discursos compõem esses enunciados, que explicações são
oferecidas sobre sua situação, como são objetivados esses sujeitos que moram e são mortos
nas ruas de Maceió;
- problematizar as soluções veiculadas nestes documentos midiáticos e de domínio
público para o enfrentamento desses assassinatos e da própria condição de morar nas ruas;
- refletir sobre os modos de subjetivação e governo da vida e da morte no cotidiano
das cidades;
- discutir como a psicologia pode se relacionar com o enfrentamento dessa
problemática e contribuir com a formulação de políticas públicas.

1.3 As mídias, acontecimento e produção de verdades
Neste trabalho, os assassinatos de moradores de rua em Maceió passam a ser tomados
como um acontecimento, como a irrupção de uma singularidade única e aguda, marcada por
um contexto historicamente datado (LOBO, 2008; CARDOSO, 1995). Para Cardoso (1995), o
acontecimento opera uma diferenciação entre a atualidade e o presente, construindo
interrogações sobre o que somos através da problematização e da crítica do presente.
A proposta desta pesquisa se ancora na análise do cotidiano, tal como ele é produzido
pelos materiais veiculados pela mídia eletrônica sobre os assassinatos de moradores de rua em
Maceió. Também consideramos importantes materiais de análise os documentos públicos
escritos simultaneamente ao acontecimento das mortes dos moradores de rua em Maceió por
instituições ligadas aos direitos humanos, igrejas e outras organizações do governo e nãogovernamentais, compreendendo que são elementos importantes para contar a história deste
acontecimento, ao possibilitar acesso às redes de discursos a que está associado.

21

Deste modo, consideramos o texto midiático como importante material para a
problematização dos modos de produção e gestão da vida, pois materializam
práticas/discursos que circulam ou passam a circular no cotidiano como verdades, produzindo
simultaneamente sujeitos e modos de governo. É nesse sentido que Coimbra (2001) situa a
subjetividade como um conceito-ferramenta, circunscrevendo-a numa historicidade,
relacionando-a a processos coletivos e múltiplos de subjetivação. Como destaca a autora, a
produção de subjetividades não se restringe pura e simplesmente à produção de sujeitos, mas
a práticas múltiplas e diferentes que determinam formas de governo do outro, produzindo
modos de ser e de viver no mundo.
Na contemporaneidade, a mídia assume importante função nas formas como falamos
de nós e do mundo, trazendo para o cenário público-político do dia-a-dia uma série de
acontecimentos que, não fosse por ela, passariam como inexistentes para grande parte da
sociedade. Neste sentido, as mídias produzem efeitos de verdade relacionados aos modos de
ser e de viver em sociedade, tornando fatos não apenas visíveis, mas também verdadeiros. Os
discursos veiculados na mídia sobre os assassinatos de moradores de rua em Maceió
produzem efeitos de verdade no cotidiano, dando visibilidade e existência a este
acontecimento.
Coimbra (2001), em seu livro Operação Rio, no qual faz uma análise das mídias e a
produção das classes perigosas, coloca alguns pontos importantes ao considerarmos os
discursos midiáticos: 1) A mídia produz significações e interpretações sobre o mundo; 2) nos
orienta sobre o que pensar, sobre o que sentir; 3) produz modos de viver e de ser conforme o
modelo socio-econômico do capitalismo. E afirma ainda que “as verdades, portanto, são
massivamente produzidas em nosso cotidiano por uma série de equipamentos sociais e hoje,
ocupando lugar privilegiado, estão os mass media” (COIMBRA, 2001, p. 45). Através de uma
discussão relacionada à construção de verdades, a autora afirma a produção, por parte dos
dispositivos sociais, do real e de verdades, de falas autorizadas, do esquecimento de fatos e
acontecimentos – que se não são veiculados na mídia, não existem –, a produção de bandidos
e vilões, sob o signo do extermínio (da limpeza urbana). Tais produções dizem respeito,
principalmente, ao governo do outro, relacionando-se à vida das pessoas no cotidiano e
determinando formas qualificadas20 de existência.
20

As formas qualificadas de existência, apontadas neste texto, se referem a um modelo de vida ideal, a partir do
qual as vidas são postas em parâmetro de comparação, tendo como elemento central a possibilidade de consumo
de hábitos e costumes civilizados, desejáveis à vida social moderna. Agamben (2010) menciona as ideias gregas
de vida qualificada (bíos), relacionada à forma como um determinado grupo ou indivíduo vive; e, a simples vida

22

Esta pesquisa torna-se exequível e passa a existir através da problematização da
produção de uma exclusão inclusiva21, do que chamaremos de vidas menos qualificadas à
mercê de uma tutela especializada (LOBO, 2008; COIMBRA, 2001). Neste sentido, a
produção de dominação e de exclusão relaciona-se à produção de verdades sobre esses
moradores de rua e seus modos de vida. Conforme Coimbra (2001), a mídia foi, e podemos
afirmar que ainda é, um importante equipamento social para a construção de associações entre
pobreza e criminalidade, pois ao veicular massivamente uma série de discursos ligados a
teorias da degenerescência da espécie, à eugenia e à limpeza social, legitima certas classes
sociais e certas verdades em detrimento da pobreza, tida como ponto de iminente perigo para
a sociedade.
Essa produção de verdades que subjetivam e objetivam, simultaneamente, sujeitos e
coisas, está atravessada por relações de poder. Foucault (1979), em entrevista a Alexandre
Fontana, relaciona a verdade ao poder, tornando impossível pensá-la fora das relações de
poder. Ele atribui cinco características históricas à economia política da verdade em nossas
sociedades:
A “verdade” é centrada na forma do discurso científico e nas instituições que o
produzem; está submetida a uma constante incitação econômica e política
(necessidade de verdade tanto para a produção econômica, quanto para o poder
político); é o objeto, de várias formas, de uma imensa difusão e de um imenso
consumo (circula nos aparelhos de educação ou de informação, cuja extensão no
corpo social é relativamente grande, não obstante algumas limitações rigorosas); é
produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns
grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidade, exército, escritura, meios
de comunicação); enfim, é objeto de debate político e de confronto social (as lutas
“ideológicas”). (FOUCAULT, 1979, p. 13).

A produção de verdades, dominação e exclusão associa-se através de “sistemas de
poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem”
(FOUCAULT, 1979, p.14). Neste sentido, configuram-se formas de governo da vida, modos
de ser e de viver em sociedade que transformam o corpo social através da invenção constante
de novas subjetividades.

natural dos viventes (zoé) que seria o mero fato da vida dos animais, homens e os outros seres vivos. Cabe
ressaltar, no entanto, que mesmo pensando a ideia de qualificação da vida, ou a ideia de formas de vida
qualificada, a partir dos textos de Agamben (2010), nesta dissertação deve ser lida no contexto dos materiais de
análise, de uma monocultura da vida, como veremos no próximo capítulo.
21
Termo utilizado por Giorgio Agamben para se referir à relação de abandono que une o poder soberano e a vida
nua. A exclusão inclusiva seria uma forma de incluir o que foi expulso, “ou seja, precisamente, o ser incluído
através de uma exclusão, o estar em relação com algo do qual se foi excluído ou que não se pode assumir
integralmente” (AGAMBEN, 2010, p. 33). Trata-se, portanto, de uma relação na qual o excluído está em contato
permanente com aquilo do qual foi excluído, justamente por sê-lo.

23

É no âmbito da produção de conhecimento em psicologia que propomos pensar os
modos de governo e as produções de subjetividades no contexto dos discursos midiáticos e de
documentos públicos relacionados aos assassinatos de moradores de rua em Maceió.
Concordamos com Rose (2008), ao afirmar que a psicologia surge e emerge em um campo de
possibilidades em que é chamada a contribuir para o governo dos sujeitos, a partir de uma
lógica pautada pela normatividade. Contudo, torna-se necessário forjarmos novas formas de
pensar as subjetividades e suas relações com o normal e a verdade e, neste sentido, “a
psicologia também pode se constituir como uma potente ferramenta questionadora” destes
lugares instituídos em que tecemos práticas e discursos sobre a normalidade (SCISLESCKI;
GUARESCHI, 2011, p. 86).
É na busca da produção de crítica do presente que nos aproximamos desta temática, na
medida em que, de modo geral, a violência urbana vem sendo compreendida não só como um
fato natural, mas certamente como algo inerente à vida contemporânea nas cidades
(COIMBRA, 2001). Deste modo, buscamos provocar aproximações entre o campo das
práticas e discursos psicológicos com uma temática que se constitui no âmbito da política.

1.4 Produzindo verdades e visibilidades: mídia e documentos públicos
Consideramos o texto midiático e os documentos públicos (relatórios de entidades
governamentais e de pesquisas) como um importante material para nossos objetivos de
pesquisa, uma vez que se apresentam como via fundamental para contar a história dos
assassinatos dos moradores de rua em Maceió, pois são os únicos textos públicos que
acompanham este acontecimento, servindo como base para os relatórios do Ministério Público
e da Comissão de Direitos Humanos da OAB/AL. Consideramos que nestes textos são
veiculados discursos-práticas que circulam no cotidiano, por isso tomamos-lhe, em sua
materialidade e dinâmica, como participantes da construção de nosso campo de análises.
Nesse sentido, tornam-se necessárias algumas considerações sobre suas características
na atualidade, configurando-as como relevantes para pensarmos a construção metodológica
adotada para esta pesquisa.
Melo (2010) afirma que, ao constituir como problema público certos assuntos em
detrimento de outros, a mídia atribui sentidos, cria e inventa um mundo pela linguagem, que
interpela os sujeitos e produz mudanças nas formas como percebem e sentem as coisas do
mundo. Os discursos veiculados nas mídias produzem efeitos de verdade e subjetividades,

24

determinando formas de viver que incidem nos corpos, engendrando formas de agir no
mundo.
Em consonância com Coimbra (2001), tomamos a verdade como resultado de uma luta
entre diferentes forças, e, configurando-a como um fato histórico, estamos ressaltando sua
transitoriedade e seu aspecto singular inerente a um determinado campo social, histórico e
político (FOUCAULT, 1979). Deste modo, ao percorrer enunciados de jornais, documentos
públicos e relatórios, não estamos averiguando e buscando algo escondido ou por trás do que
está sendo dito, pois compreendemos que a verdade e os discursos são produtos de
atravessamentos históricos e, como tal, produzidos de diferentes formas, atrelados aos seus
contextos.
Neste trabalho a mídia é compreendida como um dispositivo social e, como tal,
emerge num determinado terreno de possibilidades para responder a uma determinada
urgência histórica (COIMBRA, 2001; MARCELLO, 2009; DELEUZE, 1990). Deleuze
(1990) afirma que os dispositivos são “máquinas de fazer ver e fazer falar”, produzindo
visibilidades, estando relacionados ao que chama de “invenção de subjetivação”. Eles estão
ligados em redes de práticas e discursos que virtualizam possibilidades, materializam
subjetividades, tornando possível a construção de sujeitos e coisas sobre as quais se dirigem
práticas e discursos que se constroem à medida que os produzem.
Além das razões e motivações teóricas apresentadas anteriormente, a escolha em
trabalhar com mídia digital acontece também por razões práticas, relacionadas ao acesso e à
disponibilidade, durante tempo prolongado, de informações sobre o acontecimento a que nos
ocupamos nesta dissertação. Portanto, esta mídia tornou-se relevante para acompanharmos o
acontecimento e a forma como este era veiculado, despertando mobilizações por parte de uma
série de instituições.
O material escolhido para a análise é composto por matérias jornalísticas de sites de
notícias locais e nacionais que veicularam os assassinatos de moradores de rua em Maceió no
período de julho de 2010 até agosto de 2012, e que podem ser acessadas através da internet.
Para Fischer (2007), as mídias nos apresentam narrativas, fatos e histórias que devem
fazer parte da nossa história, da nossa memória, construindo o que chama de “passados
públicos”. Neste sentido, pouco importa a qual público tais notícias ou programas são
endereçados, o que interessa é o nosso de desejo de ver, ler e assistir essas histórias.

25

Para esta dissertação, as notícias foram procuradas e selecionadas através de sites de
pesquisa online, como o Google, e através de busca em sites de empresas de notícias, tais
como Folha.com, Tudo na Hora, Gazeta Web, G1, entre outros do mesmo tipo. Os descritores
utilizados para tais buscas foram: moradores de rua, moradores de rua em Maceió,
assassinatos de moradores de rua em Maceió.
Além disto, utilizamos documentos públicos e relatórios escritos no período de julho
de 2010 até agosto de 2012 sobre os assassinatos de moradores de rua em Maceió.
Documentos públicos e relatórios fomentados22 e redigidos por setores da sociedade que, de
alguma forma, são chamados a dar respostas e soluções a tais acontecimentos, tais como
Igrejas, entidades relacionadas aos direitos humanos, entre outras.

1.5 Sobre a análise dos materiais
A análise que propomos foi realizada a partir do que chamamos de genealogia do
acontecimento. Este tipo de análise caracteriza-se pela busca minuciosa de descontinuidades,
rupturas e atravessamentos históricos, desnaturalizando acontecimentos, coisas que
pareceriam óbvias a um primeiro olhar. Neste sentido, a genealogia compromete-se com a
geração de crítica, e crítica do presente (de como nos tornamos o que somos) direcionada à
ação (HOOK; HÜNING, 2009).
Tomar os assassinatos dos moradores de rua como um acontecimento é antes garantir
ou circunscrever a especificidade desta ocorrência histórica particular, protegendo-a de
generalizações que produzem naturalização dos modos de subjetivação contemporâneos. É
por esta via que buscaremos em nossa análise os atravessamentos históricos que, em última
instância, nos levarão às relações de poder imbricadas na produção deste acontecimento que
tem como principal alvo os corpos, corpos mortificados de moradores de rua, inscritos numa
historicidade. O mesmo corpo que se alimenta e é investido de desejo, de poder, é tomado
pela genealogia. Foucault (1979, p. 22) afirma que “a genealogia, como análise da
proveniência, está, portanto no ponto de articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar
o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo”.
É através da produção dos nossos materiais que podemos falar da construção de um
problema de pesquisa, atravessado pela história: trata-se de um corpo de textos e de
22

Retomaremos na segunda parte desta dissertação, os aspectos relacionados à forma de acesso e de inclusão
destes documentos para esta dissertação.

26

documentos que compõe um enredo particular de histórias e narrativas. É no encontro com
estes materiais que redefinimos o percurso da pesquisa, alterando não só a forma de narrar o
acontecimento dos assassinatos de moradores de rua em Maceió, como também a nossa
própria história.
A partir da organização e produção dos materiais, a análise documental e midiática
segue a partir de analisadores teórico-conceituais. Os analisadores foram produzidos a partir
do que encontramos nos textos midiáticos e documentos públicos e pelos atravessamentos do
referencial teórico adotado. Estes analisadores serão apresentados e tematizados na segunda
parte desta dissertação.

No capítulo 2 desta dissertação, intitulado A construção de uma população de rua:
atravessamentos históricos de uma monocultura da vida, abordaremos o presente histórico, a
partir do cenário de violência em que o Estado de Alagoas está inserido, trazendo a concepção
de monocultura para pensarmos como é produzido o abandono de certos sujeitos a condições
precárias de sobrevivência, expondo-os à morte. Já no capítulo 3, O investimento na vida:
sobre as ruas e os seus moradores, proporemos pensar a forma como as ruas se tornaram, nas
cidades modernas, lugares de produção de perigo e vulnerabilidade à vida dos citadinos,
retomando aspectos históricos e sociais sobre a formação das ruas e cidades.
Enquanto na primeira parte, traremos aspectos culturais, sociais, políticos e históricos
da constituição de uma população de rua e das cidades, na segunda parte, abordaremos os
materiais de análise, traçando o percurso feito para a construção dos analisadores teóricoconceituais.
Neste sentido, o capítulo 4, Entre textos e notícias: a construção de pistas para a
análise, abordará as questões metodológicas da construção da análise dos materiais midiáticos
e outros documentos públicos, apontando ao final os seguintes analisadores, que serão
abordados nos demais capítulos: 1) o abandono da vida e a produção de vida nua; 2) as drogas
como um dispositivo biopolítico de regulamentação da vida; e 3) a banalização da morte e as
estratégias de governo para a população de rua.
No capítulo 5, De morador de rua a criminoso: identidade biográfica e a produção de
vida nua, abordaremos a forma como é construída uma subjetividade criminosa em relação
aos moradores de rua em Maceió, através dos rastros de uma biografia destes sujeitos,
produzindo-os como vida nua, disposta à tutela competente ou ao extermínio nas ruas. Neste

27

viés, o capítulo 6, As drogas e um certo fascínio sobre os discursos competentes, abordará a
forma como o dispositivo das drogas contribui para uma identidade ambígua destes sujeitos,
ora como vulneráveis, ora como criminosos, colocando-os numa relação, a partir da qual os
dispositivos de segurança irão intervir sobre suas vidas, por meio de estratégias de governo de
suas condutas.
O capítulo 7, Produção de mortalidade e as estratégias de governo nas Políticas
Públicas para a população de rua em Maceió, tem por objetivo problematizar duas temáticas
construídas ao longo da dissertação sobre os assassinatos dos moradores de rua em Maceió: a
produção de mortes (mortalidade) nas cidades e as estratégias de governo para a população de
rua na capital de Alagoas. Por fim, faremos um apanhado geral dos temas abordados nesta
dissertação, trazendo nas considerações finais, alguns aspectos que transversalizaram as
análises desta dissertação e que podem ser abordados em pesquisas futuras.

28

2 A CONSTRUÇÃO DE UMA POPULAÇÃO DE RUA: ATRAVESSAMENTOS
HISTÓRICOS DE UMA MONOCULTURA DA VIDA

No dia 6 de dezembro de 2012, participei rapidamente de uma cena a partir da qual
iniciarei a escrita deste capítulo. Ao voltar para casa, por volta das vinte e duas horas, vi pela
janela do ônibus um homem dormindo sobre um papelão na frente de uma loja de móveis.
Este senhor estava deitado exatamente na frente de uma cama, que parecia confortável;
iluminados, a cama e ele, por uma luz que colocava em destaque o contraste daquela cena.
Apenas uma vidraça transparente separava este homem daquela bela e confortável cama: a
vidraça o separava da cama que estava na vitrine, opondo-os, a partir de um jogo de
transparências, em lugares diferentes, ainda que tão próximos. Mas não era só aquela vidraça
que dava a impressão de uma distância tão lacunar entre estes espaços, o público e o privado,
entre aquele homem e o que elegemos como uma vida sofisticada do interior de um domicílio.
Naquela cena vi um retrato, uma fotografia do que nos tornamos. E isso me causou uma
profunda vergonha, pois a vidraça do ônibus não me separava daquela cena: separados por
uma vidraça produzimos uma cena sem fugitivos, sem observador e observado, não pude
deixar de participar dela, como que se em uma dupla captura estivéssemos no aberto. Aquele
retrato me olhava e eu também o olhava, não havia muros entre nós, apenas uma vidraça
transparente.
Esta cena me fez pensar sobre uma série de questões: sobre o que fizemos de nós
mesmos e, principalmente, sobre a forma como construímos cotidianamente uma indiferença
e uma série de vidraças transparentes para nos separarmos de questões e de situações do
cotidiano, tomando-as como algo natural da vida nas cidades. Ora, ao produzirmos aquela
cena, pude pensar sobre a forma como a miséria e a desigualdade social, comuns a tantos
cidadãos, tornam-se parte de nossa rotina e, também, aparecem como necessários para a
manutenção dos estados das coisas.
Mas o que me chamou atenção, entre tantas coisas e num intervalo de tempo tão curto
da passagem de um ônibus, foi pensar que estamos produzindo e sendo produzidos nessas
práticas de indiferença com a vida e de manutenção da miséria e da desigualdade. Em outros
termos, pensei como é bom para muitos de nós que as coisas se mantenham como estão e que
a partir das relações de força continuemos a produzir vidas que possam ser comparadas as que

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levamos: isso deve produzir uma sensação boa de vitória para uns e de fracasso para outros.
Construímos formas de viver que podem ser comparados numa escala de valor.
Quanto à vergonha que senti, Agamben (2008, p. 108) afirma que o rubor ou a
vergonha relatada por aqueles que saíram com vida dos campos de concentração não se refere
a um sentimento de culpa ou ao fato de terem sobrevivido aos demais, mas ao fato de “que
todos morrem e vivem no lugar de um outro, sem razão nem sentido; que o campo é o lugar
em que realmente ninguém consegue morrer ou sobreviver no seu próprio lugar”. E com isto,
o autor completa ressaltando que Auschwitz significou “que o homem, ao morrer, não pode
encontrar para sua morte outro sentido senão aquele rubor, senão aquela vergonha”.
Esta referência ao campo e à morte, para falar de vergonha, está relacionada ao fato de
que a produção de um texto de dissertação passa por estes caminhos e, principalmente, por
processos de transformação de nós mesmos no ato de escrever. Digamos que a escrita e as
demais experiências que a compõem exigem de nós mesmos uma morte diária, um cessar da
respiração e uma retomada de fôlego que nos dá a chance de continuar a escrever sobre a
realidade em que vivemos. Ou seja, exige uma mudança constante de perspectiva; um
estranhamento do que pensamos, sentimos e vivenciamos.
Portanto, mesmo sendo um texto autoral, preferi dar vazão às inúmeras vozes e
experiências que compõem esta escrita, por vezes tão solitária. O texto que segue será escrito
na primeira pessoa do plural, nos “nós” que atravessam o percurso da escrita acadêmica.
Para Agamben (2008, p. 97), a vergonha acontece, entre outras coisas, pela "exaltação
da simples existência". Nisto, menciona algo interessante sobre a mudança do que pode ser
considerado trágico em nossa contemporaneidade. Este autor afirma que na tragédia grega a
responsabilidade por um feito se dava, ao mesmo tempo, pela culpa e inocência dos sujeitos
no que diz respeito aos seus atos, e não pela culpa ou inocência destes, de forma que seria ou
uma ou outra. Ou seja, na tragédia grega nos encontramos com uma culpa objetiva de um
sujeito que nos parece inocente – tal qual Édipo e seus feitos, que em seu destino trágico
acaba matando seu pai e casando-se com sua mãe voluntariamente, sem sabê-lo.
Mas este autor afirma que em nossa contemporaneidade não podemos falar de um
paradigma trágico na ética, entre vários motivos, por um específico: ao contrário da Grécia
Antiga, em que o sujeito admitia para si a responsabilidade pelo seu ato, tal qual Édipo, e por
admitir/tomar para si essa responsabilidade (por decidir por ela) demonstrava seu heroísmo
("destes atos eles não querem ser inocentes; pelo contrário, a glória deles consiste em terem

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realmente feito o que fizeram." (Hegel citado por AGAMBEN, 2008, p. 102); na nossa
contemporaneidade, as pessoas recusam a sua responsabilidade, rechaçando de si uma culpa e
admitindo uma inocência, tal qual Eichman que disse ser inocente por ter matado inúmeros
judeus nos campos de concentração, afirmando que estava trabalhando, por isto, apenas
cumpria ordens. Para Agamben (2008), a configuração contemporânea desta zona de
irresponsabilidade revela uma outra ética diferente daquela da tragédia.
Este autor toma essa questão para afirmar que a ética, à qual nosso tempo está sujeita,
é outra: "para além do bem e do mal não está a inocência do devir, porém uma vergonha não
só sem culpa, mas, por assim dizer, já sem tempo" (AGAMBEN, 2008, p. 107). Nestes
termos, conclui que “o herói grego despediu-se de nós para sempre, não podendo mais, em
caso algum, testemunhar por nós; depois de Auschwitz, não é possível utilizar um paradigma
trágico na ética” (AGAMBEN, 2008, p. 104).
Portanto, pensamos que os assassinatos de moradores de rua não podem ser pensados
como um acontecimento trágico, ou mesmo como uma mera fatalidade. Ao contrário,
devemos pensá-los como um produto histórico que está relacionado às formas como
decidimos viver e qualificar a vida, ou seja, estão imbricados numa continuidade histórica
presentificada em rotinas de práticas que se arrastam durante séculos de história, sem culpa e
já sem tempo.
Trata-se de analisar o presente histórico – o que nos tornamos – a partir dos efeitos de
verdade que produz em nossas vidas, tornando-nos sujeitos de uma história que nos antecede
e assujeita, e, ao mesmo tempo, nos chama a um protagonismo social.
Neste capítulo, e ao longo desta dissertação, diferentemente de procurar culpados ou
uma origem histórica para a população de rua em Maceió, buscaremos, a partir da análise
histórica, mostrar uma racionalidade de Estado, a partir da qual esta população se constitui,
bem como os diversos atravessamentos históricos que irão dispor as vidas destes sujeitos
numa rotina de práticas que visam qualificá-las.
Para isto, inicialmente traremos o presente histórico ao plano de análise, composto por
índices de violências e de homicídios na capital alagoana e, em seguida, abordaremos a
questão da monocultura como um importante articulador de práticas para pensar a população
de rua em Maceió. E, por fim, iremos articular estes aspectos históricos, culturais e
econômicos a uma lógica de qualificação da vida presente nos discursos-práticas que irão
dispor as vidas dos moradores de rua desta cidade.

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2.1 Violência e homicídios no paraíso das águas
A cidade de Maceió é conhecida pelas belezas naturais, principalmente por suas praias
que atraem anualmente turistas do Brasil e de outros países, constituindo-se como uma rota
turística importante para a economia do país e do estado. Num cenário de praias de águas
mornas e azuladas, e uma cultura popular expressiva com suas danças típicas e festejos
populares, que expressam toda uma vida cultural da cidade, encontra-se uma cidade
inteiramente marcada por mortes e movimentos de resistência; trata-se mesmo de uma história
que atravessa a vida e a vida nas ruas da cidade.
Em 2011, foram publicadas informações importantes para as políticas de segurança
pública brasileira no Mapa da Violência 2012: os novos padrões da violência homicida no
Brasil, elaborado pelo Instituto Sangari. Segundo Waiselfisz (2011), estes dados foram
obtidos através dos registros do Sistema de Informações sobre a Mortalidade (SIM) do
Sistema Único de Saúde (SUS), considerando homicídio violento a morte que tem como
características uma agressão intencional de terceiros, utilizando qualquer meio que venha
provocar a morte da vítima, com base no documento da Classificação Internacional de
Doenças 10 (CID-10), formulado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e utilizado nos
registros do SIM. Ressalta-se também que os dados utilizados para este documento
compreendem os índices de homicídios no Brasil ao longo de 30 anos, de 1980 a 2010.
O relatório inicia com um discurso sobre a segurança pública no Brasil e o quanto esta
vem sendo alvo de preocupação por parte do Governo Federal, disputando prioridade com a
Educação e a Saúde.
As informações utilizadas e organizadas no Mapa da Violência (WAISELFISZ, 2011)
revelam um aumento expressivo do número de homicídios no Brasil: em 30 anos, de 1980 a
2010, o país passou de 13.910 homicídios para 49.932, correspondendo a um aumento de 259
por cento.
Este Mapa revela algumas informações importantes sobre o Estado de Alagoas, que
registra o maior índice de violência no panorama da violência nacional, de 66,8%,
surpreendendo as estimativas estatísticas em âmbito nacional, segundo o relator deste
documento. Afirma ainda que os índices de violência no Brasil passam a ocupar um estado
nebuloso e de onipresença em todo o território nacional, deixando de ter um nome e um
endereço, não podendo ser rastreada e identificada com exatidão como acontecia
anteriormente. Trata-se de uma verdadeira generalização da violência em território nacional.

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O Mapa da Violência visibiliza e cria um cenário no qual há uma mudança quanto aos
estados com maior número de homicídios no Brasil. De um lado, estados como o Rio de
Janeiro e São Paulo, que lideravam as estatísticas de violência, agora estão demonstrando uma
queda estatística importante: o primeiro registra uma queda de 42,9%, e o segundo de 63,2%.
Em contraste, estados que estavam em níveis moderados ou baixos de violência homicida no
ano de 2000, como Alagoas, Pará e Bahia, apresentam um crescimento elevado dos índices de
homicídios: se no início da década ocupavam, respectivamente, o 11º, o 21º e o 23º lugar, em
2010 passam, na mesma ordem, ao 1º, 3º e 7º lugar no ranking nacional.
Segundo o Mapa da Violência, há um aumento expressivo dos índices de homicídios
nos municípios alagoanos, principalmente a partir de 1999, sendo que a capital, Maceió,
concentra a metade dos homicídios do estado “com uma taxa pouco vista no histórico dos 30
anos nas capitais brasileiras: 109,9 homicídios em 100 mil habitantes” (WAISELFISZ, 2011,
p. 89).
Os homicídios no Brasil, segundo o relatório, tem uma cor. Waiselfisz (2012) afirma
que, a partir de 2002, há uma tendência relacionada à queda do número absoluto de
homicídios na população branca e um aumento importante desses números na população
negra do país.
Em Alagoas este quadro é alarmante. Enquanto o Brasil teve uma taxa geral de
homicídios de 27,4 por 100 mil habitantes em 2010, o estado de Alagoas alcançou a taxa de
80,5 por 100 mil habitantes negros no mesmo ano, apresentando um índice três vezes maior
que o nacional para a população geral (WAISELFISZ, 2012). No que se refere à capital
alagoana, o relatório apresenta as seguintes considerações:
Se no item anterior [os homicídios nas Unidades da Federação] manifestávamos
profunda inquietação devido aos elevados índices de vitimização negra na Paraíba e
em Alagoas, os dados referentes a suas capitais são ainda mais graves. João Pessoa
apresenta uma taxa de homicídios negros de 140,7 cada 100 mil negros e a de
Maceió de 132,6. E os índices de vitimização negra dessas capitais impressionam:
em João Pessoa por cada branco que é assassinado, proporcionalmente morrem 29
negros pela mesma causa. Em Maceió, a proporção é semelhante: para cada branco
morrem 26 negros. A gravidade da situação nas capitais pode ser melhor entendida
se observarmos que a média nacional de vitimização negra foi de 132,3 em 2010.
Mas nas capitais, nesse mesmo ano, a vitimização negra foi quase o duplo que a
nacional: 250. Só em uma das capitais do país: Curitiba, a taxa de homicídios de
negros foi menor que a dos homicídios brancos. (WAISELFISZ, 2012, p. 19).

O paraíso das águas tem se configurado como um campo expressivo de violência
contra a vida. É este presente histórico que tomaremos como campo de análise ao
considerarmos os assassinatos dos moradores de rua em Maceió.

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Vasconcelos (2005) ressalta a importância de compreender a produção de violência a
partir da dimensão cultural tanto quanto a econômica, mas ressalta que em Alagoas a cultura é
um aspecto fundamental para abordar a violência no Estado, chegando a se referir a uma
cultura de violência. Esta autora considera a cultura de violência “uma construção social que
revela toda uma dinâmica social e política, expressa em representações e práticas sociais de
sujeitos em suas relações cotidianas” (p. 38).
Também afirma que as formas como esta cultura se manifesta na vida social e política
de Alagoas têm apresentado várias facetas ao longo de sua história, expressando-se conforme
os contextos históricos. Com isto, ressalta um problema importante que os altos índices de
violência, e, a ideia de que a violência é algo constituinte das relações humanas, coloca para a
filosofia política: “como manter a violência em limites compatíveis com a ordem social”
(VASCONCELOS, 2005, p. 42).
Neste momento, a autora coloca a violência como algo inevitável à vida em sociedade,
como algo que não poderá ser extinto, mas que em certa medida pode ser controlado em uma
faixa de normalidade. Neste sentido, a violência é tomada dentro de uma lógica biopolítica
relacionada à produção de um nível de segurança geral para a população (FOUCAULT,
2008).
No entanto, há algo que chama atenção no texto da autora, quando se refere aos efeitos
da violência na vida social:
Esta cultura de violência produz efeitos mais visíveis e diretos sobre determinados
segmentos sociais, mas perpassa a totalidade do tecido social. É importante
reconhecer que todos os sujeitos sociais estão inseridos nesta cultura de violência
como vítimas, mesmo os agressores; porque estes perdem a capacidade de ver e
reconhecer o outro como um igual, portador de direitos e garantias constitucionais.
Evidente que nem todos agem com violência neste processo, mas contribuem para a
sua reprodução quando se posicionam com passividade e resignação frente aos
padrões culturais de exclusão moral e social que inevitavelmente revertem-se na
produção de práticas de violência. A participação passiva no processo de produção
desta cultura de violência revela-se, particularmente, na “cultura do medo” que
imobiliza os sujeitos diante das práticas de violência de que são vítimas ou
espectadores. (VASCONCELOS, 2005, p. 43, grifo nosso).

Primeiramente a autora afirma que a cultura de violência tem efeitos diretos e visíveis
em um público específico, em seguida, ressalta que esta cultura produz a todos como vítimas,
deste modo até os agressores também o são, pois deixam de reconhecer no outro direitos e
garantias constitucionais. Este trecho é importante por trazer à tona uma racionalidade a partir
da qual as políticas públicas irão olhar a vida dos sujeitos que sofrem violências: um olhar de
restituição ou de garantia de direitos. Ao que parece uma das formas de diminuir ou controlar

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a violência, num nível de segurança aceitável, é munir a vida de direitos, ou seja, é fazê-la
funcionar em uma lógica de legalidade que a mantenha em segurança.
Por fim, a autora ressalta que a manutenção desta cultura de violência é garantida pela
disseminação de uma cultura do medo, ou seja, diante da violência adotamos uma passividade
a partir da qual nos tornamos vítimas ou meros expectadores. No entanto, poderíamos pensar
que estas práticas, relacionadas às culturas do medo e de violência, ao invés de produzirem
algo como uma passividade, produzem uma determinada forma de nos relacionarmos com a
vida dos outros nas cidades contemporâneas: a indiferença, pensada não a partir de uma lógica
de vitimização, mas de um abandono da história através de uma naturalização de aspectos
sociais.
Vasconcelos (2005) afirma ainda que em Alagoas o que se destacava era o crime
político, que contava com a própria estrutura de Estado para cometer crimes, motivados por
interesses políticos; trata-se, portanto, de uma violência institucionalizada. Deste modo, a
autora afirma também a forma como esta violência era reforçada por valores culturais
relacionados à legitimação da violência quando motivadas por vingança e defesa da honra.
O aforismo que diz “Em Alagoas não há balas perdidas, porque aqui as balas têm
um endereço certo” transformou-se numa assertiva emblemática para caracterizar a
especificidade da violência em Alagoas, e termina por revelar uma certa cultura de
violência que se expressa em crimes por encomenda, ou crimes de pistolagem que
são divulgados em alto e bom som pelos meios de comunicação de massa, (...).
(VASCONCELOS, 2005, p. 86).

De fato, conforme os dados do Mapa da Violência de 2012 apresentados
anteriormente, em Alagoas “as balas têm um endereço certo”, ou melhor, têm cor e classe
social. Talvez não mais numa relação com os crimes por encomenda ou de pistolagem, mas
através de uma série de violências às quais estes sujeitos são expostos cotidianamente.
Vasconcelos (2005) afirma que, ao abordar a temática da violência política no estado,
alguns autores revisitam a história, chegando ao período colonial e às bases do coronelismo,
que, segundo a autora, ganhou grandes proporções na história política de Alagoas. A partir da
pesquisa que fez sobre o poder e a cultura de violência no Estado, afirma que “há uma certa
linha de continuidade entre as bases de poder montadas no período colonial e a lógica de
poder de mando que ainda referencia as práticas dos ‘novos coronéis’ que compõem o cenário
político de Alagoas” (VASCONCELOS, 2005, p. 84-85).
Por isto, seguiremos agora para pensar a monocultura da cana-de-açúcar em Alagoas e
os vestígios históricos da produção de pobreza e da exposição de certos sujeitos a condições
insalubres de sobrevivência, relacionados à constituição de uma população de vulneráveis.

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2.2 A monocultura e uma economia da vida
Em Crime, privilégio e pobreza: Alagoas no limiar do terceiro milênio, Lira (1997)
faz uma crítica socioeconômica das condições políticas e sociais de Alagoas. Afirma que,
embora o estado tenha um potencial agrícola, turístico, de recursos humanos e naturais
importante, encontra-se entre os piores indicadores sociais do país, constituindo um “quadro
social sombrio” de extrema desigualdade social.
Este autor afirma que estas condições são formuladas a partir de uma lógica de
concentração de riqueza nas mãos de uma minoria detentora de terras. Neste sentido, afirma
que o poder político no estado está relacionado à monocultura da cana-de-açúcar e a um
modelo econômico agropecuário que garantem a certos sujeitos, através de uma concentração
de renda elevada, “o privilégio de impor o modo de produção (agropecuária) e de vida à
sociedade de todo o Estado, inclusive indicando os candidatos a ser votados” (LIRA, 1997, p.
24). Portanto, para o autor, haveria uma imposição de padrões sociais que legitimam os ideais
e interesses desta minoria diante dos demais.
Segundo Lira (1997), esta política oligárquica tem produzido um destino condenável
para o estado, relacionando-o a um atraso econômico e social. Por isto, afirma que:
O modelo político coronelista de produzir, administrar e distribuir que predomina
em Alagoas não tem um projeto para o desenvolvimento do Estado e não possui
sequer um projeto agropecuário econômico e socialmente moderno, e, por
conseguinte, não se preocupa em produzir mais e melhor, porque detém os
instrumentos tradicionais de poder. E, nesse sentido, esse modelo se constitui numa
forte camisa-de-força que condena grande fração da população a conviver com
modos de produção, relações sociais, de trabalho e humanas muito precárias. (LIRA,
1997, p. 18).

Lira (1997) tece uma série de questões importantes para pensarmos a forma como a
naturalização da pobreza e da desigualdade social no Estado favorece a manutenção de
relações econômicas, sociais e políticas que se arrastam há anos na cultura alagoana.
No Nordeste, a pobreza tem-se revelado como o melhor pano de fundo para o jogo
de cena das articulações políticas das elites. Na verdade, desde o século passado que
os representantes nordestinos aproveitam e usam as condições desfavoráveis em que
vive o grosso da população como meio de conseguir recursos e investimentos
governamentais para a região. Essa é, porém, apenas uma face das reinvindicações; a
outra, em nível local, é o desvio direto das verbas de socorro às vítimas da pobreza,
que passam a ter as mais diferentes aplicações. Os problemas estruturais mais graves
do Nordeste respaldaram, historicamente, as relações políticas regionais, que
definiram, internamente na região, a direção dos favores e privilégios e,
externamente, a inclinação dos acordos e adesões políticas em nível nacional.
(LIRA, 1997, p. 33-34).

É possível dizer, então, que a naturalização ou regionalização da pobreza tem sérias
repercussões na vida social e política em Alagoas. Dentre elas, segundo o autor, está o fato de

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tratar as questões sociais, como a seca, numa perspectiva regional, destacando-as das relações
sociais, das questões de produção econômico-financeira ou mesmo das definições de
prioridades do Estado.
Silva (1990, p. 13), nas primeiras páginas do livro O engenho banguê (memórias),
afirma que “o engenho banguê é credor e a sociedade alagoana é devedora. Ela lhe deve o que
é atualmente”. Este livro é um texto de memórias do autor sobre sua vida no engenho banguê;
nele, José Góes da Silva escreve sobre aspectos que vão desde sua infância nos engenhos até
sua vida adulta, recordando lembranças de sua vida e de uma história dos modos de vida em
torno do complexo do engenho banguê.
Trata-se de um livro de exaltação deste complexo, como numa tentativa de pagar uma
dívida de vida com os engenhos em que viveu. Ao exaltar todas as virtudes que o engenho
proporcionou para famílias do estado e para uma herança na educação e nas atividades
econômico-sociais, desde o século XVI, com o primeiro engenho alagoano de Porto Calvo, o
autor termina o primeiro capítulo, agradecendo ao banguê:
A você, companheiro de tantas jornadas memoráveis, no universo da indústria
banguezeira, as nossas homenagens, o nosso reconhecimento, pela sua participação
efetiva; pela sua operosidade, em favor desta Terra e deste País, porque você,
juntamente com o seu co-irmão de outros estados, foi a semente germinadora do
desenvolvimento nacional. O seu mérito perenizou o seu feito que a tantos
beneficiou. Obrigado engenho banguê. (SILVA, 1990, p. 17).

Ao que parece, o engenho e a monocultura da cana-de-açúcar são elementos
importantes para pensarmos a cultura alagoana e seus atravessamentos na política e nos
modos de vida do estado. Nas palavras de José Góes da Silva, o que Alagoas se tornou, deve
ao banguê.
Diégues Júnior (2006), em O banguê nas Alagoas, afirma que a história dos engenhos
de açúcar chega a se confundir com a própria história do Estado, “de modo que o açúcar se
irmanou à própria história regional, nela se integrando de tal forma que não é possível isolar
um da outra; completam-se a história política e social e a história do açúcar” (p. 26). Ao que
parece, o Estado de Alagoas se constrói a partir dos canaviais, do engenho e da produção de
açúcar, e é em torno desta história que se produziu formas de viver na contemporaneidade.
Por isso mesmo não parece acreditável que possa existir uma história das Alagoas
sem o açúcar. Do banguê principalmente. Se este já chegou ao seu termo de
evolução, não podendo exigir-lhe mais novas energias e nova vitalidade, por haver
concluído seu ciclo progressista, é indiscutível, que, no passado, Alagoas lhe deve
tudo. Deve ao banguê sua evolução econômica, inclusive com altos e baixos que as
situações alternadas da indústria do açúcar registram; deve-lhe ainda as linhas de
formação de sua sociedade; e também lhe deve a fixação das vigas mestras dentro

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das quais nasceu e cresceu o rumo do povoamento, sua distribuição, sua
condensação, sua fixação. (Diégues Júnior, 2006, p.26).

Lira (2007) concorda com estes autores em certa medida ao afirmar que a formação de
Alagoas está intimamente relacionada à história da agroindústria do açúcar. Este autor ressalta
a forma violenta como esta agroindústria se consolidou no estado, através da morte de muitos
no período colonial, dentre eles os indígenas que habitavam a região. A partir do século XVI,
as investidas dos europeus nas terras brasileiras, adequadas ao cultivo de cana-de-açúcar, foi
um marco de verdadeiro massacre, no qual os índios eram eliminados ou expulsos dos lugares
onde viviam para outras terras distantes, forçando a desocupação de terras para o cultivo de
cana.
Nestas condições, segundo o autor, a cana-de-açúcar tornou-se a principal atividade
econômica de Alagoas, sendo um produto comercial que viria a garantir o povoamento e uma
série de aspectos referentes à vida econômica, social e política da então província de Alagoas.
Com isto, a povoação e a formação do estado ocorreram em volta de rios e lagoas, onde se
instalavam os engenhos e as plantações de cana-de-açúcar.
De acordo com Lira (2007), a atividade exclusiva de cultivo de cana-de-açúcar
constituiu uma monocultura que levou o estado a sérias crises relacionadas à falta de
alimentos, já que a maioria das terras era utilizada apenas para a plantação dessa cultura.
Várias foram as crises da falta de alimentos na província. Escassez de feijão e
farinha foram as principais. Em algumas dessas crises, o presidente da província,
reconhecendo as dificuldades por que passava a população, tomava a decisão de
importar os produtos de outros países, e o próprio Estado fazia a distribuição nos
engenhos. Em 1723, por exemplo, houve uma grave crise de falta de farinha. O
presidente teve que adotar medidas especiais para importar esse produto. (LIRA,
2007, p. 15).

Deste modo, aspectos variados da vida das pessoas foram conformados nestas relações
com a monocultura da cana-de-açúcar. Junto a isto, este autor afirma, a partir de Diégues
Júnior (2006), que o engenho se torna um núcleo político e social de Alagoas, a partir do qual
haverá a formação das famílias e da sociedade alagoana, tendo no senhor de engenho sua
figura central.
Lira (2007) assinala que no século XX o governo federal forneceu uma série de
incentivos favoráveis à plantação de cana-de-açúcar, o que transformou Alagoas em um palco
de concorrência acirrada entre os usineiros. Estes começaram a adquirir terras, derrubar
florestas, expulsar colonos e sitiantes para a plantação de cana; logo o estado tornou-se o
segundo no país na produção desta cultura.

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Esta forte expansão veio completar a ocupação das terras de Alagoas. Assim, além
de estender-se pelo Litoral, Zona da Mata, Baixo São Francisco, parte do Sertão e
Agreste, a atividade canavieira passou também a ocupar o planalto alagoano,
porque, plantada na forma de monocultura, acarretava a eliminação dos produtores
agrícolas de alimentos, obrigando o Estado a importar a maioria dos produtos
agrícolas de primeira necessidade para a população faminta. (LIRA, 2007, p. 20).

Este processo iria desembocar numa elevada concentração de terras nas mãos de
algumas famílias, a partir da expropriação das terras de famílias que as utilizavam somente
para subsistência, e da exploração social, econômica e financeira da população de miseráveis
que ia se formando.
Segundo Lira (2007), a expropriação de pequenos agricultores e sitiantes, ao longo das
décadas de 1960 até a de 1980, gerou um excedente importante de mão-de-obra no campo, o
que favoreceu a migração destes sujeitos para o meio urbano, principalmente para Maceió.
Mesmo aqueles que passaram a prestar serviços temporários nos canaviais foram
residir na periferia das cidades. Percebeu-se, portanto, que o avanço da cana mudou
significativamente as relações de trabalho bem como o espaço urbano. Agora, o
trabalhador presta serviço à usina, mas está subordinado a um empreiteiro que, na
maioria das vezes, era empregado ou morador da usina e que, com a expropriação de
sua terra, também foi morar nas cidades próximas das usinas, com todas as
consequências que essa migração gera no meio urbano. (LIRA, 2007, p. 24-25).

Estes movimentos migratórios iriam produzir impactos importantes no cenário urbano,
através do que o autor chama de aglomerações urbanas, que eram habitadas pelos exempregados das usinas, ex-pequenos produtores e ex-sitiantes expropriados de suas terras e
impossibilitados de continuarem suas atividades agrícolas devido ao fato de já não haver, em
Alagoas, terras para o cultivo de outra cultura que não fosse a cana-de-açúcar. Estas
condições produziram muitas dificuldades de sobrevivência para estes sujeitos, relacionadas
tanto ao trabalho quanto às condições de moradia, todas elas expondo estes sujeitos a
condições deploráveis de (sobre)vida.
Assim também outros problemas foram instalados por essa empreitada referente à
monocultura da cana-de-açúcar, no que se refere à fauna e flora alagoanas. Animais e plantas
foram mortos em larga escala por meio do desmatamento de florestas nativas para o cultivo da
cana, da utilização de herbicidas e pesticidas, e, também, segundo Lira (2007), através da
poluição dos rios devido à tiborna das usinas jogadas neles, contaminando aqueles que faziam
seu trajeto pela Zona da Mata, Litoral e Tabuleiros. Além disto, as vidas das pessoas, que
moravam em volta dos rios, foram severamente afetadas.
A poluição dos rios prejudicou bastante as populações ribeirinhas que, além de
ficarem privadas do uso da água e da criação de peixe, passaram a contrair muitas
doenças endêmicas, sobretudo as verminoses, incluindo a esquistossomose. Esse

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problema de poluição foi particularmente importante no período de implantação do
Proálcool23. (LIRA, 2007, p. 26).

A partir deste contexto, podemos afirmar que houve uma exposição constante da
população geral a condições precárias de sobrevivência, quando não uma exposição à
condições de morte. Numa estreita relação com a monocultura da cana-de-açúcar, as pessoas
eram submetidas a processos de expropriação, desemprego e de crises relacionadas à falta de
alimentos, além de uma série de doenças endêmicas que vieram a abater esta população das
Alagoas.
Entendemos que esse processo histórico de formação do Estado traz à tona uma
racionalidade de monocultura da vida: uma certa forma de se relacionar com modos de viver,
diferentes daqueles do senhor de engenho, relegando-os ao abandono social, numa lógica de
extermínio. Tanto quanto a monocultura da cana-de-açúcar se instaura no Estado, eliminando
outras culturas agrárias para se manter como a única possível, assim também, numa economia
política específica os modos de viver que não são desejados são eliminados ou obrigados a se
submeter à lógica de uma monocultura da vida, na qual só é permitida uma forma de viver:
aquela que serve para a produção, que dá lucro e favorece o consumo de hábitos e costumes
desejados por uma determinada economia da vida.
O fato de Alagoas não ter diversificado suas atividades econômicas agrícolas e nãoagrícolas deixou o Estado completamente dependente de uma única atividade,
concentradora de terra; também a principal responsável pela elevada concentração
de renda do Estado e pela formação de uma elite com poderes enraizados em todos
os setores da vida social de Alagoas. (LIRA, 2007, p. 30).

Compreendemos que esta monocultura da cana-de-açúcar constitui-se como um
importante paradigma para pensar o presente histórico, relacionado aos assassinatos de
moradores de rua em Maceió, pois pensamos que a monocultura torna-se um elemento a partir
do qual podemos abordar a forma como a vida passa a ser governada em nossas sociedades.
Assim, no mesmo plano de uma monocultura da cana-de-açúcar, afirmamos uma monocultura
da vida, na qual é eleito um modelo de vida que será exaltado em detrimento dos outros
modos de viver, que serão submetidos a uma sobrevivência precária, expostos a condições de
vida que os colocam frequentemente em situações de risco.
A monocultura da cana-de-açúcar, pela sua própria natureza, exige terras férteis e só
é economicamente viável quando cultivada em grandes extensões. Ela é responsável
pela consolidação do padrão elevado de concentração da posse da terra, que por sua

23

O Proálcool, ou Programa Nacional do Álcool, foi criado em 1975 por iniciativa do Governo Federal através
do decreto nº 76.593 com o objetivo de substituir em larga escala os derivados de petróleo, evitando a
dependência externa das oscilações de preços deste último, em crise no ano de 1973. O período de implantação
do Proálcool, referido por Lira (2007), diz respeito à segunda metade da década de 1970 e à década de 80.

40

vez gerou, na sociedade alagoana, uma grande desigualdade social, um baixo nível
de emprego e um excessivo grau de analfabetismo. (LIRA, 2007, p. 89).

Como pudemos perceber, elege-se um ideal de vida que desqualifica os demais modos
de viver, que, por este motivo, devem adequar-se e requalificar-se para chegar aos ideais de
uma vida digna. É isto que assinalamos como uma economia política relacionada à
monocultura da vida, como uma racionalidade política presente nas práticas cotidianas do
Estado. Cabe ressaltar que, ao utilizarmos a palavra “Estado” neste parágrafo, não estamos
nos referindo exclusivamente ao poder político institucionalizado, mas ao espaço geográfico
de Alagoas, historicamente construído, relacionado às diversas práticas cotidianas de
abandono da vida que são perpetradas ao longo da sua história de formação.
Neste sentido, tal qual o cultivo de cana-de-açúcar que em algum momento se
generalizou nas terras alagoanas, aquele ideal de uma vida modelo para as demais faz operar
uma lógica parecida, ao se relacionar com os demais modos de vida. Nas próximas páginas
abordaremos como esse extermínio não acontece somente através da morte de sujeitos, como
também por meio da reforma, da inclusão e de uma requalificação das vidas que excedem ao
modelo ideal de viver imposto por essa monocultura. Como veremos, trata-se de inserir no
cotidiano destes sujeitos ações que objetivam requalificar os modos de viver desviantes,
através de uma gestão eficiente de suas condutas.
A partir destas questões, iremos abordar a forma como a situação de vulnerabilidade e
a necessidade de intervir sobre ela irá constituir uma população de rua em Maceió.

2.3 De moradores de rua para uma população de rua
De julho 2010 até agosto de 2012 foram registrados cerca de 80 assassinatos de
moradores de rua em Maceió. Dentre as explicações para isso está a afirmação de que estes
sujeitos foram esquecidos e abandonados pelas políticas públicas ao longo dos anos, situação
que criou condições de vulnerabilidade e de risco para a vida destes sujeitos na cidade. É o
que podemos ler em trecho da nota veiculada em 2010 pelo Grupo Tortura Nunca Mais de
São Paulo:
Durante todos esses anos, Maceió tem sido marcada pela exclusão social e pelo
abandono de meninos e meninas em situação de risco social por parte das famílias,
da sociedade e do Poder Público, tendo se criado um batalhão de perambulantes
famintos pelas ruas e praias, em busca da piedade alheia para sobreviver, tendo a
situação chegada a triste realidade vivida com a morte de 32 moradores de ruas
assassinados no corrente ano de 2010.

41

Sabemos que muitos dos moradores de rua assassinados recentemente eram meninos
de rua na década de 1990, o que demonstra a inércia do Poder Público em relação às
populações de rua. Concretamente, os gestores públicos nada ou muito pouco têm
feito para que cesse essa situação, ficando evidenciado que a temática dos direitos
essenciais da pessoa humana, especialmente dos que estão excluídos ao ponto de
terem a rua como espaço de moradia e sobrevivência, não é prioritária.
Na verdade, o Estado - apesar das garantias constitucionais e legais, ainda não
reconhece sua responsabilidade em relação às violações dos direitos das pessoas que
estão em situação de risco nas ruas, relegando-os a um segundo, terceiro, quarto
plano. Prova dessa verdade é que até a atual data, nenhuns dos assassinos dos
meninos que foram mortos na década de 1990 foram punidos. 24

Estas opiniões relacionadas ao abandono e à vulnerabilidade dos moradores de rua da
capital alagoana, resultado de um suposto esquecimento desta população pelas políticas
públicas e sociais, também foram afirmadas por entidades dos Direitos Humanos da Ordem
dos Advogados do Brasil em Alagoas (OAB/AL), por promotores públicos estaduais e
diversas autoridades relacionadas aos Direitos Humanos.
A partir disto, torna-se fundamental a intervenção nas condições de vida destes
sujeitos para tirá-los da situação de vulnerabilidade em que vivem, através de ações e práticas
relacionadas às políticas públicas.
Entre agosto de 2007 e março de 2008 fora realizado o I Censo e Pesquisa Nacional
sobre a População em Situação de Rua, pelo Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à fome (MDS). Nele foram identificadas 31.922 pessoas em situação de rua em 71
cidades brasileiras, sendo que Maceió registrou, naquele ano, 372 moradores de rua.
Esta pesquisa teve caráter inédito, já que os censos da população geral do país se
realizam considerando apenas as unidades domiciliares (casas, apartamentos, etc). A pesquisa
realizou-se a partir da demanda dos movimentos sociais representativos dos moradores de rua
e dos gestores públicos, que sabiam pouco sobre esta população no sentido de desenvolver
estratégias políticas de gestão sobre a realidade de vida destes sujeitos.
Nas primeiras páginas do relatório Rua: aprendendo a contar (BRASIL, 2009),
referente ao censo sobre a população de rua do Brasil, os autores ressaltam que os moradores
de rua nunca haviam entrado nos censos demográficos do país, pois estes objetivavam o
levantamento estatístico da população que mora em casas e prédios. Logo, os moradores de
rua existiam numa exterioridade aos padrões de políticas públicas do país: não havia uma
população, apenas sujeitos anônimos que circulavam pela cidade.
24

Nota disponível no site do Grupo Tortura nunca mais, publicizada em 20 de novembro de 2010 com o seguinte
título: Moradores de rua assassinados em Maceió eram meninos de rua na década de 1990. Para ler na íntegra
acessar o seguinte link: <http://www.torturanuncamais-sp.org/site/index.php/noticias/354--moradores-de-ruaassassinados-em-maceio-eram-meninos-de-rua-na-decada-de-1990>.

42

O primeiro problema metodológico relevante refere-se à ausência de residência fixa
convencional e à elevada mobilidade desta população nos espaços urbanos. A
unidade domiciliar constitui referência básica para a localização dos entrevistados
em levantamentos censitários comuns. A ausência dessa referência exigiu o esforço
de desenvolvimento e aplicação de outras estratégias e metodologias. (BRASIL,
2009, p. 41).

No trecho acima, os autores se referem às dificuldades metodológicas que tiveram
para a efetivação da pesquisa, atribuídas às características desta população, principalmente ao
fato de se locomoverem constantemente pela cidade, sem ter um local fixo, uma referência de
uma unidade domiciliar. De certo modo, estas questões ressaltam a forma como a vida
moderna e os modelos de vida atuais estão relacionados aos ambientes privados das casas e
prédios, entre outros.
O censo organizou uma série de informações sobre a população de rua brasileira,
organizando-a e caracterizando-a a partir dos seguintes aspectos: características econômicas;
formação escolar; trajetória na rua; histórico de internação em instituições; pernoite, vínculos
familiares e trabalho; acesso à alimentação, serviços e cidadania; discriminações sofridas; e
participação em movimentos sociais (BRASIL, 2008). Dentre estes, destacaremos três
elementos, abordados nos aspectos destacados anteriormente pelo censo, que serão
importantes para as discussões dos próximos capítulos: vínculos familiares, trabalho e renda,
e a posse de documentação.
Os motivos apontados pelo censo que levaram os entrevistados a morar nas ruas se
relacionam a problemas com drogas e alcoolismo em 35,5 por cento dos entrevistados,
desemprego em 29,8 por cento, e desavenças com familiares em 29,1 por cento. Quanto ao
vínculo familiar, 51,9 por cento dos moradores de rua entrevistados no país tem algum
parente na cidade em que moram, mas 38,9 por cento deles não mantêm qualquer contato com
os parentes (BRASIL, 2008).
No que se refere ao trabalho e renda, segundo o censo, grande parte desses sujeitos
(70,9%) exerce alguma atividade remunerada, destacando-se as atividades de catador de
materiais recicláveis, flanelinha, construção civil, limpeza e carregador. No que se refere à
posse de documentos, o relatório do censo (Brasil, 2009) aponta que 24,8 % das pessoas que
vivem nas ruas não possuem quaisquer documentos de identificação, sendo que menos da
metade, 42,2%, possui apenas Cadastro de Pessoa Física (CPF), 39,7% possuem somente
carteira de trabalho, 37,9% têm certidão de nascimento ou de casamento e 37,9% possuem
título eleitoral.

43

A ausência de documentação implica, segundo o relatório, numa série de dificuldades
no que se refere à obtenção de emprego formal e ao acesso e uso de serviços e programas
sociais, configurando uma situação na qual estes sujeitos são destituídos de cidadania e de
direitos. Com isto, a pesquisa assinala que 88,5% da população de rua brasileira não é
assistida por quaisquer políticas sociais.
Neste cenário, o I Censo e Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua
constrói uma materialidade a partir da qual a população de rua passa a existir e a compor uma
cena para as estratégias políticas de governo de suas vidas no ambiente das cidades. De
moradores de rua, como uma massa disforme, tornam-se uma população de rua com alguma
unidade caracterizadora de suas condições e modos de vida.

FIGURA 1 25

Moradores de
rua

Fonte: Retirado de Silva e Hüning (2013).

25

A Figura 1 foi utilizada e elaborada para o capítulo de livro intitulado Políticas públicas e o governo da vida e
da morte nas ruas das cidades, junto à prof. Dra. Simone Maria Hüning, orientadora desta dissertação. Conferir
em: Silva, Wanderson V. N. da; Hüning, Simone M. Políticas públicas e o governo da vida e da morte nas ruas
das cidades. In Cruz, Lilian R. da; Rodrigues, Luciana; Guareschi, Neuza M. F. (Org). Interlocuções entre a
Psicologia e a Política Nacional de Assistência Social. Santa Cruz do Sul, RS: EDUNISC, 2013.

44

FIGURA 2 26

Fonte: Adaptado de Silva e Hüning (2013).

Nas figuras acima podemos compreender a maneira como a constituição de uma
população é estrategicamente importante para o governo de condutas, pois setoriza aspectos
das vidas dos moradores de rua, permitindo uma ação mais efetiva sobre estes sujeitos, não
em uma individualidade (Figura 1), mas numa coletividade de uma população racionalmente
segmentada (Figura 2). Este processo torna eficiente as estratégias de governo desta
população.
Neste sentido, a população aparece, como afirma Foucault (1979),
mais como fim e instrumento do governo que como força do soberano; a população
aparece como sujeito de necessidades, de aspirações, mas também como objeto nas
mãos do governo; como consciente, frente ao governo, daquilo que ela quer e
inconsciente em relação àquilo que se quer que ela faça. (p. 289)

Ao construir esta população, do ponto de vista estatístico, para as estratégias políticas
de governo, o censo possibilita que estes sujeitos tenham suas vidas tomadas por um poder
que visará qualificá-las através de uma série de táticas relacionadas à garantia de direitos às
suas vidas, devolvendo-as cidadania, como veremos no capítulo 7 desta dissertação.

26

Esta figura é uma adaptação de outra figura utilizada para o capítulo, Políticas públicas e o governo da vida e
da morte nas ruas das cidades, elaborado com a prof. Dra. Simone Maria Hüning, para o livro mencionado na
nota anterior.

45

O que chamaremos de qualificação da vida está relacionada à rotina de práticas que irá
se ocupar em garantir direitos à vida, segmentando-a em departamentos específicos nos quais
práticas diferentes irão intervir sobre a saúde, a moradia, o trabalho, a educação, a
alimentação, a dormida, entre outros aspectos da vida, visando restaurá-la, reformá-la e
adequá-la às demandas atuais da vida político-social.
Mas para falarmos em uma vida qualificada, foi necessário situar um processo no qual
algumas vidas foram esvaziadas de qualidades, a partir de uma perspectiva biopolítica. Este
esvaziamento é o que chamaremos de desqualificação da vida, ou seja, o processo pelo qual as
formas de viver de alguns sujeitos são relegadas ao abandono por não terem uma utilidade
direta na produção de capital e, até mesmo, na lógica de consumo de hábitos e costumes
civilizados aceitos como modelo hegemônico de viver nas sociedades contemporâneas. Estes
aspectos serão abordados e atravessarão as discussões construídas ao longo desta dissertação.
Agamben (2010), ao abordar a questão do poder soberano e da vida nua, retoma dois
termos gregos utilizados para se referir à vida: bíos e zoé. Segundo o autor, bíos se referia à
vida qualificada, uma vida diferenciada de um grupo específico ou de um indivíduo; o termo
zoé, por sua vez, era empregado para exprimir a vida natural comum a todos os seres vivos,
fossem homens, animais ou deuses. Nestes termos, a bíos, vida qualificada, era aquela que a
política se ocupava nos espaços públicos; já a zoé não poderia ocupar este espaço, era
destinada à gestão econômica nos espaços privados, nunca abordada pela política.
No entanto, Agamben (2010) nos afirma que, na contemporaneidade, com a crescente
sobreposição entre os espaços públicos e privados, a zoé é inserida na política, tornando-se
central para as políticas de governo no Ocidente. Conforme Foucault (1988), a vida biológica
acaba por ocupar o cenário político atual, e, com isto, Agamben (2010) afirma que “a espécie
e o indivíduo enquanto simples corpo vivente tornam-se a aposta que está em jogo nas suas
estratégias políticas” (p. 11). Deste modo, a política passará a investir nas diferentes formas
de vida a partir do que chama de poder soberano, através de uma animalização do homem por
meio de diferentes técnicas políticas que atuarão desde uma proteção à vida até uma
autorização do seu extermínio (Foucault citado por AGAMBEN, 2010, p. 11).
Neste sentido, a vida qualificada é a vida investida pelo poder numa lógica de proteção
e/ou de segurança, visando sua maximização e a utilização eficiente dos corpos para a
produção de capital de consumo, relacionados à economia e a gestão dos riscos. A vida
qualificada e a menos qualificada seriam as vidas produzidas pela política, através de uma

46

aplicação de uma economia relacionada à forma como o Estado passa a governar as condutas
dos homens para torná-los utéis ao jogo político-econômico da produção capitalista.
Deste modo, a vida qualificada constitui-se como aquela que, disposta ao governo
biopolítico de suas condutas, se produz como uma vida pronta para os processos de
regulamentação do poder sobre a vida. Enquanto que a vida menos qualificada seria aquela
que, historicamente disposta numa lógica de extermínio e exposição à morte, se coloca como
ingovernável (vida nua), e, portanto, uma ameaça ao poder e ao futuro da espécie,
produzindo-se numa relação de abandono quando relacionada aos hábitos e costumes
considerados civilizados em nossa sociedade.
Com o problema político referente aos assassinatos de moradores de rua e uma
racionalidade de extermínio de formas de vida desviantes do modelo hegemônico, cria-se a
possibilidade de intervir sobre estas vidas num outro viés relacionado à sua adequação a uma
utilidade no plano de um biopoder. Neste sentido, abandoná-las à condições de morte torna-se
algo insuportável à manutenção de um poder que visa defender e maximizar a vida. Em outros
termos, a pergunta que se formula é: se não é mais aceitável fazer morrer, quais as alternativas
que são formuladas para o governo destas vidas? Ou seja, que racionalidade de poder é
acionada para intervir sobre estas formas de viver que escapam num primeiro momento ao
modelo hegemônio eleito como legítimo nas sociedades contemporâneas?
É a partir das contribuições de Agamben e de Foucault que iremos formular e
reformular estas questões ao longo da dissertação, considerando a vida como um elemento
central do jogo político em que vivemos.
No próximo capítulo, abordaremos a forma como as ruas são naturalizadas como
lugares de perigo e de desqualificação da vida humana, relegando-a a condições sobrehumanas de existência.

47

3 O INVESTIMENTO NA VIDA: AS RUAS E OS SEUS MORADORES

Interessa-nos, neste capítulo, problematizar como as ruas, principalmente em Maceió,
se tornaram o que são hoje: lugares de risco e de vulnerabilidade, de perigo e de morte. E
recolocar as questões: de que forma rua e perigo passam a compor uma série de discursos
sobre segurança pública nos nossos dias? Como as ruas tornam-se lugares em que as pessoas
devem apenas circular ou passar para ir ao trabalho, à escola, à praia, e não para ocupá-las,
apenas transitá-las? E mais, como estas passam a expor pessoas ao risco de morte, produzindo
e sendo o campo de assassinatos numa significativa incidência e num abandono da vida?
Algumas destas questões serão abordadas ao longo desta dissertação. Neste momento,
interessa-nos: como ruas e cidades se constituem com uma associação ao perigoso e ao risco à
vida? E do mesmo modo, de que vida se trata, esta que se arrisca e é assassinada e esta que
está sendo defendida? Que risco é este a que a(s) vida(s) estaria(m) exposta(s)?
Procuramos pensar as ruas e as cidades como uma materialidade construída a partir de
uma racionalidade referente a formas biopolíticas de governo e de investimento nas vidas,
produzindo formas de viver e de ser, hierarquizando e estabelecendo sobre as vidas uma série
de práticas e de saberes no domínio do biopoder.
É a partir da modernidade, segundo Foucault (1999, 1979), que a vida passa a ser
investida pelo poder, em seus cálculos e numa economia política, constituindo uma população
e dispondo homens e coisas, ordenando-os e destinando-os a um fim útil ou conveniente. O
poder investe não apenas no território, mas principalmente na vida.
Com a constituição de uma população, o governo das vidas passa a tomar para si uma
série de acontecimentos referentes a esta população, como por exemplo as mortes e os
nascimentos, constituindo uma série de saberes e dados estatísticos que possibilitam governála e dispô-la num viés de mão dupla: a partir de um investimento tanto no corpo individual
dos sujeitos, através de técnicas disciplinares, como também, a partir do corpo social,
constituído pela população, caracterizando-a enquanto um problema de governo.
Foucault (1999) assinala um investimento do poder sobre a vida ou, “se vocês
preferirem, uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de
estatização do biológico ou, pelo menos, uma certa inclinação que conduz ao que se poderia
chamar de estatização do biológico” (p. 286). É sobre essa vida biológica tomada pelo poder e
racionalizada pelas estratégias e táticas de governo que trataremos aqui. Uma vida investida

48

num limiar da morte ou de sua docilização em corpos úteis, tendo como referência seu
esquadrinhamento e sua disposição a partir de um modelo qualificado de vida, que
retomaremos mais adiante.
Foucault (2008) ressalta que, neste momento, a população aparecerá nos cálculos de
risco, tornando-se importante para a formulação de previsões estatísticas que compreendem a
vida nas cidades, referente às estratégias da biopolítica, dispondo-a através dos dispositivos de
segurança. A partir disto, as estratégias gerais do poder irão organizar o espaço urbano de
forma a construir séries e níveis a própria população, que viabilizem o seu governo ao facilitar
a circulação de ideias, vontades e ordens, bem como a circulação comercial, conforme afirma
o autor.
Os dispositivos de segurança funcionarão de modo a preservar a vida de ameaças que
impeçam sua eficaz utilização pelas estratégias gerais do poder. Neste sentido, a polícia se
constituirá "como condição de urbanidade" (FOUCAULT, 2008, p. 453), consolidando a
posição do autor de que urbanizar e policiar são sinônimos, pois aludem à organização e
gestão do espaço urbano de modo a gerir a vida em seus segmentos: 1) a quantidade de
habitantes das cidades; 2) as necessidades da vida, aquelas que permitam aos homens viverem
bem e adequadamente; 3) a saúde, para que possam trabalhar e efetuar suas atividades na
cidade; 4) o trabalho, garantir que os pobres trabalhem e prover aos que não podem as
condições básicas de sobrevivência; e 5) a circulação das mercadorias e dos homens,
ocupando-se das entradas e saídas de produtos, dos usos dos equipamentos urbanos, tais
como, praças, ruas, mares, rios e demais espaços públicos.
Esta forma de dispor as cidades se refere à gestão dos riscos relacionados ao perigo de
contaminação, doenças, criminalidade, mortes em larga escala, falta de mão de obra, entre
outros, que poderiam disparar uma crise, colocando em risco a manutenção do estado das
coisas. Foucault (2008) ressalta que a polícia servirá para a integração das atividades do
homem ao Estado, através da gestão de suas condutas para que sejam eficazmente utilizadas
por este.
É neste momento que o direito de vida é exercido diferentemente de um poder
soberano de matar, exercer-se num “fazer viver e deixar morrer”, caracterizado por um
governo das populações, constituindo-a como um problema. Tal poder, chamado por Foucault
de biopoder, difere do poder soberano relacionado ao suplício. O poder soberano é
caracterizado por Foucault (2010a, 1999), em Vigiar e punir e em um dos seus cursos no

49

Collège de France, Em defesa da sociedade, como sendo aquele que se exerce através da
máxima “fazer morrer e deixar viver”, em última instância um poder de morte sobre um corpo
individual supliciado.
Este corpo supliciado deve ser marcado pelo poder grandioso do soberano, que se
exerce em uma gama de rituais suntuosos e sangrentos, sinalizando para os demais súditos o
alcance inequívoco do poder do príncipe sobre a vida e sobre a morte dos seus súditos. Tais
suplícios, à vista de todos, em praça pública, demarcam um momento decisivo para o
soberano e para seus súditos: uma exposição grandiosa e espetacular de uma racionalidade do
poder soberano sobre a vida e a morte, servindo aos demais como exemplo ao objetivar o
controle do reino através da demonstração de todo o seu poder de morte àqueles que
desafiassem a lei – o corpo do soberano.
A partir do final do século XVII, tais espetáculos de demonstração do poder soberano
sobre a vida, em praça pública, passam cada vez mais a desocupar o cenário das ruas e vão
ganhando uma conformidade e outra processualidade em ambientes privados, os juris lugares privativos e com um alcance mínimo dos olhares da população. A partir disto, os
suplícios são substituídos por penas de reclusão. Agora, o castigo à infração da lei, não mais
remete à vingança do soberano com seu poder grandioso de matar, mas à retirada da liberdade
do sujeito e à possibilidade de reformá-lo: nascem as tecnologias disciplinares, pensadas
como forma de recuperar o sujeito e devolvê-lo à sociedade a partir de um investimento em
seu corpo individual (FOUCAULT, 2010a).
Foucault (1999, 2008, 1988) assinala que, cada vez mais, o poder colocará a vida
como central nas estratégias políticas contemporâneas. Com o aumento do número de
habitantes das cidades e os problemas provenientes dessa aglomeração de pessoas nos espaços
urbanos, decorrentes das doenças e das crises econômico-financeiras relacionadas à escassez
de alimentos, bem como de outros incursos que colocarão a vida em risco, haverá uma
mudança na racionalidade do poder, a partir da qual a vida biológica será colocada em jogo.
Este autor afirma que aparece, a partir do século XVIII, uma nova modalidade de
poder, o biopoder, que terá no corpo-espécie seu fundamento, ocupando-se dos processos
biológicos da vida dos homens: proliferação, nascimentos e mortalidade, saúde, longevidade e
as condições que implicarão numa alteração desses processos.
Por isto, Foucault (1988, p. 150) ressalta que “o poder assumiu a função de gerir a
vida”, tornando “cada vez mais difícil a aplicação da pena de morte”. Com o biopoder e suas

50

diversas estratégias de governo, serão “mortos legitimamente aqueles que constituem uma
espécie de perigo biológico para os outros”. Trata-se de um poder que atua numa mão dupla, a
partir da qual o poder de matar é reduzido e aplicado a um grupo específico, numa lógica
biopolítica relacionada à proteção da vida da espécie. Ressalta também que o poder sobre a
vida se dará em dois pólos: da anátomo-política do corpo humano, a partir dos procedimentos
disciplinares; e da biopolítica da população, através de “uma série de intervenções e controles
reguladores” dos processos biológicos, considerando o corpo-espécie e investindo na
constituição de uma população governável (FOUCAULT, 1999).
Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se no político; o fato
de viver não é mais esse sustentáculo inacessível que só emerge de tempos em
tempos, no caso da morte e de sua fatalidade: cai, em parte, no campo de controle do
saber e de intervenção do poder. (...); é o fato do poder encarregar-se da vida, mais
do que a ameaça da morte, que lhe dá acesso ao corpo. (...), deveríamos falar de
“bio-política” para designar o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no
domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação
da vida humana. (FOUCAULT, 1988, p. 155).

Neste sentido, a população será o novo problema para o poder, decorrente das
aglomerações urbanas que passam a habitar e dar forma às cidades, a partir do final do século
XVIII. A noção de população será importante para esta nova tecnologia de poder. Segundo
Foucault (1999, p. 292-293), “a biopolítica lida com a população, e a população como
problema político, como problema a um só tempo científico e político, como problema
biológico e como problema de poder, acho que aparece nesse momento”. Ressalta ainda que
Nos mecanismos implantados pela biopolítica, vai se tratar sobretudo, é claro, de
previsões, de estimativas estatísticas, de medições globais; vai se tratar, igualmente,
não de modificar tal fenômeno em especial, não tanto tal indivíduo, na medida em
que é indivíduo, mas, essencialmente, de intervir no nível daquilo que são as
determinações desses fenômenos gerais, desses fenômenos gerais, desses fenômenos
no que eles têm de global. (FOUCAULT, 1999, p. 293).

Deste modo, o biopoder se efetivará através da intervenção na vida da população,
formulando estratégias biopolíticas que garantirão seu governo como corpo-espécie,
destinando-a a um fim útil e adequado a partir de uma racionalidade em que “governar o
Estado será portanto aplicar a economia (...) no nível de todo o Estado, isto é, (exercer) em
relação aos habitantes, às riquezas, à condução de todos e de cada um uma forma de
vigilância, de controle, não menos atenta do que a do pai de família sobre a casa e seus bens”
(FOUCAULT, 1999, p. 127).
Posta essa relação entre o poder e a vida, inicialmente tomada por Foucault através de
suas teorizações sobre o poder soberano, o disciplinar e o biopoder, iremos pensar como as
cidades começam a tornar privadas as experiências que ocorriam nas ruas.

51

Le Goff (1998), em conversações com Jean Lebrun no ano de 1924 registradas no
livro Por amor às cidades, traz algumas questões importantes sobre as cidades da Idade
Média na França - segundo este autor, o berço das cidades modernas. Afirma que a cidade
medieval caracterizava-se pela “concentração de criatividade” e um número de citadinos
limitado: constituía-se como um lugar de produção e de trocas, mesclado pelo artesanato e
pelo comércio numa economia monetária. Era um espaço de prática criadora e laboriosa, do
gosto pelo negócio e pelo dinheiro. Assim também, as cidades eram lugares que
concentravam os prazeres, as festas, as conversas nas ruas, nas tabernas, nas escolas e igrejas
e até mesmo nos cemitérios.
Este autor pontua que a partir do século XIII, com o crescimento demográfico e
econômico, surge nas cidades uma “nova população urbana”, os marginais – aqueles que não
tinham um trabalho fixo e não pertenciam a uma corporação de trabalhadores, ou seja, os
camponeses, que por não morar nas cidades eram tomados como pagãos pelo cristianismo –,
“para os quais é extremamente frágil o limite entre pobreza, miséria e crime, mais ainda para
as mulheres, que se debatem entre a miséria e a prostituição” (LE GOFF, 1998, p. 46).
Le Goff (1998) assinala que o trabalho ganha um status na cidade, deixando de ser
uma atividade ou um valor menosprezado para ocupar uma importância capital. Através dos
monges, que trabalhavam nos monastérios, o trabalho manual ascende de posição, pois deixa
de ser associado aos camponeses (aqueles que assumiam o lugar do homem condenado ao
trabalho pelo pecado original) e, nisto, valoriza-se, uma vez que os monges associam-no à
penitência e à oração.
A cidade ganha uma função fundamental relacionada à visibilidade dos resultados
criadores e produtivos do trabalho. As ruas são lugares em que curtidores, ferreiros, padeiros,
artesãos e artistas ocupam-na para mostrar, aos olhos daqueles que ali estão, a produção de
coisas úteis, boas e belas, através do trabalho manual (LE GOFF, 1998, p. 49). Nesta medida,
segundo este autor, o ócio e o preguiçoso, aquele que não trabalha, não possui um lugar na
cidade.
Este autor afirma que, na Idade Média, “o grande recurso, na cidade, para o pobre ou
para o esperto, é a mendicância e o roubo, que é punido com severidade. Alguém que se dá
bem é alguém que sabe roubar. A cidade fervilha de ladrões...” (LE GOFF, 1998, p. 51). Do
mesmo modo, aponta que até o século XIV, a opção pela mendicância não era mal vista;
havia um reconhecimento desta atividade nas cidades medievais, assinalando o fato de que

52

dominicanos e franciscanos denominavam-se mendicantes: “o mendicante é quase que
desejado na cidade, ele permite ao burguês trabalhar pela sua salvação oferecendo esmolas”
(LE GOFF, 1998, p. 51). Do mesmo modo, este autor refere-se a uma repugnância dos
medievais em relação aos estrangeiros que não tinham casa, como exemplo os marinheiros,
pois uma das qualidades dos citadinos era ter um lugar, isto garantia uma dignidade e um
respeito aos habitantes das cidades.
A partir do trabalho de Le Goff (1998), podemos situar quatro aspectos importantes
em torno das cidades da Idade Média: 1) as cidades eram lugares destinados ao trabalho e a
sua exposição nas ruas, constituindo-as como espaços de troca (comércio) e de conversas
(convivência) entre as pessoas; 2) o trabalho passa a ser importante a partir de uma associação
à vida religiosa dos monges; 3) a mendicância era uma forma importante de vida nas cidades,
pois garantia aos burgueses (habitantes das cidades) exercer diariamente a possibilidade de
sua salvação, mediante a esmola; e 4) a moradia, ter uma casa, um lugar, se constituía como
relevante em termos de se dignificar e ser benquisto nas cidades medievais.
Moradia e mendicância, como vemos, ocupavam lugares importantes para a economia
dos costumes dos cidadãos medievais, tornando possível uma série de práticas e de modos de
viver próprios ao ambiente urbano, influenciado por uma economia da salvação. A Igreja na
Idade Média ocupava função importante no terreno desses hábitos e costumes, engendrando a
própria constituição da vida citadina, indicando, também, quem deveria circular pela cidade e
atribuindo-lhes um lugar específico na economia da vida.
Segundo Le Goff (1998, p. 71), a forma atual das cidades contemporâneas deve às
cidades medievais sua concepção. Ainda afirma que a cidade medieval caracterizava-se como
um espaço fechado, cercado por muros e controlado por “portas que davam acesso a ruas
infernais”, levando a praças suntuosas e paradisíacas. Neste sentido, “a muralha a define” (LE
GOFF, 1998, p. 71). Trata-se, com isto, da constituição de uma cidade segura: contra os
roubos, as casas eram fechadas à chave. Torres e muralhas garantiam alguma segurança, os
marginais devem ser impedidos de se multiplicarem pela cidade. Criam-se uma série de
asilos, casas de pobres, para recolher e aprisionar doentes e mendigos aos cuidados da
caridade e da misericórdia dos citadinos cristãos, configurando verdadeiros espaços de
reclusão destas pessoas. A cidade medieval clama por segurança.
Porém, segundo o autor, o inimigo não habitava a cidade, ao contrário, estava fora da
dela e poderia atacá-la a qualquer instante, daí a importância de muralhas e de torres no

53

entorno das cidades: elas protegiam os citadinos e suas moradias de uma ameaça que estava
fora do ambiente urbano. E nisso a cidade medieval, que pede por segurança, difere das
cidades contemporâneas.
Para Foucault (2008), as cidades contemporâneas serão urbanizadas a partir de uma
lógica de governo, a partir da qual a segurança será pensada diferentemente de uma proteção
da cidade contra um inimigo externo que venha a invadi-la. Os inimigos da cidade estão
abrigados em seu interior e são eleitos a partir de uma lógica relacionada a uma guerra contra
as ameaças biológicas que viriam a degradar a vida.
Com o surgimento das teorias de degenerescência27 no século XIX, Foucault (1999)
ressalta que se operará um corte biopolítico entre os que devem viver e os que devem morrer,
constituindo o que chama de racismo de estado, que será abordado melhor nos capítulos que
seguem. É deste modo que o discurso sobre a raça, o racismo, afirma Foucault (1999), irá se
estabelecer nas nossas sociedades como uma forma legítima de exterminar a vida dos
indesejados, da raça inferior que habita as cidades. A segurança se referirá a uma guerra
contra os inimigos da evolução da espécie que estão na cidade, portanto, nesta guerra:
Vai se tratar de duas coisas, daí em diante: destruir não simplesmente o adversário
político, mas a raça adversa, essa (espécie) de perigo biológico representado, para a
raça que somos, pelos que estão à nossa frente. É claro, essa é apenas, de certo
modo, uma extrapolação biológica do tema do inimigo político. (FOUCAULT,
1999, p. 307-308).

Esta guerra será pensada a partir do princípio de que é necessário “poder matar para
poder viver” (FOUCAULT, 1988, p. 149), mas diferente de uma luta entre Estados para
garantir a extensão e a soberania sobre seu território, o que está em jogo não é a continuidade
do Estado frente à ameaça de outros, mas a própria continuidade biológica da espécie, como
afirma Foucault (1988). Daí a importância do controle dos fluxos de mercadorias e de pessoas
pelas vias das cidades.
Podemos, assim, formular algumas questões com as quais nos ocuparemos nesse
primeiro momento: como as ruas se constituem na contemporaneidade como espaços
perigosos dentro da cidade, passando a produzir perigo e sujeitos perigosos? De que modo se
27

As teorias da degenerescência têm como expoentes Bénédict Morel e Césare Lombroso, tiveram também forte
influência na medicina e nas formas como as cidades organizaram sua população. O primeiro ressaltou aspectos
biológicos da vida humana que estariam em risco com o desenvolvimento de anomalias hereditárias decorrentes
da proliferação de indivíduos não-brancos e de deficientes físicos e mentais na população geral. A repercussão
disto ocorreu no sentido de que estes indivíduos degenerados, representavam um atraso para a evolução da
espécie, e, portanto, deveriam ter suas vidas controlas severamente pelas políticas de segurança e de saúde do
Estado, para o bem da humanidade e da evolução da espécie. Já Lombroso, pensou que através da análise do
corpo, principalmente, do crânio, havia encontrado a forma de identificar nos sujeitos sinais de degenerescência,
facilitando a aplicação de procedimentos para os sujeitos, conforme o grau de degenerescência.

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dá a passagem de uma cidade que se protege de um perigo que lhe ronda em sua
exterioridade, para outro que circula e habita a própria cidade, agora nas ruas? Ou de outro
modo, como as muralhas ou muros de proteção passam a ser constituídos não mais em torno
das cidades, ao contrário, se localizam entre as casas e a rua? Qual o terreno de possibilidades
que torna essa configuração das cidades algo necessário e, de certo modo, naturalizado nas
formas de relações que temos com os espaços do privado e do público, conosco e com o
mundo, ou seja, como estes espaços se constituem no nosso presente histórico e quais as
implicações nas nossas formas de viver na cidade?
Parece-nos que esta produção histórica dos espaços urbanos está diretamente
relacionada às invenções modernas do individual e do coletivo (ou social). Interessa-nos o
fato de que ao estabelecer tal dicotomia, entre o privado e o público, o individual e o coletivo,
entre as casas e as ruas, produz-se uma exterioridade, como uma ameaça e um problema, a ser
tomado nas práticas de governo através de relações de poder e de saber.
Silva (2005) afirma que a noção de indivíduo é forjada junto à lógica disciplinar, na
qual os corpos são segmentados e fabricados em espaços fechados, nestes espaços há um
controle do tempo e do espaço, através do exercício de uma vigilância generalizada. Deste
modo, constitui-se um espaço de visibilidade absoluta dos corpos nestes interiores, permitindo
que possam ser alojados inúmeros indivíduos e que, principalmente, cada indivíduo possa se
vincular a uma identidade, constituindo uma subjetividade privatizada.
Foucault (2010a) afirma que a Antiguidade constituiu-se a partir de uma arquitetura
centrada em templos, teatros e circos, como uma civilização do espetáculo e, com isto há o
predomínio da vida pública e das festas. Com o poder disciplinar altera-se esta racionalidade e
somos assistidos por uma série de tecnologias que ao invés de priorizar a vida pública, tornam
os espaços privados um de seus principais mecanismos de intervenção sobre as condições de
vida dos sujeitos.
... a totalidade do indivíduo não é amputada, reprimida, alterada por nossa ordem
social, mas o indivíduo é cuidadosamente fabricado, segundo uma tática das forças e
dos corpos. Somos bem menos gregos que pensamos. Não estamos nem nas
arquibancadas nem no palco, mas na máquina panóptica, investidos por efeitos de
poder que nós mesmos renovamos, pois somos suas engrenagens. (FOUCAULT,
2010a, p. 205).

O poder disciplinar é produtivo, produz e fabrica corpos úteis e dóceis numa
tecnologia que se enreda pelo ordenamento social no interior das escolas, das casas, das
prisões e das fábricas, por todo território da cidade, conduzindo e dando suporte a todo um
modelo econômico e social emergente no contexto político da época.

55

E nisto, as casas e moradias organizam-se constituindo uma exterioridade que é a rua.
Cada vez mais as casas são compartimentadas e segmentadas, a família torna-se um segmento
da população em que o governo dos comportamentos sexuais, aspectos da demografia e do
consumo serão alavancados por ela. Este contexto demarca o que Foucault (2008) chama de
dispositivos de segurança, que, diferentemente de descartarem o poder disciplinar, irão se
aliar a este, resultando numa sofisticação e maior eficiência das tecnologias de governo. O
governo dos homens, a partir daí, será exercido assumindo a família, não mais como um
elemento principal, mas como mais um elemento no interior da população, tomando-o como
instrumento (FOUCAULT, 2008).
A moradia ganha um novo arranjo no qual há uma separação entre os cômodos das
crianças e dos adultos, o lugar em que são realizadas as refeições e aqueles destinados a
dormir. Há toda uma economia das relações familiares a partir de uma configuração do tempo
e do espaço no ambiente das casas. Do mesmo modo, vamos presenciar cada vez mais a
construção de muros e de grades que separam das casas as ruas. E é sobre isto que vamos nos
ocupar a seguir.
Seguiremos para o século XIX e as novas conformações que as cidades e as ruas
ganham na modernidade. Neste sentido, trata-se mesmo de constituir as cidades e as ruas
como problema, diferente de tomá-las como um objeto natural ou simplesmente como um
lugar naturalmente dado em que ocorrem as experiências humanas, pensamo-las como
produtos de diferentes práticas.

3.1 O paradoxo da rua: uma exterioridade perigosa no interior da cidade
Tendo situado questões específicas em relação às cidades, o poder e uma economia da
vida, iremos pensar como, a partir do século XIX, as cidades ganham uma nova configuração
no que diz respeito às ruas, constituindo-as numa exterioridade às casas, devendo ser evitadas,
uma vez que não só são consideradas perigosas como também são naturalizadas como lugares
viciosos e de degenerescência.
A partir do século XIX as ruas tornam-se palco de uma série de movimentos
populares. Na Europa, são ocupadas por uma massa popular raivosa que reivindica a garantia
de direitos básicos para uma coletividade de citadinos desempregada e sem condições
mínimas de sobrevivência. Em ruas estreitas, propícias para o encontro entre pessoas, o

56

Estado vê-se inerte para exercer sua força de controle sobre essas massas através de suas
tropas policiais. É necessário repensar a arquitetura das cidades.
Em 1895, Le Bon (1980) constitui as multidões como um objeto de estudo, numa
tentativa de compreender o funcionamento destas massas que punham em risco a ordem social
e política. Através de uma analogia à ideia de indivíduo, portador de uma alma, propõe pensar
em uma alma dos povos, das multidões. Esta seria constituída por uma irracionalidade que
precisaria ser comandada por um líder, a partir da sugestão, tal qual acontece na hipnose com
indivíduos, na relação entre médico e paciente. Sendo que, com as multidões, a sugestão
ganha um aspecto de sacrifício do interesse individual por uma entrega a interesses coletivos,
daí sua irracionalidade, o que Le Bon chama de um contágio mental, somente possível quando
o homem está na multidão.
Para Silva (2005), a irracionalidade e a dimensão patológica das multidões no
ordenamento social colocavam em destaque um novo elemento na política: um discurso
psicológico. E é sobre este viés que A psicologia das multidões, de Le Bon, destaca os
aspectos psicológicos do funcionamento da alma das multidões em detrimento dos aspectos
políticos e sociais que eram postos em reivindicação nestes movimentos. Logo, indivíduo e
multidão são postos em oposição: o indivíduo dotado de razão e a multidão de irracionalidade.
Ao tomar a razão como pivô para estabelecer a distinção entre o individual e o
coletivo, Le Bon produz uma primeira aproximação da psicologia em direção ao
social, relacionando-o a uma dimensão patológica – e, portanto, “perigosa” – que
exige a intervenção de um líder para governá-la. (SILVA, 2005, p. 65).

Nessa distinção entre o individual e o coletivo, as multidões nas ruas mobilizam uma
série de saberes que vão constituir possibilidades de governo desta população. Seja da
arquitetura e do urbanismo, seja da psicologia e do direito, da medicina e das estatísticas, uma
série de saberes vão incidir sobre essas mobilizações nas ruas para melhor governá-las. As
cidades ganham, com isto, uma nova conformidade. E as ruas são reordenadas para facilitar o
manejo de possíveis perigos deflagrados pela junção desta massa irracional.
Neste período acontece na Europa um processo de industrialização das cidades, o que
ratifica sua configuração e seu desenho como obsoletos. Era fundamental uma cidade com
ruas largas que permitissem a passagem de veículos automotores transportando cargas e
mercadorias. Segundo Foucault (2008), as cidades tornam-se um problema de governo, sendo
necessário o controle da circulação de coisas e dos homens para a proteção e segurança do
território, bem como para garantir que os sujeitos não adoeçam através da contaminação com
fluídos, tornando-os indisponíveis ao trabalho. É neste período que, segundo Foucault (1979),

57

a medicina aparece mobilizando uma série de práticas no cotidiano da vida nas cidades,
preocupada com questões sociais relacionadas à contaminação com o ar, a água, etc. Este
autor assinala que esta medicina reordenará o espaço urbano, numa lógica higienista,
realocando sujeitos, distribuindo-os pela arquitetura das novas cidades que começam a surgir.
É nesse duplo viés, econômico e social, que se iniciam processos de modernização das
cidades: as ruas deixam de ser lugares propícios ao encontro e à convivência entre os
citadinos, tornam-se lugares de passagem, relacionados aos veículos e às máquinas.
Coimbra (2001) afirma que, a partir do século XIX e princípios do XX no Brasil, o
processo de urbanização desenvolve-se de forma importante associado à industrialização. As
cidades, como lugares atrativos para aqueles que desejavam trabalhar, propicia um êxodo
rural importante de trabalhadores de outros estados e cidades circunvizinhas em busca de
oportunidades de emprego, mesmo sem moradia e garantias seguras de empregabilidade na
nova cidade.
As grandes cidades, sem condições básicas para sustentar tamanho êxodo, atraem e
mantém pessoas de inúmeros lugares constituindo uma cidade de espaços urbanos repartidos:
de um lado, as zonas nobres; de outro, territórios de pobreza (COIMBRA, 2001). Além disto,
há uma inflação populacional crescente, a cidade expande seu território às margens, alojando
sujeitos em condições subumanas de sobrevivência.
Segunda a autora, às cidades cabem a função de abrigar e produzir a pobreza, ao
oferecer-se como suporte de infraestrutura para o modelo socioeconômico vigente. Criam-se,
com isto, espaços inóspitos às margens das cidades, sem valor comercial, ocupados por esta
população. Quando estes espaços urbanos ganham uma valorização econômica, tais sujeitos
são empurrados para lugares menos importantes economicamente (CHALHOUB, 1996;
COIMBRA, 2001).
As cidades prescindem, como o modelo econômico vigente, de uma marginalização
desta parcela da população, que através de uma cultura da pobreza constituem-na
politicamente como classes perigosas. Para Coimbra (2001), ao produzir miséria, sem a qual
não existiriam, as cidades passam a operar na mesma lógica do capital.
Esta autora afirma que o uso do termo classes perigosas designa aqueles que não estão
diretamente inseridos no mercado de trabalho capitalista, em outras palavras, os pobres e
miseráveis que moram em territórios específicos das cidades. Com isto, tais sujeitos invademnas, circulando pelas ruas. O inimigo da cidade agora a habita.

58

3.1.1 O perigo da degenerescência da espécie
Conforme um discurso sobre raça e produção de marginais, possível com o
desenvolvimento da teoria da degenerescência do médico Bénédict Morel28, a concepção de
classes perigosas é associada à pobreza. A partir desta teoria é produzida uma série de
técnicas e de práticas que vão incidir diretamente na vida da população pobre das cidades.
A teoria de degenerescência, uma herança do século XIX, torna possíveis discursos
sobre raça e sobre a produção de marginalidade no âmbito das políticas de existência na
cidade. Os testes de inteligência e a craniometria teriam comprovado cientificamente
discursos elitistas relacionados à superioridade de raça; neste caso, os pobres tornam-se fonte
de todas as doenças físicas e morais (COIMBRA, 2001; LOBO, 2008).
E iniciam-se no século XIX e XX, a partir do modelo de ciência positiva da época, os
movimentos higienistas no Brasil. Para Coimbra (2001), a elite científica brasileira
desempenha, a partir daí, uma missão patriótica, desvelando uma verdadeira cruzada
saneadora e civilizatória contra o mal que se encontraria no seio da pobreza, construindo a
tutela das diferentes classes sociais.
O modelo da família nuclear burguesa torna-se hegemônico, bem como uma medida
para a tutela dos pobres. Os médicos, num modelo higienista de saúde, são aqueles que vão
indicar como todos devem viver na cidade, através da orientação de como comportar-se,
morar, comer, dormir, trabalhar, viver e morrer (COIMBRA, 2001). Tais prescrições visam
evitar a formação de sujeitos desajustados e rebeldes, a partir de uma aposta no modelo de
família burguesa, uma vez que, na teoria da degenerescência de Morel, havia um componente
hereditário na herança de vícios e virtudes, logo, boas famílias gerariam sujeitos ajustados.
Lobo (2008) traça, em seu livro Os infames da história: pobres, escravos e deficientes
no Brasil, um percurso genealógico de como a vida passa a ser investida por saberes e
práticas, desde o Brasil colonial até o início do século XX. As grandes navegações
despontavam, nos relatos de viagem dos portugueses, um novo mundo fascinante com um
paradoxo importante, ora um paraíso, ora um purgatório, sendo descrito como possibilidade
de riqueza, um paraíso de prosperidade. O novo mundo oferecia esperanças de vida. Nos
relatos de viagem, as más-formações físicas, consideradas monstruosidades, eram descritas e
28

Bénédict Morel foi um médico, nascido em Viena no ano de 1809, que, influenciado pelas ideias
evolucionistas de Charles Darwin, construiu a teoria da degenerescência da espécie, a partir da qual afirmava que
deveria haver um controle das massas degeneradas da população para que a “espécie humana” não viesse a
retroceder na cadeia evolutiva, degenerando as heranças genéticas da espécie, devido às combinações genéticas
entre “raças” diferentes.

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associadas à raridade, ao que os portugueses não conheciam. E demonstravam a glória ou a ira
de Deus: podia ser um castigo divino ou uma das criações divinas intermediárias que
garantiria a harmonia entre as coisas, nunca uma falha ou uma anormalidade da criação.
Segundo Lobo (2008), a partir do século XIX o homem desconfia destes acertos da
natureza, tomando-os em uma parametrização e padronização. As monstruosidades tornam-se
alvo de uma lógica evolucionista e de progresso, então são tomadas como degenerescência da
espécie. Constitui-se uma teratologia em que as monstruosidades ganham uma explicação
científica.
Entre os médicos brasileiros inicia-se uma série de discursos que vão associar as
monstruosidades e degenerescências a um contexto social e a afecções morais oriundas deste
contexto. No discurso higienista, formulado neste período, há uma disseminação de modelos
desenvolvimentistas normalizadores da vida humana. E também aparecem questões
ambientais e da herança dos caracteres hereditários: a família configura-se como instrumento
de intervenção médica e de governo da vida (FOUCAULT, 1999).
Lobo (2001) afirma que as leis da hereditariedade são importantes para marcar a
história das degenerescências, podendo explicar as diversas metamorfoses e dar mais
elementos para as práticas de controle relacionadas à preocupação com a produção de uma
raça decadente, incluindo aspectos morais no que diz respeito à hereditariedade.
A monstruosidade passou a ter uma natureza tanto física quanto moral, de ordem
hereditária, a despeito dos limites apontados pelos estudos de E. G. Saint-Hilaire. O
deslize do comportamento, as perversões, os desregramentos eram produtos
degenerados, taras que deixariam também um legado fatal para a descendência. A
degeneração moral inscrevia-se no corpo pelas doenças que provocava (como sífilis,
alcoolismo e tuberculose) e fixava-se na hereditariedade. (LOBO, 2008, p. 52)

Neste sentido, a degenerescência marcava o corpo através de doenças associadas a
comportamentos e hábitos que fugiam a uma moralidade da época, produzindo um desvio da
ordem geral da vida e uma raça decadente, através da fixação de caracteres hereditários de
geração em geração.
Os degenerados eram aqueles que entregues a hábitos e costumes de vadiagem,
preguiça, alcoolismo e libidinosidade, poriam não só a espécie humana em decadência, quanto
também seriam revoltosos que expunham ao risco a ordem social e política dominante. Com
estas preocupações, Morel criou toda uma tipologia através de Atlas com tipos degenerados
da humanidade, constituindo o que chama de classes perigosas.
Os sinais de saúde indicavam uma moralidade natural, sancionada por uma ordem
natural cujas forças seriais e progressivas deveriam fundar toda a organização social.

60

Mas havia forças do mal a combater – eis a tarefa dos médicos no interesse das
famílias, das raças e da espécie. Nas famílias, a hereditariedade mórbida poderia
produzir o dessemelhante; nas raças, o retorno ou a paralisação no ancestral
primitivo e selvagem; na espécie, o perigo da extinção gradativa dos traços da
humanidade – destruição de sua forma autêntica. (LOBO, 2008, p. 56)

Ganha destaque no Brasil o movimento eugênico e sanitarista, apoiado em uma lógica
preventiva, associada à educação, administrando a vida dos homens, mulheres e crianças para
evitar o contágio físico e moral com fatores de degenerescência.
Coimbra (2001) apontará que os médicos funcionaram a partir daí como os primeiros
urbanistas do Brasil através do esquadrinhamento do corpo social e do campo social, pensado
justamente a partir da reestruturação das cidades de forma que fosse evitado o contágio
através de fluxos e miasmas, no contato com as ruas e a pobreza. A casa torna-se um lugar
seguro e as ruas lugares viciosos.
As ruas são recolocadas pelos discursos higienistas e eugênicos como lugares que
proliferam caracteres de degenerescência, lugares de aprendizagem de vícios e maus hábitos,
relacionados a questões morais.
O trabalho é posto neste período como uma importante forma de inserção social. Com
isto, há uma separação importante entre os pobres que trabalham e aqueles que não trabalham.
É o que Coimbra (2001) chama do surgimento da ideia de pobres dignos e de pobres viciosos.
Os primeiros são aqueles que trabalham e mantém sua família unida, educando-a a partir de
valores morais e religiosos; neste sentido, devem ser incentivados a afastar seus filhos de
ambientes viciosos, dada sua condição de vulnerabilidade relacionada à pobreza. As ruas são
estes lugares a serem evitados, pois são infestados de vícios e de doenças físicas e morais.
Por outro lado, os pobres viciosos são o grande mal da sociedade, pois têm um
potencial de destruição e devastação da espécie e da ordem social estabelecida. Não trabalham
e vivem no ócio: “são portadores de delinquência, são libertinos, maus pais e vadios”
(COIMBRA, 2001, p. 91). Coimbra (2001) afirma que para os médicos da época as ruas são
descritas como uma grande escola do mal, lugar de mistura e desorganização da vida social.
Junto a isto, vale lembrar as contribuições de Le Bon sobre o perigo das multidões nas ruas e
a necessidade do estabelecimento da ordem nas ruas como urgente para a modernização de
um país. Daí um esvaziamento das ruas, deixando de ser pontos de encontro e de atos
políticos e artísticos para se constituírem como espaços evitáveis, de contágio e de
degenerescência moral e física.

61

Com a desqualificação dos espaços públicos urbanos, segundo Coimbra (2001), há
uma ênfase nos espaços privados em detrimento dos espaços públicos, pois se caracterizam
como perigosos e, como tal, produtores de degenerescência e de periculosidade. A pobreza
passa a ser legitimada como iminente perigo social, o que conduz a um esquadrinhamento do
social através de contribuições das ciências humanas. Surgem, então, as reformas urbanas,
relacionadas à ameaça das multidões nas ruas e praças da cidade durante o século XIX e
início do XX. As cidades se adéquam à velocidade, não às pessoas; tornam-se lugar de
passagem, não mais de encontro. As casas e moradias passam a ser um lugar seguro,
garantindo o esquadrinhamento e o controle da população numa lógica disciplinar viável a
partir da segmentação dos espaços urbanos, que uma população nômade desafia e denuncia a
sua deficiência.
Nas cidades contemporâneas constitui-se um paradoxo importante em que, diferente
da Idade Média, em que os muros e torres cercavam as cidades para protegê-las de invasão
inimiga de bárbaros e ladrões, agora os muros, grades e câmeras de segurança (torres de
vigilância) serão postos em torno das casas, afastando-as do ambiente inóspito das ruas, que
estariam repletas de sujeitos vagabundos, viciosos e das mais variadas formas de doenças
físicas e morais. Constitui-se, deste modo, uma exterioridade perigosa, habitante das cidades,
que anda pelas ruas no interior das cidades.
Esta noção é importante para pensarmos as vidas que habitam e se constituem nas
ruas. Ao mesmo tempo em que se torna importante para deslocarmos a ideia de perigo para a
ideia de uma desqualificação destas vidas. Destinando-as ou a políticas assistencialistas ou a
condições subumanas de sobrevivência, ou mesmo a morte e extermínio.
Tais vidas perigosas devem estar prontas para serem corrigidas através de
investimentos do poder, dos saberes científicos e tecnológicos nas ciências humanas; ou
investidas de outro modo, através de uma desqualificação intensa destas vidas, orquestrada
pela produção de mortes desqualificadas no âmbito social, político e criminal. Estes
investimentos, iremos abordá-los mais adiante na dissertação através dos discursos midiáticos,
da constituição dos moradores de rua em Maceió como um problema de governo e das
estratégias de governo oriundas da constituição deste problema.

62

3.2 Os moradores de rua: moradia e rua objetivadas e materializadas em sujeitos
Ao tomar as ruas em seus discursos e práticas, as ciências humanas estão produzindo
subjetividades, na mesma medida em que as objetivam. Ao colar às ruas uma concepção de
degenerescência e de perigo social, fabricam-se subjetividades normais e desviantes e, além
disto, uma autoridade que garante a intervenção sobre estas. Uma autoridade que, relacionada
à verdade objetiva sobre as coisas e os homens, sustenta-se em relações de poder que põem
em funcionamento uma racionalidade de governo da vida.
Neste caso, os moradores de rua são uma materialidade que põe uma engrenagem de
estratégias de governo da vida em funcionamento. Sobre isto, é importante demarcar que esta
nomenclatura (de moradores de rua) torna-se possível num determinado momento em que, de
um lado a rua torna-se lugar de todas as mazelas humanas e, de outro, através de aspectos
políticos e sociais, as casas tornam-se lugares seguros, separadas e opostas às ruas. A casa é
associada a comportamentos e hábitos individuais dotados de uma intimidade (encontro com
amigos, festas familiares, etc) e de um aspecto fisiológico (dormir, comer, reproduzir-se,
evacuar)29.
A vida biológica e social é esquadrinhada nos ambientes construídos no interior das
casas, criando e conformando hábitos, dirigindo o que fazer e onde fazer, adequando o corpo
biológico a uma ordenação social. Esta vida investida no interior das casas ganha um
ordenamento e qualifica-se para a vida social civilizada a partir de uma relação com o
saudável e com uma docilidade dos corpos, tornando-os úteis ao trabalho e às tecnologias
biopolíticas de governo.
Esta vida também se qualifica, principalmente, na relação com as vidas daqueles que
vivem nas ruas. Ao constituir uma exterioridade em relação a si mesma, alojada nas ruas, os
moradores de casas constituem-se como um ideal de vida político e social no nosso modelo
econômico, estabelecendo com as instituições (escolas, fábricas e leis), com os saberes
científicos e uma série de dispositivos sociais, uma relação de verdade que os fabrica, numa
rede de práticas e discursos de governo da vida.
É nas relações de poder que se estabelecem os regimes de verdade como forças que
determinam formas de governo do outro, produzindo subjetividades. Para Foucault (1979), o
poder constitui-se como sendo da ordem da produção, não da opressão e da negatividade.
Neste caso, podemos pensá-lo como sendo produtor de realidades.
29

Sobre o assunto visitar as obras de Philippe Ariès, principalmente a História social da infância e da família.
Conferir em: ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981.

63

Há uma mudança na forma como as pessoas que vivem nas ruas são nomeadas e
subjetivadas nas nossas cidades. Não mais mendigos ou ladrões, como na Idade Média, agora
são moradores de rua. Se tomarmos a ideia descrita acima, de uma vida biológica e social
ordenada e segmentada nas casas, para pensarmos os moradores de rua, o que veremos é outro
ordenamento da vida biológica e social que seria exposto em outros aspectos.
Através de uma vida nômade que se desloca pelas ruas, os moradores de rua operam
um deslocamento importante nas formas de governo da vida e de segmentação dos corpos. Há
algo na vida destes sujeitos que escapa ao ordenamento social e político, sendo, por isto,
inserido num campo das anormalidades e/ou patologias e das moralidades. Neste
deslocamento são constituídos saberes e práticas que tentam capturá-los, contudo, teimam a
escapar de qualquer ordenamento como um resto de vida que resiste ao poder-saber
(AGAMBEN, 2010), constituindo-se como uma população ingovernável nos moldes
convencionais da economia política ocidental. Sobre estes ingovernáveis, vidas menos
qualificadas para o trabalho e o consumo “civilizado”, atuará um poder soberano de morte.
As ruas tratam de abrigar uma vida nômade no interior das cidades e das políticas
públicas, ao mesmo tempo, também produzem subjetividades ora relacionadas ao que
chamam de moradores de rua e ora aos moradores de casas. As ruas dispõem coisas e pessoas,
criam destinos e formas de cuidados de si e do outro, produzindo sujeitos neste jogo de
subjetivações e objetivações. Determinam o que sentir, como viver, o que viver e como sentir,
pondo em funcionamento sensações, discursos e práticas (COIMBRA, 2001; FISCHER,
2007).
Os moradores de rua são chamados como tal não somente por não ter uma casa, mas
por fazer das ruas um lugar de morada, por constituírem-se em um ambiente evitado e tomado
pelos citadinos contemporâneos como lugar de insegurança e marginalidade. Logo, os
discursos e as práticas que constituem estes sujeitos são atravessados por uma historicidade
que os objetivam subjetivando-os, que marcam seus corpos como alvos de poder.
Pensamos que neste duplo, de uma vida que é qualificada em uma tecnologia
disciplinar e de uma vida que se desqualifica nas ruas, seja possível problematizá-las como
uma produção contemporânea de nós mesmos. No sentido em que, uma e outra, estabelecem
entre si uma relação a partir da qual são produzidas simultaneamente e numa relação de
exclusão inclusiva, em que a relação estabelecida é a do abandono (AGAMBEN, 2010).

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Podemos pensar o abandono, junto a Agamben (2010), a partir da tentativa de
ordenamento da vida, ao jogar a vida desordenada, restante e não capturada, numa relação de
poder constituída pela suspensão da lei e da norma. É nesta relação de abandono que a vida
exposta nas ruas é problematizada nesta dissertação.
Uma vida exposta, em total anomia, a um poder de morte, constituindo uma forma de
vida entregue a sobrevivência fisiológica e a uma vontade soberana que a inaugura a partir de
sua desqualificação numa relação de bando. Assim podemos falar de uma exceção própria à
norma, em que, como afirma Agamben (2010, p. 34), “a regra vive somente da exceção”.
A relação de exceção é uma relação de bando. Aquele que foi banido não é, na
verdade, simplesmente posto fora da lei e indiferente a esta, mas é abandonado por
ela, ou seja, exposto e colocado em risco no limiar em que vida e direito, externo e
interno, se confundem. Dele não é literalmente possível dizer que esteja fora ou
dentro do ordenamento [...]. É neste sentido que o paradoxo da soberania pode
assumir a forma: “não existe um fora da lei”. A relação originária da lei com a vida
não é a aplicação, mas o Abandono. (AGAMBEN, 2010, p. 35, grifo do autor).

A vida abandonada está a mercê de um poder soberano, na forma de exceção. A lei a
alcança ao desaplicar-se, ao deixar-se em suspensão (AGAMBEM, 2010, p. 35).

65

4 ENTRE TEXTOS E NOTÍCIAS: A CONSTRUÇÃO DE PISTAS PARA A ANÁLISE
Neste capítulo apresentaremos a construção de pistas para a análise e discussão, com
base nas matérias de jornais de sites de notícias do Brasil sobre os assassinatos de moradores
de rua em Maceió, além de postagens em blogs disponíveis na internet e outros documentos
públicos sobre tal acontecimento, elaborados por entidades civis organizadas. Com isto,
objetivamos percorrer o trajeto que nos permitiu construir os analisadores desta pesquisa para
abordar este acontecimento.
No trajeto buscaremos responder as seguintes perguntas dirigidas a estes textos sobre
os assassinatos de moradores de rua em Maceió: a) o que é dito?; b) quais os domínios de
saber e os discursos que compõem esses enunciados?; c) quais explicações são oferecidas
sobre esta situação?; e d) de que forma são objetivados? Ou seja, de que forma nestes
discursos, se tornam um problema para o governo desta população?
Para continuarmos este capítulo, vamos inicialmente caracterizar o material de análise
e trazer as concepções teóricas que orientaram nossa prática de pesquisa. Como mencionado,
utilizamos matérias midiáticas e outros documentos públicos produzidos no período de 2010 a
2012 sobre o acontecimento a que nos ocupamos nesta dissertação.
O acesso a outros documentos públicos ocorreu através do contato, entre novembro e
dezembro de 2011, através de email enviado para a Comissão de Direitos Humanos da
OAB/AL, que disponibilizou cópias de ofícios encaminhados a instituições do aparelho
administrativo do Estado, como a polícia civil, secretária de saúde e de educação, entre
outros, sobre a preocupação com a série de assassinatos de moradores de rua na capital
alagoana; e uma lista com nome e descrição dos moradores de rua assassinados em 2010,
tendo por base as matérias de jornais locais.
Além disso, tivemos acesso ao Relatório Consolidado sobre as mortes de moradores
de rua na cidade de Maceió, elaborado pelo Ministério Público Estadual, através do site desta
instituição, publicado em 13 de julho de 2012 no Diário Oficial do Estado.
Os textos jornalísticos foram encontrados na internet através de sites de busca com os
seguintes descritores: moradores de rua, moradores de rua em Maceió, mortes de moradores
de rua em Maceió. Privilegiamos notícias vinculadas a sites de jornais de circulação nacional
e local, tais como Folha.com, Tudo na Hora, Gazeta Web, G1 e o site da Prefeitura de
Maceió, entre outros do mesmo tipo. Alguns textos com manifestações de Igrejas, de pessoas
e entidades sobre este acontecimento, fazem parte dos materiais de análise, e foram

66

adicionados somente aqueles que abordaram de forma direta os assassinatos de moradores de
rua em Maceió, considerando a importância que têm para a construção das narrativas sobre
este acontecimento. Este material foi encontrado da mesma forma que as matérias de jornais:
através de site de busca utilizando os mesmos descritores.
Ao todo, constam 210 notícias sobre moradores de rua em Maceió em nossos materiais
de análise; dentre estas, 13 notícias são de 2004 a 2010. A entrada das últimas se deve ao fato
de tentarmos compreender como ou sobre quais fatos eram narrados acontecimentos a
respeito destes sujeitos nos noticiários anteriormente à série de assassinatos destes sujeitos no
estado.
Os textos jornalísticos sobre esta temática foram importantes, como veremos, para
contar a história deste acontecimento em Alagoas: fundamentaram os dados de relatórios da
OAB no Estado pela Comissão de Direitos Humanos desta entidade, e, também, do relatório
do Ministério Público Estadual que confrontou e alterou os resultados referentes à quantidade
de assassinatos das pessoas que moram nas ruas da capital alagoana e no Estado, quando
relacionados aos mesmos números registrados pela Polícia Civil.
A Ordem dos Advogados do Brasil em Alagoas notificou os casos que chegaram ao
conhecimento da Comissão de Direitos Humanos através de familiares das vítimas,
passando a realizar a Comissão análise dos casos constantes nos dados oficiais da
Polícia Civil, sendo possível observar que cinco casos constantes no relatório da
OAB, não constam dos dados oficiais da Polícia Civil, não se sabendo ao certo se
realmente se referem a casos de homicídios de moradores de rua. No entanto, os
referidos dados constam noticiados pela imprensa local, não se sabendo se foram
instaurados os respectivos Inquéritos Policiais, apesar de até a presente data não ter
sido informado pela Direção Geral da Polícia Civil. (MINISTÉRIO PÚBLICO DE
ALAGOAS, 2012, p. 77-78).

Como assinalado no trecho acima, do Relatório Consolidado sobre as mortes de
moradores de rua na cidade de Maceió, os noticiários da imprensa local foram importantes
para contar e narrar os assassinatos de moradores de rua em Maceió. Isto ressalta, entre outras
coisas, a força de verdade que tais textos possuem na configuração deste acontecimento,
servindo, deste modo, para relativizar as informações oficiais da Direção Geral da Polícia
Civil.
Conforme Fischer (2007) e Melo (2010), a mídia, de modo geral, atribui sentidos e
cria realidades a partir das quais passamos a narrar nossa própria vida e os acontecimentos
sociais; segundo estas autoras, ao priorizar e tornar públicos certos fatos, há uma decisão
sobre o que devemos ver, sentir e pensar. Deste modo, podemos dizer que as mídias são
importantes dispositivos de subjetivação, pois produzem e reproduzem modos de ser, de viver

67

e sentir. No caso dos moradores de rua em Maceió, a imprensa também contribuiu para
produzir uma narrativa e uma visibilidade para estes sujeitos.
Para esta dissertação, a preocupação inicial não está em confrontar informações e
verificar sua veracidade, mas explorar os efeitos de verdade que estas produzem ao serem
veiculadas. Interessa-nos não a origem primeira desse estado de coisas, mas as produções de
práticas-discursos neste campo de acontecimentos. Conforme Foucault (1979, p. 17):
Procurar uma tal origem é tentar reencontrar “o que era imediatamente”, o “aquilo
mesmo” de uma imagem exatamente adequada a si; é tomar por acidental todas as
peripécias que puderam ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces; é querer
tirar todas as máscaras para desvelar enfim uma identidade primeira.

Longe disso, buscaremos apresentar estes textos como disparadores de práticas que
constituem uma realidade sobre a qual vão interagir saberes e competências num cenário
político específico (HOOK; HÜNING, 2009). É sobre este arranjo de forças que nos
ocuparemos aqui.
Segundo o historiador Fonteles Neto (2011), num texto apresentado no 27º Simpósio
Nacional de História em São Paulo, o crime passa a ser veiculado na imprensa brasileira no
fim do século XIX e início do XX, a partir das teorias criminológicas que emergiam à época,
surgindo os primeiros repórteres especializados nesse tipo de notícias. Com isto, o interesse
acadêmico pela utilização destes materiais cresceu, tornando-se um importante material de
análise histórica. Superadas algumas controvérsias relacionadas à forma parcial e recortada
como narram os fatos e sua utilização científica, os textos jornalísticos surgem como um
potente material histórico que, segundo o autor, deve ter seu uso em textos acadêmicos
problematizado, uma vez que ao utilizarmos este tipo de material estamos trabalhando apenas
com aquilo que “se tornou notícia”.
No entanto, os textos jornalísticos são fundamentais para contar a história dos
assassinatos dos moradores de rua em Maceió, pois são utilizados por instituições como a
OAB/AL e a Promotoria Pública do Estado de Alagoas para a construção dos relatórios sobre
estes assassínios e, até mesmo, para confrontar com as informações disponibilizadas pela
Polícia Civil. Neste caso, as matérias de jornais tornam-se importantes, pois têm uma força de
verdade que produz sujeitos e subjetividades no contexto deste acontecimento.
No início do século XX, tais textos, segundo Fonteles Neto (2011), atravessados pelos
discursos criminológicos de Cesare Lombroso, reapresentavam o crime e os criminosos com
uma cara e uma cor: eram os pobres e os negros recém-libertos os principais personagens das
páginas policiais, caracterizando-os como rudes e preguiçosos, viciosos, degenerados e

68

degradantes do povo brasileiro (LOBO, 2008). E valia a máxima de que “todo cidadão é
suspeito de alguma coisa até prova em contrário!”. Neste sentido, as autoridades policiais e
políticas orientavam suas práticas coercitivas a esta população, justificando-as a partir dos
saberes científicos produzidos à época e veiculados pela imprensa.
Sobre o que chama de abstração ou imprecisão cometida por uma comissão
parlamentar na Câmara dos Deputados do Império do Brasil em maio de 1888, período em
que a abolição da escravatura estava em curso, a respeito de um debate em que se associava
pobreza à criminalidade, Chalhoub (1996, p. 22-23) afirma:
Uma vez cometida essa abstração, ou essa imprecisão, na origem do raciocínio –
abstração ou imprecisão porque os deputados obviamente não podiam encontrar
dados de realidade que fundamentassem a asserção de que todo trabalhador honesto
necessariamente escaparia à pobreza -, o resto se segue como que naturalmente: os
pobres carregam vícios, os vícios produzem os malfeitores, os malfeitores são
perigosos à sociedade; juntando os extremos da cadeia, temos a noção de que os
pobres são, por definição, perigosos.
[...]. Assim é que a noção de que a pobreza de um indivíduo era fato suficiente para
torná-lo um malfeitor em potencial teve enormes consequências para a história
subsequente de nosso país.

Chalhoub (1996) apresenta-nos a forma como teorias científicas vinham a se arranjar a
práticas de governo de condutas e da administração pública no Rio de Janeiro, a partir de uma
premissa de neutralidade científica e de um discurso competente, reforçando, através de um
discurso criminalizador, práticas racistas sob o selo das ciências jurídicas e médicas. Tal
discurso era veiculado nas mídias impressas, constituindo um retrato de nossa história social e
política, a partir da desqualificação de condutas e de formas culturais diferentes daquelas que
seriam as adequadas para uma sociedade civilizada.
Ao contrário dos textos jornalísticos do século XIX e XX analisados por autores como
Chalhoub (1996) e Lobo (2008), que traziam de modo escancarado as concepções racistas e
higienistas presentes nos discursos de saúde e segurança pública da época, o que nos será
apresentado sobre os assassinatos de moradores de rua em Maceió são textos que se
comprometem com uma narrativa descritiva dos fatos, notícias que se comprometem com a
descrição supostamente isenta das coisas, dos fatos. Que beiram a uma neutralidade narrativa
e a uma suposta denúncia social, anunciada a priori.
São textos discretos, que tentam narrar os fatos e informar o leitor com as poucas
informações que conseguem sobre os moradores de rua assassinados. Ao longo destes dois
anos, nestes textos jornalísticos, houve uma opção por uma narrativa que se volta para a
importância da evidência dos fatos e dos discursos, tratados como generalizadores de

69

verdades sobre estes sujeitos. Nessa relação, fatos e discursos são naturalizados em função da
busca de uma verdade original sobre tais acontecimentos, trata-se de uma relação causaefeito, problema-solução.
Seria a primazia dos fatos, como podemos ler nos títulos de algumas notícias:
Em 2 anos, 80 moradores de rua foram mortos em Maceió; Justiça não descarta
grupo de extermínio (Tudo na hora, 13/07/2012)
Em 2012, dezesseis moradores de rua foram mortos em AL (Tudo na hora,
17/06/2012)
Após nove assassinatos em 2010, MP suspeita de grupo de extermínio de moradores
de rua em Maceió (UOL Notícias, 22/07/2010)
Alagoas investiga grupo de extermínio. 14 mendigos foram mortos desde janeiro
(Folha de São Paulo, 31/07/2010)
Moradora de rua é morta a pedradas em galpão usado como boca de fumo (Tudo
na hora, 12/05/2011)

Esta primazia dos fatos também pode ser percebida na narrativa de um dos textos
acima mencionados, intitulado Moradora de rua é morta a pedradas em galpão usado como
boca de fumo, ilustrado por uma fotografia da cena em que o corpo foi encontrado.

Uma moradora de rua foi morta a pedradas, no início da noite desta quinta-feira
(12), quando se encontrava em um galpão utilizado como boca-de-fumo, localizado
no bairro Clima Bom. Cristiane dos Santos, 30 anos, é o 11º morador de rua
assassinado na capital alagoana este ano.
Ao lado dela foram encontradas várias latinhas de refrigerante, que teriam sido
usadas para o consumo de drogas. As causas do crime ainda são desconhecidas, e a
Polícia Militar ainda não sabe quem teria praticado o assassinato. De acordo com o
Centro Integrado de Operações da Defesa Social (Ciods), familiares da mulher
disseram à PM que ela morava nas ruas havia dois anos e que consumia crack.
O corpo de Cristiane dos Santos foi periciado pelos peritos do Instituto de
Criminalística de Alagoas (IC/AL) e encaminhado para o Instituto Médico Legal
(IML) Estácio de Lima. Ele será necropsiado e, posteriormente, liberado para
sepultamento.
Décimo primeiro
Com a morte de Cristiane dos Santos subiu para 11 o número de moradores de rua
assassinados somente este ano em Maceió. O último crime ocorreu no dia 28 de
abril passado, em um trecho da Avenida Maceió, no bairro do Poço.

70

A vítima foi identificada pela PM como sendo Tiago José da Silva, 32 anos,
conhecido por “Jon”. Ele foi morto a pedradas, conforme levantamento feito pelos
peritos do IC.
Histórico
No último dia 22 de abril a PM encontrou o corpo de um morador de rua
identificado como Henrique, de aproximadamente 30 anos. Ele foi assassinado a
facadas em uma calçada da Avenida da Paz, em frente ao Clube Fênix, na orla de
Maceió.
Outro morador de rua assassinado foi identificado como "Cabeludo", morto tiros no
bairro do Farol. Dias antes, homens mataram também a tiros um jovem identificado
apenas por "Estranho", crime ocorrido no Centro de Maceió.
No dia 21 de fevereiro, um outro morador foi morto com seis tiros na cabeça, no
bairro Rosane Collor. No dia anterior, o adolescente Nataniel Iraquitan da Silva, 17,
estava dormindo na calçada de um estabelecimento comercial quando foi morto.
Outra vítima morta em fevereiro foi Alexandra Barbosa Aragão, 28, assassinada em
um terreno no bairro da Levada. Em janeiro, um morador de rua foi morto na rua
presidente Agostinho da Silva Neves, no bairro do Poço.
No ano passado, a violência contra moradores de rua levou Alagoas a ficar na mira
de organismos internacionais de Direitos Humanos. Em 2010, foram registrados 30
assassinatos de moradores de rua na capital. O governo federal chegou a mandar
representantes para pedir celeridade à Polícia Civil de Alagoas (PC/AL) nas
investigações.30

O que podemos destacar é o aspecto descritivo, como mencionado anteriormente,
presente no texto e marcante das narrativas jornalísticas que veremos ao longo desta
dissertação. Ainda que sob um subtítulo com o nome de Histórico no texto acima, notamos
apenas uma descrição dos episódios anteriores ao assassinato de Cristiane dos Santos: tal
como a fotografia que ilustra a matéria, o texto busca descrever, apenas contar os fatos.
Dito isto, seguiremos com a análise proposta. Numa tentativa de responder as
perguntas inicialmente colocadas neste capítulo, apresentaremos o trajeto feito para a
construção dos analisadores desta dissertação e buscaremos apontar outras questões que não
constituem alvo de nossa pesquisa e poderão ser retomadas em outros trabalhos.

4.1 Algumas pistas: uma trajetória possível para análise dos textos
Nas primeiras conversas junto a colegas e professores quanto a nossa proposta de
pesquisa para o mestrado, fomos interrogados sobre a relação da psicologia com as mortes de
moradores de rua, afinal constituíam-se no campo político. Tais conversas foram gerando

30

Matéria do site de notícias Tudo na Hora em 12 de maio de 2011, intitulada Moradora de rua é morta a
pedradas
em
galpão
usado
como
boca
de
fumo:
http://tudonahora.uol.com.br/noticia/policia/2011/05/12/140717/moradora-de-rua-e-morta-a-pedradas-emgalpao-usado-como-boca-de-fumo.

71

algumas inquietações quanto à forma como iríamos abordar essas questões e trazê-las para o
campo psicológico.
Ao mesmo tempo, fomos notando a forma como outras temáticas mais comuns na
abordagem psicológica, como a da infância, eram tomadas com certa obviedade, uma vez que
historicamente a disciplina psicologia vem trabalhando e construindo suas teorizações a partir
destas temáticas.
Foucault (2001), em sua aula inaugural no Collège de France, aponta algumas
considerações importantes quanto aos jogos de construção de saber inerentes à constituição de
uma disciplina científica, afirmando que “para que haja disciplina é preciso, pois, que haja
possibilidade de formular, e de formular indefinidamente, proposições novas” (FOUCAULT,
2001, p. 30). Deste modo, o filósofo traz uma série de contribuições para pensar os jogos de
poder implicados na constituição daquilo que pode ser dito a partir de uma disciplina
científica.
Afirma que para uma proposição ser tomada por uma disciplina, torna-se necessário
que responda a algumas condições relacionadas aos jogos de verdade, não se restringindo à
pura e simples verdade (Foucault, 2001, p. 31). Neste sentido, Foucault (2001) nos indica que
a disciplina, através de seus rituais, produz coisas sobre as quais se pode falar em determinado
campo de conhecimento, recorrendo a técnicas e instrumentos conceituais bem definidos,
tornando o que se fala aceitável, dando-lhe um efeito de verdade. Por isto, “para pertencer a
uma disciplina uma proposição deve poder inscrever-se em certo horizonte teórico”
(FOUCAULT, 2001, p. 32).
Nestes termos, uma disciplina é capaz de reconhecer uma proposição verdadeira e uma
falsa, afugentando toda uma teratologia do saber (FOUCAULT, 2001, p. 33). O lugar do erro
neste jogo de verdades, segundo o filósofo, é tão importante para a produção de verdades por
parte de uma disciplina quanto o seu valor de verdade em si, pois se produz e é decidido no
interior de uma prática bem definida, tornando-se atinente aos modos com os quais é decidido
o que pode ser tomado como verdade ou erro.
Em resumo, uma proposição deve preencher exigências complexas e pesadas para
poder pertencer ao conjunto de uma disciplina; antes de poder ser declarada
verdadeira ou falsa, deve encontrar-se, como diria M. Canguilhem, “no verdadeiro”.
(FOUCAULT, 2001, p. 34).

É no campo de assentamento das verdades que uma proposição pode ser falseada ou
tomada como verdadeira. Estar no verdadeiro é condição relevante para dizer verdades. Neste
sentido, este autor nos assinala que, para tanto, é necessário “obedecer às regras de uma

72

‘política’ discursiva que devemos reativar em cada um de nossos discursos” (FOUCAULT,
2001, p.35). A partir disto, podemos nos questionar sobre a vontade de verdade que atravessa
os discursos.
Ora, o que guarda essa vontade de verdade? O quanto de um discurso ou
conhecimento tem de vontade de verdade, senão o poder de governar, de traçar destinos e
produzir formas de viver qualificadas?
Ainda na aula inaugural, Foucault (2001) nos remete às formas como poder e saber
passam a ser exercidos de forma complementar, numa relação de sustentação recíproca a
partir do século XIX: “como se a própria palavra da lei não pudesse mais ser autorizada, em
nossa sociedade, senão por um discurso de verdade” (FOUCAULT, 2001, p. 19). Deste modo,
todo um repertório discursivo emprestado, principalmente, pelas ciências humanas passa a
garantir a veracidade e a autoridade das decisões políticas, jurídicas e sociais.
Ao se formular a questão sobre a relação da psicologia com o acontecimento dos
assassinatos de moradores de rua em Maceió, o que estava sendo posto em questão era
justamente o lugar de verdade a partir do qual escolhemos falar sobre tal acontecimento, tão
atravessado por questões que à primeira vista se colocavam à distância do que a psicologia,
enquanto disciplina científica, costumeiramente se ocupa.
Afinal, o que se pode dizer sobre tal acontecimento a partir de nossa disciplina? Que
verdades podem ser formuladas? Quais nossas competências técnicas e teórico-conceituais
que nos permitem construir conhecimento sobre este acontecimento político e social?
Respondemos a tais questões partindo do trabalho de Coimbra (2001), que propõe
pensar a violência urbana a partir do conhecimento psicológico, incluindo-o nas questões
políticas. Esta autora questiona-se sobre a forma como a violência urbana produz
atravessamentos nas nossas vidas não só como um fato natural, mas como algo inerente à vida
urbana. E sugere um exercício de estranhamento quanto à naturalização da violência urbana,
afirmando que esta produz uma realidade com a qual lidamos no cotidiano, a partir dos
equipamentos sociais, a mídia, por exemplo.
Pensamos que os assassinatos de moradores de rua e seu desdobramento no campo
político interessam-nos à medida que é através da produção de subjetividades, a partir de
efeitos de poder-saber, que são construídas estratégias de gerenciamento da vida do outro.
Historicamente o conhecimento psicológico vem contribuindo para a constituição de
subjetividades desviantes, produzindo em suas práticas e discursos endereçamentos e destinos

73

para vidas que se arriscam a uma outra forma de existência, diferente daquela que
construímos e elegemos como sendo a normal.
Com a emergência dos saberes psi e da disseminação no cotidiano e na vida das
instituições, dos repertórios discursivos que nos permitem falar coisas com força de verdade
sobre sujeitos e fatos sociais, passamos a constituir explicações para o mundo e para nós
mesmos, alterando a forma como nos relacionamos conosco e com os outros (ROSE, 2008).
Trata-se agora de tomar a vida em sua materialidade histórica, de atravessá-la por uma
série de condições de possibilidades que permitem configurá-la em suas singularidades, não
para buscar causalidades ou profundidades, mas para, ali mesmo na superfície do que é dito,
acessar as redes discursivas que sustentam práticas-discursos, produzindo subjetividades e
modos de existência na cidade.

4.2 Seguindo as pistas...

Para seguir na construção das nossas pistas de análise, tomaremos os textos
jornalísticos escritos e publicados entre julho e dezembro de 2010. Recorreremos aos textos
deste período, pois consideramos que a partir deles não há uma mudança significativa no que
foi dito sobre os assassinatos de moradores de rua: ao longo de 2011 e 2012, os discursos que
apresentaremos repetem-se continuamente, alternando-se conforme os acontecimentos e as
agências de notícias.
Nos títulos de matérias, apresentados logo abaixo, podemos visualizar alguns
discursos que segmentam e dão visibilidade aos assassinatos de moradores de rua da capital
alagoana nas mídias jornalísticas:

74

QUADRO 1

Fonte: Elaborado pelo autor.

No quadro acima notamos alguns elementos importantes que foram construindo as
narrativas sobre os assassinatos de moradores de rua em Maceió no segundo semestre de
2010. Nestes títulos podemos destacar os seguintes temas: a) suspeita de grupos de extermínio
envolvidos nas mortes destes sujeitos; b) os assassinatos estariam relacionados ao
envolvimento dos sujeitos com as drogas; c) há uma suspeita de assassinatos em série de
moradores de rua na capital alagoana; d) uma dúvida quanto à causa dos assassinatos: drogas
ou extermínio? Estes são aspectos que gostaríamos de desenvolver um pouco mais ao longo
deste capítulo.
Logo no início das denúncias, os jornais escreviam sobre a possibilidade da existência
de grupos de extermínio que estariam assassinando os moradores de rua em Maceió. E já
apontavam também o envolvimento destes sujeitos com drogas, no final de algumas matérias,
afirmando que
Em novembro do ano passado, uma pesquisa feita pela Prefeitura de Maceió, a
pedido do MP e da vice-governadoria, apontou que 97% dos moradores de rua

75

consomem algum tipo de droga. Segundo o levantamento, a maior fonte
financiadora é a esmola dada pelas pessoas. 31

Acontece que em 2007, a capital alagoana participou, junto a outras capitais do país,
de um censo sobre a população de rua com o objetivo de desenvolver políticas públicas para
estes sujeitos. E a partir desses dados, o município elaborou um projeto de campanha para a
cidade em março de 2010, “Não Dê Esmolas, Promova Cidadania”. Esta campanha se referia
à doação de esmolas para moradores de rua como sendo financiadora do crime e das drogas
nas ruas. Houve então uma série de chamadas à população para não dar esmolas a estes
sujeitos.
Ainda em novembro de 2009, o então secretário de Assistência Social da capital
alagoana afirmara, segundo o site UOL Notícias: "O dinheiro que você dá não vira comida, e
sim fomenta o consumo e o tráfico de drogas. Por isso vamos fazer uma campanha para que
as pessoas reflitam sobre isso e não dêem esmolas"32. Ainda segundo este site, um dos
principais motivos atribuídos ao fato desses sujeitos viverem nas ruas se deve ao fato de terem
famílias desestruturadas, levando-os a permanecerem nas ruas.
Esta informação é importante, na medida em que podemos colocar em análise algumas
práticas inclusivas destinadas ao governo desta população, dentre elas, a possibilidade de
retorno destes sujeitos às suas famílias. Algumas das práticas empreendidas pelo município
para a resolução da questão dos moradores de rua na capital se orquestraram no sentido de
devolvê-los às respectivas famílias, o que pareceu inviável em alguns casos, devido a isto que
chamam de “desestrutura familiar”. No site da Prefeitura de Maceió em 26 de novembro de
2010, há um trecho que ressalta a importância do “resgate dos vínculos familiares” nas
práticas de cuidado para estes sujeitos que vivem nas ruas de Maceió:
De acordo com a coordenadora do projeto [Papo Cabeça] e presidente do fórum,
Noélia Costa, será também realizada uma busca para identificar as famílias desses
moradores, a fim de que possam participar no resgate dos vínculos familiares e na
recuperação da dependência química. 33

Podemos destacar, neste caso, uma insistência num modelo familiar convencional para
lidar com a situação de saúde e de problema público relacionado ao uso de drogas dos
31

Matéria do site UOL Notícias em 22 de julho de 2010, intitulada Após nove assassinatos em 2010, MP
suspeita de grupo de extermínio de moradores de rua em Maceio. Ver matéria na íntegra no link:
<http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2010/07/22/apos-nove-assassinatos-em-2010-mp-suspeita-de-grupo-deexterminio-de-moradores-de-rua-em-maceio.jhtm>.
32

Matéria do site UOL Notícias em 09 de novembro de 2010, intitulada Pesquisa aponta que 97% dos
moradores
de
rua
de
Maceió
usam
drogas.
Ver
matéria
na
íntegra
no
link:
<http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2009/11/09/ult5772u5995.jhtm>.
33

Para íntegra da matéria, ver o link: <http://maceio.id5.com.br/noticias/index.asp?vCod=12958&idioma=pt>.

76

moradores de rua. Segundo a matéria, isto é importante para viabilizar um “resgate dos
vínculos familiares” e para promover “uma vida mais digna” para estes sujeitos. A família
aparece aí como um instrumento de governo desta população.
Foucault (2008) afirma que na biopolítica a família deixa de ser o objeto e torna-se um
instrumento de governo, a partir do qual a população passa a ser gerida. Neste novo modelo
de governo, há um aprimoramento da gestão das coisas e dos homens, de modo que seja
possível dirigi-las e dispô-las a um fim adequado e útil. Para este autor, a palavra “dispor”
torna-se importante para o governo biopolítico, diferentemente da soberania em que a lei era o
instrumento principal para que fosse alcançada a finalidade do governo soberano:
[...], aqui não se trata de impor uma lei aos homens, trata-se de dispor coisas, isto é,
de utilizar táticas, muito mais que leis, ou utilizar ao máximo, as leis como táticas;
agir de modo que, por um certo número de meios, esta ou aquela finalidade possa
ser alcançada. (FOUCAULT, 2008, p. 132).

Podemos pensar, a partir disto, a importância de uma realocação destes sujeitos no
espaço urbano da cidade. As casas de suas famílias são locais adequados para sua “inserção
social” nas bordas da racionalidade biopolítica de produção de fins úteis, em que as vidas
destes sujeitos tornam-se capital de investimento do biopoder (PELBART, 2011). Isto
construiria outros destinos para estes sujeitos, apostando na potência da vida como elemento
central do biopoder, conforme Assman, Pich, Gomes e Vaz (2007).
Durante estes últimos anos, a este acontecimento foram associadas muitas palavras
que tentaram descrevê-lo do ponto de vista do número de moradores de rua assassinados. Os
textos das notícias mencionaram a possibilidade de existência de grupos de extermínio com
envolvimento de policiais e/ou de seguranças particulares do comércio do centro da cidade,
pois alguns dos moradores de rua haveriam cometido furtos e roubos nestes estabelecimentos.
Além disso, os assassinatos foram descritos como “massacre”, “extermínio”, “limpeza
urbana” e “assassinatos em série”, como destacado em um dos títulos de matérias do Quadro
1.
O que chama atenção nesses textos é a referência ao número de moradores de rua
assassinados como algo alarmante. Principalmente no ano de 2011, as chamadas das matérias
sobre o assunto enumeram quantos moradores de rua já foram assassinados na capital
alagoana: Mais um morador de rua é assassinado na capital alagoana (Tudo na Hora,
19/01/2011); Após onda de assassinatos em 2010, AL já contabiliza quatro mortes de
moradores de rua este ano (Uol Notícias, 24/01/2011); Morador de rua é morto a pauladas;
caso é o 5º registrado neste ano (Tudo na Hora, 31/01/2011); Polícia registra sexto

77

assassinato de morador de rua em Maceió este ano (Tudo na Hora, 16/03/2011); Morador de
rua é assassinado no Farol; é o sétimo caso em 2011, (Tudo na Hora, 18/03/2011); Doze
moradores de rua de Maceió já foram mortos este ano, (Folha Vitoriana – Vitória, ES,
23/04/2011), etc. Estas matérias ocupam-se em acompanhar e contabilizar os numeráveis
assassinatos que chegavam a ser divulgados nos sites de notícia, no entanto, o que parecia
assombroso não era a morte de um morador de rua, mas a quantidade, a mortalidade que ia
somando nos números das estatísticas do Estado.
Conforme uma notícia do site Tudo na Hora em 5 de outubro de 2010, intitulada
Morte de moradores de rua em Maceió causaram “repercussão internacional”, afirma
secretário:
Os 17 assassinatos de moradores de rua registrados em Maceió este ano chamaram a
atenção de organismos internacionais de direitos humanos. A afirmação é do
secretário municipal de Direitos Humanos, Segurança Comunitária e Cidadania,
Pedro Montenegro.
Segundo ele, por conta da repercussão dos crimes, o assessor especial da Secretaria
Nacional dos Direitos Humanos, Evair Augusto dos Santos, virá a Alagoas nos
próximos dias para cobrar investigações dos casos. A data ainda será definida. “Os
casos já estão repercutindo internacionalmente e já há uma cobrança ao governo
federal sobre solução dos casos”, disse Montenegro.

A repercussão do número de assassinatos é algo que preocupa, pois aumenta os índices
de mortalidade no Estado. São os números estatísticos que são tomados como ameaçadores a
um poder que visa maximizar a vida, conforme Foucault (1999), fazendo viver e deixando
morrer, não o oposto. Por isso a insistência em contar, pois tanto quanto a brutalidade dos
assassinatos, os números constroem uma realidade alarmante de um cenário de violência
sobre o qual clamaremos por políticas públicas.
A morte de 37 pessoas34 consideradas "vulneráveis" - na maioria moradores de rua -,
em Maceió (AL), de janeiro a novembro deste ano, teriam sido causados pelo
avanço do tráfico de drogas e falta de políticas públicas na área social, avalia o
presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB), Gilberto Irineu. Suspeita-se da ação de grupos de extermínio na cidade.
(Rede Brasil Atual, 22/11/2010)35

Em meio a isto, vale destacar uma dúvida importante para abordar este acontecimento
que até então vem sendo reportada nos discursos midiáticos: extermínio ou drogas? Esta

34

Os números de assassinatos de moradores de rua são divulgados pelos sites de notícias segundo informações
de fontes diferentes, bem como, segundo relatório do Ministério Público de Alagoas (2012), em alguns casos
houve a inclusão de pessoas assassinadas nas ruas, sem que houvesse a confirmação de serem moradores de rua.
O que justificaria uma diferença significante dos números divulgados pelos sites de notícias. Para a Comissão de
Direitos Humanos da OAB/AL, em 2010 foram 32 moradores de rua assassinados em Alagoas.
35

Matéria na íntegra disponível em: <http://www.redebrasilatual.com.br/temas/cidades/2010/11/para-oabpolicia-demorou-para-investigar-crimes-contra-moradores-de-rua-em-maceio>.

78

dúvida impõe uma exclusão positiva, pois cria uma dissociação e uma naturalização das
causas, buscando uma resposta unívoca para o problema. Trata-se de uma pergunta que impõe
uma exclusão: ou extermínio ou drogas. A isto se responde com uma série de informações que
anulam a possibilidade de pensar num extermínio, tomando as drogas como resposta única à
dúvida exposta, ou mesmo o extermínio como resposta suficiente para pensar as práticas de
assistência a esta população, conforme matéria do site de notícias do Jornal da Cidade de
Sergipe, publicada em 19 de novembro de 2010:
A Polícia Civil de Alagoas crê que os crimes contra moradores de rua são casos
isolados e têm relação com o consumo de drogas. Mas a secção regional da Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB) acredita que grupos de extermínio estão por trás
destes 31 homicídios. Seria uma espécie de “limpeza étnica” nas ruas para livrar
Maceió de pessoas que têm como leito as calçadas e como teto o céu. 36

Crer e acreditar, mencionados no texto acima, são ações importantes para um cenário
no qual se busca uma verdade original das coisas em meio a tantas incertezas. No entanto,
esta positividade produz impasses importantes na medida em que as duas alternativas
excluem-se mutuamente na busca de uma verdade que sintetize práticas historicamente
constituídas. Ao mesmo tempo em que reduzem este acontecimento a episódios isolados, seja
ao atribuir aos assassinatos o signo das drogas, seja ao fazê-lo quando se afirma uma limpeza
étnica, sem mais.
Esta rede discursiva aparece, principalmente, nos discursos oficiais relacionados à
investigação policial dos assassinatos, como consta em notícia do site Folha.com publicada
em 28 de novembro de 2010:
A polícia de Alagoas descarta que as mortes tenham sido provocadas por
“justiceiros” determinados a “limpar a cidade”. Segundo a corporação, a maioria dos
crimes foi praticada por questões relacionadas a drogas e acerto de contas com
traficantes.37

No entanto, alguns discursos aparecem nesse contexto, para apontar a variedade de
questões que podem estar associadas aos assassinatos de moradores de rua em Maceió. Como
o que foi publicado no Portal da Cidadania em 27 de outubro de 2010, mencionando o que o
presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/AL, Gilberto Irineu, teria declarado:
“as possíveis causas para os assassinatos são luta por espaço para dormir, drogas e até mesmo

36

Matéria
intitulada
de
Massacre
em
<http://2008.jornaldacidade.net/2008/noticia.php?id=83701>.
37

Maceió,

ver

no

link:

Com o título Em Maceió (AL), 300 pessoas protestam contra morte de moradores de rua, ver matéria na
íntegra no link: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/837522-em-maceio-al-300-pessoas-protestam-contramorte-de-moradores-de-rua.shtml>.

79

a existência de um grupo de extermínio”38. Mesmo assim, cabe ressaltar o aspecto a-histórico
presente nesses discursos: mesmo quando se apresentam outras possibilidades para aquela
questão (“extermínio ou drogas?”), forçando sua reformulação, há um foco específico na
tentativa de encontrar um culpado, alguém ou alguns que possam responder pelos
assassinatos.
Ao longo desta dissertação, destacamos aspectos históricos e políticos relacionados à
construção social e política destes assassinatos como elementos integrantes das relações de
poder e de uma racionalidade do estado. Nesta perspectiva, a responsabilização criminal pelos
assassinatos torna-se algo importante, na medida em que deixa entrever uma série de práticas
instituídas e historicamente demarcadas que visam um abandono de uma vida teimosa em
escapar a um poder de regulamentação.
Sobre a biopolítica contemporânea e sua forma de administração da vida, Ruiz (2012a)
afirma que:
Os dispositivos modernos cuidam da vida por ser um bem útil e produtivo, e a
cuidam enquanto possui essas qualidades. A utilidade exige da vida tudo o que
puder extrair dela. Fazer viver se tornou sinônimo de desenvolver suas capacidades
e potencialidades em prol de eficiências outras de caráter institucional e estrutural. A
vida que, por algum motivo, não mais seja útil, não será morta explicitamente,
porém será abandonada à sua sorte. A vida inútil não é morta, a lei o proíbe, porém
será abandonada à sua sorte. Esse marco utilitarista rege a lógica biopolítica
moderna, especialmente no contexto da economia política.

A partir disto, podemos pensar que a busca pela responsabilização criminal de alguns
sujeitos não elimina uma racionalidade biopolítica presente na gestão da vida, pelo contrário,
reforça uma dinâmica de culpabilização de sujeitos por práticas que dizem respeito à atual
forma de governo da vida. Por isto, destacamos que não há uma exterioridade inerente a estas
práticas na dinâmica social e política em que estamos inseridos: vivemos nas bordas de um
poder que nos oferece continuamente ao abandono, quando recusamos ingressar numa lógica
positiva em que a vida seria disposta numa utilidade para a ordem da economia das relações.
As práticas de criminalização, que tentam ocupar a cena da resolutividade deste
problema, reforçam a ideia de que estes assassinatos constituem exceção e que são destinados
a sujeitos que se enviesam por uma vida errante, distante e exterior de uma forma de vida
hegemônica. Portanto, toma-se este acontecimento numa exterioridade fundamental que o
destaca das condições históricas que contribuíram para seu estado atual.

38

Ver na matéria intitulada Direitos Humanos quer punição por morte de 22 moradores de rua em AL no link:
<http://www.portaldacidadania.com.br/?p=3646>.

80

Deste modo, constitui-se uma exterioridade a partir da qual a vida parece estar mais
segura: achado o culpado e julgada sua responsabilidade, a vida humana, tomada em sua
generalização, estaria em plenas garantias de direito. O que nos parece ser um equívoco
importante que põe as políticas públicas como fundamentais para a resolução de um problema
historicamente construído, visando uma transformação útil das vidas daqueles sujeitos. O que
podemos relatar nos trechos de matérias abaixo:
Dessa forma [efetivando um mapeamento dos moradores de rua em Maceió]
daremos a devida atenção a esses moradores de rua, para que tenham uma vida
digna. (Site da Prefeitura de Maceió, 10 de dezembro de 2010)
O evento [um café da manhã com moradores de rua, oferecido pelo Tribunal de
Justiça de Alagoas e com a participação de líderes religiosos] tem o propósito de
promover uma maior interação dos membros do Judiciário em torno dos problemas
que assolam esse segmento marginalizado da população e fomentar o debate sobre
políticas públicas voltadas à melhoria das condições de vida dessas pessoas. (Tudo
na Hora, 10 de dezembro de 2010)

Notamos nos trechos acima que o alvo das políticas públicas e das ações diz respeito a
uma mudança na vida desses sujeitos, com a promessa de torná-la digna, salvando-a de
ameaças que venham a degradá-la, pois conforme a desembargadora Elisabeth Carvalho
Nascimento, em nota ao site de notícias Tudo na Hora: “é preciso ter a consciência de que os
moradores de rua são cidadãos como nós”39. É sobre tais premissas que os discursos vão
circular, aludindo a uma missão salvadora que devolva dignidade e cidadania aos moradores
de rua em Maceió.
Do mesmo modo que estes discursos tornam-se importantes para a constituição de
políticas públicas para aqueles sujeitos, do ponto de vista criminal, e por parte de algumas
manifestações de instituições de segurança pública do Estado, através de seus representantes,
houve um outro movimento, a partir do qual alguns moradores de rua assassinados, segundo
declarações de secretário de Defesa Social do Estado, eram criminosos envolvidos com
roubos e drogas.
Um morador de rua de Maceió com 32 anos e usuário de crack, em entrevista ao Uol
Notícias em matéria publicada em 24 de dezembro de 2010, teria declarado: “Só morreu quem
tinha ‘bronca’. Quem não tem, não mexem’, completou outro morador de rua”40. Anterior a

39

Ver matéria na íntegra, publicada em 10 de dezembro de 2010 pelo site Tudo na Hora, no link que segue:
<http://tudonahora.uol.com.br/noticia/maceio/2010/12/10/121105/tj-al-promove-encontro-com-moradores-derua-nesta-segunda/imprimir>.
40

Íntegra da matéria ver o link: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2010/12/24/apos-36-assassinatos-em-2010sem-teto-ganham-seguranca-social-em-maceio-al.jhtm>.

81

esta matéria, o então secretário de Estado de Defesa Social, Paulo Rubim, teria declarado ao
mesmo site de notícias, em 19 de novembro de 2010:
"Se fala muito em grupo de extermínio, que quer dizer existência de uma força
paralela ao Estado com objetivos claros. O que vemos nesses casos são pessoas que
vivem na rua, que se envolvem com pequenos furtos, com drogas, não pagam (aos
traficantes). De certa forma, são criminosos que estão se matando", afirmou. 41

Não podemos precisar ao certo o que esta última afirmação repercute em termos das
ações policiais ou para as políticas públicas. No entanto, não é à toa que tais práticas tomam
as vidas destes sujeitos como objeto para suas ações. Segundo a declaração acima, são seus
caminhos desviantes de uma vida digna que outorgam estes assassinatos brutais nas ruas da
cidade. Portanto, haveria duas opções: ou estas vidas tornam-se alvo de práticas que as
devolvam dignidade e cidadania, através da garantia de direitos – a promessa é a de que com
isto tudo se resolverá – ou continuam abandonadas a própria sorte, tendo a morte como
recompensa pela vida que levaram. Em outros termos, trata-se de devolvê-las à rota da
utilidade, inserindo-as numa rotina de práticas que as coloquem, como veremos no próximo
capítulo, num caminho que qualificará sua força produtiva, devolvendo-as dignidade.
Ao forjar estas pistas de análise a partir dos noticiários sobre os assassinatos de
moradores de rua em Maceió, construímos eixos de análise que serão discutidos a partir dos
seguintes analisadores teórico-conceituais: a) o abandono da vida e a produção de vida nua; b)
as drogas como um dispositivo biopolítico de regulamentação da vida; e c) a produção de
mortes e as estratégias de governo para a população de rua. Seguiremos com uma breve
descrição destes analisadores e dos próximos capítulos, apontando os elementos que iremos
abordar quanto à discussão dos materiais de análise.

a) o abandono da vida e a produção de vida nua
A associação entre criminoso, delinquente e morador de rua foi uma das pistas
forjadas ao longo deste capítulo, aparecendo como algo importante quando entrelaçada ao que
vamos chamar uma identidade biográfica: uma biografia que individualiza e culpabiliza os
sujeitos pela vida que levam numa relação com uma marginalidade produzida socialmente.
Suspeitamos que esta identidade biográfica – produzida nas relações de poder/saber –
está relacionada com a produção de vida nua no acontecimento dos assassinatos dos
41

Íntegra da matéria no link: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2010/11/19/secretario-descarta-acao-degrupos-de-exterminio-e-diz-que-mortes-de-moradores-de-rua-em-al-sao-criminosos-se-matando.jhtm.>.

82

moradores de rua em Maceió, em um processo a partir do qual produz-se uma relação de
abandono da vida. Nesta relação, segundo Agamben (2010), mantêm-se unidas vida nua e a
violência soberana, ou seja, vida matável e um poder de matá-la, sem que isto se configure
num crime.
Sobre isto, podemos pensar a dúvida levantada pela pergunta “extermínio ou drogas?”
a respeito dos assassinatos de moradores de rua em Maceió, como se ao respondermos com a
resposta “drogas”, estivéssemos excluindo a possibilidade de extermínio, de um crime, e nisto
criminalizando estes sujeitos. A ambiguidade desta questão nos obriga a forjar outras
perguntas: como é possível falar em extermínio e drogas como causas isoladas para pensar
este acontecimento? Como se produziu uma criminalização destes sujeitos para justificar os
seus assassinatos? Como se produz um sujeito criminoso e a que serve a construção desta
identidade biográfica?
Foucault (2006), no texto A vida dos homens infames, destaca a entrada do cotidiano
nas relações de poder, construindo discursos de verdade e saberes que se ocupariam do “dia-adia da vida” através de registros: inquéritos, denúncias, queixas, relatórios, espionagem e
interrogatórios. Haveria, então, um atravessamento importante do que chama de agenciamento
administrativo da vida, através da constituição de dossiês e arquivos que acumulam uma série
de registros escritos compondo um repertório de discursos e de saberes sobre as vidas dos
homens infames.
A partir disto, podemos pensar estes documentos como dispositivos que não só
visibilizam acontecimentos e sujeitos, mas que os produzem no mesmo momento que os
registram em relatórios e notícias. Uma ambiguidade fundamental para pensar as questões
formuladas anteriormente.
Além disto, apontaremos duas afirmações importantes, nos materiais de análise
apresentados neste capítulo, para abordarmos com este analisador teórico-conceitual: a) a vida
destes sujeitos é o que os torna alvos deste massacre, b) trata-se de “criminosos que estão se
matando”, pois vivem nas ruas, furtam e não pagam as drogas que consomem. No próximo
capítulo desenvolveremos de forma mais demorada as questões apontadas neste tópico.
Agora partiremos para o próximo analisador que está diretamente relacionado com
este, no entanto, preferimos situá-lo como um outro momento de discussão deste
acontecimento.

83

b) as drogas como um dispositivo biopolítico de regulamentação da vida
A polícia de Alagoas descarta que as mortes tenham sido provocadas por
“justiceiros” determinados a “limpar a cidade”. Segundo a corporação, a maioria dos
crimes foi praticada por questões relacionadas a drogas e acerto de contas com
traficantes.42

Como vimos anteriormente, as drogas aparecem, nos discursos da polícia e de
representantes de entidades de segurança pública, como a causa principal para explicar os
assassinatos de moradores de rua em Maceió. Diferentemente de por em dúvida as
investigações sobre este acontecimento, o que apresentamos é um estranhamento do ponto de
vista da pesquisa social para esta explicação, na tentativa de produzir novas possibilidades
para pensar os atravessamentos históricos, políticos e sociais imbricados na construção deste
discurso.
Além dos aspectos levantados no tópico anterior, relacionados à produção de
criminalidade destes sujeitos, queremos destacar a entrada em cena deste discurso sobre as
drogas neste acontecimento como um importante analisador das políticas públicas nas áreas
de segurança pública, educação e saúde nas cidades brasileiras. Destacamos também que esta
temática corresponde a uma construção social e política de nossa contemporaneidade,
constituindo uma realidade da vida nas cidades, não restrita aos moradores de rua.
Por isto, cabe-nos examiná-la cuidadosamente como um potente discurso legitimador
de práticas-discursos que atuam num regime de exceção sobre a vida de alguns sujeitos
(Carvalho, 2008). Além disto, Batista (2003, p. 12) afirma que
A droga se converte no grande eixo (moral, religioso, político e étnico) da
reconstrução do inimigo interno, ao mesmo tempo em que produz verbas para o
capitalismo industrial de guerra. Este modelo bélico produz marcas no poder
jurídico, produz a banalização da morte. Os mortos desta guerra têm uma extração
social comum: são jovens, negros/índios e são pobres. [grifo nosso]

É sobre este terreno de produção de subjetividades, de discursos-práticas, que
abordaremos no capítulo 6 o dispositivo das drogas relacionado aos assassinatos de moradores
de rua em Maceió. Ressaltaremos os aspectos históricos, sociais e políticos relacionados aos
discursos que se organizam nesta rede de práticas-discursos.

42

Matéria publicada no site Folha.com em 28 de novembro de 2010 com o título de Em Maceió (AL), 300
pessoas protestam contra morte de moradores de rua. Ver matéria na íntegra no link:
<http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/837522-em-maceio-al-300-pessoas-protestam-contra-morte-demoradores-de-rua.shtml>.

84

c) a produção de mortes e as estratégias de governo para a população de rua
Fazem parte da abordagem deste analisador teórico-conceitual duas temáticas
inseridas ao longo deste capítulo, através das pistas forjadas junto aos materiais de análise: a
produção de mortes e as estratégias de governo nas políticas públicas para a população de rua
em Maceió.
Sobre a produção de mortalidade, iremos nos debruçar sobre as formas como a
racionalidade biopolítica também se produz a partir de práticas-discursos relacionados ao
deixar morrer, até o ponto em que se tais mortes se tornam um problema político para a vida
nas cidades e para a lógica do biopoder.
Foucault (2008) afirmou, a respeito do dispositivo de segurança nas sociedades
modernas, que este imprimiu uma nova racionalidade nas formas de governo das cidades,
regidas pelo laisse faire (deixar fazer), um deixar andar das coisas e dos acontecimentos
como algo natural e necessário ao governo. A partir dessa lógica, deixa-se morrer até que isto
alcance índices de representatividade suficientes para alcançar a população, somente neste
momento, configurar-se-á um problema de governo. Já que, segundo Foucault (2008), a
população é o objeto central das investidas do poder sobre a vida. Daí a importância das
ciências estatísticas e das políticas públicas como resposta a um problema que não mais se
apresenta na individualidade dos sujeitos, mas na coletividade de uma população.
Neste último analisador, discutiremos esses aspectos e a forma como as políticas
públicas tornam-se uma demanda social importante para lidar com as questões da população
de moradores de rua em Maceió.

Os analisadores mencionados anteriormente estão interligados na discussão
apresentada nesta dissertação. A forma como a análise é disposta diz respeito aos eixos e
temáticas que foram forjados ao longo deste capítulo, integrando e organizando nossa
discussão, não como elementos exclusivos ou excludentes, ao contrário, apresentam-se de
forma complementar e organizadora dos aspectos que pensamos ser importantes para a
composição deste texto.
Nos próximos capítulos abordarmo-los separadamente, junto aos materiais de análise e
as contribuições de pesquisadores da Psicologia, da Filosofia, da Sociologia, do Direito e da
História, numa perspectiva não-individualizante e comprometidos com uma crítica do nosso
presente histórico.

85

5 DE MORADOR DE RUA A CRIMINOSO: IDENTIDADE BIOGRÁFICA E A
PRODUÇÃO DE VIDA NUA

‘Se fala muito em grupo de extermínio, que quer dizer existência de uma força
paralela ao Estado com objetivos claros. O que vemos nesses casos são pessoas que
vivem na rua, que se envolvem com pequenos furtos, com drogas, não pagam (aos
traficantes). De certa forma, são criminosos que estão se matando’, afirmou.
Segundo ele, o termo “grupos de extermínios” tem repercutido de forma negativa a
imagem de Alagoas nacional e internacionalmente. "Não encontramos uma força
paralela ao Estado atuando aqui. Estamos investigando, a Força Nacional da Polícia
Judiciária também está atuando, e eles devem apresentar um resultado logo dessas
investigações. Mas tudo converge para a questão das drogas", disse. (UOL Notícias,
19 de Novembro de 2010, grifo nosso).

Com a leitura do trecho da matéria acima, podemos tirar duas conclusões sobre quem
são esses moradores das ruas de Maceió: a) trata-se de sujeitos que levam uma vida errante
pelas ruas, cometendo uma sorte de práticas ilegais e moralmente perturbadoras da ordem
social, e é esta vida bandida que os coloca como alvos de traficantes que tem como
pagamento para suas dívidas a morte de seus maus devedores; b) são criminosos que estão se
matando pelas ruas de Maceió. Posta esta última afirmação, nos perguntamos: a morte seria a
punição para essas vidas bandidas/banidas? O fato de serem considerados criminosos daria a
tais assassinatos uma qualidade menor, uma insignificância do ponto de vista social e moral?
Estas perguntas podem ser consideradas a partir de duas lógicas de governo que se
complementam. A primeira seria uma lógica disciplinar, a partir da qual as vidas destes
sujeitos constituem aspectos significativos para explicação dos fatos, considerando-as em sua
individualidade. Neste sentido, é necessário individualizar os crimes para pensá-los na
minúcia das vidas de cada sujeito. Conforme Foucault (2010a), esta forma de governo
interroga a vida dos sujeitos para alcançar nela a origem do mal que a submeteu.
É a partir do exame da história de vida do sujeito, da avaliação do meio em que vive e
da atribuição à sua natureza degenerada da criminalidade, que vai sendo construída a
culpabilização dos sujeitos.
Ou seja, além da forma como são produzidos os “bandidos”, os “marginais”, os
“criminosos” de todos os tipos, eles são ainda construídos para se responsabilizar
por sua miséria, marginalidade e criminalidade. No capitalismo uma das mais
competentes produções prende-se à individualização das responsabilidades –
atribuindo à natureza humana, à sua história de vida ou ao seu meio ambiente certos
dons ou defeitos. O indivíduo passa a ser medida de todas as coisas e o único
responsável por suas vitórias ou fracassos. (COIMBRA, 2001, p. 64).

86

Tal configuração dos fatos e as formas de objetivação dos moradores de rua,
veiculadas como explicações para o extermínio de suas vidas, nos remetem à discussão de
Foucault (2010a) sobre as formas de produção da história de sujeitos que, tal como estes
moradores de rua, passam a se constituir como uma ameaça para a sociedade.
O filósofo afirma que a delinquência é construída a partir do aparelho penitenciário e,
neste sentido, o delinquente se diferencia do infrator na medida em que não o seu ato passa a
caracterizá-lo, mas sua própria vida. Com a inclusão da biografia na construção da
penalidade, o criminoso ganha uma existência anterior ao crime e, deste modo, “vemos os
discursos penal e psiquiátrico confundirem suas fronteiras” (FOUCAULT, 2010a, p. 239).
Embora não se trate aqui de criminosos (a despeito de que muitas vezes assim sejam tratados),
o que o filósofo aponta-nos é que, através disto, torna-se possível pensar na construção de um
indivíduo perigoso, a partir de sua distribuição em “classes quase naturais”, construindo
causalidades, ao considerar uma biografia. Diante disto, Foucault (2010a, p. 241) nos assinala
como o delinquente torna-se uma identidade biográfica, um núcleo de “periculosidade” e um
representante de algum tipo de anomalia.
A segunda lógica, complementar à primeira, é a da biopolítica, para a qual este
acontecimento interessa no momento em que atinge à população, pondo em risco a vida
biológica ao ameaçar sua suposta segurança. Num regime biopolítico interessa pouco os
detalhes e minúcias dos aspectos morais e históricos da vida de cada sujeito, interessa
somente devolver ao ordenamento biopolítico uma segurança em relação aos riscos que a vida
fora submetida (Foucault, 2008). E segundo o presidente da Comissão de Direitos Humanos
da OAB/AL,
para garantir a segurança dos moradores de rua é preciso implementar um conjunto
de ações sociais. “O monitoramento ostensivo nas ruas é importante, assim como
usar a inteligência policial. Nas últimas duas décadas, não foram implementadas
políticas para esses moradores de rua. Eles foram esquecidos e eram considerados
invisíveis”.

Dentre as várias questões, o que estes discursos apontam é a necessidade de
enfrentamento à violência na cidade, a partir de políticas públicas e de ações relacionadas a
uma série de práticas que visa maximizar as vidas destes sujeitos, tornando-as úteis nas bordas
do poder. Para o que Ruiz (2012a) afirma:
A vida nos regimes modernos passou a ser cuidada como um bem biológico
importante que deve ser protegido. O poder moderno não ameaça a vida com a
morte, mas a protege para que se torne produtiva. O poder moderno, ainda na
expressão de Foucault, faz viver e deixa morrer.

87

Compreendemos que estas duas lógicas não se opõem, mas se alternam e atuam de
forma positiva nas práticas de governo modernas. Mas para este capítulo seguiremos com as
discussões relacionadas à lógica disciplinar e sua relação com o governo da vida dos
moradores de rua em Maceió, sob o signo de criminosos. Do mesmo modo, traremos para a
discussão elementos do que Agamben (2010) situa na relação entre o poder soberano e a vida
nua.
A partir das afirmações anteriores, sobre a criminalidade como algo inerente às vidas
dos moradores de rua da capital alagoana, apresentamos as questões que nortearão a
construção das discussões neste capítulo, já apresentadas no capítulo anterior: como é possível
falar em extermínio e drogas como causas isoladas para pensar este acontecimento? Como se
produziu uma criminalização destes sujeitos para justificar os seus assassinatos? Como se
produz um sujeito criminoso e a que serve a construção desta identidade biográfica?
Este capítulo tem por objetivo problematizar os discursos que subjetivam e objetivam
tais moradores de rua como sujeitos criminosos, através da análise histórica das condições que
os tornaram possíveis, considerando os textos de jornais e outros documentos públicos
produzidos em ocasião de seus assassinatos nas ruas de Maceió. Para isto, inicialmente
abordaremos a noção de identidade biográfica relacionada à produção de uma subjetividade
criminosa dos moradores de rua em Maceió, retomando as discussões de Michel Foucault em
Vigiar e Punir e A vida dos homens infames. Em seguida, apresentaremos o que estamos
chamando de vida nua, seguindo as contribuições de Giorgio Agamben, bem como
demarcaremos a relação de abandono da vida nua com a política nas sociedades modernas.
Por fim, abordaremos os efeitos de verdade que este discurso produz no cotidiano das práticas
sociais.

5.1 “Talvez porque (fossem) moradores de rua”
Segundo postagem no Blog do editor-geral do Jornal Gazeta de Alagoas, Célio
Gomes, em 20 de novembro de 2010, ao procurar o Comando de Policiamento da Capital,
uma equipe do referido jornal fora recebida de forma esquisita:
Na manhã desta sexta-feira, 19, uma equipe da Gazeta procurou o Comando de
Policiamento da Capital para tratar do assunto [agressão a um flanelinha, morador
de rua, na madrugada de quinta-feira, dia 18 de novembro de 2010]. Foi recebida
pelo comandante do batalhão, tenente-coronel Gilmar Batinga. A conversa com ele
foi um tanto esquisita – para ficar num termo civilizado.

88

Suas palavras diante de dois jornalistas da Gazeta: “Eu não aguento mais esse
negócio de morador de rua. Estou de saco cheio de falar de morador de rua, não se
fala de mais nada agora”. Batinga usou termos bem mais pesados, que não podem
ser reproduzidos. Referiu-se à anatomia com outras expressões.43

No período em que esta postagem foi publicada, entidades religiosas e de Direitos
Humanos efetivavam duras críticas à forma como as investigações policiais foram
encaminhadas, indicando uma morosidade e um descaso aos assassinatos de moradores de rua
que vinham ocorrendo em Maceió.
Para Irineu44, em entrevista à Rede Brasil Atual, também houve demora da polícia
em elucidar os crimes, logo que começaram os homicídios. “Há dez meses que esses
crimes estão ocorrendo. A polícia judiciária não agiu em momento hábil. Se o crime
foi em fevereiro porque não agiu no prazo da lei? Esperou-se até novembro para
elucidar o crime”, indaga o representante da OAB. “Talvez porque (fossem)
moradores de rua”, suscita.
Irineu analisa que a ausência de políticas públicas na área social nas últimas
décadas, na capital alagoana, “explodiu de forma trágica” com a morte de dezenas
de moradores de rua.45

Além disso, o então governador do Estado havia colocado um prazo para elucidação
dos casos, posta as críticas e boatos sobre o envolvimento da polícia federal nos casos ou
mesmo a entrada da Força Nacional nas investigações: à polícia cobrava-se celeridade nas
investigações. Bem como, segundo reportagem do Jornal da Cidade de Sergipe em 19 de
novembro de 2010, e outros sites de notícias, a morosidade nas investigações não era
exclusividade dos casos relacionados aos moradores de rua: cerca de quatro mil inquéritos, de
casos de homicídio no Estado, não haviam sido resolvidos, até então, pela polícia civil.
Também neste ano, a capital de Alagoas já constava entre as capitais mais violentas do país
nas estatísticas de homicídios, informação que viria a se confirmar no Mapa da Violência
publicado no final de 2011.
A este quadro, somavam-se os assassinatos de moradores de rua que não paravam de
ser notícia e tinham alcançado repercussão nacional e internacional, como vimos na
declaração no início do capítulo feita pelo secretário de Estado da Defesa Social Paulo Rubim.
Criou-se um cenário de violação de direitos e, por isto, de busca incansável, em todas as
esferas, por responsáveis pelos assassinatos dos moradores de rua da capital. A hipótese de
extermínio se tornou insuportável, pois dentre outras coisas apontava uma inoperatividade da
43

Ver
postagem
na
íntegra
no
<http://blogsdagazetaweb.com.br/celiogomes/?p=5976>.
44
45

Blog

do

Célio

Gomes,

link:

Gilberto Irineu era e continua sendo o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/AL.

Matéria, intitulada OAB critica polícia por demora em investigação de crimes contra moradores de rua em
Maceió e postada em 22 de novembro de 2010 no site Rede Brasil Atual, na íntegra no link:
<http://www.redebrasilatual.com.br/temas/cidades/2010/11/para-oab-policia-demorou-para-investigar-crimescontra-moradores-de-rua-em-maceio>.

89

polícia em assegurar à sociedade a sua função mais cara, a defesa do direito à vida: “A polícia
por si só não vai conseguir vencer essa onda assassina que vem com o crack”46, aponta o
secretário Paulo Rubim, afirmando que tais acontecimentos estão ligados às drogas, por isso
seriam necessárias ações integradas de combate às drogas, principalmente nas fronteiras do
Estado47.
Ainda quanto às causas dos assassinatos, sobre a existência de grupo de extermínio, o
secretário de Cidadania, Direitos Humanos e Segurança Comunitária, Pedro Montenegro,
havia declarado ao Uol Notícias na mesma matéria: "O que quero é que a polícia responda,
inquérito por inquérito, as três perguntas básicas: quem, por que e como. Respondendo isso, a
discussão se existem grupos de extermínio, se eram criminosos, se usavam drogas vai se
tornar inócua"48. Portanto, se de um lado há um discurso que nomeia os moradores de rua de
Maceió como criminosos e associa seus assassinatos ao envolvimento com drogas, por outro
lado emerge um discurso que recoloca a questão cobrando das autoridades policiais
investigações sérias, independentes dos estigmas sociais destes sujeitos.
No entanto, como é possível conceber que apesar da existência de discursos que
interrogam essa associação naturalizada destes sujeitos à criminalidade, esta última ganha
força nas declarações oficiais sobre tais assassinatos? Que redes de práticas-discursos são
estas que asseguram efeitos de verdades a tais discursos?
Os enunciados sobre o caráter criminoso dos moradores de rua de Maceió tornam uma
história prévia em verdade, indicando uma naturalização e um destino fatal para aqueles que
saem da norma, que se arriscam a uma vida diferente daquela que historicamente construímos
como sendo legítima. Mas afinal, como vamos construindo destinos e fins para os anormais,
os desviantes, para aqueles que em certa medida aventuram-se nas ruas da cidade?
Pensamos que o que há no destino é o que nele mesmo se apresenta: um emaranhado
de discursos que apoiam um ao outro, consolidando uma rede de práticas que norteiam a vida
e a morte, justificando e corroborando uma série de medidas e encaminhamentos para
lidarmos com a vida de alguns. Trata-se mesmo de um modo de governo da vida.
46

Secretário descarta ação de grupos de extermínio e diz que mortes de moradores de rua em AL são
"criminosos se matando”, matéria do UOL Notícias publicada em 19 de Novembro de 2010, na íntegra ver o
link: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2010/11/19/secretario-descarta-acao-de-grupos-de-exterminio-e-dizque-mortes-de-moradores-de-rua-em-al-sao-criminosos-se-matando.jhtm>.
47

As drogas foram indicadas como a causa principal da violência e dos altos índices de homicídios em Maceió,
inclusive nos assassinatos de moradores de rua da capital. O que em 2012 vai explodir numa megaoperação
policial de combate às drogas, tendo como alvo, principalmente, os bairros periféricos.
48

Ver nota 46.

90

A psicologia durante décadas vem sendo chamada a ocupar esse lugar de governo e
destinação da vida do outro, determinando lugares, espaços, construindo pareceres técnicos e
laudos psicológicos (Scisleski, 2010; Rebeque; Jagel; Bicalho, 2008). É a este chamado que
historicamente o conhecimento e as práticas psicológicas vêm respondendo de forma positiva,
construindo e produzindo subjetividades.
Rose (2008) afirma que a psicologia ajudou a construir formas de ser e de viver em
nossa

contemporaneidade,

construindo

repertórios

discursivos

e

práticas

sociais

comprometidas com as necessidades de governo do outro. Neste sentido, afirma que a
psicologia como ciência moderna fora formada nos locais de prática profissional (fábricas,
prisão, exército, sala de aula, no tribunal), relacionados a problemas de conduta, inicialmente
responsabilidade das autoridades que deveriam controlá-los. Portanto, o surgimento do
conhecimento psicológico esteve relacionado a modos de governo/administração do outro,
partindo sempre dos modelos de normalidade e anormalidade construídos.
O discurso do secretário de Defesa Social, em outras palavras, apoia-se num regime de
verdade que escolhemos nas sociedades ocidentais para falar e agir sobre as coisas do mundo.
Ora, como podemos construir um destino ou um laudo se não pelo exame? Em fazer falar a
história do sujeito, trazendo à tona aquilo mesmo que está “guardado” em seu passado.
No mesmo texto, Rose (2008) afirma que o século XX foi o século da psicologia,
ressaltando a importância desta ciência para nossa contemporaneidade, incidindo sobre nossos
repertórios discursivos, nossa maneira de falarmos de nós e do mundo. Ao mesmo tempo em
que se cria um repertório para falarmos de nós mesmos, como sujeitos de uma interioridade,
de um “espaço psicológico” interior, a psicologia também construiu seus repertórios sobre o
social, sobre o coletivo (a ideia de grupos, das atitudes, opinião pública, entre outros),
formando o que o autor chama de uma ética psicológica. Segundo Rose (2008, p. 126), “a
psicologia foi uma disciplina muito generosa, ela se doou para todos os tipos de profissões, da
polícia a comandantes militares, numa condição de fazê-los pensar e agir, pelo menos de
alguma maneira, como psicólogos”.
Construiu-se uma rede de discursos sem a qual se torna impossível falar de si e do
mundo, “discursos que têm o poder de marcar, estigmatizar e matar o outro” (REBEQUE;
JAGEL; BICALHO, 2008, p. 421). São nesses atravessamentos que podemos pensar a
produção de subjetividades à qual a psicologia comprometeu-se historicamente, confluindo
destinos e enraizando-se no cotidiano.

91

Falar em produção de subjetividade é considerar as múltiplas redes discursivas a partir
das quais se torna possível produzir vida e morte, normalidade e anormalidade, considerando
o terreno fértil e as condições de possibilidades que produzem certos acontecimentos,
estigmas, sujeitos dóceis, corpos marcados pela história, pensando, sobretudo, na
possibilidade de reinventar práticas e discursos, produzir uma outra história, recriá-la
(REBEQUE; JAGEL; BICALHO, 2008; FOUCAULT, 2010b, 1979).
Pensamos que se tal discurso criminalizador ganha força – quanto aos moradores de
rua de Maceió assassinados de 2010 a 2012 – é devido ao peso de verdade que os discursospráticas psi possuem em nossa sociedade para falar das coisas e dos homens. Numa rede a
partir da qual se legitima uma interioridade subjetiva, a partir de práticas de desvendamento
de uma verdade ainda não confessada, na história de vida dos sujeitos, que emergiria para
explicar o que se tornaram.
A respeito disto, pensamos que a história não explica o que nos tornamos, mas nos
produz como sujeitos e objetos de sua ação na medida em que nos colocamos a contá-la.
Portanto, os efeitos de verdade produzidos no ato de contar a história de um sujeito, ou de
uma sociedade, efetiva a produção constante do que somos, ao mesmo tempo em que
reinventa esta história no tempo e no espaço, alterando a forma como nos vemos, sentimos e
pensamos, ao criar uma nova relação com o que nos tornamos.
Em outras palavras, se há uma subjetividade criminosa inerente às vidas destes
sujeitos, esta fora produzida, tecida nas bordas das relações de poder-saber, em práticasdiscursos autorizadas a pronunciar-se sobre a verdade que estava dissimulada em suas vidas.

5.2 A vida nos registros do poder
Em A vida dos homens infames, Foucault (2006) propõe escrever uma antologia de
existências, não um livro de história. Tratava-se de vidas breves registradas em livros e
documentos: “vidas de algumas linhas ou de algumas páginas, desventuras e aventuras sem
nome, juntadas em um punhado de palavras. Vidas breves, encontradas por acaso...”
(FOUCAULT, 2006, p. 203). Vidas sem glória, sem fama, destinadas ao esquecimento. É
sobre isto que Foucault escreve naquele texto.
Vidas que são como se não tivessem existido, vidas que só sobrevivem do choque
com um poder que não quis senão aniquilá-las, ou pelo menos apagá-las, vidas que
só nos retornam pelo efeito de múltiplos acasos, eis aí as infâmias das quais eu quis,
aqui, juntar alguns restos. (FOUCAULT, 2006, p. 2010).

92

Mas o que as fazem vir à tona, o que as põem na visibilidade de discursos e práticas?
A esta pergunta, Foucault (2006) responde: “o que as arranca da noite em que elas teriam
podido, e talvez sempre devido, permanecer é o encontro com o poder: sem esse choque,
nenhuma palavra, sem dúvida, estaria mais ali para lembrar seu fugidio trajeto”
(FOUCAULT, 2006, p. 207). É o encontro com o poder através dos registros em relatórios,
inquéritos, notícias, exames, laudos e uma série de registros que torna possível uma
visibilidade trêmula destas vidas. Segundo este autor, tais registros se tornam os únicos a
partir dos quais podemos saber das vidas destes sujeitos.
A partir daí, o poder ocupa-se do cotidiano, do “dia-a-dia da vida” em suas minúcias.
Tudo deve ser confessado, nada deve escapar a este poder, ainda que seja para se queixar,
para denunciar um mal inerente à vida, tal poder deve criar registros, notificar. Tais
informações irão constituir dados sobre sujeitos que, tratados estatisticamente, dizem respeito
a um corpo social. Segundo Vilela (2011), o poder disciplinar não só constitui indivíduos,
como também cria e elabora um corpo social, individualizando-o: “não se pode ignorar que o
corpo social é, ele mesmo, o horizonte da disciplina: ao exercer a sua função homogeneizante,
a disciplina torna possível algo que se assemelha a um corpo social” (VILELA, 2011, p. 20).
É aí que se encontra um ponto de intersecção entre este poder e a biopolítica: enquanto o
poder disciplinar fabrica este corpo social a partir de registros e do esquadrinhamento da vida,
a biopolítica ocupa-se em administrá-lo na forma de população.
Essa minúcia inerente a este poder vai constituir uma massa documental, “como a
memória incessantemente crescente de todos os males do mundo” (FOUCAULT, 2006,
p.213). Neste sentido, segundo Foucault (2006, p. 215), somos chamados incessantemente a
exercer uma soberania sobre a vida dos outros: “cada um, se ele sabe jogar o jogo, pode
tornar-se para o outro um monarca terrível e sem lei”, para o seu bem, pode-se formular
denúncias sobre os vizinhos, parentes próximos, numa eterna vigilância da vida do outro na
procura de pecados, erros ou atitudes desviantes da conduta considerada normal. Como
exemplo, podemos citar uma série de entrevistas realizada pela Folha de São Paulo com
moradores de rua em Maceió na ocasião dos assassinatos em 2010. Em que os relatos destes
sujeitos, entre outras coisas, se referiam aos outros, assassinados nas ruas, através da denúncia
de hábitos ilegais que justificariam suas mortes:
Nunca fui ameaçado, mas tem gente que faz coisas por aí, e por causa deles os
outros acabam pagando.
Para quem mora na rua, a pior hora é sempre à noite.
O sono de quem está na calçada é o sono de morte.

93

Ninguém da gente tem nenhuma propriedade, mas sempre tem alguém que quer te
fazer mal. (Folha de S. Paulo, 27 de Nov de 2010, Erivan José Justino, 34).

As pessoas me conhecem. Eu ganho o pão, faço uns bicos e vou levando a vida.
Eu penso que, se o cabra andar na linha, não tem perigo viver na rua.
O pessoal fala por aí que a culpa é da turma dos terroristas. Eu não posso dizer nada,
porque não conheço. (Folha de S. Paulo, 27 de Nov de 2010, Francisco Gomes da
Silva, 39).

Fiquei quatro anos perambulando. Um dia, um sujeito com revólver na mão me
assaltou. Levou R$ 104, um celular e um radinho. Depois, ainda me deu um tiro. A
bala passou de raspão na cabeça.
Depois dessa, desisti de morar na rua. Comprei uma casinha e estou lá até hoje. Não
volto mais, porque o que importa para mim é a vida.
Para mim, esses crimes são por causa da droga.
Também tem casos de vingança no meio. Eu ainda saio de casa todo dia às 4h e só
volto às oito da noite. (Folha de S. Paulo, 27 de Nov de 2010, Altenizio Francisco
Santos, 80).

São através destas denúncias, dos detalhes cotidianos da vida, que se constituem os
dispositivos de governo destes sujeitos, através do encontro com o poder são chamados e
inquiridos a falar a verdade, a desvelar os segredos de suas vidas e da vida dos outros, no
exercício de sua liberdade soberana somos, nós e eles, inscritos na história.
Scisleski e Guareschi (2011, p. 221), ao se referirem ao dispositivo judiciário, quanto à
promessa de falar a verdade para aquele que será interrogado, afirmam que
A própria distribuição dos assentos na sala da audiência demonstra a disposição de
um espaço configurado para a busca da verdade: a elevação da figura do juiz, que no
momento do interrogatório defronta o réu, ou a testemunha, que se posiciona em um
nível abaixo do dele, por exemplo. Além disso, cabe ao interrogado o dever de
prometer dizer a verdade, da mesma forma que cabe ao juiz, ao promotor e ao
defensor elaborar perguntas estratégicas que captem a verdade que é dita. De um
lado, quem deve falar a verdade; de outro, quem pode avaliá-la, apreendê-la, mostrála.

Estas autoras ressaltam a forma como a organização do espaço e do tempo no júri, a
maneira como as perguntas são formuladas, o ordenamento das coisas e dos homens nesse
ambiente configuram um cenário de busca incansável da verdade. Neste sentido, concordamos
com elas ao afirmarem que as verdades são forjadas em relações de poder que guardam em si
uma vontade de verdade. Do mesmo modo, o acontecimento em análise nesta dissertação é
disposto pelos discursos competentes de modo a produzir uma verdade sobre os assassinatos,
através das investigações os corpos são dispostos num regime de verdade que os atravessa,
construindo uma história verdadeira sobre o que aconteceu com eles.
Sobre os assassinatos dos moradores de rua em Maceió, o que se toma como fonte de
verdade é a própria vida destes sujeitos. Ao nomeá-los como criminosos, o secretário de

94

Defesa Social do Estado não questiona outra coisa senão a vida que levam: a biografia destes
sujeitos aparece como explicação para os assassinatos e para a condição marginal em que
vivem. Deste modo, é essa identidade calcada na biografia destes sujeitos que os identifica
como criminosos, criando condições para minimamente marcá-los enquanto um perigo social.
Em Vigiar e Punir, Foucault (2010a) analisa a história das prisões na França e, dentre
outras questões, este autor aborda a produção do criminoso e da delinquência nas redes do
dispositivo disciplinar das prisões. Na quarta parte do seu livro, destinada a discussões sobre
as prisões, ele insere questões importantes sobre o criminoso e o delinquente. Refere-se à
entrada da biografia dos sujeitos examinados pelo aparelho jurídico como medida importante
para uma gestão econômica das penas, visando sua correta aplicação com objetivos de
viabilizar a correção moral dos sujeitos.
Por trás do infrator, a quem o inquérito dos fatos pode atribuir a responsabilidade de
um delito, revela-se o caráter delinquente cuja lenta formação transparece na
investigação biográfica. A introdução do “biográfico” é importante na história da
penalidade. Porque ele faz existir o “criminoso” antes do crime e, num raciocíniolimite, fora deste. E porque a partir daí uma causalidade psicológica vai,
acompanhando a determinação jurídica da responsabilidade, confundir-lhe os
efeitos. (FOUCAULT, 2010a, p. 238-239, grifo nosso).

Como mencionado, o elemento biográfico cria uma identidade que destina sujeitos a
caminhos que estariam inscritos em suas vidas pregressas. Em outras palavras, quer conhecer
a periculosidade de um criminoso? Investigue a vida dele, busque elementos da primeira
infância, da estrutura familiar na qual foi educado, interrogue a vida deste sujeito e ela lhe
trará as respostas. Portanto, o que esperar de sujeitos que vivem nas ruas, que usam drogas e
são péssimos pagadores dos traficantes? Não há outra alternativa a não ser chamá-los de
criminosos?
Há nestes discursos uma busca pela correlação de aspectos, como que ligando, através
de uma linha, aspectos das vidas desses sujeitos para uma explicação, do ponto de vista de
uma interioridade, sobre o que originou a situação atual. Já não importa mais o ato criminoso
em si, conforme podemos pensar a partir de Foucault (2010a), o que interessa é a causalidade
psicológica inerente a sua biografia: o criminoso torna-se uma virtualidade inerente a uma
biografia do sujeito. A partir de então estará capturado numa identidade biográfica.
À medida que a biografia do criminoso acompanha na prática penal a análise das
circunstâncias, quando se trata de medir o crime, vemos os discursos penal e
psiquiátrico confundirem suas fronteiras; e aí, em seu ponto de junção forma-se
aquela noção de indivíduo “perigoso” que permite estabelecer uma rede de
causalidade na escala de uma biografia inteira e estabelecer um veredicto de
punição-correção. (FOUCAULT, 2010a, p. 239).

95

Como mencionado, este dispositivo busca aferir na interioridade destas vidas uma
punição que sirva de correção para estes sujeitos, tornando mínima a chance de reincidência
quando devolvido ao convívio pós-prisão. O que, como Foucault (2010a) já havia
mencionado, teve poucos resultados: o dispositivo da prisão apenas reforçava o estigma de
criminoso na vida destes sujeitos, lançando estes e suas famílias ao abandono social.
Neste contexto, cabe-nos ressaltar a forma como no Brasil o estigma de criminoso
esteve historicamente associado aos “pretos, pobres e periféricos”, conforme afirma Marques
(2012) em entrevista à Revista Caros Amigos. Este pesquisador afirma que as políticas de
extermínio obedecem à sigla dos 3 p’s - pretos, pobres e periféricos -, a partir da qual são
assassinados um número elevado de pessoas no Brasil, como meros criminosos.
Contra os pobres que não entrarem no mercado informal, que não aplacarem suas
frustrações e aguardarem a assistência (bolsa-qualquer coisa) ou que não investirem
todas as suas forças em suas próprias qualificações profissionais (mas, de antemão
se sabe: é um caminho aberto para poucos), ou seja, aqueles que “entrarem para o
crime”, nossa política de segurança reserva duas medidas: alternar os dias da vida
entre a prisão e as ruas (se não for tido como um grande “bandido”) ou ser eliminado
pela polícia, por grupos de extermínio ou por outros “bandidos”. (MARQUES,
2012).

Nesta entrevista, Marques (2012) se refere à realidade de São Paulo, no entanto,
podemos relacioná-la com o que vivemos em Alagoas a partir do assassinato de jovens negros
em larga escala, conforme dados apresentados pelo Mapa da Violência 2012 (WAISELFISZ,
2011)49, e dos assassinatos de moradores de rua em Maceió. Estes índices vêm a corroborar
um cenário histórico específico de massacre destas populações no Brasil, confundindo-se com
a história de colonização e de demonização de hábitos, de costumes e das formas de viver de
negros e pobres. Por isto, iremos retomar aspectos históricos que nos auxiliarão na construção
de nossa análise.

5.3 Negros e pobres: criminosos até que provem o contrário
A partir do século XIX, o Brasil é fortemente influenciado por teorias científicas
fabricadas na Europa. Este período foi importante para a construção dos primeiros projetos de
nação para o país, e dentre algumas questões importantes podemos citar a fundação do
Instituto Histórico Geográfico Brasileiro em 1838, numa clara alusão, já naquele período, à
49

Conforme dados do Mapa da Violência (WAISELFISZ, 2011, p. 64): “Alagoas, Espírito Santo, Paraíba, Pará,
Distrito Federal e Pernambuco encabeçam a lista de homicídios negros, todos eles com taxas acima de 50
homicídios para cada 100 mil negros. Os cinco maiores índices de vitimização negra são encontrados, por
ordem, em: Alagoas, Paraíba, Pernambuco, Distrito Federal e Sergipe”.

96

preocupação sobre o futuro do povo brasileiro, possível de ser conhecido através dos dados
estatísticos. Esta preocupação acontecia, principalmente, devido à quantidade de negros e de
índios que se multiplicava nas cidades, e, para agravar ainda mais o quadro, os mestiços
também se espalhavam pelo país.
Que nação seria o Brasil com a multiplicação do número de mestiços, de negros e de
índios na população brasileira? Esta era a principal preocupação de intelectuais da época, tais
como: Gonçalves de Magalhães, José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo e Gonçalves
Dias, na literatura; Sílvio Romero e Nina Rodrigues, pioneiros dos primeiros estudos sobre a
questão racial no Brasil.
Na literatura, a resposta formulada pelo romantismo para o destino e as origens do
Brasil estava nos indígenas, que se constituíram como importantes para a identidade nacional:
eram os bons selvagens, diferentemente dos negros, considerados perigosos do ponto vista
social, moral e no que diz respeito à saúde, devido seus hábitos e costumes de vadiagem
(LOBO, 2008; CHAULHOUB, 1996).
Para Lobo (2008), o século XIX foi bastante cruel com os negros. Estes sujeitos, à
beira de ganharem liberdade com a abolição da escravatura, foram alvos de uma série de
discursos-práticas da ciência positiva produzida pelos intelectuais da época, que legitimavam
e produziram sua inferioridade em relação a brancos e índios. Tal inferioridade, segundo a
autora, se dava em diversos aspectos alavancados pelo que chama de biologização da vida:
“ele [o negro] figurava sempre no último lugar da inferioridade humana, do ponto de vista
intelectual (menos evoluído, retardado), moral (pervertido, degenerado) e físico (mais sujeito
a doença)” (LOBO, 2008, p. 197). Nesta perspectiva, baseada numa proposta de darwinismo
social postulada, principalmente, por Raimundo Nina Rodriguez, os negros seriam pragas
para a humanidade, fonte de boa parte dos males sociais, morais e físicos. Por isto que sua
reprodução desordenada no país constituía uma preocupação política quanto ao futuro da
nação.
Tais ideias faziam referência aos trabalhos de Morel e de Lombroso. O primeiro
contribuiu com a teoria da degenerescência da espécie, a partir da qual se comparavam as
raças, escalonavam-nas entre raças inferiores e superiores, naturalizando, deste modo,
desigualdades historicamente construídas. Segundo Lobo (2008), Morel, em seu Tratado das
degenerescências, buscou identificar as condições de degenerescência da espécie e para isto
levou a sério a ideia de encontrar provas de uma sub-raça em formação, no que produziu um

97

atlas com exemplares de degenerados: “os degenerados de Morel formavam uma multidão a
se reproduzir desordenadamente, até chegarem a constituir em futuro próximo uma variedade
decadente da espécie” (LOBO, 2008, p. 54).
Nas palavras de Lobo (2008), a degenerescência seria algo diferente de um retorno à
condição animal, pois o que estaria em curso nela seria a produção de uma espécie
degenerada ou mesmo um retorno e uma parada nas formas primitivas de existência humana.
É neste contexto que aparece a ideia de classes perigosas, que Morel associa aos operários
desempregados e cheios de vícios morais que poderiam resultar em revolta popular na França
do século XIX. Para aquela autora, no Brasil, os que irão receber esta nomenclatura serão os
negros escravos e os mestiços. Sob este signo há uma mudança importante quanto à
compreensão do que chamam de hereditariedade, um termo tão importante para a teoria de
Morel. Lobo (2008) afirma que tanto para este último, como para os médicos brasileiros
daquele período, a hereditariedade se tornou um elemento relacionado às condições
ambientais e a características comportamentais potencializadoras de problemas de saúde,
morais, físicos ou sociais, que seriam transmitidas nas relações familiares destes sujeitos. É aí
que a pedagogia aparece como um braço importante das políticas públicas, com a finalidade
de reformar e de mudar caracteres hereditários através da educação. Surge, então, a
possibilidade de controle da população a partir da natalidade e de políticas de extermínio e de
perseguição a uma determinada classe social, ou nas palavras de Marques (2012) os pretos,
pobres e periféricos.
Sobre o perigo que os negros e mulatos constituíam para a sociedade do início do
século XX, Lobo (2008, p. 224-225) ressalta que
O maior perigo dessa gente sem eira nem beira consistia em que, além de
desocupados, eram vagabundos, não tinham pouso certo, por isso era difícil
fiscalizá-los.
[...].
O maior perigo estava no nomadismo dos vagabundos (como ciganos, índios e
escravos fugidos), por seu teor de rebeldia, de transgressão e de não-acatamento da
ordem dominante, ou pior a produção de sua própria ordem (como nos quilombos e
nas rebeliões coletivas). Por isso, representavam uma ameaça constante ao poder
estabelecido. Os vagabundos eram mais perigosos nas cidades [...].

Estes vagabundos tão difíceis de serem fiscalizados e governados, assim
permaneceram no país até os últimos anos, sem sequer serem contados nos censos
populacionais. Suas vidas nômades se constituem até hoje como uma dificuldade importante
para o governo de suas condutas, ao considerarmos os moldes modernos ao qual a maioria de
nós foi capturada.

98

Lobo (2008, p. 226) afirma que as queixas principais sobre a massa de vadios, os exescravos, que crescia no país, se devia, principalmente, ao fato destes serem “preguiçosos por
natureza porque não se lhes conseguia ‘exercitar o apetite de possuir e desejar (...) o que tudo
concorre para a suma indigência em que vivem’, de modo tal que ‘os mesmos escravos lhes
não invejam”.
Já Cesare Lombroso foi importante para os estudos da frenologia, das medidas dos
crânios humanos e, deste modo, para garantir a medição do grau de periculosidade dos
sujeitos a partir do formato do crânio e de partes do corpo, generalizando seus dados
conforme os crânios mensurados. Com Lombroso, construiu-se uma série de discursospráticas que balizaram ações policiais, médicas e de políticas para as populações identificadas
como inferiores. Estigmatizaram-se negros, destinando-os a uma sorte de práticas de vida ou
de morte, conforme suas características físicas (LOBO, 2008).
A partir das contribuições de Morel, surge um novo problema para as ciências
criminológicas: como identificar os degenerados? Sobre este problema, aparece a necessidade
de melhorar o conhecimento sobre os degenerados com a finalidade de detectar aqueles que
poderiam ser curados. É aí que o corpo torna-se um importante balizador para identificá-los,
conforme Lobo (2008). Segundo esta autora, o corpo biológico, tomado como “espelho da
alma”, revelaria aspectos da degenerescência para os cientistas e, deste modo, no século XIX
a frenologia ganha força, tendo no crânio seu principal objeto de estudo, uma vez que o
cérebro, como órgão do pensamento, o habita. Surgem, então, as relações entre saúde e
beleza: um corpo são revelaria uma alma livre de degenerescência.
A frenologia foi associada à degenerescência e à eugenia, e ganhou novas
configurações com o modelo determinista de Cesare Lombroso (1835-1909), para
quem a criminalidade era um fato biológico inato, cujos sinais viriam cunhados na
face do criminoso, ou daquele que fatalmente um dia cometeria um crime. Eram
estigmas de degeneração, frequentemente identificados por orelhas grandes e de
abano, testa estreita, assimetrias no corpo e na face, prognatismo etc. embora não
tenha associado tais indícios de criminalidade diretamente a traços usados na
classificação das raças, vários deles foram relacionados entre os estigmas:
prognatismo, lábios e narizes grossos, cabelos encarapinhados eram traços dos
indivíduos negros; barba rala e olhos oblíquos, dos indivíduos amarelos e dos índios.
(LOBO, 2008, p. 59).

Segundo Terra (2010), as práticas e os discursos da frenologia e antropometria
ganharam força no Brasil no período em que se trabalhava com a possibilidade de tornar os
escravos em homens livres. E isto trouxe repercussões na vida social e política ao longo do
século XX, associadas à construção do que chama de identidade bandida. Esta tem por
finalidade, segundo a autora, “demarcar a partir do corpo, grupos sociais considerados bio-

99

psicológico e moralmente desiguais” (TERRA, 2010, p. 203). Assinala ainda que esta forma
de conceber a identidade bandida sofreu alterações ao longo do século XX, no entanto,
ressalta a forma como esta abordagem ainda tem continuidades nas formas como se trabalha
com o crime e com os criminosos no século XXI. O estigma construído sobre negros e pobres
relacionados à identidade bandida permanece de várias formas, como exemplos a autora cita
os seguintes: a ideia de o criminoso ser identificado pelas roupas que veste (o corpo ainda
como medida); nas relações entre pobreza e criminalidade, entre áreas de risco e alguns
grupos sociais que tenderiam a entrar no “mundo do crime”.
Ao que nos parece, os discursos criminais ainda guardam um ranço de eugenia e de
degenerescência importante para pensarmos as práticas que irão incidir sobre a população de
rua em Maceió. Aponta-nos também uma relação com as vidas destes sujeitos num regime de
exceção, no qual suas vidas são relegadas a um responsabilizar-se por si só, numa
naturalização progressiva da violência que sofrem como algo inerente a vida que levam.
O estigma de morar nas ruas traz para estes sujeitos uma relação com o crime, numa
lógica em que antes de qualquer coisa já são culpados por morarem nas ruas e, deste modo,
também são potenciais criminosos. Dito de outro modo, nos discursos criminais trabalha-se
com uma virtualidade materializada num corpo biológico dado, objeto não só da violência de
traficantes, de outros moradores de rua ou qualquer coisa do tipo, mas também de discursospráticas que forjam e arrancam destes corpos uma verdade já formulada a priori na história de
vida destes sujeitos. Trata-se de corpos violentados centenas de vezes, sem qualquer chance
de defesa ou de resposta: são corpos mortos nas ruas, nas notícias, nos textos acadêmicos, nas
conversas cotidianas e em tantas outras esquinas em que possam ser encontrados. Os
discursos que incidem sobre tais corpos são marcas de um presente histórico, de um passado
que não passou e que não deixa de assinalar sua presença entre nós.
Foucault (1999), na última aula do curso Em defesa da sociedade, introduz a ideia de
biopolítica para pensar as relações entre o poder, a política e a vida na contemporaneidade.
Refere-se à biopolítica como uma série de táticas que visam maximizar a vida, numa relação a
partir da qual se faz viver e deixa-se morrer, em oposição ao poder soberano que se
estabelecia através de um poder de morte sobre as vidas dos súditos. Para o soberano, o poder
de matar era o que lhe assegurava o poder sobre a vida.
Com a biopolítica haverá uma mudança nas relações de poder, a partir da qual a vida
biológica da população passa a ser fundamental. Maximizar a vida e colocá-la numa relação

100

de utilidade produtiva será seus novos rumos. Mesmo assim, Foucault (1999) introduz nessa
dinâmica a concepção de racismo de estado, a partir da qual se opera no domínio da vida um
corte fundamental entre aqueles que devem viver e os que devem morrer.
Com o aparecimento das teorias de degenerescência e as cidades superpopulosas como
problema político de gestão da saúde pública, a partir do século XIX na França, a vida
biológica se torna central para o governo das populações. Os inúmeros problemas de saúde
pública nas cidades produzem uma medicina social encarregada de manter a saúde das
populações, surgindo práticas higienistas e uma preocupação com a configuração de uma
nação forte e biologicamente saudável que possa produzir riqueza para seu país.
Agora já não se trata de um inimigo invasor que viria de fora para saquear ou tomar o
reino. Tratava-se de uma guerra no interior da própria cidade. Com os saberes biológicos em
voga, surge a espécie humana e, a partir dela, um discurso sobre raças. Segundo Foucault
(1999, p. 305), “isso vai permitir ao poder tratar uma população como uma mistura de raças
ou, mais exatamente, tratar a espécie de que ele se incumbiu em subgrupos que serão,
precisamente, raças”. Isto se configura, para o filósofo, como sendo a primeira função do
racismo: fragmentar, operar cesuras no interior da população.
A segunda função para o racismo é de caráter positivo, afirma Foucault (1999), pois
faz funcionar uma lógica de cunho biológico, a partir da qual “se você quer viver, é preciso
que você faça morrer, é preciso que você possa matar” (FOUCAULT, 1999, p. 305). Esta
função é de tipo biológico por algo bastante importante e que nos interessa, vejamos nas
palavras do filósofo: “quanto mais as espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais
os indivíduos anormais forem eliminados, menos degenerados haverá em relação à espécie –
viverei, mais forte serei, mais vigoroso serei, mais poderei proliferar” (FOUCAULT, 1999, p.
305). Conforme afirma, no racismo de estado, esta racionalidade sinaliza que a morte do
outro, da raça ruim, é o que deixará a vida mais segura, sadia e pura. Trata-se, por este
motivo, de uma relação biológica, nem guerreira, nem militar ou política, assinala Foucault
(1999, p. 305). É somente sob esta premissa do racismo que é permitido matar sem cometer
crime nas sociedades modernas. E como pudemos perceber, é na forma de biopoder que este
racismo pode ser efetivado, em defesa da vida biológica do homem sem quaisquer máculas.
O racismo de estado aparece como uma forma de exercer o direito de matar nas nossas
sociedades, afirma Foucault (1999), e isto vai se estabelecer dentro de um discurso de
evolução, assinalando que tais mortes são importantes para o progresso da espécie,

101

legitimando o assassínio de milhões de pessoas. Aponta também que o que está em jogo é
algo novo, pois não se trata de um ódio ou desprezo em relação a uma raça inferior, mas tanto
quanto uma vontade de eliminação desta raça, o que se coloca em jogo é a possibilidade de
“regenerar a própria raça”.
Neste contexto, Foucault (1999, p. 308) ainda se refere à criminalidade e sua
importância nesse mecanismo do biopoder, relacionado ao racismo de estado: “se a
criminalidade foi pensada em termos de racismo foi igualmente a partir do momento em que
era preciso tornar possível, num mecanismo de biopoder, a condenação à morte de um
criminoso ou seu isolamento”. Este filósofo nos assinala a pluralidade de maneiras como
compreende a ideia de tirar a vida de alguém, que vai desde a exposição à morte, favorecendo
condições de risco de morte a alguns sujeitos, até mesmo ao que chama de morte política, a
expulsão, etc.
Portanto, é na premissa de matar o outro, perigoso e degenerescente, para poder viver
que o racismo de estado vai operar. É através de uma cisão entre uma vida que merece viver e
outra que deve ser eliminada que será aceitável a morte de alguns, para o progresso da espécie
humana. De um lado, os perigosos e degenerescentes fadados à morte e, de outro, aqueles que
devem viver, por portarem uma vida biológica cheia de qualidades.
Dentre tantas questões, parece-nos importante salientar como, a partir de um discurso
que constrói o estigma de criminoso para sujeitos assassinados nas ruas, vai se constituindo
uma situação na qual se dissipa na figura do criminoso qualquer possibilidade de crime contra
estes, legitimando, entre outras coisas, seus assassinatos como algo natural para quem vive
nas condições em que vivem.
Mas como vimos no capítulo 2, esta população não brotou do asfalto, tampouco caiu
de paraquedas em Maceió; ela diz respeito a uma história política, social e econômica
específica do estado de Alagoas, que tem na cana-de-açúcar suas “glórias” à custa de sangue e
suor de muitos. É sobre uma tal relação de abandono destas vidas que se inserem as
discussões posteriores.

5.4 Produção de vida nua e de abandono
Algo que destacamos na leitura dos materiais de análise é a menção de uma palavra
para caracterizar a relação do Estado com os moradores de rua em Maceió: abandono. Chegase a afirmar que tais assassinatos foram possíveis devido ao abandono político e social a que

102

foram submetidos. Ora, o que vem a ser este abandono? E que força é esta do abandono que
relega sujeitos à morte?
Nas notícias sobre os assassinatos aparecem os seguintes textos, relacionados ao
abandono dos moradores de rua da capital alagoana:
Ele [presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/AL] analisa que a
situação de abandono dos moradores de rua em Maceió facilita os crimes. “Existe
uma ausência do poder público, tanto estadual como municipal. Faltam abrigos e
políticas de assistência social”, afirmou Irineu, citando também o uso de drogas
como um fator agravante na situação de quem mora na rua. (Uol Notícias,
22/07/2010, grifo nosso)
Durante todos esses anos, Maceió tem sido marcada pela exclusão social e pelo
abandono de meninos e meninas em situação de risco social por parte das famílias,
da sociedade e do Poder Público, tendo se criado um batalhão de perambulantes
famintos pelas ruas e praias, em busca da piedade alheia para sobreviver, tendo a
situação chegado a triste realidade vivida com a morte de 32 moradores de ruas
assassinados no corrente ano de 2010. (Tortura Nunca Mais – São Paulo,
20/11/2010, grifo nosso).

No primeiro trecho mencionado acima, há uma afirmação quanto a uma situação de
abandono que permite crimes contra estes sujeitos com alguma facilidade. E este abandono é
relacionado, principalmente, à ausência de políticas públicas para esta população, ressaltando
que as drogas também imprimem condições importantes para o agravamento da situação
destes sujeitos. Neste sentido, o abandono é compreendido como uma situação que expõe
sujeitos a riscos sociais, imprimindo-lhes uma vulnerabilidade as suas condições de
permanecerem vivos ou mesmo de sobreviverem com alguma “dignidade”.
No segundo trecho, a palavra abandono vem nomeando os sujeitos que o efetuaram: as
famílias, a sociedade e o Poder Público. E também ressalta que o resultado deste abandono diz
repeito a condições de sobrevivência que carecem de piedade alheia para que haja uma
interferência mínima para permanecerem em vida. Além disto, esta relação de abandono
haveria constituído um batalhão de famintos, culminando nos assassinatos destes sujeitos nas
ruas de Maceió.
Estes trechos deixam entrever aspectos concretos de uma exposição a condições subhumanas de sobrevivência para quem mora nas ruas de Maceió, expondo-os à morte a partir
das drogas, da ausência de políticas públicas destinadas a estes sujeitos e, principalmente, o
extermínio contínuo ao qual as vidas deles são expostas.
Agamben (2010) traz algumas contribuições para uma analítica destas questões,
influenciado pelas leituras de Michel Foucault e Hannah Arendt. Em seu livro Homo sacer: o
poder soberano e a vida nua, este autor propõe pensar a política numa relação de abandono

103

com a vida nua. Para isto, ele retoma a figura do homo sacer do direito romano como
paradigmática da política moderna.
O homo sacer seria uma nomenclatura usada pelo direito romano, atribuída a um
sujeito que, tendo cometido um delito, tinha sua vida exposta ao assassínio de qualquer um
sem que isto fosse tomado como crime ou sacrilégio. No momento em que esta vida era
sacralizada, operava-se um contraditório importante, a partir do qual era autorizada a sua
morte sem qualquer sanção jurídica ou divina aos sujeitos que a cometessem. Nestes termos,
para Agamben (2010, p. 76) a vida do homo sacer se constitui no cruzamento entre uma
matabilidade e uma insacrificabilidade, “fora tanto do direito humano quanto daquele divino”.
Esta insacrificabilidade é sustentada, entre outras coisas, pelo fato de que sua vida não poderia
ser retirada como um sacrifício aos deuses, pois já era sacra e, como vida sacra, deveria ser
mandada “ao céu o mais rápido possível”.
Para este autor, a vida do homo sacer é posta numa relação de dupla exceção operada
numa dúplice exclusão: sua vida é colocada como insacrificável, portanto excluída dos rituais
de sacrifícios aos deuses, e também como matável, excluída de penalidades referentes aos
rituais do direito humano. Nesta relação, a vida sacra dos homines sacri está posta de forma
ambígua, criando o que o autor chama de uma figura topológica sem dentro e fora, pois o
homo sacer “pertence ao Deus na forma da insacraficabilidade e é incluído na comunidade na
forma da matabilidade” (AGAMBEN, 2010, p. 84).
Aquilo que define a condição do homo sacer, então, não é tanto a pretensa
ambivalência originária da sacralidade que lhe é inerente, quanto, sobretudo, o
caráter particular da dupla exclusão em que se encontra preso e da violência à qual
se encontra exposto. Esta violência – a morte insancionável que qualquer um pode
cometer em relação a ele – não é classificável nem como sacrifício e nem como
homicídio, nem como execução de uma condenação e nem como sacrilégio.
Subtraindo-se às formas sancionadas dos direitos humanos e divino, ela abre uma
esfera do agir humano que não é a do sacrum facere e nem a ação profana.
(AGAMBEN, 2010, p. 84).

Para este autor, portanto, o homo sacer seria “a figura originária da vida presa no
bando soberano”, compondo a exclusão originária que constitui a dimensão política atual
(AGAMBEN, 2010, p. 84). Por isto, a dimensão originária da política é a esfera soberana do
poder de matar que subjulga a vida violentamente. É a partir desse jogo de dupla captura que
a vida nua estaria irremediavelmente remetida a um poder de morte, numa relação de
abandono que a expõe à violência soberana.
No que chama de exclusão inclusiva da vida nua do homo sacer na política, Agamben
(2010) defenderá que o soberano e o homo sacer delimitam o espaço político originário.

104

Como em extremos, estas duas figuras estabelecem uma relação de exterioridade interior à lei
e ao divino. São elementos que estabelecem entre si uma relação de abandono. Para ele, “não
a simples vida normal, mas a vida exposta à morte (a vida nua ou a vida sacra) é o elemento
político originário” (AGAMBEN, 2010, p. 89).
Portanto, segundo Agamben (2010), a relação de abandono é o que estabelece entre a
violência soberana e a vida nua do homo sacer uma submissão fundamental para pensar a
política. Num dentro e fora produzido a partir do encontro com o poder, tais vidas são
desnudadas à mercê de um poder de morte e postas em bando são expostas ao completo
abandono diante deste poder. Por isto, este autor afirmará que o poder só poderá aplicar-se ao
bando soberano, desaplicando-se, numa relação de exceção.
Sobre o abandono, Agamben (2010, p. 109) escreve: “o que foi posto em bando é
remetido à própria separação e, juntamente, entregue à mercê de quem o abandona, ao mesmo
tempo excluso e incluso, dispensado e, simultaneamente, capturado”. Não se trata de uma
simples relação de exclusão, ou mesmo de construção de dicotomias, de um dentro e de um
fora. Na relação de abandono o bando é entregue a um poder que o regula e que o transforma,
a partir de práticas coercitivas, da construção de tutelas e de uma série de práticas que irá
mantê-lo às margens, numa situação limite que os produzem numa zona de indistinção entre
um dentro e um fora.
Ao tomar as práticas de violência soberana sobre a vida nua, afirma-se que na
contemporaneidade a vida passou a ser operada pela política a partir da exceção, tornando-se
esta uma regra. Deste modo, Agamben (2010) afirma que a entrada da vida nua na política
tem um preço caro: esta ocorre por uma sujeição a um poder de morte, numa dupla exceção
da vida matável e insacrificável, tornando-a sacra.
Nestes termos, os direitos humanos não fazem outra coisa senão reforçar uma lógica
de sacralidade da vida humana, relegando-a a um estado de exceção e de abandono sobre os
quais a vida passa a ser regulada numa relação positiva, conforme nos apontaram os materiais
de análise, em que ou estes sujeitos estariam disponíveis às políticas públicas que interveriam
sobre suas vidas para qualificá-las ou estariam remetidos a si mesmos numa relação de
abandono.
A vida humana se politiza somente através do abandono a um poder incondicionado
de morte. Mais originário que o vínculo da norma positiva ou do pacto social é o
vínculo soberano, que é, porém, na verdade somente uma dissolução; e aquilo que
esta dissolução implica e produz – a vida nua, que habita uma terra de ninguém entre

105

a casa e a cidade – é, do ponto de vista da soberania, o elemento político originário.
(AGAMBEN, 2010, p. 91).

O que politiza a vida nua, portanto, é o fato de estar exposta a um poder de morte, à
violência soberana, somente a partir dessa exposição é possível remetê-la à política,
qualificando-o no encontro com um biopoder. É nesta relação com a fragilidade e o abandono
da vida nua que pedimos a intervenção política sobre ela, sacrificamos alguma liberdade pela
segurança de ter uma vida digna. Portanto, é na relação de abandono à violência soberana que
vida nua é capturada pela política.
A vida nua é então o elemento político originário. Esta afirmação tem implicações
importantes para a política e para a vida nas cidades, que se configuram agora como campos
de experimentação e de invenção do humano, a partir de uma lógica de governo de condutas
dos homens. As cidades, nestes termos, tornam-se campos de experimentação biopolítico, em
que a vida humana passa a ser gerida e inventada a partir do elemento biológico e de sua
utilidade para o progresso da espécie (FOUCAULT, 2008; ARENDT, 2010).
Podemos pensar as cidades como um campo de experimentação biopolítico, na forma
como a vida nas cidades torna-se um problema para a gestão política, aparecendo numa
preocupação com o controle dos fluxos das coisas e das pessoas, com a constituição de
espaços disciplinares para constituir sujeitos e adequá-los à vida em sociedade, o surgimento
de disciplinas científicas que põem em cena a vida humana e a melhor forma de governá-la
para um progresso civilizatório. As cidades tornam-se, então, verdadeiros laboratórios
biopolíticos de experimentação da vida humana.

5.5 Para continuar existindo...
É neste contexto que podemos pensar como a vida nua, a vida matável, é produzida
em relações de poder a partir de uma lógica biopolítica. Ao lançarmos mão das seguintes
perguntas: como se constitui o abandono dos moradores de rua em Maceió? E como a gestão
deste abandono é importante para a produção de vida nua? Para abordar tais questões tivemos
que utilizar algumas ferramentas teóricas que associam as vidas destes sujeitos às práticas e
discursos relacionados à gestão política da cidade.
Diferentemente de responder estas questões, esperamos lançar pistas para pensar a
inserção destes sujeitos nos jogos de poder contemporâneos. Ao ressaltar uma identidade
biográfica construída em relações de poder-saber e um dispositivo de regulação biopolítico

106

que toma este acontecimento no domínio da gestão da população, procuramos ressaltar uma
racionalidade de governo a partir da qual a vida torna-se um bem manipulável e importante
para a geração de riqueza e de uma sociedade civilizada, a duros custos.
Sem dúvidas é a vida nua que está em jogo nesses mecanismos de poder. Uma vida
biológica presa às necessidades que é produzida numa relação de abandono intrínseca à
política contemporânea e que remete não somente a estes sujeitos, mas que por uma série de
dispositivos e práticas os tornam um paradigma para pensar o que nos tornamos na
contemporaneidade, ao elegermos a segurança como um bem inalienável da vida humana.
Pinto Neto (2008) afirma que nos campos da prisão de Guantánamo houve a produção
de uma diferença do ponto de vista jurídico dos sujeitos que ali foram aprisionados. Estes
sujeitos foram destituídos de uma identidade: sem nome, sem nação, por isto, sem terem a
quem recorrer e abandonados a si mesmos, se tornaram alvos de um poder de morte e, em
nome da defesa de uma segurança social, foram fabricados como inimigos. Ao forjarem-lhes
como inimigos, fabricou-se esta identidade bandida a partir da qual expunham estes sujeitos a
uma série de práticas de violência e em larga escala de assassinatos.
No que diz respeito aos moradores de rua em Maceió, seus assassinatos revelam um
jogo de poder que responsabiliza-os por suas mortes, naturaliza-lhes como inerentes à vida
que levavam, criando uma zona de irresponsabilidade generalizada. Neste mesmo jogo, as
ruas tornam-se, como vimos no capítulo 4, palco de um massacre que não cabe em si e não
responde nem traz à tona por si só uma responsabilidade única para estes assassinatos, mas
demonstra uma lógica de governo que nos toma a todos como partícipes de uma história
recente do Estado, que se atualiza no cotidiano da cidade.
Ao serem jogados às ruas, lugares que expõem suas vidas à sorte de ações por parte de
quaisquer um, estes sujeitos apenas resistem, e na tentativa de continuarem vivos levam a vida
que podem, apesar de mantê-la numa irregularidade que alimenta e sustenta uma certa lógica
de governo que não cessa em condená-la como um mal para cidades.
Portanto, é na rede complexa dos dispositivos relacionados ao morar nas ruas que
podemos minimamente situar a construção de uma identidade biográfica delinquente ou
criminosa para estes sujeitos, que reforça e autoriza uma relação de abandono que tem como
alvo suas vidas.
As ruas inóspitas, lugares viciosos e de degenerescência, são as fábricas destes sujeitos
marginalizados e referendados como criminosos, mas ao invés de evitá-las, estes sujeitos

107

assumem o risco de fazerem delas sua morada; aí mesmo onde não deveriam estar, podem se
produzir como sujeitos das cidades, mesmo que numa ilegalidade e abandonados à própria
sorte.
Numa das matérias especiais da Folha de São Paulo, em novembro de 2010, sobre os
assassinatos de moradores de rua em Maceió, aparece um relato de Erivan José da Silva,
morador de rua de 34 anos, que escolhemos para nos referirmos à forma como estes sujeitos
ocupam os espaços urbanos da cidade para sobreviver, assumindo numa perspectiva política o
risco como algo inerente à vida, ao invés de colocá-lo no plano puramente individual das
responsabilidades.
Nessa vida eu já fiz de tudo um pouco. Tenho cursos de mecânico, marceneiro e
padeiro. Trabalhei na roça e saí de casa aos 32 anos. Morava com minha mãe, em
Marimbondo. Vim para Maceió para tentar uma vida melhor.
Não consegui nada de bom até agora e vivo na rua há dois anos. Acho que é porque
só estudei até o terceiro ano. Então, pego plástico e latinha para vender. Vasculho o
lixo e como as coisas que os outros jogam fora.
Tem dia que eu ganho uns dez contos, tem dia que não ganho nada, nada. Pedir, nem
peço porque ninguém dá mesmo. Essa é a vida que eu vivo. É morrer um pouquinho
a cada dia.
Tem gente que critica, que xinga quando a gente puxa a carroça e fecha a rua. Mas
vou fazer o quê?
Meu trabalho é esse, e a minha casa é a calçada. Não posso ficar escondido dentro
de um buraco, entocado. Se tiver medo, vou viver como?
Na rua, a gente não tem amigo. Eu mesmo não me envolvo com ninguém, não busco
encrenca.
Nunca fui ameaçado, mas tem gente que faz coisas por aí, e por causa deles os
outros acabam pagando.
Para quem mora na rua, a pior hora é sempre à noite.
O sono de quem está na calçada é o sono de morte.
Ninguém da gente tem nenhuma propriedade, mas sempre tem alguém que quer te
fazer mal.50 (Grifo nosso).

O aspecto político destacado na matéria acima diz respeito à forma como Erivan
afirma sua permanência nas ruas de Maceió como uma forma de viver: mesmo com medo,
decide ou é obrigado a buscar nela seu sustento, sua sobrevivência. Não se esconde, pelo
contrário, vasculha o lixo na busca de plástico e latinhas para vender, até sua alimentação é
retirada daquilo que é jogado fora pelos outros. É disto que se alimenta, do lixo, do que já não
querem mais. Erivan faz do lixo seu sustento e sua alimentação, reinventa a cena na qual

50

Matéria publicada pela Folha de São Paulo em 27 de novembro de 2010, com o título de ERIVAN JOSÉ
JUSTINO, 34: "Não temos nada, mas tem sempre alguém que te faz mal". Para acesso, ver o link:
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2711201043.htm>.

108

também foi jogado, mas não se esconde, prefere se reinventar a partir de algo que já perdeu
sua utilidade.
Poderíamos destacar inúmeros aspectos que desvalorizassem sua escolha ou seus
hábitos de comer coisas do lixo, apontando, dentro de um discurso competente, os riscos a sua
saúde implicados no seu ato, no entanto, essa história tem uma materialidade da qual não
podemos nos esquivar: estas são as condições de vida que tem a sua disposição para manter-se
vivo. A partir dessa materialidade só apontamos uma vontade de existir e de permanecer vivo
de Erivan e de tantos outros que vivem nas ruas da cidade, uma vontade de reinventar coisas
que não guardam em si seu valor de consumo, de reciclar-se junto a tudo que conseguem do
lixo das ruas, ruas que os acolhem, que são suas casas, mas que nem sempre são hospitaleiras
para com seus habitantes.
Portanto, as marcas das violências sofridas pelos moradores de rua devem ser
demarcadas numa outra racionalidade diferente da criminal, para que não apareçam como
mera violência ou como uma simples manifestação de violência nas cidades. Estas violências
devem ser postas em análise continuamente, pois dizem respeito a nós e às formas como
decidimos lidar com a vida.

109

6 AS DROGAS E UM CERTO FASCÍNIO SOBRE OS DISCURSOS COMPETENTES

As drogas ilícitas aparecem, nos mais variados discursos das políticas de saúde, de
segurança pública e de educação, como um mal social que deve ser combatido com ares de
guerra. São tomadas para a explicação da violência urbana, de um desajuste de
comportamento de alguns sujeitos, para a implementação de políticas públicas que venham a
combater sua disseminação social, entre outras questões. Além disso, são hoje alvo de uma
série de estudos sociais que busca fazer um estranhamento a estas questões que emergem em
nome da segurança e da defesa da vida e da sociedade.
Quanto ao que nos cabe nesta dissertação, as drogas se tornaram a principal explicação
(e talvez justificativa) para os assassinatos de moradores de rua na capital alagoana. Os
discursos oficiais, com base nas investigações da polícia civil, vêm fazendo do envolvimento
de moradores de rua com as drogas um importante motivo de seus assassinatos pelas ruas de
Maceió. Sob um discurso de que são criminosos que estão se matando, se configura uma
realidade relacionada à dívida com traficantes, que, como pudemos analisar anteriormente,
constitui-se como um potente naturalizador de questões sociais e históricas do Estado de
Alagoas.
Numa racionalidade que toma as vidas destes sujeitos como medida para falar de uma
periculosidade inerente as suas condições de vida, observamos um corte biopolítico
importante entre aqueles que devem viver e os que devem morrer, seja através do assassínio,
de sua exclusão ou rejeição, como nos afirma Foucault (1999).
Neste capítulo, buscaremos abordar a questão das drogas, considerando aspectos
relacionados ao governo da vida, a partir de um posicionamento crítico e de um certo
estranhamento de como surge para explicar os assassinatos de moradores de rua em Maceió.
Para isto, ao longo do capítulo traremos os elementos dos materiais de jornais referentes ao
acontecimento aqui abordado e junto disto traremos, primeiramente, o conceito de dispositivo
para nos auxiliar a pensar como as drogas emergem para dispor as coisas e os acontecimentos
de certo modo, ao favorecer e fortalecer alguns discursos em detrimento de outros e fabricar
sujeitos e subjetividades neste processo, viabilizando o governo de suas condutas. Bem como
discutiremos sobre como este dispositivo formula uma ambiguidade importante para pensar
os moradores de rua a partir da oposição entre criminoso e situação de risco, humano e nãohumano, entre outros.

110

Em seguida, daremos visibilidade à complexa rede de dispositivos que legitima ações
e práticas em regime de exceção sobre as vidas dos sujeitos envolvidos, buscando pensar
aspectos históricos e políticos que se entrelaçam na produção desta rede.

6.1 “Mas tudo converge para a questão das drogas”
Em declaração feita pelo secretário de Defesa Social do Estado, ao falar sobre os
assassinatos dos moradores de rua em Maceió, afirmou-se que não se tratava de um grupo de
extermínio, tampouco de uma força paralela ao Estado; ao que parecia, tudo convergia para as
drogas e o envolvimento com traficantes.
A polícia de Alagoas descarta que as mortes tenham sido provocadas por
"justiceiros" determinados a "limpar a cidade". Segundo a corporação, a maioria dos
crimes foi praticada por questões relacionadas a drogas e acerto de contas com
traficantes.51

Esta informação repercutiu pela imprensa e tornou-se uma explicação importante para
os assassinatos: de massacre ou grupo de extermínio, as investigações se redirecionaram para
a questão das drogas, como afirmara o secretário. Não só as investigações, mas “tudo” passou
a convergir para as drogas: os discursos veiculados pela imprensa sobre estes assassinatos, as
políticas públicas de segurança, saúde e educação, as explicações cotidianas sobre a natureza
destes crimes, entre outros.
O secretário Paulo Rubim afirmou que as mortes só vão cessar com uma atuação
integrada no combate às drogas, principalmente nas fronteiras. "Se os Estados não
agirem, juntamente com o Ministério da Justiça, não vamos conseguir. A polícia por
si só não vai conseguir vencer essa onda assassina que vem com o crack." 52
A polícia civil, em suas investigações, descartou a atuação de grupos de extermínio,
afirmando que os homicídios estariam relacionados ao tráfico de drogas, uma vez
que 83% das vítimas eram dependentes químicos. 53
Dos 39 casos de assassinatos de pessoas em situação de vulnerabilidade em Maceió,
24 envolveram moradores de rua e a maioria dos crimes foi motivada por questões
relacionadas ao tráfico de drogas e por brigas, de acordo com relatório da Polícia
Civil de Alagoas.54

51

Texto publicado em 28 de novembro de 2010 pela Folha.com, com o título de Em Maceió (AL), 300 pessoas
protestam contra morte de moradores de rua, disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/837522em-maceio-al-300-pessoas-protestam-contra-morte-de-moradores-de-rua.shtml>.
52
Texto do UOL Notícias, publicado em 19 de novembro de 2010 intitulado Secretário descarta ação de grupos
de extermínio e diz que mortes de moradores de rua em AL são "criminosos se matando", disponível em:
<http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2010/11/19/secretario-descarta-acao-de-grupos-de-exterminio-e-diz-quemortes-de-moradores-de-rua-em-al-sao-criminosos-se-matando.jhtm>.
53
Publicado em 05 de abril de 2011 no Site do Instituto de Pesquisa e Cultura Luis Flávio Gomes, com o título
de O extermínio de moradores de rua em Maceió, disponível em: <http://www.ipclfg.com.br/campanhainformativa-da-violencia-epidemica/o-exterminio-de-moradores-de-rua-em-maceio/>.
54
Matéria publicada no Correio Braziliense em 22 de novembro de 2010 com o título de OAB: investigação
sobre
mortes
de
moradores
de
rua
em
Alagoas
foi
lenta,
disponível
em:

111

Sob o signo das drogas afirmou-se a necessidade de combatê-las, pelo seu caráter
mortífero que vem promovendo uma onda de assassinatos na capital alagoana; além disso, os
assassinatos de moradores de rua são associados a estas pelo uso que fazem destas substâncias
ilícitas, pois como afirmado anteriormente, “os homicídios estariam relacionados ao tráfico de
drogas, uma vez que 83% das vítimas eram dependentes químicos”.
É através de uma naturalização e da construção de associações entre o estilo de vida
destes sujeitos e os assassinatos, que as drogas são apresentadas como uma explicação
plausível, quase que "óbvia", para os seus assassinatos. No entanto, ainda são afirmadas
outras causas para explicar esta “onda de assassinatos”, por parte dos órgãos relacionados aos
direitos humanos em Maceió.
A Polícia Civil de Alagoas crê que os crimes contra moradores de rua são casos
isolados e têm relação com o consumo de drogas. Mas a secção regional da Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB) acredita que grupos de extermínio estão por trás
destes 31 homicídios. Seria uma espécie de “limpeza étnica” nas ruas para livrar
Maceió de pessoas miseráveis que têm como leito as calçadas e como teto o céu. 55

Esta disparidade de discursos construída para explicar os assassinatos de moradores de
rua em Maceió é algo importante e, por isto mesmo, não pretendemos resolvê-la, mas apontar
a forma como vai ganhando força numa relação recíproca entre tais discursos – os da polícia
civil e os dos direitos humanos –, a partir da qual estas verdades passam a caminhar lado-alado: mesmo apontando divergências, tais discursos chegam em um momento no qual são
obrigados a se cruzarem, construindo, deste modo, uma narrativa concisa sobre os
assassinatos.
As drogas, entre outras coisas, exercem uma força de coesão entre estes discursos que
à primeira vista parecem excluirem-se um ao outro. Elas dispõem os discursos e os sujeitos
numa outra relação, possibilitando a colaboração entre estes discursos-práticas de forma
arrojada.
Coincidência ou não, a série de assassinatos começa logo após ser divulgada uma
pesquisa feita pela prefeitura de Maceió – sob encomenda do Ministério Público e
da vice-governadoria do Estado – que apontava que 97% dos moradores de rua
daquela cidade eram consumidores de drogas.
Na época da divulgação, em novembro de 2009, o promotor de justiça responsável
pela área de direitos humanos, do Ministério Público de Alagoas, concluiu que a
pesquisa “aponta para uma situação de risco, que necessita de uma intervenção
urgente do poder público, com ações eficientes, para amenizar o sofrimento de
vidas”. Ele afirmou, ainda, que o consumo de drogas por moradores de rua seria
<http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2010/11/22/interna_brasil,224316/oab-investigacaosobre-mortes-de-moradores-de-rua-em-alagoas-foi-lenta.shtml>.
55
Matéria intitulada Massacre em Maceió de 19 de novembro de 2010, publicada pelo site de notícias Jornal da
Cidade (Sergipe), na íntegra em <http://2008.jornaldacidade.net/2008/noticia.php?id=83701>.

112

apenas parte do problema dessa população, reflexo de suas péssimas condições de
vida, e que “para mudar essa situação é preciso a intervenção em conjunto de
todos”.56

São as drogas um fator de risco para esta população, sendo assim, torna-se necessário
intervir sobre estas condições de vida “para amenizar o sofrimento” destas pessoas. O
sofrimento e as péssimas condições de vida, relacionados ao consumo de drogas, devem ser
um campo de batalha de um conjunto de ações. Torna-se necessário intervir sobre estas vidas.
Deste modo, criam-se condições de intervenção sobre as vidas destes sujeitos. Suas
vidas são tomadas como alvo de práticas que visam “amenizar o sofrimento”, dada uma
situação de risco iminente em que vivem pelas ruas, expostos à própria sorte. Este é o cenário
sobre o qual serão propostas ações de tutela destes sujeitos, tendo as drogas como pano de
fundo para naturalizar intervenções sobre suas vidas.
Alessandro Baratta (BATISTA, 2003), no prefácio do livro Difíceis ganhos fáceis de
Vera Malaguti Batista, afirma que a guerra contra as drogas no Brasil é uma guerra contra um
inimigo interno, constituindo-se como uma questão de segurança nacional e urbana. Segundo
este pesquisador, isto faz com que
no Brasil, o problema da droga, simplesmente, assuma a forma da relação entre as
duas nações em que está dividida a sociedade brasileira: os ricos e os pobres. Assim,
aos jovens consumidores das classes média e alta se aplica o paradigma médico,
enquanto que aos jovens moradores de favelas e bairros pobres se aplica o
paradigma criminal. (BATISTA, 2003, p. 23).

Este quadro vem se exacerbando de forma importante através das internações
involuntárias de usuários de drogas que moram nas ruas das grandes cidades: tendo como
base uma defesa da vida e da segurança pública, práticas de internação destes sujeitos vêm
sendo efetivadas, associadas a um discurso médico de proteção destas vidas. No entanto, é
sobre a mesma população pobre que tais práticas são implementadas. Aqui nos interessa a
forma como as condições de pobreza são associadas ao risco à vida social, não apenas destes
sujeitos, mas de todos nós e, sob esta premissa, práticas de criminalização e de tutela de suas
vidas são efetividades com alguma legitimidade. Neste sentido, o paradigma médico e o
policial fazem uma parceria para lidar com esta situação ambígua.
Dito isto, Alessandro Baratta afirma que “se na emergência risco-abandono
respondemos com as medidas de proteção, respondemos então com repressão à emergênciacrime” (BATISTA, 2003, p. 29). Neste sentido, este pesquisador ressalta as formas como são
56

Trecho de matéria publicada em 5 de abril de 2011 no site do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio
Gomes, com o título de
O extermínio de moradores de rua em Maceió. Ver na íntegra em:
<http://www.ipclfg.com.br/campanha-informativa-da-violencia-epidemica/o-exterminio-de-moradores-de-ruaem-maceio/>.

113

formuladas respostas de proteção para uns e de repressão para outros sujeitos. Sobre os
moradores de rua em Maceió, “usuários de drogas em sua maioria” – conforme as
informações de pesquisas e agências de notícias –, esse campo torna-se ambíguo, pois como
sujeitos expostos a riscos e, ao mesmo tempo, considerados criminosos, quais as respostas que
podem ser formuladas e endereçadas a estes sujeitos? Repressão ou proteção? Como se decide
sobre qual medida deve ser endereçada a estes sujeitos?
Criminalizar os pobres é um instrumento indispensável porque garante
materialmente a sua posição subalterna no mercado de trabalho e sua crescente
exclusão, disciplinando-os, pondo-os em guetos e, quando necessário, destruindo-os.
(BATISTA, 2003 , p. 31).

É nessa ambiguidade que as medidas de proteção à vida são postas em questão, pois
como trabalhar com uma população de sujeitos que são reticentes aos enquadramentos e
lógicas de normatização contemporâneas? Sujeitos que, simultaneamente, estão em risco
social e são criminosos. Como efetivar práticas concretas de proteção a estes sujeitos que
teimam em viver numa ambiguidade, numa relação de limite com a norma e com seus
representantes?
Os moradores de rua em Maceió apresentam-se como um desafio para as intervenções
de um Estado que costumeiramente os colocou numa exterioridade à vida na cidade, como
marginais às formas de vida desejáveis. É esta ambiguidade, pouco discutida nas matérias de
jornais, que nos interessa neste capítulo. A forma como as drogas dispõem a vida desses
sujeitos pouco resolve esta ambiguidade, ao contrário, produzem-na e colocam-lhes numa
disposição natural a práticas de tutela e de gestão de suas vidas sem considerar esses aspectos
históricos que se arrastam na vida social do Estado. E conforme afirma Alexandre Baratta:
Se antes a propriedade sobre os escravos autorizava a puni-los, torturá-los ou
destruí-los, agora continua-se a punir, torturar e destruir seus descendentes para
afirmar simbolicamente um tipo de propriedade sobre eles, para enfatizar sua
diversidade, para combater sua tendência natural à insubordinação. (BATISTA,
2003, p. 32-33).

Deste modo, estes discursos produzem esta ambiguidade que mencionamos como um
motor para suas práticas e discursos, dispondo as vidas para ações que visam requalificá-las,
reforçando aspectos relacionados a sua tutela através de um discurso competente que
criminaliza e desvaloriza a forma como vivem. Tanto quanto punir, torturar ou destruir, essas
formas de viver, investe-se em estratégias de requalificação e reforma de aspectos de suas
vidas considerados potencializadores de riscos sociais.

114

6.2 Um dispositivo para pensar o presente histórico
Como pudemos abordar até agora, as drogas aparecem como num potente discurso que
dispõe as vidas de certos sujeitos a situações de riscos, garantindo o esforço de uma série de
práticas que visam, entre outras coisas, efetivar medidas de proteção a estes sujeitos.
Em matéria publicada pelo Correio Braziliense, em 22 de novembro de 2010, o
presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB em Alagoas haveria afirmado que
somente após a repercussão nacional dos assassinatos houve alguma celeridade nas
investigações dos assassinatos de moradores de rua em Maceió, e afirmara também a
necessidade de ações sociais conjuntas para proteger a vida destes sujeitos.
Ele afirmou que para garantir a segurança dos moradores de rua é preciso
implementar um conjunto de ações sociais. “O monitoramento ostensivo nas ruas é
importante, assim como usar a inteligência policial. Nas últimas duas décadas, não
foram implementadas políticas para esses moradores de rua. Eles foram esquecidos e
eram considerados invisíveis” 57.

É sobre a forma como as drogas e estes assassinatos assinalam um lugar comum para a
investida de ações que iremos nos deter agora. Para isto, retomaremos a noção de dispositivo
nos textos de Michel Foucault, a partir do texto O que é um dispositivo? de Giorgio Agamben.
Neste texto, Agamben (2009, p. 27) proporá uma genealogia do conceito de
dispositivo, lançando a hipótese de que “a palavra ‘dispositivo’ seja um termo técnico
decisivo na estratégia do pensamento de Foucault”, principalmente a partir da segunda metade
dos anos setenta, em que Foucault aborda a questão do “governo dos homens”. Agamben
(2009) recorre então, a uma das poucas vezes em que Foucault (1979) fornece uma definição
para este termo numa entrevista a Alain Grosrichard e outros convidados em 1977:
Aquilo que procuro individualizar com este nome é, antes de tudo, um conjunto
absolutamente heterogêneo que implica discursos, instituições, estruturas
arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados
científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas, em resumo: tanto o dito
como o não dito, eis os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que
estabelece entre estes elementos [...]
[...] com o termo dispositivo, compreendo uma espécie – por assim dizer – de
formação que num certo momento histórico teve como função essencial responder a
uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função eminentemente estratégica
[...]
Disse que o dispositivo tem natureza essencialmente estratégica, que se trata, como
consequência, de uma certa manipulação de relações de força, de uma intervenção
racional e combinada das relações de força, seja para orientá-las em certa direção,
57

Matéria com o título de OAB: investigação sobre mortes de moradores de rua em Alagoas foi lenta, ver na
íntegra
no
link
que
segue:
<http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2010/11/22/interna_brasil,224316/oab-investigacaosobre-mortes-de-moradores-de-rua-em-alagoas-foi-lenta.shtml>.

115

seja para bloqueá-las ou para fixá-las e utilizá-las. O dispositivo está sempre inscrito
num jogo de poder e, ao mesmo tempo, sempre ligado aos limites do saber, que
derivam desse e, na mesma medida, condicionam-no. Assim, o dispositivo é: um
conjunto de estratégias de relações de força que condicionam certos tipos de saber e
por ele são condicionados. (Foucault citado por AGAMBEM, 2009, p. 28)58.

A partir deste trecho, Agamben (2009) resume a ideia de dispositivo, colocada por
Foucault, em três pontos:
a. É um conjunto heterogêneo, linguístico e não linguístico, que inclui virtualmente
qualquer coisa no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de
polícia, proposições filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se
estabelece entre esses elementos.
b. O dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre
numa relação de poder.
c. Como tal, resulta do cruzamento de relações de poder e de relações de saber.
(AGAMBEN, 2009, p. 29).

Este autor irá seguir com a genealogia deste termo, retomando outros dois termos:
“positivé” e “oikonomia”. O primeiro fora utilizado por Foucault em Arqueologia do saber,
segundo Agamben (2009), para definir seu objeto de pesquisa.
Agamben (2009) afirmará que o termo positivé tem uma relação com a palavra
positividade emprega por Jean Hyppolite em um texto sobre duas obras de Hegel – “O
espírito do cristianismo e o seu destino” e “A positividade da religião cristã” –, em que
Hyppolite afirma que destino e positividade são conceitos essenciais para o pensamento de
Hegel ao pensar a ideia de religião positiva. Segundo Agamben (2009, p. 30), a religião
positiva ou histórica abordada por Hegel seria “o conjunto das crenças, das regras e dos ritos
que numa determinada sociedade e num determinado momento histórico são impostos aos
indivíduos”, compondo seus comportamentos, numa relação de comando e de obediência,
diferentemente da religião natural em que haveria um contato imediato entre a razão humana
e o divino.
A partir disto, Agamben (2009) nos indicará o termo positividade relacionado ao que
Hegel teria chamado de elemento histórico, este atuaria como uma força externa, de forma
positiva sobre os comportamentos, de modo que os produziriam a partir de uma série de ritos,
regras e instituições impostas aos indivíduos, que ao ser interiorizada comporia seus
repertórios de crenças e sentimentos sobre as coisas do mundo. Nisto, Agamben (2009)
afirma:

58

Mantemos o trecho do texto de Agamben (2009), pois consideramos importante citá-lo conforme a tradução
livro. No entanto, esta entrevista também se encontra no livro Microfísica do Poder, com o nome de “Sobre a
história da sexualidade” (FOUCAULT, 1979, p. 243), traduzida por Roberto Machado.

116

Se “positividade” é o nome que, segundo Hyppolite, o jovem Hegel dá ao elemento
histórico, com toda sua carga de regras, ritos e instituições impostas aos indivíduos
por um poder externo, mas que se torna, por assim dizer, interiorizada nos sistemas
das crenças e dos sentimentos, então Foucault, tomando emprestado este termo (que
se tornará mais tarde “dispositivo”), toma posição em relação a um problema mais
próprio: a relação entre os indivíduos como seres viventes e o elemento histórico,
entendido com este termo o conjunto das instituições, dos processos de subjetivação
e das regras em que se concretizam as relações de poder. O objetivo de Foucault não
é, porém, como em Hegel, aquele de reconciliar os dois elementos. E nem o de
enfatizar o conflito entre eles. Trata-se para ele, antes, de investigar os modos
concretos em que as positividades (ou dispositivos) agem nas relações, nos
mecanismos e nos “jogos” de poder. (AGAMBEN, 2009, p. 32-33).

Este autor ressalta o caráter histórico dos dispositivos, como uma recusa de Foucault a
trabalhar com “os universais”: categorias universais ou gerais para abordar as temáticas na
busca de uma verdade unívoca sobre as coisas (VEYNE, 2011). A partir daí, Agamben (2009)
irá questionar-se sobre o contexto histórico originário do termo dispositivo, quando então
recorre à palavra oikonomia dos gregos.
Agamben (2009) ressalta que para responder seu questionamento teve que iniciar uma
genealogia teológica da economia. O termo oikonomia era utilizado pelos gregos, segundo o
autor, para designar uma práxis, uma atividade prática diante de um problema, de uma
determinada situação. Oikonomia designa, deste modo, a administração do oikos, da casa sendo utilizado também no sentido de gestão. O autor segue, então, afirmando que nos
primeiros séculos de história da Igreja Católica, este termo teve função importante para a
teologia.
Segundo Agamben (2009), o problema para a teologia cristã, neste início, dizia
respeito à Trindade, ou seja, como falar de um único Deus, se a tradição cristã evocava três
figuras divinas: o pai, o filho e o espírito santo? Dito de outro modo, os pensadores da Igreja
temiam reintroduzir na fé cristã o politeísmo e o paganismo, fato que seria inaceitável. A
solução encontrada pelos padres da Igreja foi recorrer à palavra oikonomia dos gregos. Nas
palavras de Agamben (2009, p. 36), teólogos como Tertuliano, Hipólito e Irineu, entre outros,
irão formular uma solução para este problema com uma sentença parecida com esta:
Deus, quanto ao seu ser e à sua substância, é, certamente, uno; mas quanto à sua
oikonomia, isto é, ao modo em que administra a sua casa, a sua vida e o mundo que
criou, é, ao contrário, tríplice. Como um bom pai pode confiar ao filho o
desenvolvimento de certas funções e de certas tarefas, sem por isso perder o seu
poder e a sua unidade, assim Deus confia a Cristo a “economia”, a administração e o
governo dos homens.

É com isto que “a oikonomia torna-se (...) o dispositivo mediante o qual o dogma
trinitário e a ideia de um governo divino providencial do mundo foram introduzidos na fé
cristã” (AGAMBEN, 2009, p. 37). Introduz-se, deste modo, uma economia da salvação para

117

os cristãos, uma forma de gerir e administrar as vidas dos homens de modo a conduzi-los ao
bem, conduzindo-os para a salvação. Porém, o principal efeito produzido por este uso do
termo, segundo Agamben (2009), diz respeito à fratura e uma cisão entre ontologia e práxis,
entre ser e ação, é aí que “a ação (a economia, mas também a política) não tem nenhum
fundamento no ser: esta é a esquizofrenia que a doutrina teológica da oikonomia deixa como
herança à cultura ocidental”.
Este autor afirma que nos textos dos teólogos cristãos escritos em latim, a palavra
oikonomia dos gregos fora traduzida como dispositio: é este termo em latim que sintetizará a
ideia de uma “oikonomia teológica” para os cristãos. Agamben (2009, p. 38) ressalta que é na
cisão entre ser e ação que os dispositivos, mencionados por Foucault, atuam sob herança da
teologia cristã:
O termo dispositivo nomeia aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura
atividade de governo sem nenhum fundamento no ser. Por isso os dispositivos
devem sempre implicar um processo de subjetivação, isto é, devem produzir o seu
sujeito.

É deste modo que este autor ressalta uma primazia dos dispositivos na
contemporaneidade, de uma pura oikonomia dos seres viventes. Os dispositivos multiplicamse sem, no entanto, afirma Agamben (2009), haver a produção de novos sujeitos, processos de
subjetivação dissociados dos processos de dessubjetivação, construindo simplesmente corpos
dóceis e administráveis, obedientes aos imperativos contemporâneos em todas as esferas da
vida: na saúde, na alimentação e nos desejos, ou seja, os aspectos mínimos do cotidiano são
comandados e administrados por dispositivos.
Este processo contemporâneo de subjetivação é colocado por Agamben (2009) como
sendo um eficaz mecanismo de reprodução do mesmo: corpos obedientes, dóceis e úteis.
Neste sentido, os dispositivos contemporâneos atuam criando uma subjetividade virtual
adequada ao governo das condutas, um homem comum. Cria-se um espectro a partir do qual
subjetividades podem ser forjadas, por isto o autor se refere a este homem comum, fabricado
pelos dispositivos contemporâneos, como um terrorista virtual, capaz de executar
instantaneamente os comandos e imperativos que lhes são propostos.
Para avançarmos na discussão, assinalamos os seguintes aspectos mencionados por
Agamben (2009), quanto aos dispositivos: a) os dispositivos são elementos históricos
circunscritos em contextos social, político e cultural específicos; b) estão relacionados a uma
economia das relações humanas, dispondo os homens de modo a conduzi-los a um bem; c) os
dispositivos produzem uma cisão entre o ser e a ação, de maneira que produzem corpos dóceis

118

e úteis, capazes de obedecer aos imperativos biopolíticos numa pura atividade de governo das
condutas.
Além disso, podemos citar, recorrendo a Foucault (1979, p. 245), que um dispositivo
se constitui como tal e permanece sendo-o quando participa de um duplo processo:
por um lado, processo de sobreterminação funcional, pois cada efeito, positivo ou
negativo, desejado ou não, estabelece uma relação de ressonância ou de contradição
com os outros, e exige uma rearticulação, um reajustamento dos elementos
heterogêneos que surgem dispersamente; por outro lado, processo de perpétuo
preenchimento estratégico.

A partir disto, podemos pensar, quanto aos assassinatos dos moradores de rua em
Maceió, que a entrada das drogas como explicação para este acontecimento torna-se um
potente dispositivo, a partir do qual discursos e práticas que num primeiro momento pareciam
díspares e contraditórios – de um lado, um discurso-prática que chama os moradores de rua de
criminosos envolvidos com drogas e furtos e, de outro, um outro que considera estes sujeitos
como sujeitos abandonados a situações de risco social por parte do Estado e das políticas
públicas – são chamados a se rearranjarem de modo tal que passam a coincidir, formando um
discurso coeso que reclama por uma intervenção política sobre as condições de vida dos
moradores de rua da capital.
É sobre a necessidade de um governo desses sujeitos, alavancada pelo dispositivo das
drogas, que estes discursos-práticas vão se alinhar, propondo ações de intervenção nas vidas
destes sujeitos. Portanto, torna-se importante situar que é a esta funcionalidade que o
dispositivo das drogas vai servir no acontecimento relacionado aos assassinatos dos
moradores de rua em Maceió.
É no campo histórico das relações de poder que podemos situar o aparecimento deste
dispositivo, que passa a dispor a vida destes sujeitos como elemento capital para uma
reordenação e um governo desta população. Trata-se de demarcar o aspecto relacionado à
construção histórica de uma demanda social para gerir as vidas destes sujeitos, a partir de uma
naturalização dos aspectos de risco aos quais foram abandonados.
Neste sentido, as drogas, diferentemente de serem tomadas como um aspecto
destacado do contexto histórico e político que aparecem para explicar estes assassinatos,
numa relação de causa-efeito, devem ser colocadas em análise do ponto de vista histórico e
das relações de força que a constituem como um problema ou um articulador de ações nas
atuais políticas públicas.

119

Partiremos então, para demarcarmos aspectos relacionados a esta análise, percorrendo
algumas das redes de práticas e discursos que se associam às drogas no atual cenário de
práticas e de discursos no Brasil.

6.3 O dispositivo das drogas e o morar nas ruas de Maceió
Em 6 de dezembro de 2010, a Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas) de
Maceió dá continuidade ao projeto Papo Cabeça, com o objetivo de “sensibilizar” os
moradores de rua para os perigos das drogas para suas vidas e viabilizar o tratamento de
dependência química destes sujeitos59. No mês seguinte, o promotor especial de Direitos
Humanos fala da necessidade de investir em tratamentos de dependência química para os
moradores de rua, inclusive contra a vontade destes sujeitos:
Segundo ele, a prevenção de novos crimes é “complexa” e envolve questões sociais
e sanitárias. Para o promotor, o mais importante agora é que o Estado financie com
eficiência o tratamento de dependentes químicos. “Os moradores de rua são pessoas
que estão em situação de risco social, e normalmente são dependentes químicos. O
estado precisa com urgência investir no tratamento involuntário desses viciados, já
que hoje se é feito para aqueles voluntários. Nem todo mundo que está no mundo
das drogas quer se tratar, já que é mais vantagem para ele continuar na droga. Tem
que entrar com uma medida de força, pois uma pessoa dessas está com suas
capacidades comprometidas”, destacou o promotor 60.

Algumas questões devem ser apontadas em relação ao trecho acima: a) ressalta-se o
fato dos moradores de rua estarem em risco social e serem dependentes químicos; b) a
necessidade de “tratamento involuntário desses viciados”, afirmando-se o fato de estarem
“com suas capacidades comprometidas”, portanto, sem condições de decidirem por si mesmos
sobre o fato de serem tratados ou não.
Frente a isto, o promotor também afirma que para um viciado é mais vantajoso
permanecer no uso de drogas, o que provaria sua incapacidade de decidir sobre se necessita
ou não de tratamento. Mas que vantagem seria esta? A de usar drogas ou de ser internado
involuntariamente para seu bem? Ou mesmo de ser assassinado, supostamente, por dívidas
com traficantes?
Para o promotor, o fato de serem incapazes de decidir sobre o seu bem – o tratamento
de dependência química – justificaria uma medida de força que viria a obrigar o tratamento
59

Conforme notícia do site da Prefeitura de Maceió, postada em 6 de dezembro de 2010, no seguinte link:
<http://maceio.id5.com.br/noticias/index.asp?vCod=13023&idioma=pt>.
60
Com este título, Após onda de assassinatos em 2010, AL já contabiliza quatro mortes de moradores de rua
este ano, a matéria foi publicada em 24 de janeiro de 2011 pelo UOL Notícia, no seguinte link:
<http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2011/01/24/apos-onda-de-assassinatos-em-2010-al-ja-contabiliza-quatromortes-de-moradores-de-rua-este-ano.jhtm>.

120

destes sujeitos, apesar de sua vontade contrária. Talvez seja isto que o promotor chama de
"complexo" na prevenção dos novos crimes, ressaltando o aspecto social e sanitário destas
medidas.
Em 31 de julho de 2006, no site da Prefeitura de Maceió, o Semas havia afirmado uma
dificuldade importante quanto às práticas de remoção destes sujeitos das ruas da capital
alagoana:
A falta da documentação impede a Semas de prestar apoio como a compra de
passagens para que essas famílias retornem aos municípios de origem.
Para tentar contornar o problema, a Semas por meio do Plantão Social mantém uma
parceria com o Instituto de Identificação para agilizar a expedição das carteiras de
identidade 61.

Além disso, em 6 de dezembro de 2010, o projeto Papo Cabeça ressalta a importância
das famílias para o processo de tratamento dos dependentes químicos que moram nas ruas e,
em uma de suas atividades, o Semas buscou localizar as famílias dos moradores de rua com a
finalidade de “resgatar” o vínculo entre estes sujeitos e suas respectivas famílias.
Com estas dificuldades de encontrar as famílias, de garantir a remoção destes sujeitos
das ruas de Maceió para as suas cidades de origem, as drogas aparecem de forma importante
para uma política de remoção involuntária destes sujeitos, através da justificativa de um
tratamento da dependência química. Aí está o aspecto sanitário da complexa rede de
prevenção que mencionou o procurador especial de Direitos Humanos.
Carvalho (2008) afirma que o que caracteriza um sistema repressivo é a prática de
violências arbitrárias de forma duradoura ao longo da história. No entanto, argumenta que
com a emergência dos direitos humanos houve uma retaliação destas práticas em nome dos
princípios humanitários, apenas sendo possível em governos ditatoriais num regime de
exceção.
Notório, porém, que desde a solidificação da crítica criminológica restou clara a
cisão entre as funções declaradas e as funções reais exercidas pelas agências penais,
notadamente a partir da publicação de Vigiar e Punir. O discurso liberal de estar o
direito penal voltado ao respeito da legalidade e da igualdade, na tutela dos
principais interesses e valores da sociedade (bens jurídicos), ficou localizado no
plano das funções declaradas, pois a beligerância continuou sendo a constância do
sistema repressivo (função real), ou seja, a justificativa de excepcionalidade da
violência institucional restou permanente. Desta forma, a retórica humanista acabou
adquirindo papel dissimulador à programação autoritária. (CARVALHO, 2008, p.
166).

61

Matéria
Semas
discute
remoção
de
moradores
de
<http://maceio.id5.com.br/noticias/index.asp?vCod=3581&idioma=pt>.

rua,

disponível

no

link:

121

Este autor afirma que é a partir de uma retórica dos direitos humanos, preocupada com
a tutela dos interesses e valores da sociedade, que a violência institucional permanece como
uma prática permanente destinada a certos sujeitos. É, portanto, através de um discurso de
garantia de direitos que práticas de violência institucionalizadas tornam-se eficazes e
permanentes, mas agora sob a premissa de um bem público e social, como também para a
vida do sujeito.
Carvalho (2008) ressalta que através de uma guerra declarada às drogas, um inimigo é
forjado e, sobre este, o direito se coloca em suspensão, de modo tal que práticas de violação
dos direitos constitucionais de sujeitos envolvidos com drogas são efetivadas num regime de
exceção. Estas práticas seriam possíveis, entre outras coisas, pelo fato de que o bem social
resultado seria maior que o prejuízo individual efetivado por estas práticas.
Referindo-se aos negros libertos do sistema escravista no Brasil, Batista (1996, p. 307)
afirma que para a ideologia higienista “esses pobres insistiam em manter ‘hábitos
condenáveis’ na sua maneira de morar, vestir, trabalhar, se divertir e curar”, portanto,
deveriam ser banidos. Estes sujeitos pertencentes às chamadas classes perigosas, segundo a
autora, deveriam ser eliminados “para abrir caminho ao progresso e à civilização”.
Como figuras estigmatizadas de um mal social, os pobres e os negros, pertencentes às
classes perigosas, eram uma ameaça à saúde pública e à vida civilizada. Então, sobre estes
emergiria um discurso higienista “despolitizado”, “mecanismo de civilização”, “suporte
ideológico para a ‘ação saneadora” (BATISTA, 1996, p. 306). Para Chalhoub (1996, p. 35)
isto implica numa “despolitização da realidade histórica, a legitimização apriorística das
decisões quanto às políticas públicas a serem aplicadas no meio urbano”, sendo assim, “o que
se procura, na prática, é fazer política deslegitimando o lugar da política na história”.
Chalhoub (1996) ressalta que os discursos higienistas têm uma força de verdade
importante para a manutenção de práticas de exclusão, mas diferentemente das práticas
violentas do período escravista, os higienistas agiam em nome de uma verdade produzida nos
meios acadêmicos, portanto, numa pretensa neutralidade e cientificidade que levaria à
civilização.
Não é de se estranhar a contemporaneidade dessa lógica higienista abordada por
Chalhoub, como afirma Batista (1996, p. 307): “Chalhoub revela como ninguém a torturante
contemporaneidade daquela virada de século”. É sobre a continuidade destas práticas na

122

política que podemos pensar nossa atualidade sobre os assassinatos dos moradores de rua em
Maceió.
As drogas são um dispositivo que articula práticas e discursos da academia, do direito
e da política de forma competente, carregando consigo uma história de mortes, exclusão e
marginalização de subjetividades, de costumes e de culturas tão diversas.
Batista (2003) ressalta que agora o inimigo público se torna o traficante armado, e
através de uma demonização das drogas e uma disseminação do medo e da insegurança diante
de um Estado corrupto e ineficaz, as massas urbanas brasileiras tornam-se clamantes por
atitudes de linchamento e de demonstração de força contra estes malditos.
Mas é sobre um discurso de garantia de direitos e de um bem social e individual aos
moradores de rua em Maceió que se justifica uma efetiva prática de institucionalização, pois
uma vez envolvidos com as drogas estes sujeitos deixam de ser um corpo dócil, ao dirigir seu
consumo às drogas, e passam a ser alvos de um massacre que retira destes a possibilidade de
consumir outros bens, outros valores civilizatórios socialmente aceitáveis.
Longe de afirmarmos uma posição que legitimaria o uso de drogas, o que estamos
fazendo é deslocar a questão para uma racionalidade biopolítica, na qual a vida torna-se um
bem de consumo, administrável e necessário ao exercício do poder. Deste modo, estamos
comprometidos muito mais com um estranhamento destas questões do que com uma defesa
destes sujeitos, dos direitos humanos ou mesmo do uso que fazem de drogas.
Portanto, ressaltamos que as drogas aparecem nesse cenário como um dispositivo que,
de um lado, articula práticas de proteção de uma vida passível de governo, de um corpo dócil,
e, de outro, estabelece uma exposição à morte e à exclusão de uma vida que se coloca como
ingovernável, fora do eixo de um consumo civilizado. Nesta ambiguidade, queremos ressaltar
que o aspecto histórico nos permite a construção de uma crítica destas práticas, na tentativa de
forjarmos novas formas de governo a partir das quais a vida é tomada como uma potência de
reinvenção para as nossas atuais formas de viver e de fazer política, não simplesmente como
um capital a ser governado pelas regras do consumo.
É neste sentido que a lógica de garantia de direitos deve ser problematizada, pois
como afirmam Coimbra, Lobo e Nascimento (2009, s.p.):
O mundo burguês nos faz acreditar nas qualidades da “era dos direitos”,
desqualificando tudo o que a precedeu e colocando como marco desses direitos a
Revolução Francesa de 1789. Ou seja, o nosso presente no mundo ocidental – a
partir de certos parâmetros valorativos – julga e hierarquiza as diferentes histórias

123

dos povos, inclusive a nossa própria história em tudo que antecedeu àquela época
como sendo não civilizado.

Para estas autoras, é importante pensar o humano e o direito como invenções históricas
que vão se transformando através das práticas sociais, e pensarmos também, a forma como
estes vão inventando, ao longo da história, objetos, subjetividades e saberes sobre estes.
O direito e a humanidade precisam diferentemente e, por isso mesmo, afirmar a vida
em toda a sua potência de criação. A desnaturalização dos conceitos de direito e do
que é humano implica em um desafio permanente para todos nós no sentido de
inventar novas práticas, novos mundos e novos desafios. Afirmamos, portanto, a
processualidade dos direitos como conquista datada historicamente e do humano
como permanente criação de si e de modos de viver. Assim também, é preciso
estranhar a crença em conceitos abstratos e transcendentes dos direitos, do humano,
da liberdade, igualdade e fraternidade. Esta é a forma radical, a partir das
experiências de cada um de nós na coletividade, na imanência das nossas práticas e
das lutas no tempo histórico, de problematizar direitos que vão sendo forjados, uma
humanidade que vai se construindo, e a liberdade, a igualdade e a fraternidade que
não são valores que pairam acima e além das vicissitudes da história. (COIMBRA;
LOBO; NASCIMENTO, 2009, s.p.).

Sobre isto ressaltamos que tanto quanto a luta pela garantia de direitos, torna-se
importante pensarmos quais direitos e quais liberdades queremos. Neste sentido, podemos
pensar também que estes direitos e liberdades são diversos, conforme os desejos dos sujeitos,
por isto, o que se coloca como fundamental em nossa sociedade, neste caso, é a gestão dessas
desigualdades enumeradas pela vontade de muitos e circunscritas num determinado momento
da história política e social.
É por esta via que Coimbra, Lobo e Nascimento (2009, s.p.) afirmam a necessidade de
reativarmos o aspecto ético e não o jurídico das nossas relações, ou seja, a importância de, ao
invés de acessarmos os códigos de lei como o único bem para balizar nossas ações,
exercitarmos no cotidiano a capacidade criativa da vida, de nossa humanidade, “sem nos
deixar seduzir por uma ordem imposta como necessária à paz e à segurança, e nos deixar
admoestados pela ameaça das sanções da lei”. É por esta via da criação e da invenção de
novas formas de viver que somos chamados a exercer nossa liberdade enquanto sujeitos.

6.4 Moradores de rua e o “resgate” de uma humanidade
Ao que pudemos demarcar até agora, as investidas das práticas-discursos que se
inserem como resposta aos assassinatos de moradores de rua em Maceió apontam a
importância de reforma e de uma requalificação das vidas dos moradores de rua. Estas
respostas ressaltam o aspecto marginal e ambíguo da vida destes sujeitos, afirmando a

124

necessidade de uma transformação em suas vidas para devolver-lhes dignidade de moradia, de
saúde, de educação, de profissionalização, entre outros.
A requalificação dos espaços urbanos das ruas não é abordada por estas respostas
como uma via de transformação desta realidade, a não ser através da remoção dessas pessoas
das ruas e sua institucionalização, seja em ambientes de tratamento à dependência química ou
albergues para passarem a noite, e até mesmo através de um “resgate” dos vínculos familiares.
As ruas são abordadas como lugares de perigo, por nelas habitarem sujeitos potencialmente
perigosos à circulação dos citadinos.
Com a modernidade e o surgimento das ciências humanas, a concepção de humano é
forjada a partir da ideia de que o homem pode ser fabricado e conduzido através de práticas
pedagógicas e/ou punitivas, entre outras. Estas práticas irão mostrar sua força através do
resultado das mudanças que são possíveis nas vidas dos sujeitos (FOUCAULT, 2010, 2008).
E é através de um investimento em práticas individualizantes que serão efetivadas, dando
consistência a um discurso psicológico sobre a autonomia dos sujeitos, que deve ser obtida
pelas práticas de governo das condutas.
Esta racionalidade biopolítica, gestada ao longo da nossa contemporânea
modernidade, irá investir numa multiplicação de instituições e lugares que servirão a este
objetivo, bem como numa proliferação de profissões e de saberes que se ocuparão da
fabricação de sujeitos habilitados a gerar riqueza e um excedente de vida para o consumo nos
sistemas de governo capitalistas. Daí a importância de uma vida útil e disposta ao consumo de
bens em nossa civilização (RUIZ, 2012a).
Diante disto, gostaríamos de nos deter no aspecto de reforma ou de requalificação das
vidas dos sujeitos como uma forma de lidar com o humano nas tecnologias biopolíticas
contemporâneas.
Agamben (2007), no livro O aberto, faz uma genealogia da concepção de humano
moderna percorrendo textos científicos, obras literárias e artísticas de diferentes épocas. Em
meio a isto, este autor se refere a uma máquina antropológica, responsável pela produção do
homem numa diferenciação entre este e os animais, entre este e um não-humano. Para
Agamben (2007), esta oposição é condição para a construção do humano, atuando de forma
tal que se cria um dentro e um fora excludentes, criando uma zona de indeterminação entre o
humano e o não-humano. Por tanto, “el hombre no tiene ninguna identidad específica,

125

excepto la de poder reconocerse” (AGAMBEN, 2007, p. 57): é a partir de sua capacidade de
reconhecer a si mesmo e de diferenciar-se que o homem se produz.
Em outros termos, Agamben (2007) afirma que a produção do homem na máquina
antropológica moderna ocorre por uma operação de separação ou exclusão do não-humano no
interior da própria humanidade. Deste modo, o não-humano é pensado pelo autor como algo
inerente à condição de ser humano, e, portanto, a relação entre estes é de negação,
estabelecida num regime de exceção constante através da exclusão do não-humano. A partir
daí, o humano e o não-humano habitam um terreno único na engrenagem desta máquina.
Tenemos así la máquina antropológica de los modernos. Ella funciona – lo hemos
visto – excluyendo de sí como no (todavía) humano un ya humano, esto es,
animalizando lo humano, aislando lo no-humano en el hombre: Homo alalus, o
hombre-simio. Es suficiente desplazar algunos decenios nuestra investigación y, en
vez de este inocuo hallazgo paleontológico, tendremos el judío, esto es, el nohombre producido en el hombre, o el néomort y el ultra-comatoso, esto es, el animal
aislado en el mismo cuerpo humano. (AGAMBEN, 2007, p. 75).

Este autor se referirá, também, às crianças selvagens encontradas na Europa no final
do século XIX, ao escravo, ao bárbaro e ao estrangeiro “como figuras de um animal com
formas humanas” (AGAMBEN, 2007, p. 76). Neste sentido, Agamben (2007) nos aponta a
forma como a máquina antropológica moderna funciona através de uma animalização do
humano, diferentemente da máquina antropológica dos antigos, que teria seu funcionamento
voltado para a inclusão de algo que foi posto fora da civilização, como por exemplo, as
crianças selvagens através de práticas pedagógicas, bem como os escravos e os bárbaros.
Ambas as máquinas pueden funcionar tan sólo instituyendo en su centro una zona
de indiferencia en la que debe producirse – como un missing link siempre faltante
porque ya virtualmente presente – la articulación entre lo humano y lo animal, el
hombre y el no-hombre, el hablante y el viviente. Como todo espacio de excepción,
esta zona está en verdad perfectamente vacía, y lo verdaderamente humano que
debe producirse es tan sólo el lugar de una decisión incesantemente actualizada, en
la que las cesuras y sua rearticulaciones están siempre de nuevo deslocalizadas y
desplazadas. Lo que debería obtenerse así no es, de todos modos, una vida animal
ni una vida humana, sino sólo una vida separada y excluída de si misma, tan sólo
una vida desnuda. (AGAMBEN, 2007, p. 76).

Agamben (2007) nos aponta que a máquina antropológica moderna funcionará na
produção de um homem que tem sua vida desnudada, disposta a ser reformada e produzida
através do governo de suas condutas e de seus comportamentos, numa oikonomia de suas
vidas. Neste sentido, a vida que os antigos afastaram da política e a relegaram ao ambiente
privado de uma economia “doméstica” passa a ser central para a política moderna, a partir das
tecnologias biopolíticas.
A base da democracia moderna, diz Agamben, não é o homem livre, “com suas
prerrogativas e os seus estatutos, e nem ao menos simplesmente o homo, mas o

126

corpus é o novo sujeito da política” (2004: 129-130). É a reivindicação e a
exposição desse corpo que marca a ascensão da vida nua como o novo corpo político
moderno – “são os corpos matáveis dos súditos que formam o novo corpo político
do Ocidente” (Agamben, 2004: 131). (ROSA, 2007, p. 4).

Portanto, ao animalizar o homem, ao tornar seu corpo biológico como fonte de poder e
de governo das condutas, a política contemporânea inscreve uma ambiguidade a partir da qual
um corpus é produzido em cada ser vivente, ou seja, é produzido “um ser bifronte, portador
tanto da sujeição ao poder soberano quanto das liberdades individuais” (AGAMBEN, 2010, p.
121). Deste modo, podemos pensar as contemporâneas discussões sobre a decisão acerca da
continuidade da vida de pacientes em estado vegetativo ou ultra-comatosos e, também, em
outras situações em que sujeitos perdem, por alguma razão (o uso prolongado de drogas, por
exemplo), suas capacidades de produção, o aspecto útil do seu corpo no que diz respeito ao
governo de suas condutas.
Ao considerarmos a produção dessa vida nua – que agora habita o corpo biológico de
todo vivente (AGAMBEN, 2010) –, fabricada pela máquina antropológica moderna, estamos
nos referindo à vida como um elemento central da política contemporânea. Podemos dizer que
é sobre a zona de indiferença apontada por Agamben (2007), entre o humano e o não-humano,
que as drogas irão atuar como um dispositivo de subjetivação, constituindo subjetividades e
fazendo interagir sobre elas uma série de saberes e de decisões que intervirão sobre as vidas
dos moradores de rua em Maceió, mas também sobre nossas vidas, através do governo dos
comportamentos.
No entanto, os assassinatos de moradores de rua em Maceió deixam entrever uma
realidade historicamente construída, a partir da qual uma periculosidade é forjada numa
associação destes sujeitos e das ruas às drogas e à morte. As ruas são inscritas como lugares
perigosos para uma vida digna, tornando-se uma vitrine de exposição da vida ao assassínio e a
sua completa exposição à violência. Portanto, como um espaço urbano que deve ser
desocupado e evitado, as ruas são tomadas como lugares de exceção e de uma decisão sobre
vida e morte. Nas ruas, todos são suspeitos em potencial: a vida nua a habita.
Sob o signo da vulnerabilidade e de uma exposição ao risco das ruas, a vida de seus
moradores é facilmente capturada por práticas-discursos de tutela que visam reorientar seus
destinos, numa tentativa de devolver-lhes dignidade e “resgatar” uma humanidade perdida nos
diversos abandonos e violências que os acometeram.
É sobre esta via que a ideia de garantir direitos se instaura sobre suas vidas, como uma
medida efetiva que visa alterar as condições sociais em que vivem. É através do tratamento da

127

dependência química, da remoção destes sujeitos das ruas da cidade que estas mudanças são
pensadas. Ou seja, trata-se de inserir nos discursos-práticas ações de reforma, de restauração e
de reabilitação nas vidas dos moradores de rua em Maceió.
É a partir dos assassinatos de moradores de rua que esta questão da vulnerabilidade é
acusada, tornando necessária uma atuação que vise à garantia de direitos. Ao mesmo tempo, é
neste mesmo momento que a ambiguidade relacionada às suas formas de viver é ativada pelos
discursos do direito e criminal: quando aparecem em vulnerabilidade, diante da possibilidade
de um assassínio e das condições “não-dignas” em que vivem, o “resgate” de suas
humanidades e dignidades, corroídas pela história de exclusão em que foram inscritos como
sujeitos, torna-se necessária.
Ao mencionarmos o racismo de estado relacionado às pessoas que moram em áreas
consideradas vulneráveis, como as favelas, Vianna e Neves (2011) recorrem ao mito da
periculosidade, presente nas políticas de repressão às drogas. Para estas autoras,
por serem pobres, são perigosos; se ainda não fizeram algo efetivamente suspeito, a
condição de pobreza indica que há uma predisposição latente para tal esperando
apenas o momento propício para se manifestar. Há de se suspeitar sempre dos
pobres, e por isso, há de se exercer o controle sobre estes. [...], trata-se de uma
questão de Estado, e a condição de pobreza converte-se em uma espécie de fundo
causal permanente, que concorre para a produção do anormal, daquele a quem falta
humanidade e por isso não pode ser considerado (e tratado) como humano.
(VIANNA; NEVES, 2011, p. 34).

Segundo as autoras, as ações de repressão e de tutela dos sujeitos envolvidos com as
drogas aparecem, principalmente, quando as drogas são tomadas como um inimigo da
sociedade civilizada – que deve ser livre de vícios imorais e degradantes. Portanto, este
quadro irá se acirrar a partir do momento em que este inimigo é associado à pobreza.
Embora a pobreza seja abordada nos discursos-práticas higienistas e eugênicos como
um potente agravador de processos de degenerescência, há uma pobreza que merece maior
atenção e cautela por parte destes: os pobres que não trabalham e que não têm uma “família
estruturada” nos moldes burgueses (BATISTA, 2003; COIMBRA, 2001). Conforme Coimbra
(2001), os pobres trabalhadores e com famílias de pai e mãe, trabalhadores e saudáveis, eram
menos preocupantes para a ordem social; já aqueles que não trabalhavam e dedicavam-se ao
ócio, passando o tempo pelas ruas, eram considerados vagabundos e um potente foco de
vícios e de degeneração que deveria ser combatido pela polícia. Seriam sujeitos suspeitos, que
poderiam ser presos por vagabundagem.

128

Conforme Coimbra e Nascimento (2005), em meio a estes discursos, os pobres
deveriam ser controlados de modo que viesse a prevenir uma desordem social futura; é aí que
as crianças e os jovens em situação de perigo se tornam alvo de políticas de controle
permanente, pois estes poderão integrar futuramente as temidas classes perigosas.
Neste sentido, o que estas autoras chamam de controle de virtualidades aparece como
um motor das políticas públicas que intervirão sobre estes sujeitos, pois é interferindo neste
momento de suas vidas (a infância e a juventude) que se esperam resultados efetivos
relacionados à transformação desta virtualidade. Portanto, “o controle não se fará apenas em
cima do que se é, do que se fez, mas principalmente sobre o que se poderá vir a ser, do que se
poderá vir a fazer, sobre as virtualidades” (Coimbra; Nascimento, 2005, s.p.).
As práticas de reabilitação que intervirão sobre as vidas destes sujeitos visam instaurar
uma nova relação desses sujeitos consigo e com o mundo, através de uma transformação
daquilo que eles podem se tornar: vagabundos, perigosos e criminosos. É sobre esta
virtualidade que estas práticas irão fortalecer uma rede de ações sobre estes sujeitos.
Quanto aos moradores de rua, que podem morrer devido à prática de furtos, brigas ou
envolvimento com traficantes – em alguma escala, estas práticas acabam sendo relacionadas
às drogas –, o que se espera é dar longevidade e inserir estes sujeitos numa outra lógica de
trabalho, de moradia, de família que garantiriam a estes sujeitos uma vida digna e útil para o
consumo de outros hábitos, outros costumes e outros produtos socialmente qualificados pelo
mercado capitalista. Ao serem capturados nestas práticas-discursos, busca-se, de certo modo,
um extermínio de subjetividades indesejadas, de modos de viver que poriam em risco uma
civilização de costumes e hábitos socialmente aceitos. E o foco destas ações seria a
erradicação de subjetividades que possam estar relacionadas ao possível risco da vida nas ruas
e da sorte de vícios que consiste em viver nelas.

129

7 PRODUÇÃO DE MORTES E AS ESTRATÉGIAS DE GOVERNO NAS POLÍTICAS
PÚBLICAS PARA A POPULAÇÃO DE RUA EM MACEIÓ

Os assassinatos de moradores de rua em Maceió ganharam repercussão nas mídias,
assim como outras mortes são noticiadas constantemente nos meios de comunicação. Esta
veiculação tem produzido diversos efeitos nas vidas de quem vive nas cidades, desde um
medo generalizado da violência e dos espaços públicos até uma banalização da morte como
algo natural da vida nas grandes cidades (BATISTA, 2003). Além disso, Batista (2003)
afirma que o medo da violência nas cidades tem se postulado como um importante articulador
das políticas públicas, ou de ações em nome do bem social, ao longo da história do Brasil.
Esta autora defende em sua tese o fato de que os massacres da população indígena
brasileira, as práticas de extermínio de negros e de pobres no Brasil foram práticas desde
sempre aceitáveis no trato com estes sujeitos que, em certa medida, ameaçavam os planos
eugênicos de um povo civilizado para o país. E, principalmente, que estas práticas foram
sustentadas através de uma política de medo em relação ao que estas populações
representavam em termos de contágio de doenças físicas e morais, acusando um atraso no
desenvolvimento civilizado do Brasil, caso viessem a se multiplicar pela população brasileira.
Pois bem, a morte de certos sujeitos tornou-se algo abordado de forma natural nas
cidades. Natural e, por vezes, necessária para a manutenção de uma ordem social. No entanto,
nos assassinatos de moradores de rua em Maceió, é importante ressaltar a forma como ganha
repercussão nas mídias e nas políticas públicas, apesar de serem sujeitos que são comumente
indesejados às cidades, pois espalham pelas ruas uma série de hábitos e costumes
insuportáveis à vida civilizada, através de seus odores, suas vestes e vícios como o roubo, o
furto, as drogas.
Estes assassinatos passam a incomodar não simplesmente por ocorrerem nas ruas, mas
devido ao número expressivo de mortes (quando comparado ao total da população de rua que
vive em Maceió) que fora produzido nesse contexto. É pelo número de moradores de rua
assassinados em Maceió que se produz uma série de medidas, de discussões e de denúncias
nos órgãos de defesa dos direitos humanos, ganhando ampla divulgação nos meios midiáticos.
Em ofício de 17 de junho de 2011, enviado à Procuradoria Geral de Justiça do Estado,
a Comissão de Direitos Humanos da OAB em Alagoas comunica sua apreensão com os
assassinatos de moradores de rua em Maceió, pedindo que medidas efetivas sejam adotadas:

130

A comissão de Direitos Humanos da OAB/AL, juntamente com o Comitê
Intersetorial de Acompanhamento, Monitoramento e Apoio à População em
Situação de Rua em Maceió, estão apreensivos com os assassinatos de 12 (doze)
Moradores em Situação de Rua praticados até o mês de maio do corrente ano na
cidade de Maceió, conforme documento em anexo. Tememos ainda, que a não
elucidação desses crimes em tempo hábil, que é o tempo definido em Lei, possa
estimular a impunidade, e, portanto, a prática de mais crimes contra essa
população vulnerável, repetindo assim, o que ocorreu no ano de 2010. 62 [grifo do
autor]

Além disso, segundo o Jornal da Cidade em 2010,
Outro fato curioso: as seguidas mortes de moradores de rua só despertaram o
interesse da polícia em julho deste ano, quando foi registrada a décima quarta morte.
Um delegado, por conta própria, começou a apurar a existência de justiceiros que
queriam limpar a cidade.63

Portanto, o número de assassínios contra essa população é o que de certo modo produz
sua visibilidade nos espaços midiáticos e para as políticas públicas. Algo que pode ser
percebido ao longo das matérias de jornais em 2011, que vão numerando ordinalmente os
assassinatos conforme ocorrem pela cidade, ou, por vezes, apenas se referindo a “mais um
morador de rua assassinado”, “mais uma morte de morador de rua em Maceió”.
Neste capítulo, iremos problematizar duas temáticas construídas ao longo da
dissertação sobre os assassinatos dos moradores de rua em Maceió: a produção de mortes
(mortalidade) nas cidades e as estratégias de governo para a população de rua na capital de
Alagoas.
Sobre a produção de mortes, abordaremos aspectos relacionados à forma como as
mortes tornam-se um espetáculo midiático em nossa contemporaneidade e, em seguida, a
forma como a morte se torna um desafio para as tecnologias do biopoder. Quanto às
estratégias de governo elaboradas para a população de rua em Maceió, nos deteremos sobre o
documento do Comitê Intersetorial e Inclusivo de Ações e Metas para a População em
Situação de Rua para os anos 2011 e 2012, cedido pela Comissão de Direitos Humanos da
OAB em Alagoas. A partir deste documento buscaremos problematizar as ações de governo
sugeridas para esta população, a lógica de garantia de direitos que atravessam as práticas
sugeridas e, por fim, aspectos relacionados à ocupação do tempo e dos espaços numa garantia
de controle dos corpos, da circulação destes sujeitos pela cidade.

62

Ver matéria na íntegra no link: <http://2008.jornaldacidade.net/2008/noticia.php?id=83701>. Matéria com o
título de Massacre em Maceió, publicada em 19 de novembro de 2010 no site de notícias do Jornal da Cidade, de
Sergipe.
63
Idem.

131

7.1 A morte como um espetáculo midiático e um desafio ao poder
Nos últimos anos, com os avanços dos meios de comunicação através da internet, as
mídias de jornais, sites de notícias e as televisões têm se especializado na cobertura ao vivo e
in loco de uma série de acontecimentos, entre estes, aqueles relacionados a mortes e
assassinatos de pessoas. Isto pode também ser atribuído ao crescente aumento de câmeras de
vigilância tanto em estabelecimentos privados como nos espaços urbanos das ruas.
Quando não televisionados

por câmeras

de segurança ou de redes

de

telecomunicações, são descritos em textos jornalísticos com ricos detalhes que exploram
desde o sofrimento da vítima a uma ressignificação dos fatos, abordando-os como um
problema social relacionado à segurança pública (MELO, 2010). É o caso de agressões e
assassinatos de homossexuais nas ruas das cidades; o caso da menina Eloá em São Paulo,
transmitido ao vivo por algumas redes de comunicação; o caso do menino João Hélio
arrastado pelas ruas até a morte, após um assalto; assassinatos em série em escolas tanto no
Brasil como nos Estados Unidos, com transmissão simultânea nas redes televisivas; e até
mesmo o episódio de 11 de setembro, das torres gêmeas nos Estados Unidos.
Tais transmissões garantem um elevado número de telespectadores que assistem em
tempo real a um show de cobertura jornalística do assassínio de pessoas. Neste sentido, a
morte televisionada se torna, entre outras coisas, um produto a ser consumido pelos
espectadores, uma imagem em movimento do que está acontecendo aqui e agora em algum
lugar do mundo. Esta imagem, produto de consumo, movimenta capital e sentimentos, dispara
sentidos sobre o viver e sobre o morrer, constitui uma história que vai se agregando a nossa
vida, construindo uma história social do que somos.
É a partir de uma assunção da questão social relacionada a estes acontecimentos que
estas mortes ganham relevância para a vida e se tornam publicáveis nas mídias (MELO,
2010). O mesmo pode ser afirmado quanto aos assassinatos dos moradores de rua em Maceió,
no entanto, ainda é importante interrogarmo-nos como tais sujeitos ganham essa visibilidade?
Em que momento seus assassinatos se tornam uma questão social relevante para serem
noticiados, passando a ocupar o cenário político?
Se na antiguidade a morte era algo que deveria ser remetido a rituais religiosos e a
uma sacralidade que referendava o poder divino ou soberano, agora podemos dizer que a
morte tornou-se o signo do fracasso de um poder que vacila em manter a vida a salvo de
riscos e de condições degradantes de sobrevivência. Talvez seja essa a questão social que

132

esteja presente nos assassinatos dos moradores de rua em Maceió. Do mesmo modo, estas
mortes que ganham repercussão através das mídias são inseridas numa rotina de práticas e de
discursos que visam questionar as formas contemporâneas de proteção e de maximização da
vida. Portanto, é a própria vida que é colocada em jogo na cena da morte dos outros.
Como mencionado ao longo da dissertação, é a vida pregressa dos sujeitos
assassinados nas ruas que é tomada como parâmetro para indicar uma causalidade, os riscos e
as vulnerabilidades produtores destas mortes no âmbito social. Também é sobre as vidas dos
(sobre)viventes que as medidas e ações políticas irão intervir para evitar que voltem a
acontecer com a mesma frequência.
Ora, agora o poder é cada vez menos o direito de fazer morrer e cada vez mais o
direito de intervir para fazer viver, e na maneira de viver, e no “como” da vida, a
partir do momento em que, portanto, o poder intervém sobretudo nesse nível para
aumentar a vida, para controlar seus acidentes, suas eventualidades, suas
deficiências, daí por diante a morte, como termo da vida, é evidentemente o termo, o
limite, a extremidade do poder. Ela está do lado de fora, em relação ao poder: é o
que cai fora de seu domínio, e sobre o que o poder só terá domínio de modo geral,
global, estatístico. Isso sobre o que o poder tem domínio não é a morte, é a
mortalidade. E, nessa medida, é normal que a morte, agora, passe para o âmbito do
privado e do que há de mais privado. (FOUCAULT, 1999, p. 295-296).

Foucault (1999) ressalta que, com a mudança do poder soberano para o biopoder a
morte é ressignificada na modernidade, tornando-se algo que deve ser escondido, pois é algo
vergonhoso. Segundo o filósofo, a racionalidade do poder soberano dava à morte um
significado de passagem de um poder soberano terreno para outro poder soberano do além.
Do mesmo modo, esta questão da morte é um ponto importante para pensar a gênese do poder
em Foucault, pois ao afirmar que “o poder já não conhece a morte” (FOUCAULT, 1999, p.
296), está-se afirmando o caráter criativo e produtivo do poder. Nestes termos, a morte é o
limite inevitável ao poder, uma vez que com ela a vida – elemento originário do poder
(AGAMBEN, 2010) – cessa. Como algo inevitável, a morte faz escapar ao poder, no entanto,
é através dos domínios biopolíticos que se produz um poder não sobre a morte, mas sobre a
mortalidade, como um elemento a ser governado no corte biopolítico que separa os sujeitos
em coletividades nas populações.
Portanto, vida e morte tornam-se elementos de governo através de um corte biopolítico
nas populações humanas: a partir da natalidade e da mortalidade, como domínios estatísticos,
o poder produz vida e morte passíveis de governo, num regime de utilidade para o
desempenho das funções sociais. Por isto, Foucault (2008) afirma que o biopoder vai se
ocupar da vida para aumentá-la, para maximizá-la como um bem útil, destinando-a ao melhor
que se pode extrair dela.

133

Ao tornar a morte um evento midiático de interesse social, o que está em jogo é a
própria vida da população. Nestas coberturas midiáticas, o espetáculo de imagens cria uma
realidade sobre a qual os sujeitos são chamados a participarem atribuindo sentidos, compondo
uma história coletiva e particular dos eventos, colocando-se em jogo na cena co-produzida
pelos meios de comunicação.
Nestes eventos, é o valor da vida que é posto em destaque, a morte torna-se um
espetáculo na medida em que produz uma cena em que os sujeitos se produzem e a produzem
conjuntamente. Como afirma Fahri Neto (2007, p. 19), sobre a forma como o espetáculo se
torna, na contemporaneidade, uma importante forma de governo nas populações, “o
indivíduo, pela incorporação da vigilância, se torna o agente de seu próprio assujeitamento”.
Portanto, é atuando sobre a virtualidade dos comportamentos individuais, tendo o indivíduo
como elemento a partir do qual o governo das condutas se torna possível, que o espetáculo irá
se efetivar como um importante instrumento biopolítico.
O espetáculo pode ser considerado uma forma de exercício de poder biopolítico; e a
biopolítica, um instrumento do espetáculo do capitalismo, para a construção de uma
sociedade segura, em que prevalecem os cálculos utilitários, em que a percepção da
felicidade se aproxima da percepção da segurança – um tipo de felicidade utilitária
em que o sentimento de segurança deve ultrapassar a soma de todos os outros
sentimentos opostos, nenhum dos quais é, por si só, realmente intolerável. (FAHRI
NETO, 2007, p. 21).

Podemos considerar, então, que na contemporaneidade vida e morte não são elementos
puramente naturais, mas resultados de uma racionalidade de poder produzidos no cálculo
biopolítico. São produtos de relações de poder, inseridos numa rotina de práticas e saberes
tomados, de modo geral, nos domínios estatísticos que criam um ambiente sobre o qual é
possível manipular variáveis para o governo das virtualidades em uma população.
O espetáculo midiático, por sua vez, cria condições para gerir a vida, considerada
como algo natural, ao mostrar uma situação inevitável de morte em que a realidade é
acompanhada com simultaneidade e realismo evidentes: num evento que culmina com a
morte de alguém, não há como dizer que não aconteceu, há uma materialidade dos fatos que
ganha força de verdade, naturalizando-a.
Para Foucault (1999), o exercício do poder é possível através da produção de
verdades, ao sermos submetidos ao poder somos também submetidos a produzir verdades, por
meio das quais o poder é exercido. Assim, verdade e poder caminham de mãos dadas nos
processos de subjetivação e de governo.

134

7.1.1 Onde há vida, há poder
Em suas obras, Foucault (1988, p. 104-105) assinala que o poder é produtivo e “que lá
onde há poder há resistência”. Então, ao apoiar e ter na vida seu caráter estratégico, o poder a
investe em seus cálculos, no sentido de um rearranjo das relações de força para a construção
de estratégias de governo das populações. É, portanto, a partir da resistência nas relações de
poder que as estratégias de governo da vida são forjadas. A vida e a sua proteção tornou-se
fundamental ao poder. Como afirma Pelbart (2011, p. 13), “a defesa da vida tornou-se um
lugar-comum. [...], a vida mesma tornou-se um capital, senão ‘o’ capital por excelência, de
que todos, e qualquer um, dispõem, virtualmente, com consequências políticas a determinar”.
Na contemporaneidade a vida emerge como um bem inalienável do direito, devendo
ser protegida e maximizada para uma produção eficiente de capital, investida por uma
economia política (FOUCAULT, 2008; CARVALHO, 2008).
É neste cenário biopolítico que os assassinatos de moradores de rua são tomados como
uma questão social que põe em xeque este poder, pois como conceber que um poder que visa
à produção de condições plenas à vida, produza também o assassínio de sujeitos ao relegá-los
a condições inóspitas de sobrevivência e por último a condições de morte e extermínio? Ora,
Foucault (1999) afirma que
O poder não para de questionar, de nos questionar; não para de inquirir, de registrar;
ele institucionaliza a busca de verdade, ele a profissionaliza, ele a recompensa.
Temos de produzir a verdade como, afinal de contas, temos de produzir riquezas, e
temos de produzir a verdade para produzir riquezas. E, de outro lado, somos
igualmente submetidos à verdade, no sentido de que a verdade é a norma; é o
discurso verdadeiro, que, ao menos em parte, decide; ele veicula, ele próprio
propulsa efeitos de poder. Afinal de contas, somos julgados, condenados,
classificados, obrigados a tarefas, destinados a uma certa maneira de viver ou a uma
certa maneira de morrer, em função de discursos verdadeiros, que trazem consigo
efeitos específicos de poder. (FOUCAULT, 1999, p. 29).

A produção de verdades em inquéritos policiais e a veiculação destas verdades nas
mídias são, portanto, formas de exercício de poder que decidem, classificam, condenam e
destinam de modo naturalizado, para certos sujeitos, formas de viver e de morrer. Este poder,
que questiona a si mesmo e a nós constantemente na busca de uma verdade originária sobre o
que somos e desejamos, irá se encontrar diante não da morte, mas dos seus efeitos de poder
através dos dados estatísticos, dos cálculos e registros que foram efetivados pelos domínios de
saber contemporâneos.
É através da mortalidade produzida nos cálculos biopolíticos das mortes de sujeitos de
uma determinada população que o poder irá se questionar e produzir uma outra economia de

135

forças, que não seja a do extermínio anunciado para estes sujeitos. A morte, como limite ao
poder e fragilidade da vida, irá aparecer como um desafio para as tecnologias biopolíticas, na
medida em que este poder é posto em dúvida como defensor da vida e de seu pleno
desenvolvimento.
Agamben (2008), ao se referir ao extermínio de judeus no campo de concentração de
Auschwitz, afirma que a morte “é a simples possibilidade da impossibilidade de todo
comportamento e de toda existência”; nesta medida, no campo a morte torna-se impossível:
“o ser da morte está interditado e os homens não morrem, mas são produzidos como
cadáveres” (AGAMBEN, 2008, p. 81). O conceito de campo para este autor é fundamental
para pensar a biopolítica contemporânea:
O campo é, de fato, o lugar em que desaparece radicalmente toda distinção entre
próprio e impróprio, entre possível e impossível. [...] E assim como, no ser-para-amorte, o homem se apropria autenticamente do inautêntico, assim também, no
campo, os deportados existem cotidiana e anonimamente para a morte. [...], e os
homens vivem cada instante, faticamente, para a sua morte. Isso significa que, em
Auschwitz, não se pode distinguir entre a morte e o simples desaparecimento, entre
o morrer e “o ser liquidado”. “Quando se é livre – escreve Améry, pensando em
Heidegger – é possível pensar na morte sem forçosamente pensar no morrer, sem
estar angustiado pelo morrer”. No campo, isso é impossível. E não é porque – como
parece sugerir Améry – o pensamento sobre os modos de morrer (por injeção de
fenol, por gás ou por golpes) tornasse supérfluo o pensamento sobre a morte como
tal. Mas sim porque onde o pensamento da morte foi materialmente realizado, onde
a morte “era trivial, burocrática e cotidiana”, tanto a morte como o morrer, tanto o
morrer como os seus modos, tanto a morte como a fabricação de cadáveres se
tornam indiscerníveis. (AGAMBEN, 2008, p. 82).

O campo, portanto, configura-se como um lugar a partir do qual a morte se torna
rotina, tanto quanto a produção de cadáveres. Para este autor, o campo é o espaço biopolítico
no qual se opera um vazio jurídico que naturaliza a morte de alguns sujeitos, produzindo-a
como uma pura manifestação de violência que se coloca fora do direito, no entanto, não se
situa numa exterioridade ao direito, ao contrário, o constitui em sua interioridade.
Quando uma vida não se normaliza segundo a forma como o direito impõe, poderá
ser catalogada como vida perigosa. Nesse caso, sofrerá uma suspensão do direito
que irremediavelmente a colocará numa forma de exceção e, consequentemente, em
algum tipo de campo. (RUIZ, 2012b, p. 14).

Ruiz (2012b), numa (re)leitura do texto de Agamben, irá propor a senzala como “a
primeira experiência jurídico-política de campo”, assim “as vidas ali confinadas encontram-se
capturadas num fora do direito. Nela, o único direito que existe é o da vontade soberana do
feitor” (p. 17). Nestas premissas o campo irá se configurar como um espaço em que “a
exceção se tornou a regra, [e] a vida existe como mera vida natural” (RUIZ, 2012b, p. 18).

136

Podemos dizer que as ruas e o viver nelas, também constituem estes espaços urbanos
minimamente como lugares nos quais impera uma incerteza quanto à continuidade da vida.
Deste modo, as ruas são tomadas como perigosas, ao associá-las a uma ilegalidade de
práticas, ligando-as ao crime e a um regime de exceção sobre o qual a vida é exposta à
violência soberana de qualquer um. A morte de moradores de rua em Maceió efetiva-se a
partir da constituição de um campo biopolítico, no qual as vidas desses sujeitos é
transformada em “mais uma”, em um número que se somará às estatísticas de segurança
pública, numa simples produção de cadáveres, em que se torna indiscernível a forma como
morreram e a morte em si.
Podemos pensar, nestes termos, que as mortes desses sujeitos e a forma como
morreram se confundem com uma mera produção de cadáveres de sujeitos sem história,
anônimos ou no mínimo com algum apelido engraçado. São humanos sem cidadania, sujeitos
que foram produzidos numa relação de exceção com um poder soberano que não cansou em
mostrar sua força de morte.
Ruiz (2012b), ao se referir às últimas guerras do século XX e as demais do século
XXI, que, segundo o autor, foram motivadas por uma defesa dos direitos humanos, mas
defendiam interesses econômicos e políticos, afirma que:
Para compensar as tragédias humanitárias provocadas pela Organização do Tratado
do Atlântico Norte (Otan) e pelos Estados Unidos no Iraque, Kuwait, Afeganistão,
Líbia, etc., são convocadas organizações humanitárias. Elas devem dar assistência às
populações atingidas e minimizar os custos políticos das barbáries humanas. Nos
campos de refugiados vigora formalmente o direito que protege a vida humana
enquanto vida nua, mas neles se negam os direitos políticos das pessoas ali
encerradas para agir reforçando a sua condição de meros seres humanos sem direitos
de cidadania reconhecidos por algum Estado-nação. Na condição de seres humanos
e sem direitos de cidadania, os habitantes dos campos de refugiados encontram-se
numa condição de exceção no campo. De fato, eles estão obrigados a circular dentro
do campo, com normas restritas de comportamento, sem direitos básicos de
cidadania. (RUIZ, 2012b, p. 12).

Tal qual os campos de refugiados nos países de guerra, mencionados por Ruiz
(2012b), os moradores de rua também podem circular pelo seu campo, as ruas, mas sem
direitos básicos de cidadania e relegados a uma sorte de ações que podem praticar contra eles.
Trata-se de vida humana, mas ao mesmo tempo de sujeitos que estão fora do direito, da
cidadania.
Segundo dados do Relatório Consolidado sobre as mortes de moradores de rua na
cidade de Maceió-AL, elaborado pelo Ministério Público do Estado e publicado no Diário
Oficial em 13 de julho de 2012, em 2010 e 2011 foram registrados 65 assassinatos de

137

moradores de rua na capital do Estado, sendo que 37 deles tiveram o inquérito policial
concluído e, destes, 19 foram concluídos mas sem autoria delitiva; além disso, 23 assassinatos
não foram concluídos e sobre 5 não constavam informações quanto à instauração de inquérito
policial, como podemos visualizar na tabela abaixo, elaborada através do que fora apresentado
pelo Ministério Público a partir dos dados da Polícia Civil.

TABELA 1
Inquéritos policiais (IP)
relacionados aos assassinatos de moradores de rua em 2010-2011
ANDAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL

IP em números

IP CONCLUÍDOS SEM AUTORIA

19

IP CONCLUÍDOS COM AUTORIA

18

IP SEM CONCLUSÃO

23

SEM INFORMAÇÃO DE INSTAURAÇÃO de IP

05

TOTAL GERAL

65

Fonte: Adaptada do Relatório Consolidado sobre as mortes de moradores de rua de Maceió-AL,
elaborado pelo Ministério Público do Estado de Alagoas.

Ainda sobre dados do Relatório Consolidado, os meios para as execuções destes
homicídios foram os seguintes: 37 foram efetivados com o emprego de arma de fogo; 15
homicídios por espancamento; 7 homicídios por meio de arma branca; um caso por
afogamento, um por estrangulamento, um por enforcamento, um efetivado com fogo, um
homicídio por apedrejamento e um com causa não identificada.
As drogas são a principal causa apontada no relatório da polícia civil para estes
assassinatos. Conforme o relatório do Ministério Público do Estado, os moradores de rua
assassinados em Maceió tinham envolvimento com drogas e outros delitos, e seus
assassinatos foram efetuados visando acertos de conta, motivados por desentendimentos e
apostas de jogo.

138

No que se refere à possibilidade de grupos de extermínio, o relatório aponta que nos
casos concluídos apenas dois assassinatos têm essa característica, no entanto, não descarta a
existência de grupos de extermínio nos outros inquéritos policiais ainda não concluídos. O
relatório aponta que o que dificulta a elucidação dos casos em aberto é o silêncio imposto às
testemunhas das mortes, que por medo se calam. Além disso, é mencionada a incapacidade
estrutural e de pessoal da Polícia Civil para que os casos sejam elucidados.
Nos casos já solucionados, com identificação dos autores materiais dos crimes de
homicídios, inclusive, com ação penal instaurada, a motivação é diversifica,
apresentando algumas vítimas envolvimento com crimes graves, a exemplo de
homicídios e roubo. No entanto, destacamos que se tornou evidente a
vulnerabilidade das vítimas pela questão social, na condição de morador de rua,
principalmente pela crescente violência na capital alagoana. (MINISTÉRIO
PÚBLICO ESTADUAL, 2012, p. 79).

A partir destes dados podemos considerar que há uma naturalização de que a condição
de morar nas ruas seja uma questão social de vulnerabilidade e que as ruas produzem essa
exposição à morte dos sujeitos que se arriscam a viver nelas. Neste contexto, as ruas de
Maceió tornaram-se lugares de risco à vida, de exposição à vulnerabilidade, à morte e toda
sorte de ilícitos.
Em razão da não localização de familiares de 10 (dez) vítimas, bem como por não
portarem documentos de identificação civil, sendo conhecidas apenas por apelidos,
suas identidades ainda não foram descortinadas, não sendo esclarecidas as cautelas
legais adotadas pela autoridade policial e pela perícia técnica, quando do
sepultamento das vítimas, com o fim de coletar dados de prova, como fotografias e
material para exame de DNA, posteriormente.
Observa-se, ainda, que em alguns casos, as vítimas foram reconhecidas no IML,
porém no SISPOL está como desconhecida. (MINISTÉRIO PÚBLICO
ESTADUAL, 2012, p. 79).

A morte desses sujeitos que moram nas ruas produzem cadáveres em série, num
anonimato considerável, tais mortes são tomadas em uma impossibilidade de uma
reconstrução de uma identidade, de uma história de vida dos sujeitos, restando apenas seus
corpos, seus cadáveres, como prova da existência de uma vida infame.
Em matéria do site de notícias Tudo na Hora, com o título de Em 2 anos, 80
moradores de rua foram mortos em Maceió; Justiça não descarta grupo de extermínio,
publicada em 13 de julho de 2012 sobre o relatório do Ministério público, acima mencionado,
os assassinatos de moradores de rua chega ao número de 80, entre 2010 e 2012, sendo 16
assassinatos registrados até aquela data em 2012. Destacam ainda a seguinte passagem do
relatório:
O fato de algumas [vítimas] serem portadoras de doença mental, as quais após
serem abandonadas a própria sorte pela família e pelo poder público, passam a
morar na rua, oportunidade que praticam pequenos delitos, principalmente contra o

139

patrimônio, para a própria sobrevivência ou para manutenção do vício de drogas,
principalmente o crack, uma vez que se tornam alvo fácil dos traficantes de drogas.
Dessa foram, não se torna apenas um problema de segurança pública, mas social e
de saúde pública, que precisa ser considerado pelas autoridades competentes.
((MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL, 2012, p. 79, grifo dos autores).

No trecho acima a situação dos moradores de rua é deslocada de uma questão criminal
ou de segurança pública simplesmente para ser relacionada a outra, social e de saúde pública,
implicando medidas diversas das criminais. A partir daí, estes acontecimentos pelas ruas de
Maceió requerem um envolvimento das políticas públicas de saúde e social para um proteção
de suas vidas e para a retirada destes sujeitos das condições de vulnerabilidade associadas ao
viver pelas ruas da cidade.
Anterior a estes dados oficiais, ainda em 7 de novembro de 2010, o UOL Notícias
publicou uma matéria com o título de Após 30 assassinatos, moradores de rua de Maceió
dormem em árvore e em porta de delegacia para fugir da violência, na qual assinala a
situação de medo em que viviam alguns moradores de rua, após a onda de assassinatos
anunciada:

O desempregado José André da Silva, 29 anos, adotou uma maneira inusitada [para
se sentir mais seguro]: construiu uma casa de madeira e lona em cima de uma árvore
no mirante de Santa Terezinha, ponto movimentado do bairro do Farol, no centro da
capital alagoana.
O desempregado também não acredita na existência de um grupo de extermínio e
disse que sente mais seguro - e confortável - em cima da árvore, onde mora desde
junho. “Todos os [moradores de rua] que morreram deviam alguma coisa. Seja por
drogas, roubo ou agressões. Quem fica longe disso tudo sobrevive. É a lei das ruas”,
disse.
O local onde André mora foi montado com tábuas achadas na rua e coberto por
lonas. “Aqui além de seguro, não levo chuva”, afirmou.
Para fugir da violência, outros moradores de rua mudaram a rotina e estão dormindo
na porta das delegacias durante a semana. A entrada da delegacia de Homicídios,
localizada no conjunto Santo Eduardo, é a preferida dos moradores de rua.

140

"Esta semana dormiram oito moradores de rua na porta da delegacia. Eles disseram
aos meus policiais que se sentiam mais protegidos lá", contou a delegada de
Homicídios de Maceió, Rebeca Gusmão.64

A forma como estas mortes são desenhadas pelas ruas mobiliza também ações por
parte desses sujeitos em vulnerabilidade que, na busca de proteção, procuram lugares em que
podem se sentir seguros; as ruas, neste sentido, tornam-se campos de experiências biopolíticas
para estes sujeitos.
As mortes produzidas nesse campo são capturadas pelos registros, relatórios e
documentos de segurança pública, tornando-se números que se configuram numa relação de
exceção em relação a suas vidas, através de seu abandono pelas ruas. Vidas humanas, mas
desprovidas de qualquer direito, escapam à cidadania de quem vive na polis.
Em notícia divulgada pelo site da Prefeitura de Maceió em 28 de fevereiro de 2011,
com o título de Direitos Humanos, os moradores de rua da capital alagoana teriam facilitada a
emissão de documentos, tais como a certidão de nascimento e a carteira de identidade, com a
justificativa de que esta “é uma ação muito importante, pois sem o registro civil ou identidade,
fica difícil para esse cidadão ter seus direitos assegurados”65. É a partir dessas ações, como
veremos a seguir, que as práticas de garantia de direitos irão de efetivar em relação aos
moradores de rua em Maceió.
Estas mortes produzidas no interior das cidades podem ser relacionadas com uma
racionalidade de poder sobre a vida, presente em nossa contemporaneidade e apontada por
Foucault (2008) em um de seus cursos no Collége de France. No curso Segurança, Território,
População, Foucault (2008) irá, inicialmente, percorrer a economia política contemporânea
apontando uma mudança de um dispositivo disciplinar para outro de segurança, no qual
haverá uma naturalização dos fenômenos sociais como necessários à vida da cidade.
De maneira geral, a questão que se coloca será a de saber como, no fundo, manter
um tipo de criminalidade, ou seja, o roubo, dentro de limites que sejam social e
economicamente aceitáveis e em torno de uma média que vai ser considerada,
digamos, ótima para o funcionamento social dado. (FOUCAULT, 2008, p. 8).

Deste modo, a relação que irá se estabelecer entre os acontecimentos e o novo
dispositivo de segurança será mantê-los numa frequência aceitável, já que economicamente
seria custoso, talvez indesejável, cessá-los em absoluto. Deste modo, a criminalidade será
inserida em cálculos de custos, a partir dos quais se manteria em um nível aceitável de
64

Para acesso a matéria na integra ver o link: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2010/11/07/apos-30assassinatos-moradores-de-rua-de-maceio-dormem-em-arvore-e-em-porta-de-delegacia-para-fugir-daviolencia.jhtm>.
65
Matéria na íntegra no seguinte link: <http://maceio.id5.com.br/noticias/index.asp?vCod=13577&idioma=pt>.

141

manifestação, referidos a uma certa individualidade que não atingiria a população, ao
contrário, se manteria ao nível individual da vida de determinados sujeitos.
Como já mencionado, anteriormente aos assassinatos de moradores de rua
denunciados pelos órgãos competentes e amplamente divulgados pelas mídias a partir de
julho de 2010, estes existiam e aconteciam com alguma regularidade, no entanto, é a partir do
momento em que tomam uma proporção estatística importante, diante do número geral de
moradores de rua que habitam Maceió, que estas mortes serão tomadas como uma questão
política relevante. É a partir do momento em que passam a atingir esta população, e não
somente alguns sujeitos, que estes assassinatos aparecem no cenário político como uma
preocupação sobre as formas como estão expostos a uma vulnerabilidade social e ao risco de
morte.
Com o aumento populacional nas cidades, segundo Foucault (2008), irá surgir uma
questão importante para a racionalidade biopolítica relacionada ao controle eficiente dos
fluxos, da intensidade de circulação das coisas e das pessoas pelas cidades: “em outras
palavras, tratava-se de organizar a circulação, de eliminar o que era perigoso nela, de separar
a boa circulação da má, (de) maximizar a boa circulação diminuindo a má” (FOUCAULT,
2008, p. 24).
O dispositivo de segurança, mencionado por Foucault (2008), terá consequências e um
funcionamento diferente do disciplinar, criando e atuando sobre um meio dado, naturalizado
por índices estatísticos e por um cálculo de custos.
A disciplina trabalha num espaço vazio, artificial, que vai ser inteiramente
construído. Já a segurança vai se apoiar em certo número de dados materiais. Ela vai
trabalhar, é claro, com a disposição do espaço, com o escoamento das águas, com as
ilhas, com o ar, etc. logo ela trabalha sobre algo dado. (Em segundo lugar,) não se
trata, para ela, de reconstruir esse dado de tal modo que se atingisse um ponto de
perfeição, como numa cidade disciplinar. Trata-se simplesmente de maximizar os
elementos positivos, de poder circular da melhor maneira possível, e de minimizar,
ao contrário, o que é risco e inconveniente, como o roubo, as doenças, sabendo
perfeitamente que nunca serão suprimidos. (FOUCAULT, 2008, p. 25-26).

Portanto, no dispositivo de segurança não está em jogo um cessar dos roubos, das
doenças ou de assassinatos, mas de mantê-los numa frequência conveniente, de modo tal que
não representem um risco para a população geral. Trata-se de mantê-los na esfera individual,
ao trabalhar com probabilidades, não com aquilo que o autor chama de um nível de perfeição
que os anule por completo.
Neste sentido, as cidades irão produzir uma série de acontecimentos que serão tratados
como naturais, segundo Foucault (2008, p. 28), “o que vai se procurar atingir por esse meio é

142

precisamente o ponto em que uma série de acontecimentos, que esses indivíduos, populações
e grupos produzem, interfere com acontecimentos de tipo quase natural que se produzem ao
redor deles”. Foucault (2008) ressalta que é a partir daí que as cidades se tornam um espaço
de produção biopolítica de um “meio natural” no qual o humano é produzido como espécie.
Mais adiante, este autor se referirá ao surgimento da economia política, do homo
oeconomicus, a partir da qual os dispositivos de segurança funcionarão em uma lógica de
laisser-passer, ou seja, um deixar andar das coisas, pois elas naturalmente se rearranjariam.
Nestes termos, é preciso deixar morrer, adoecer, roubarem, etc, para que assim possa se
produzir uma realidade, associada ao risco, sobre a qual as tecnologias biopolíticas irão
intervir no nível da população, produzindo e reconduzindo a cidade em seus fluxos.
Já o dispositivo de segurança, como vocês viram, deixa fazer (laisser faire). Não é
que deixa fazer tudo, mas há um nível em que o laisser-faire é indispensável. Deixar
os preços subirem, deixar a escassez se estabelecer, deixar as pessoas passarem
fome, para não deixar que certa coisa se faça, a saber, instalar-se o flagelo geral da
escassez alimentar. (...). A segurança tem por função apoiar-se nos detalhes que não
vão ser valorizados como bons ou ruins em si, que vão ser tomados como processos
necessários, inevitáveis, como processos naturais no sentido lato, e vai se apoiar
nesses detalhes que são o que são, mas que não vão ser considerados pertinentes,
para obter algo que, em si, será considerado pertinente por se situar no nível da
população. (FOUCAULT, 2008, p. 60).

Neste contexto que podemos afirmar que declarações como as que virão a seguir,
veiculadas no site da Prefeitura de Maceió, são pensadas numa lógica que visa minimizar ou
aliviar a situação dos moradores de rua, em uma certa naturalização de seus assassinatos e de
suas condições, como algo que pode ser alterado, mas que permanecerá acontecendo em
algum nível. Nas matérias veiculadas no site da Prefeitura, podemos mencionar os seguintes
trechos nos quais se afirma que o “Semas discute plano para aliviar situação de moradores de
rua”66, ou, sobre as ações do Projeto Acolher Cidadão, que “a ideia do projeto prevê atingir a
pelo menos 120 famílias que esmolam na capital para, em conjunto com o Ministério Público
e a Delegacia da Criança e do Adolescente, encontrar uma forma de minimizar o problema”67,
ou ainda quando o secretário da Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas) afirma
que “precisamos do apoio de todos e vamos trabalhar em conjunto, de forma contínua e
permanente, para tentar minimizar a situação de pobreza e mendicância, principalmente no

66

Titulo de matéria veiculada no site da Prefeitura de Maceió em 11 de outubro de 2010. Para ler na íntegra,
acessar o link a seguir: <http://maceio.id5.com.br/noticias/index.asp?vCod=12680&idioma=pt>.
67
Matéria veiculada ao site da Prefeitura de Maceió, com o título de Projeto Acolher Cidadão começa
levantamento de mendigos, na data de 25 de julho de 2006. Para ler na íntegra acessar o seguinte link:
<http://maceio.id5.com.br/noticias/index.asp?vCod=3536&idioma=pt>.

143

período natalino, em que muitas pessoas chegam de outras cidades para pedir esmolas em
Maceió”68.
Pois bem, é esta racionalidade de governo que se torna presente na forma como as
cidades serão administradas através das tecnologias biopolíticas, entre elas o que Foucault
(2008) chama de dispositivo de segurança.

7.2 “Questão de polícia, não. Questão de estado, de políticas públicas.”
Para o promotor, nem todos os moradores de rua mortos estavam envolvidos com
crime. "São pessoas que foram esquecidas pela sociedade e pelo poder público.
Claro que muitas das vítimas tinham envolvimento com drogas, e por isso praticava
pequenos furtos. Mas a responsabilidade disso é a ausência de políticas públicas
para essas pessoas", completou.69

A declaração acima aponta-nos a responsabilidade do “poder público” quanto aos
assassinatos de moradores de rua em Maceió, devido à ausência de políticas públicas para
esses sujeitos. Ao que podemos pensar, esta ausência produziu condições de vulnerabilidade
importantes para estes sujeitos que vivem nas ruas da cidade, remetendo-os ao abandono, a
partir do qual se tornam alvos das drogas e de práticas de delitos.
Neste sentido, as situações de vulnerabilidade e desigualdade social, produzidas no
âmbito da economia capitalista, aparecem como importantes para o desenvolvimento de
políticas

públicas

sociais

que

visam

minimizá-las

(HÖFLING,

2001;

CRUZ;

SCHIEFFERDECKER, 2011). Portanto, tais condições imprimem uma demanda por políticas
públicas, constituindo um campo sobre o qual irão desempenhar função relevante sobre a vida
destes sujeitos.
Neste contexto, representantes dos direitos humanos, militantes e profissionais da
Assistência Social de Maceió irão afirmar a relevância das políticas públicas sociais para o
enfrentamento da situação dos moradores de rua na cidade. A partir disto, ressaltam que “o
morador de rua não é uma questão de polícia e sim uma questão de estado, de políticas

68

Ver a nota 63.
Matéria publicada pelo Uol Notícias em 19 de novembro de 2010, com o título de Secretário descarta ação de
grupos de extermínio e diz que mortes de moradores de rua em AL são "criminosos se matando". Matéria na
íntegra no seguinte link: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2010/11/19/secretario-descarta-acao-de-grupos-deexterminio-e-diz-que-mortes-de-moradores-de-rua-em-al-sao-criminosos-se-matando.jhtm>.
69

144

públicas”70. É neste viés que as políticas públicas encontram palco para sua atuação, visando a
garantia de direitos para esta população.
O CEDECA ZUMBI DOS PALMARES71 manifesta aqui este apelo: que a
sociedade civil e o poder público, em parceria com demais órgãos do sistema de
garantia de direitos, especialmente do direito à segurança envidem os melhores
esforços no sentido de apurar os crimes de morte cometidos contra 32 moradores de
rua da cidade de Maceió, abraçando com PRIORIDADE ABSOLUTA essa
vergonhosa situação visando à aplicação da Justiça, da qual frutifica a PAZ. 72

Então, podemos assinalar o cenário sobre o qual intervirão ações, planos e projetos
sociais relacionados a políticas públicas para os moradores de rua em Maceió. Criou-se um
cenário relevante destinado a estas intervenções, bem como à constituição de uma demanda
para que estas sejam efetivadas, no sentido de reformar e restaurar as condições de vida dos
moradores de rua da capital alagoana.
Conforme Moraes e Nascimento (2002), a multidão73 produz demandas, desejos e vida
como uma forma de resistência ao poder, no entanto, este aprendeu a controlá-los, “ou seja, o
sistema capitalista já não produz, mas reproduz, utiliza, trabalha aquilo que a multidão, em
seu movimento de vida e transformação, inventa, cria, transforma, destrói” (p. 96). Neste
sentido, as demandas formuladas pelos movimentos sociais, pela multidão, são intrínsecas às
relações de poder, funcionando como instrumentos das tecnologias biopolíticas. Neste
sentido, os autores afirmam que:
é bom lembrar que as redes e mecanismos de poder começaram a investir, com
intensidade cada vez maior, no controle da vida e da sua produção; (...)
paralelamente, a multidão buscou cada vez mais liberdade de manifestação e
controle dessa produção de vida, daí resistir tão intensamente à normatização do
cotidiano. Disso resulta que a sociedade de controle coloca um dilema fundamental
para a multidão: a vida é transformada tanto em objeto de produção e de resistência
quanto num instrumento de intervenção e produção do poder. Esse dilema

70

Trecho de matéria veiculada pelo site Melhor Notícia em 25 de novembro de 2010, com o título de Defesa
Social debate abordagem a moradores de rua, que pode ser encontrada na íntegra através do seguinte link:
<http://www.melhornoticia.com.br/index/?head=noticia.mht&node=mn31382>.
71
O CEDECA em Alagoas é o Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente Zumbi dos Palmares,
conforme o site, “é uma entidade civil sem fins lucrativos, cujo objetivo fundamental é a proteção jurídicosocial de crianças e adolescentes no Estado de Alagoas, cumprindo uma das linhas de atuação da política de
atendimento art.87, V do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90).” Mais informações podem ser
encontradas com o seguinte link: <http://www.cedeca.al.org.br/>.
72
Este trecho faz parte de nota do CEDECA Zumbi dos Palmares sobre os assassinatos de moradores de rua em
Maceió, veiculado pelo site do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo em 20 de novembro de 2010. Pode ser
visitado através do link: <http://www.torturanuncamais-sp.org/site/index.php/noticias/354--moradores-de-ruaassassinados-em-maceio-eram-meninos-de-rua-na-decada-de-1990>.
73
Segundo os autores, o conceito de multidão é utilizado por autores de tradição operaísta italiana e se refere a
“uma unidade de luta composta pela fragmentação da classe [proletária], pela diversificação dos atores sociais e
pela afirmação da diferença, emergida das lutas contra a sociedade disciplinar que desembocaram nos atuais
movimentos contra a globalização e o capitalismo financeiro. (...). Por multidão, por outro lado, os autores
entendem a multiplicidade das relações sociais calcadas na heterogeneidade, na criação e na força da imanência.”
(MORAES; NASCIMENTO, 2002, p. 93-94).

145

fundamental da nossa era deve estar sempre em mente, para compreendermos como
o risco é operado em nossa sociedade. (MORAES; NASCIMENTO, 2002, p. 97).

Estes autores ressaltam que o risco para a vida torna-se um duplo perigo: a) para a
multidão, pois não tolera as violências contra a vida; b) para o capitalismo, porque com a
cessação da vida o lucro é ameaçado, pois é sustentado pela reprodução e pela utilização da
produção de vida da multidão. Neste sentido, afirmam que “o fim do fluxo da vida deve ser
evitado a qualquer custo. Os órgãos sociais começam a se interessar pelos perigos que
ameaçam a vida, a criação e a mobilidade” (MORAES; NASCIMENTO, 2002, p. 98).
Diante desse contexto, a multidão afirma sua busca pela vida e pela promoção de um
certo tipo de vida pelo poder, na qual as pessoas começam a vigiar e a controlar os
seus hábitos, avaliando-os constantemente quanto aos perigos para o futuro e para o
seu corpo, num controle intensamente individual e autovigilante. As reivindicações
coletivas em prol da vida são intensificadas por uma série ilimitada de pequenos
hábitos, atitudes e posicionamentos ético-políticos que devem ser assumidos
individualmente ou, no máximo, familiarmente, pelas pessoas. Ora, com a idéia de
que “cada um deve fazer a sua parte”, o controle dos riscos vai assumindo
importância fundamental como poder de autovigilância e como mecanismo de
interferência nos hábitos das pessoas “pelo seu próprio bem”, “pela sua própria
vida”. Além disso, trata-se de um poder que, apesar de operar em nome do todo,
desmobiliza as atitudes coletivas contra os riscos, salvo aquelas levadas a cabo por
organizações pontuais que buscam intervir exatamente nos hábitos das pessoas, ou,
em outras palavras, exercer poder sobre os outros. (MORAES; NASCIMENTO,
2002, p. 99-100).

Mas o que as políticas públicas podem fazer para amenizar, aliviar ou minimizar estas
condições de vulnerabilidade nas quais os moradores de rua vivem? Que poder é este que faz
destas condições uma potente aliada para uma mudança deste quadro social? Buscaremos
abordar tais perguntas através da análise de alguns aspectos abordados pelo Plano Intersetorial
e Inclusivo de Ações e Metas para a População em Situação de Rua para o biênio 2011-2012,
elaborado pelo Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política
Municipal para a População em Situação de Rua, ativado pelo Decreto Municipal de número
7.199.

7.2.1 Planos, ações e metas: um espaço de reforma da vida dos outros
O Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal
para a População em Situação de Rua de Maceió foi instaurado em 18 de novembro de 2010
por decreto municipal, como uma forma de enfrentamento dos assassinatos de moradores de
rua na cidade. Segundo o decreto, trata-se de um importante serviço público que não terá
remuneração para aqueles que participarão dele. O Comitê Intersetorial é formado por 11
membros titulares e 10 suplentes, com representantes de secretarias municipais, entidades da

146

sociedade civil e dos moradores de rua. Este tem por funções: sugerir ações, projetos e
programas para a população que vive nas ruas; acompanhar e monitorar a efetivação da
política municipal para esse segmento social; propor medidas que assegurem a articulação
intersetorial relacionadas às políticas públicas; e deliberar sobre a maneira como serão
conduzidos os seus trabalhos.
O Comitê Intersetorial é integrado pelas secretarias municipais do Trabalho,
Abastecimento e Economia Solidária (Semtabes); de Direitos Humanos, Segurança
Comunitária e Cidadania (Semdisc); da Saúde (SMS); de Assistência Social (Semas); e de
Esporte e Lazer (Semel); além de representantes da sociedade civil recomendados pela OAB,
Arquidiocese de Maceió, pelo Projeto Erê e pela Pastoral dos Moradores de Rua, contando
ainda com dois representantes da população em situação de rua em Maceió. A convite,
também poderão participar das atividades do Comitê: gestores, especialistas e outros
representantes da população de rua.
Uma das importantes ações efetivadas pelo Comitê Intersetorial foi a elaboração do
Plano Intersetorial e Inclusivo de Ações e Metas para a População em Situação de Rua para o
biênio 2011-2012. Este plano fora entregue à Prefeitura de Maceió em 22 de junho de 2011,
trazendo sete eixos temáticos com medidas estratégicas de inclusão social, cidadania e
proteção para a população de rua da cidade. Os eixos e suas respectivas ações podem ser
visualizados na Tabela 2.
Tabela 2
EIXOS TEMÁTICOS
I – Trabalho e geração de renda

II – Direito, cidadania e assistência social

AÇÕES
 Inserção em programas de qualificação
profissional (Inclusão Digital);
 Inserção no mercado de trabalho (formalizar
parcerias com entes privados e públicos na
construção civil);
 Geração de renda (inserção em empreendimentos
econômicos e solidários – cooperativas).
 Emissão de documentos civis (estabelecer com os
parceiros fluxos para retirada de documentos);
 Assistência jurídica (intermediar junto a
Defensoria Pública, OAB e MP);
 Inclusão em programas sociais (levantamento da
PR que não está incluída no cadastro único, promover
palestras
informativas
visando
conhecimento e a acessibilidade de serviços
oferecidos);
 Estimular a organização do movimento da
População em Situação de Rua (propiciar o
fortalecimento coletivo através de oficinas,
reuniões, palestras, etc).

147

III – Saúde

IV – Segurança Alimentar

V – Educação, esporte, lazer e cultura

VI – Habitação

VII – Abordagem social

 Garantir o acesso aos serviços de saúde à
População de Rua (PSF – sem domicílio, emitir
cartão do SUS para essa população através de
equipes de consultório de rua, definir unidades de
saúde como referência para essa população,
próximo ao local de maior concentração, qualificar
profissionais para atendimento específico a esse
público e efetivar articulação com os serviços de
urgência e emergência SAMU – HGE – MiniPronto Socorro e Maternidades).
 Garantir o acesso à alimentação à população de
rua atendida pela rede sócio-assistencial
(viabilizar o fortalecimento de alimentação para o
público assistido, monitorar os serviços alimentares
no Albergue).
 Construir um projeto educacional voltado para
a População de Rua (divulgar junto à população
ofertas
dos
programas
educacionais
de
alfabetização de jovens e adultos – e implantar
turmas de alfabetização);
 Desenvolver atividades educacionais, esportivas,
culturais e de lazer nos espaços existentes.
 Inserção em programas de habitação de
interesse social (cadastramento das famílias e
indivíduos em Programas de Habitação Popular,
- destinação de percentual de unidades
habitacionais para a PR).
 Implementação dos serviços especializados em
abordagem de rua (contratação provisória de
educadores sociais para ampliação da equipe,
realização de concurso para educadores sociais e
capacitação dos educadores);
 Construir o processo de inclusão social das
famílias e indivíduos em Situação de Rua
(possibilitar condições de acesso à rede de serviços
e benefícios sócio-assistenciais e demais políticas
públicas, e elaborar um cronograma anual para
realização de ações integradas de abordagem social
tomando como referência o mapeamento dos locais
de grande concentração de indivíduos e famílias).

Fonte: Tabela 2 elaborada com base em documento referente ao Plano Intersetorial e Inclusivo, cedido
pela OAB/AL.

Na Tabela 2 podemos ver descritos sete eixos temáticos para as ações descortinadas
pelo Plano Intersetorial e Inclusivo, são eles: I – Trabalho e geração de renda; II – Direito,
cidadania e assistência social; III – Saúde; IV – Segurança Alimentar; V – Educação, esporte,
lazer e cultura; VI – Habitação; e VII – Abordagem social. Estes eixos visam garantir direitos
constitucionais às pessoas que vivem nas ruas, através de um investimento em aspectos
relevantes de suas vidas, como por exemplo: o lazer, o trabalho, a saúde, a educação, a
habitação, entre outros. Neste capítulo, destacaremos dois aspectos: 1) ocupação do tempo e
dos espaços urbanos; e 2) ações relacionadas à garantia de cidadania e direitos.

148

Abordaremos estes dois aspectos a seguir, assinalando o caráter positivo deste
documento em uma mão dupla: primeiro, como um potente disparador de práticas que irão
intervir sobre as condições de vida dos moradores de rua; e, segundo, como um elemento que
dispõe das vidas destes sujeitos para a efetivação de práticas de governo, a partir de um
caráter produtivo e de transformação das relações destes sujeitos com eles mesmos e com o
ambiente em que vivem.
Sobre o primeiro aspecto podemos destacar as ações relacionas à forma como estes
sujeitos circulam pelos espaços urbanos, ao exercício dos seus direitos de cidadãos e à forma
como os ocupam no que se refere ao lazer, cultura, trabalho e habitação.
São temas que são abordados em vários eixos temáticos do Plano Intersetorial e
Inclusivo, que deixam entrever a forma como serão produzidas relações de controle e de
mapeamento sobre as atividades que estes sujeitos realizam ao percorrem as ruas, numa lógica
a partir da qual o seu fluxo pela cidade poderá ser monitorado com alguma liberdade pelos
agentes públicos.
Uma das dificuldades levantadas, pelos pesquisadores que realizaram o censo da
população de rua em 2009, é o fato destes sujeitos se movimentarem pela cidade de forma
constante, não tendo um lugar fixo no qual possam ser localizados, podem um dia estar em
um lugar, e noutro já estar alhures, como pudemos notar no relatório, com o nome de “Rua:
aprendendo a contar” (BRASIL, 2009), referente ao primeiro censo nacional da população de
rua brasileira:
A mobilidade dessa população, inclusive no período noturno, impõe que o
levantamento das informações seja realizado no menor período de tempo possível,
para minimizar a dupla contagem. Assim, a estimativa do tamanho das equipes de
campo pautou-se na expectativa do MDS de que as entrevistas fossem realizadas em
apenas uma noite em cada grande área de concentração de pessoas em situação de
rua. (...)
Além de considerar os desafios impostos pela mobilidade, foi importante antecipar
especificidades para o contato com essas pessoas, na rua ou em instituições.
(BRASIL, 2009, p. 20).

Neste sentido, ter um trabalho, passar pelos serviços de saúde, dormir no albergue, se
alimentar em lugares de referência e ter um casa favorecem alguma forma de controle sobre
estes sujeitos no que se refere tanto às garantias de seus direitos como cidadãos, como
também de possibilitar um mapeamento dos seus fluxos pela cidade, construindo uma rotina e
uma outra forma de se relacionar com as ruas.
Trata-se de favorecer a construção da tutela de suas vidas através da crescente
institucionalização de aspectos básicos da vida biológica, sua alimentação, os lugares em que

149

dormem, sua saúde, atividades esportivas, enfim, o corpo destes sujeitos se tornam alvo de
práticas e ações que os tomam numa rotina institucionalizada.
Esta forma de lidar com seus corpos produzem o que chamamos de processos de
qualificação das vidas destes sujeitos, pois é mantendo-os úteis e produtivos ao mercado de
trabalho e a uma lógica de consumo civilizada/capitalista que suas vidas tornam-se cheias de
qualidades.
Agamben (2010) afirma um movimento importante na política contemporânea, a partir
do qual a vida biológica entra em cena como um potente articulador de ações e práticas das
estratégias biopolíticas de governo do outro. Neste sentido, a vida qualificada se opõe ao
simples fato de viver: torna-se relevante qualificar as formas de existência para que possam
ser úteis e produtivas à lógica do capital, bem como ao consumo de hábitos e de costumes
civilizados.
A entrada do Estado nesse jogo de governo dos riscos a que a vida da população de
moradores de rua está inserida se configura naquilo que Foucault chama de
governamentalidade, ou seja, às maneiras de governar os outros, mas também no que diz
respeito ao governo de si, às estratégias de resistência (CASTRO, 2009). Neste sentido, não
podemos pensar estas práticas de governo desta população sem mencionar a possibilidade de
resistência e de criação inerentes às vidas destes sujeitos: tanto quanto podem ser
administrados, também podem criar novas formas de se relacionar com esta forma de
governo.
A função do Estado seria instrumentalizar as maneiras de governar estes sujeitos
através dos domínios de saber nos registros, relatórios e pesquisas que criam uma realidade
sobre como vivem e como ocupam as cidades. É esta racionalidade que é operacionalizada
através da governamentalidade exercida de um lado pelo Estado e de outro pelos sujeitos,
através de suas estratégias de resistência. Deste modo, conforme o então Ministro do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Patrus Ananias, em um tipo de prefácio do
documento Rua: aprendendo a contar, com o título de Cada homem e a humanidade inteira:
Ao aprender a contar, a gente coloca o problema diante dos nossos olhos. E nos
responsabilizamos em oferecer respostas e construir soluções. O problema de cada
homem e de cada mulher se apresenta como um problema nosso, um dano em nossa
humanidade. Temos de chegar aos mais pobres entre os pobres justamente porque
são os que mais precisam. E nos mandam sinais diários de suas vidas em constante
perigo. Estamos aprendendo a ler esses sinais para mudar a realidade, recuperando a
dignidade de cada um. Na rua, em casa em todos os lugares. (BRASIL, 2009).

150

Neste sentido, destacamos os seguintes pontos: a) a importância de intervir sobre as
condições de vida dos pobres que vivem em perigo social constante; e, b) a necessidade de
apreender a realidade de vida destes sujeitos para intervir e construir soluções que tentem
recuperar a dignidade de suas vidas, pois não se trata de um problema somente para estes
sujeitos, mas um dano para a nossa humanidade.
Foucault (2008) afirma que a circulação dos homens e das coisas nas cidades, torna-se
um espaço privilegiado para a polícia. Esta última – entendida como uma série de práticas
ocupadas com uma eficiente urbanização – operacionaliza-se através da vigilância dos
homens e das coisas que habitam as cidades. Neste sentido, este autor pensa a circulação não
somente como o fluxo de mercadorias e dos homens, mas também como sendo
a própria circulação, isto é, o conjunto dos regulamentos, imposições, limites ou, ao
contrário, facilidades e incentivos que vão possibilitar a circulação dos homens e das
coisas no reino e, eventualmente, fora das fronteiras. Donde os regulamentos
tipicamente de polícia, uns que vão reprimir a vagabundagem, outros que vão
facilitar a circulação das mercadorias nesta ou naquela direção, e outros que vão
impedir que os operários qualificados possam sair do lugar onde trabalham ou,
principalmente, vai se tornar, depois da saúde, depois dos víveres e dos objetos de
primeira necessidade, depois da própria população, o objeto da polícia.
(FOUCAULT, 2008, p. 437).

Deste modo, Foucault (2008) assinala que objeto dessa polícia serão as formas de
coexistência dos homens uns com os outros, assim:
É o fato de viverem juntos, de se reproduzirem, de necessitarem, cada um de seu
lado, de certa quantidade de alimento, de ar para respirar, viver, subsistir, é o fato de
trabalharem, de trabalharem uns ao lado dos outros, em ofícios diferentes ou
semelhantes, é também o fato de estarem num espaço urbano de circulação, é (para
empregar uma palavra que é anacrônica em relação às especulações da época) toda
essa espécie de socialidade que deve ser tarefa da polícia. (FOUCAULT, 2008, p.
437-438).

Portanto, as políticas públicas destinadas a esta população de rua, funcionarão não só
como um recurso para um “resgate da dignidade” destes sujeitos, mas também como um
importante instrumento de mudança nas condições de sociabilidade, dispondo-os num novo
rearranjo urbano, inclusive no que diz respeito as suas relações com as drogas, com as ruas e
com as instituições destinadas ao cuidado de suas vidas. Este cenário irá proporcionar a
configuração de uma urbanização que não passa necessariamente por uma reforma da
arquitetura física da cidade, mas por um investimento em ações que tomam as vidas destes
sujeitos como potencial para as transformações das condições sociais.
Sobre o segundo aspecto, relacionado às ações de garantia de cidadania e direitos, uma
dificuldade apontada, pelas matérias de jornais e pelas entidades de direitos humanos de
Maceió, no que se refere à efetivação de direitos e de cidadania aos moradores de rua, diz

151

respeito ao fato de não possuírem documentos de identidade ou mesmo certidão de
nascimento. Estes documentos são importantes para que qualquer cidadão possa utilizar os
serviços públicos de saúde, educação e tantos outros, além de serem necessários para que
estes sujeitos possam ser beneficiados com as políticas sociais de distribuição de renda e de
habitação dos programas sociais.
A partir disto, a emissão de documentos torna-se uma forma de imprimir a estes
sujeitos uma identidade de cidadão de direitos a partir da qual podem ter acesso aos
programas sociais e serviços públicos, além de poderem ingressar no mercado de trabalho e
de geração de renda.
A cidadania é, portanto, um valor atribuído aos sujeitos na medida em que têm suas
vidas transformadas, através de processos burocráticos institucionalizados, nos quais se
efetiva uma qualificação das vidas destes sujeitos. Neste sentido, as ações do Plano
Intersetorial e Inclusivo cercam as vidas destes sujeitos de todas as formas, organizando-as
em uma rotina de atividades que visam minimamente afastá-los do ambiente inóspito das
ruas.
Figura 3 74

Fonte: Figura 3 elaborada por Silva e Hüning (2013).
74

Figura utilizada no capítulo de livro intitulado Políticas públicas e o governo da vida e da morte nas ruas das
cidades, junto à prof. Dra. Simone Maria Hüning, orientadora desta dissertação. Conferir em: Silva, Wanderson
V. N. da; Hüning, Simone M. Políticas públicas e o governo da vida e da morte nas ruas das cidades. In Cruz,
Lilian R. da; Rodrigues, Luciana; Guareschi, Neuza M. F. (Org). Interlocuções entre a Psicologia e a Política
Nacional de Assistência Social. Santa Cruz do Sul, RS: EDUNISC, 2013.

152

A forma como as ações do Plano Intersetorial e Inclusivo dispõe de uma série de
aspectos das vidas dos moradores de rua em Maceió, constitui uma população de rua e
instaura práticas de qualificação de suas vidas. A partir daí, trata-se de inserir mudanças em
suas vidas através de um governo de suas condutas e de um rearranjo destes sujeitos nos
espaços urbanos, seja deslocando-os para centros de tratamento de dependência química ou
para habitações populares dos programas sociais.
Foucault (2010a), ao construir a análise história das prisões, irá afirmar que o poder
nas sociedades modernas irá se especializar em processos de reparo, de transformação do
homem, visando adaptá-lo ao convívio social civilizado, entre outras coisas habilitando ao
trabalho, construindo um corpo biopolítico útil e dócil. Neste sentido, este autor afirmará que
“a prisão, peça essencial no conjunto das punições, marca certamente um momento
importante na história da justiça penal: seu acesso à ‘humanidade” (p. 217).
Neste sentido, os dispositivos disciplinares aparecem no jogo biopolítico como
essenciais no que diz respeito a redistribuir os indivíduos no espaço, organizar seu tempo e
extrair ao máximo suas forças, “treinar seus corpos, codificar seu comportamento contínuo,
mantê-los numa visibilidade sem lacuna, formar em torno deles um aparelho completo de
observação, registro e anotações, constituir sobre eles um saber que se acumula e se
centraliza” (FOUCAULT, 2010a, p. 217). Portanto, a partir deste assujeitamento, produz-se
uma individualização dos corpos.
Através do assujeitamento, o poder disciplinar não constitui apenas indivíduos; a um
tempo só, ele individualiza e homogeneíza. Ou seja, cria corpos individuados e
elabora um corpo social. Todavia, este corpo social não pode subsistir unicamente
através do jogo disciplinar. Para que a disciplina possa fazer ser os indivíduos num
corpo social, e também fazer ser esse corpo social, é necessário um conjunto de
regras que digam respeito aos corpos a individualizar, mas também ao corpo social
em si mesmo. Sendo assim, o biopoder, limitando a função do poder disciplinar,
surge como uma resposta às insuficiências da disciplina em regular o corpo social.
(VILELA, 2011, p. 18).

Nesta medida, as técnicas disciplinares e o biopoder irão passear de mãos dadas,
construindo uma cena a partir da qual haverá incessantemente a produção do humano através
de processos de individualização de um lado, e, de outro, práticas de regulamentação do corpo
social. Processos e práticas que se complementam nas estratégias biopolíticas gerando, uma
para a outra, domínios sobre os quais irão intervir.
Foucault (2008) assinala que à polícia cabe o zelo pelo trabalho, pelo vigor do corpo
biológico dos homens para que possam efetivar suas atividades no espaço urbano das cidades,
objetivando a produção de riquezas para o país.

153

Por sua atividade, entender, antes de mais nada, o fato de que não fiquem ociosos.
Pôr para trabalhar todos os que podem trabalhar é a política voltada para os pobres
válidos. Prover unicamente às necessidades dos pobres inválidos. E será também,
muito mais importante, zelar pelos diferentes tipos de atividade de que os homens
são capazes, zelar para que, efetivamente, os diferentes ofícios de que se necessita,
de que o Estado necessita, sejam efetivamente praticados, zelar para que os produtos
fabricados de acordo com um modelo que seja tal que o país possa se beneficiar.
(FOUCAULT, 2008, p. 436).

Deste modo, ao Estado cabe reorientar a vida nas cidades para que possam alcançar
uma utilidade satisfatória, que venha trazer riquezas e bens para a nação. Esta lógica de
governo se estabelecerá em uma razão de Estado na qual a vida será regulamentada, afirma
Foucault (2008). Deste modo, a polícia caberá à vigilância permanente da vida nas cidades,
ocupando-se de vários aspectos que estão relacionados aos modos de viver nos espaços
urbanos.
Na figura 3 pudemos sistematizar uma lógica que atravessa a constituição de uma
população de rua em Maceió, bem como a disposição de aspectos das vidas destes moradores
de rua que organiza uma estratégia política de ações específicas, que segundo os materiais em
análise nesta dissertação, é justificada pelo fato de que estes sujeitos vivem em situação de
vulnerabilidade e que esta realidade precisa ser modificada para que haja um “resgate da
dignidade” destas pessoas.
Ruiz (2012b, p. 13) afirma que a decisão soberana relacionada à decisão sobre a vida e
a morte de determinados sujeitos em situação vulnerável – como, por exemplo, a vida das
pessoas pobres que não tem plano de saúde particular ou dinheiro suficiente para pagar alguns
tratamentos que viriam ao menos a prolongar seu tempo de vida nos leitos de UTI dos
hospitais brasileiros – está condicionada às decisões previamente tomadas no campo
econômico. Neste sentido, retoma algumas considerações sobre as práticas eugênicas nazistas
e os seus “sólidos argumentos” relacionados ao extermínio de algumas formas de vida
consideradas “indignas de serem vividas”.
Para isto, este autor retoma o documento, referido por Agamben (2010), A
Autorização do aniquilamento da vida indigna de ser vivida, publicado em 1920 pelos
alemães Karl Binding (especialista em direito penal) e Alfred Hoche (professor de ética
médica). Segundo Ruiz (2012b), neste documento os autores abordam duas questões: a
questão do suicídio como um ato de soberania do sujeito em relação a sua própria vida,
portanto, algo que não pode nem ser punido, nem proibido pelo Estado; e, a questão do
aniquilamento da “vida indigna de ser vivida” de indivíduos com alguma deficiência ou

154

considerados incapazes, por alguma degradação biológica ou psicológica, já que estes sujeitos
seriam incapacitados de evocar o direito soberano de suicídio para eles mesmos.
Com a expressão “vida indigna de ser vivida”, pretendem afirmar que há muitas
formas de vida humana que perderam o valor de humanidade pelas diversas
degradações biológicas ou psicológicas possíveis, tendo ficado reduzidas a meras
vidas biológicas, não humanas, que não merecem ser vividas. Isso torna essas vidas
indignas de ser vividas e suscetíveis de aniquilamento sem punição.
Binding e Hoche dão um passo a mais ao afirmar que nem sempre os sujeitos têm
autonomia para solicitar o direito do suicídio nas vidas sem valor, ou vidas indignas
de ser vividas. É o caso dos deficientes mentais, enfermos comatosos, anciãos.
Nesse caso, o Estado e a sociedade podem assumir a autonomia dos sujeitos para si e
lhes oferecer o seu direito de “não viver uma vida indigna de ser vivida”. Tal
sequência argumentativa torna evidente o vínculo entre a vontade soberana do
Estado e seu poder sobre a vida. (RUIZ, 2012b, p. 13).

Segundo Agamben (2010), o Programa de Eutásia proposto por estes autores e posto
em prática em 1940 por Hitler, efetivou-se através da composição de uma comissão que tinha
um médico, um psiquiatra e um juiz que iria avaliar as condições destes sujeitos e decidir
sobre sua vida ou morte. Após a decisão tomada, “os doentes eram mortos nas 24 horas
seguintes à chegada a Grafeneck”, através de uma dosagem de um medicamento e, em
seguida, introduzidos na câmera de gás (AGAMBEN, 2010, p. 137). Este autor afirma que há
cálculos que estimam a eliminação de cerca de sessenta mil pessoas através destes métodos.
Quando a questão de “resgate da dignidade” das condições de vida dos moradores de
rua é tomada como uma das prerrogativas das ações do Plano Intersetorial e Inclusivo, o que
se objetiva é retirar estes sujeitos de condições de vulnerabilidade que venham a expô-los à
morte e ao assassínio. Neste sentido, podemos afirmar que vivem em situações indignas de
sobrevida, ou seja, vivem uma vida indigna de ser vivida que os colocam numa relação
constante com a morte, e, portanto, ao minimizar ou aliviar essa situação estaríamos
redirecionando um destino fatalista para estes sujeitos ao inseri-los em práticas de
qualificação de suas vidas. Como afirma Ruiz (2012b), trata-se de uma manifestação do poder
soberano do Estado sobre a vida, ao assumir para si a autonomia dos sujeitos e tentar lhes
assegurar o direito de viver uma vida digna de ser vivida.
Neste sentido, o poder irá organizar, esquadrinhar e regulamentar aspectos das vidas
destes sujeitos para devolver alguma dignidade, ou seja, “através de um investimento político,
é possível não só julgá-las dignas e indignas, como também administrá-las” (SILVA;
HÜNING, 2013). Vida e morte tornam-se questões não somente científicas, relacionadas a um
corpo biológico, mas também elementos constituintes da política contemporânea
(AGAMBEN, 2010).

155

Assman, Pich, Gomes e Vaz (2007, p. 24-25) afirmam que a vida é um “espaço de
resistência” e que a biopolítica pode ser considerada “como possibilidade de produção de
novas formas de vida”. Ao afirmarem isto, ressaltam que a vida tem um poder criativo
potente, produzindo sempre um resto ingovernável nas relações de poder: nunca capturada em
tudo, a vida guarda um elemento de resistência e de criação.
Pensando essas questões, podemos ressaltar que embora as práticas e ações de governo
implicadas nas políticas públicas tentem alcançar a vida dos sujeitos a que se destinam,
cercando-as de todas as formas, suas vidas poderão produzir-se em outros modos de estar no
mundo. Assim, concordamos com Assman, Pich, Gomes e Vaz (2007) ao afirmarem que a
vida tem um poder de criação de si mesma, fundamental às engrenagens do poder.

156

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final desta dissertação, que teve como método a análise histórica das condições de
possibilidade relacionadas à produção dos assassinatos de moradores de rua em Maceió, o que
podemos apontar como resultados? Aliás, quais os resultados de uma análise histórica?
Pensamos que os resultados que podemos apontar dizem respeito à produção de uma cena na
qual somos produzidos como sujeitos da história, em uma mão dupla em que somos efeito
desta e, ao mesmo tempo, participamos da engrenagem de seu funcionamento, produzindo-a.
Neste momento, iremos retomar as discussões apresentadas e ressaltar aspectos que
não foram abordados ou que foram, mas deveriam ser retomados. Além disso, já afirmamos
que ao abordar uma temática específica da vida das pessoas que vivem nas ruas em Maceió, a
partir de documentos públicos e matérias de jornais, estivemos longe de buscar representar a
realidade, tal qual vivem, em nosso texto. O que buscamos foi propor a construção de uma
cena a partir da qual esta temática, referente ao presente histórico em que vivemos, fosse
produzida de outro modo, possibilitando a formulação de novas maneiras de lidar com o que
nos tornamos.
Neste sentido, diferentemente de não nos comprometermos com a realidade, estamos
afirmando que esta pode ser inventada ou rearranjada através das práticas sociais, acadêmicas
ou não. Portanto, esta dissertação não representa a realidade vivida pelos moradores de rua da
capital alagoana, nem tampouco teve a pretensão de abordá-la em sua plenitude. Ao contrário,
o que procuramos tecer ao longo da dissertação diz respeito a um estranhamento do nosso
presente histórico, daquilo mesmo que nos tornamos. Por isto, na medida em que trouxemos
elementos da história para a análise, estamos nos produzindo e transformando a realidade em
que vivemos. Foi a isto que nos propomos nesta dissertação, a partir de uma perspectiva nãoindividualizante da psicologia social relacionadas aos estudos foucaultianos.
Ao considerarmos estas questões fica difícil precisar os resultados de uma análise
histórica, pois, numa perspectiva foucaultiana, se dará através de processos de subjetivação,
sobre os quais não podemos precisar os efeitos. No entanto, nos arriscaremos a apontar os
principais pontos abordados neste texto e aspectos que mereceriam mais atenção, além de
outras questões que produziram um interesse para futuras pesquisas.
Os assassinatos de moradores de rua em Maceió foram abordados considerando um
universo de análise restrito aos documentos midiáticos e outros documentos públicos. Neste

157

sentido, os pontos abordados são resultado de análise de registros escritos que compõem uma
rede de discursos-práticas importantes para a produção de um estranhamento das questões
políticas locais relacionadas a este acontecimento.
Inicialmente, buscamos, através de uma abordagem histórica da formação política do
estado, reconstruir uma racionalidade de governo referente à economia das relações sociais e
políticas no que se refere à monocultura da cana-de-açúcar. Com isto, visualizamos uma
forma de governo, presente no estado, a partir da qual a vida de muitos sujeitos fora exposta a
condições precárias de sobrevivência, numa relação-limite com a morte, produzindo o que
chamamos de uma monocultura da vida.
A monocultura da vida põe em funcionamento uma racionalidade que naturaliza
condições sociais precárias, produzindo uma indiferença à violência contra determinadas
populações e sujeitos em Alagoas. No entanto, também mencionamos que esta racionalidade
põe em questão o próprio poder que deveria proteger a vida, mantendo-a em segurança de
riscos e vulnerabilidades.
Os assassinatos de moradores de rua põem em cheque esta racionalidade referente à
manutenção dessa monocultura da vida nas sociedades contemporâneas, entre outras coisas,
produzindo espaços urbanos inóspitos para quaisquer sujeitos. Deste modo, também
revisitamos a história das cidades e das ruas para pensarmos como estas se tornam palco de
assassinatos e violência, tornando-se lugares de eminente perigo e risco para a vida.
Pudemos compreender, neste contexto, a forma como a crescente modernização das
cidades contribuiu para uma desqualificação dos espaços públicos urbanos, produzindo-os
como perigosos e fonte de vícios e doenças. E mais uma vez sobre este espaço irá se produzir
uma relação de abandono, a partir da qual qualquer vida que aí esteja pode ser alvejada por
uma pura manifestação de violência, um poder de morte.
Nestes termos, ressaltamos a forma como os moradores de rua são produzidos, nas
cidades, em uma relação de exclusão inclusiva, na qual estes sujeitos aparecem em um
momento abandonados à própria sorte e noutro como objetos de intervenção política
(AGAMBEN, 2010). É a forma como as ruas se tornam perigosas, guardando e produzindo
subjetividades desviantes e viciosas, num crescente abandono destes espaços urbanos, que
favorecem cada vez mais os ambientes privados, numa valorização da vida segura e civilizada
do interior das casas e demais instituições.

158

A partir desse cenário, buscamos compreender aspectos relacionados à produção dos
assassinatos de moradores de rua. Neste sentido, torna-se importante, em outras pesquisas, um
olhar específico sobre a produção do espaço urbano em Maceió como cenário de violência e
de abandono, abordando as questões históricas que atravessam as relações sociais e,
principalmente, a falta de investimento político para uma revitalização das ruas como espaço
de vida e de produção cultural.
Sobre os assassinatos de moradores de rua em Maceió, também apontamos três
analisadores teórico-conceituais, construídos a partir das pistas forjadas no encontro com os
materiais de análise. Apontamos os seguintes analisadores: 1) o abandono da vida e a
produção de vida nua; 2) as drogas como um dispositivo biopolítico de regulamentação da
vida; e 3) a banalização da morte e as estratégias de governo para a população de rua.
Quanto ao abandono da vida e à produção de vida nua, demarcamos o aspecto criminal
construído sobre as vidas dos moradores de rua em Maceió, de modo que são relegados a um
abandono e uma periculosidade inerentes às condições de vulnerabilidade em que vivem. Do
mesmo modo, ressaltamos como estas condições produzem uma subjetivação na qual são
produzidos como vida nua, dispondo-os à tutela de suas vidas através de intervenções
variadas que visam qualificar suas vidas através de uma rotina de práticas e ações políticas.
É neste momento que aparecem também as drogas para explicar os assassinatos destes
sujeitos, construindo uma ambiguidade sobre suas vidas ao colocá-los ora como sujeitos em
situação de risco social que devem ser protegidos pela lei, e ora como criminosos envolvidos
com drogas e uma série de práticas ilícitas sendo necessária sua punição legal. Neste sentido,
as drogas constroem um cenário no qual estes sujeitos são um potente inimigo da ordem
social, sobre o qual deve ser reforçada toda forma de controle e vigilância para reconduzi-los
a uma vida digna.
Neste contexto, aparecem os discursos-práticas dos Direitos Humanos que reforçam a
ideia de tutela de suas vidas para que seja possível a garantia de direitos e a retida desses
sujeitos das péssimas condições em que vivem e, assim, seja possível alterar a probabilidade
de seu ingresso no mundo criminal, desestabilizando a ordem social. Trata-se de assegurar o
controle e a tutela desses sujeitos para que, deste modo, não venham ingressar definitivamente
nas temidas classes perigosas.
Como mencionado, este campo de práticas em torno das vidas destes sujeitos irá
constituir um espaço biopolítico específico de intervenção sobre a vida, no qual se busca

159

garantir cidadania e direitos numa tentativa de resgate da humanidade dos moradores de rua,
associada à dignidade de seus modos de viver. Ressaltamos a importância e o interesse em
continuar as pesquisas sobre estas questões relacionadas à cidade como um campo de
experimentações biopolíticas de invenção do humano, compreendido pela atuação do domínio
das ciências humanas e a inserção dos Direitos Humanos nas práticas de gestão da vida,
compreendendo a psicologia na direção de uma antropologia, como afirma Foucault (2010b),
“não haveria desde então psicologia possível senão pela análise das condições de existência
do homem e pela retomada do que há de mais humano no homem, quer dizer, sua história” (p.
151).
A psicologia aparece como ciência no contexto da emergência das ciências humanas e
na possibilidade de dominar a psique, para que possa ser governada, constituindo uma
humanidade forte e adequada à vida civilizada. Neste contexto, como afirmam Dreyfus e
Rabinow (2010, p. 35), “o Homem se torna o sujeito e o objeto de sua própria compreensão”,
portanto, ao tornar o mundo objeto de suas ações na busca de uma verdade aplicável,
constituindo um domínio, “o Homem não é apenas sujeito entre objetos; ele logo entende que
aquilo que tenta compreender não são apenas os objetos do mundo, mas ele próprio”
(DREYFUS; RABINOW, 2010, p. 35).
É a isto que Foucault (2010b) responde com a história, como a forma pela qual
podemos conhecer a nós mesmos, e não através de uma inflexão sobre si mesmo, num
mergulho psíquico. É a história que nos apontará o que nos tornamos.
Neste sentido, abordamos também a forma como a morte torna-se um problema para o
poder, na medida em que torna possível a virtualidade da ausência de comportamento a ser
governado num regime biopolítico. Por isto, a morte é um desafio para o poder, tornando-se
necessário humanizar as práticas destinadas ao cuidado dos moradores de rua em Maceió,
bem como humanizar o próprio poder, recolocando-o no posto de protetor e potencializador
da vida humana. Por isto, torna-se fundamental garantir direitos, inserindo estes sujeitos numa
rotina de práticas relacionadas aos direitos humanos.
Este é um outro ponto que mereceria ser revisitado pela análise histórica, pois nesta
dissertação os direitos humanos foram abordados como uma temática transversal às
discussões, no entanto, em certa medida legitimam práticas de tutela de sujeitos, garantindo a
intervenção contínua do Estado em aspectos corriqueiros da vida humana, como a
alimentação, a dormida, o lazer, entre outros. Parece haver uma ocupação da vida humana por

160

uma série de discursos-práticas relacionada à garantia de direitos, à primeira vista, destinada
àqueles que estão postos à margem da vida social. No entanto, como apontado ao longo da
dissertação, nas sociedades contemporâneas nos tornamos potenciais alvo de uma tutela e/ou
de práticas de violação de direitos constitucionais em nome da ordem pública, que poderemos
colocar em risco em algum momento de nossas vidas.
Por isto, pensamos que os direitos humanos devem ser analisados na relação com as
políticas públicas destinadas às populações vulneráveis. Pois além das questões apontadas, se
tornam unânimes nos discursos oficiais quando se trata de vidas em risco social, talvez
produzindo um estado de naturalização destas condições, visando uma intervenção que
construa resultados quantificáveis nos mapas das políticas públicas. Esta temática interessame e deverá ocupar, provavelmente, um projeto de pesquisa futuro.

161

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