Do “não comer” à anorexia: considerações sobre o sintoma no contemporâneo

Discente: Kyssia Marcelle Calheiros Santos / Orientadora: Profª. Drª. Susane Vasconcelos Zanotti

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                    UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS, COMUNICAÇÃO E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

KYSSIA MARCELLE CALHEIROS SANTOS

DO “NÃO COMER” À ANOREXIA: CONSIDERAÇÕES SOBRE O SINTOMA NO
CONTEMPORÂNEO

Maceió
2013

KYSSIA MARCELLE CALHEIROS SANTOS

DO “NÃO COMER” À ANOREXIA: CONSIDERAÇÕES SOBRE O SINTOMA NO
CONTEMPORÂNEO

Dissertação apresentada junto ao Programa de PósGraduação em Psicologia da Universidade Federal de
Alagoas, como requisito parcial para a obtenção do título
de Mestre em Psicologia.
Orientadora: Profa. Dra. Susane Vasconcelos Zanotti

Maceió
2013

Catalogação na fonte
Universidade Federal de Alagoas
Biblioteca Central
Divisão de Tratamento Técnico
Bibliotecária Responsável: Helena Cristina Pimentel do Vale
S237d

Santos, Kyssia Marcelle Calheiros.
Do “não comer” à anorexia : consideraçãoes sobre o sintoma no
contemporâneo / Kyssia Marcelle Calheiros Santos. –2013.
128 f.
Orientadora: Susane Vasconcelos Zanotti.
Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Federal de Alagoas.
Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes. Departamento de Psicologia.
Maceió, 2013.
Bibliografia: f. 119-128.
1. Corpo – Cultura contemporânea. 2. Anorexia – Sintoma analítico.
3. Anorexia – Psicanálise. I. Título.

CDU: 159.923.2:159.964.21

Dedico esta dissertação aos meus sobrinhos,
Maria Júlia, João Marcelo e Larah, por todo
amor, carinho e alegria que vocês sempre me
transmitem.

AGRADECIMENTOS

Em meio a este percurso, sou muito grata a todos que me apoiaram e caminharam
comigo, desde o momento em que decidi me inscrever para a seleção deste mestrado à
finalização desta dissertação. Durante esse caminho, estive com pessoas que foram essenciais,
que se fizeram presentes e possibilitaram esta construção. Agradeço, especialmente:
À Professora Dra. Susane Vasconcelos Zanotti pela orientação, profissionalismo,
incentivo, aposta e confiança que foram imprescindíveis na elaboração deste trabalho. A sua
presença, desde a graduação na minha formação acadêmica, possibilitou o amadurecimento de
diversas ideias, principalmente as que perpassaram por esta pesquisa; fez com que o meu
interesse por produzir e escrever a partir da psicanálise crescesse; e também me estimulou a
estudar e viver alguns meses longe de casa. Foram momentos de muito aprendizado.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa
de estudo, concedida durante todo período do mestrado.
À Professora Dra. Edilene Freire de Queiroz e à Professora Dra. Maria Auxiliadora
Teixeira Ribeiro pelas contribuições e críticas pertinentes a este trabalho na banca de
Qualificação.
Aos demais professores do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Ufal que
lecionaram durante as aulas, Dra. Adélia Augusta Souto de Oliveira, Dr. Charles Elias Lang,
Dr. Jefferson de Souza Bernardes, Dr. Jorge Artur Peçanha de Miranda Coelho e Dra. Simone
Maria Hüning, pelos ensinamentos transmitidos.
À oportunidade de mobilidade acadêmica proporcionada pelo Programa de PósGraduação em Psicologia da Ufal e às professoras Dra. Vera Besset (UFRJ) e Dra. Heloísa
Caldas (UERJ) pelo consentimento de cursar suas respectivas disciplinas, pela hospitalidade e
pelos ensinamentos que me incitaram ao estudo da teoria psicanalítica lacaniana.
Ao Professor Dr. Leconte de Lisle Coelho Júnior, por juntamente com a Professora Dr.
Susane Zanotti, ter sido o docente responsável pelo Estágio Docência que realizei.

À coordenação e à secretaria do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Ufal,
em especial a Professora Dra. Heliane Lins Leitão e aos secretários, Andréa Oliveira e Márcio
Manuel, pelo atendimento às solicitações e pela disponibilidade em ajudar.
Aos colegas de mestrado, Alexsander Lima da Silva, Alcimar Enéas Rocha Trancoso,
Analinne Maia, Dayse Santos Costa, Juliana Falcão Barbosa, Jussara Ramos da Silva,
Luciano Bairros da Silva, Mariana Yezzi de Araújo, Patricia Vieira de Souza Toia, Raquel de
Lima Santos, Renata Guerda de Araújo Santos, Wanderson Vilton Nunes da Silva e Zaíra
Rafaela Lyra Mendonça, pelas discussões, incentivos e por poder compartilhar as angústias
que envolvem a produção de uma dissertação.
À colega Alessandra Cansanção pelas trocas frutíferas nas nossas conversas, nos
momentos de orientação e no Grupo de Pesquisa, coordenado pela Professora Dra. Susane
Zanotti, composto pelos demais colegas que também contribuíram com as discussões deste
trabalho: Jonathan Vasconcelos, Nathalia Correia, Thiago Félix e William Oliveira.
À Dra. Isabella Monlleó, médica geneticista, e à colega e psicóloga Karolline Hélcias,
pela interlocução entre psicanálise e medicina na discussão de casos clínicos, durante o
período em que atendi como psicóloga voluntária no Ambulatório de Genética do HUPAAUFAL.
Aos revisores deste trabalho Sidney Wanderley e Lígia Toledo.
Aos meus queridos pais, Marcelo e Maria José, por todo amor, carinho e investimento
que vocês sempre fizeram por mim e pela nossa família. Agradeço à minha mãe por ter me
incentivado a me inscrever e a fazer este mestrado, até mesmo quando eu dizia que não queria
adentrar na vida acadêmica quando me formasse. Ao meu pai, muito obrigada, por ter me
apresentado a psicanálise e por ser o meu maior incentivador nessa prática e nos estudos
psicanalíticos.
Às minhas irmãs, Karla, Karine e Kiliane, que mesmo as três morando há quilômetros
de distância, estão sempre presentes, vibrando e torcendo pelas minhas vitórias e realizações.
Aos meus amados sobrinhos, Maria Júlia, João Marcelo e Larah, por toda felicidade e
sorrisos que vocês me proporcionam. Muito obrigada pelo amor e carinho que vocês me
transmitiram durante a confecção desse trabalho.

À minhas tias Ni e Mana, que sempre oraram por mim e pelas minhas conquistas.
Ao meu namorado Anerson, pelo amor, pela compreensão, alegria e presença.
Às minhas grandes amigas: Amália Gabriela, Andréa Ramos, Carolina Sanilsa,
Eduarda Jardim, Fernanda Aguiar, Mariana Santos, Monik Souza, Priscila Tenório, Talita
Araújo e Thaciane Rocha, pela amizade verdadeira, cultivada desde a nossa infância.
À Dra. Vera Lúcia Fernandes Maia Barbosa pela escuta e palavras precisas.

RESUMO
Na cultura contemporânea, ao mesmo tempo que há uma preocupação excessiva com o corpo,
constata-se a emergência de sintomas alimentares. Apesar de eles existirem anteriormente,
não eram tão comuns e frequentes na clínica. A anorexia é considerada um desses sintomas e,
nesse sentido, questionou-se a relação entre o aumento da incidência da anorexia na
atualidade e a idealização do corpo magro. A pesquisa teve como objetivo analisar a relação
entre a cultura do culto ao corpo e a anorexia no contemporâneo, refletindo se nesse contexto,
a anorexia pode ser considerada sintoma analítico. Para tanto, foi realizado estudo teórico,
fundamentado na psicanálise. O método adotado foi o da releitura, que a partir do encontro do
pesquisador com o texto, tem como propósito a produção de um discurso e não apenas a busca
do sentido interpretativo dos textos. Assim, foram utilizados textos de Sigmund Freud,
Jacques Lacan e autores que discutem os binômios: culto ao corpo e cultura contemporânea;
padrões e códigos de beleza e anorexia; anorexia e ideal cultural; corpo ideal e modos/estilos
de vida; anorexia e sintoma. Também foram utilizados dois casos clínicos publicados, para
transmitir e aprofundar conceitos, especificamente da anorexia, na teoria psicanalítica.
Verificou-se que a anorexia se apresenta de maneira distinta na contemporaneidade, visto que
há sujeitos que participam de movimentos pró-anorexia e a concebem como estilo de vida. A
exaltação da anorexia está relacionada com os aspectos desta cultura e principalmente com a
idealização do corpo magro. Tendo em vista o aumento da incidência da anorexia, entende-se
que a cultura não é causadora, mas pode propulsionar esse aumento, uma vez que a
constituição do sintoma está relacionada com diversas experiências da vida do sujeito. Nesse
sentido, a anorexia só pode ser considerada um sintoma analítico a partir do encontro entre
analista e analisando. Para isso, depende da posição do sujeito em face do tratamento e das
intervenções do analista.

Palavras-Chave: Cultura. Contemporaneidade. Corpo. Anorexia. Sintoma.

ABSTRACT
In contemporary culture, while there is an excessive preoccupation with the body, there is
eating symptoms emergence. Despite the previously existence of these symptoms, they were
not that common and frequent in the clinic. Anorexia is considered one of these symptoms
and according to that it was possible to question the relation betweenincreased anorexia
incidence nowadays and idealization of thin body. The aimed of this study was to examine the
relation between the cult of the body culture and anorexia in contemporaneity, reflecting on
that context, if anorexia can be considered an analytical symptom. This work conducted a
theoretical study, based on psychoanalysis. The method adopted was to read the texts more
than once, from the researcher's encounter with the text, the purpose of producing a speech
and not just the pursuit for the meaning of interpretative texts. So, it was used texts from
Sigmund Freud, Jacques Lacan and authors that argue the binomials: body worship and
contemporary culture, beauty codes and standards and anorexia, anorexia and ideal
cultural;ideal body and ways / lifestyles; anorexia and symptoms. We also used two published
clinical cases, to convey and intensifyconcepts, specifically anorexia, in psychoanalytic
theory. It was observed that anorexia is presented differently nowadays, since there are
individuals who participate in pro-anorexia movements and conceive it as a lifestyle. The
anorexia exaltation is related to aspects of this culture and mostly with the idealization of thin
body. In view of the increasing incidence of anorexia, it is understood that culture is not the
cause but can propel this growth, since the constitution of the symptom is related to various
life experiences of the subject. Accordingly, anorexia can only be considered an analytical
symptom, from the encounter between analyst and patient. To do so, depends on the position
of the subject to the treatment and the analyst’s intervention.

Key words: Culture. Contemporaneity. Body. Anorexia. Symptom.

SUMÁRIO

1

INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 11

2

CULTO AO CORPO E CONTEMPORANEIDADE........................................... 18

2.1

Globalização: hedonismo, consumo e narcisismo................................................. 20

2.2

O culto de si mesmo................................................................................................. 26

2.3

O corpo hiperinvestido............................................................................................ 32

2.4

Sintomas corporais: reflexos do mal-estar contemporâneo................................. 37

3

DO “NÃO COMER” À RECUSA ANORÉXICA..............................................

3.1

Um percurso pela história: das santas jejuadoras à anorexia............................. 41

41

3.1.1 As santas jejuadoras................................................................................................... 43
3.1.2 Um artista da fome.................................................................................................... 45
3.1.3 Os primeiros estudos sobre anorexia......................................................................... 46
3.2

A anorexia em Freud............................................................................................... 48

3.3

Anorexia: inapetência ou recusa?.......................................................................... 51

3.4

Do “não comer” ao “comer nada”......................................................................... 56

3.5

O movimento pró-anorexia..................................................................................... 64

4

ANOREXIA: SINTOMA ANALÍTICO?.............................................................

4.1

O sintoma nas concepções médica e psicanalítica................................................. 69

4.2

O sintoma em Freud................................................................................................ 76

69

4.2.1 Sintoma e experiências da vida do sujeito: singularidade......................................... 76

4.2.2 Sintoma e conflito: compromisso............................................................................... 78
4.2.3 Sintoma e pathos........................................................................................................ 80
4.3

Sintoma e demanda de tratamento......................................................................... 86

4.4

A anorexia pode ser considerada sintoma analítico?............................................ 88

5

DA QUEIXA À DEMANDA: A ANOREXIA COMO UM SINTOMA.............. 93

5.1

Caso Clara................................................................................................................ 93

5.2

Caso Virginie............................................................................................................ 97

5.3

Discussão dos casos clínicos..................................................................................... 99

6

CONCLUSÃO......................................................................................................... 114
REFERÊNCIAS..................................................................................................... 119

11

1

INTRODUÇÃO
O interesse deste estudo sobre anorexia, fundamentado na teoria psicanalítica, surgiu a

partir do desenvolvimento do Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “Adolescência e
corpo: uma idealização cultural?”. Este trabalho teve como objetivo investigar como o
adolescente lida com seu corpo diante das transformações hormonais, numa época em que o
corpo é tido como ideal. Assim, com o referido estudo conclui-se que além da idealização
corporal, na cultura contemporânea há uma emergência de sintomas relacionados ao corpo. A
anorexia é concebida como um desses sintomas e consiste no objeto da presente pesquisa, a
partir do interesse em analisar a relação entre as seguintes temáticas: cultura contemporânea,
anorexia e sintoma.
Em face da idealização corporal, principalmente do culto ao corpo magro, há uma
propagação de movimentos pró-anorexia, retratados nos meios virtuais. Nesses movimentos, a
anorexia é exaltada e reverenciada, visto que é concebida como estilo e modo de vida, e não
como uma patologia. Os sujeitos expõem inúmeras informações relacionadas à anorexia, de
tal modo que a propagam como um bem a ser “adquirido”. Concebida enquanto estilo e modo
de vida, a anorexia, muitas vezes, corresponde aos aspectos culturais idealizados pelos
próprios sujeitos contemporâneos.
Foi a partir das descrições e comentários das comunidades virtuais que esta pesquisa
teve seu ponto de partida. Não houve o propósito de analisar os movimentos pró-anorexia e os
sujeitos que os compõem, mas compreender a relação entre anorexia e sintoma, tendo em
vista a forma como ela se apresenta na contemporaneidade. A partir daí, surgiram diversos
questionamentos os quais fomentaram as discussões deste estudo. Há uma relação entre o
imperativo do culto ao corpo e a emergência de sintomas corporais na contemporaneidade? A
dúvida contemporânea e os paradoxos do excesso estão relacionados com a forma como a
anorexia se apresenta na cultura contemporânea ocidental? A anorexia pode ser considerada
sintoma analítico?
Essas indagações orientaram os capítulos do presente trabalho, com o objetivo de
analisar a relação entre a cultura do culto ao corpo e a anorexia no contemporâneo, refletindo
se nesse contexto, a anorexia pode ser considerada sintoma analítico. A hipótese do trabalho é
que o aumento da incidência da anorexia na atualidade é decorrente dos atuais aspectos que
constituem a cultura, especialmente o da idealização do corpo magro.

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Esta investigação se estabeleceu com base em um estudo teórico fundamentado na
teoria psicanalítica, tendo em vista as discussões existentes sobre pesquisa acadêmica em
psicanálise (GARCIA-ROZA, 1991; LOUREIRO, 2001; FIGUEIREDO, 2004). Para
Figueiredo (2004), a pesquisa psicanalítica pode ser de tipo teórico, e foi em discussões sobre
pesquisa teórica em psicanálise (GARCIA-ROZA, 1991; LOUREIRO, 2001) que este estudo
se baseou.
Em Sobre disposições metodológicas de inspiração freudiana, Loureiro (2001) analisa
a prática da pesquisa teórica em psicanálise. A autora realiza uma analogia com a clínica, ao
propor que cada dissertação ou tese em psicanálise pode ser considerada um verdadeiro caso
metodológico. Analogamente a um caso clínico, a autora ressalta a relação do pesquisador
com a própria produção teórica. Ela afirma que essa produção traz nas suas entrelinhas um
processo.
[...] repleto de conflitos e de reviravoltas, resquícios de transferências mais ou
menos intensas com o(s) autor(es) estudado(s), com o orientador da pesquisa e/ou
instituição em que foi feita, sem mencionar os efeitos de todo o tipo de ideais e de
fantasias envolvidos na consecução de um trabalho como este – que invariavelmente
implica considerável investimento de tempo, dinheiro e, sobretudo, de energia
psíquica libidinal [...] (LOUREIRO, 2001, p. 145).

Nessa proposta, a produção é concebida a partir dos acontecimentos que perpassaram
pela pesquisa, pela relação desta com os dispositivos e investimentos que a construíram. O
percurso desta dissertação constituiu a própria produção, e consequentemente o modo como
foi realizada. A autora citada acima propõe que o traçado metodológico da pesquisa somente
poderá ser descrito de forma efetiva quando concluída. Com isso, ela propõe que “[...]
inúmeras opções feitas ao longo da pesquisa só adquirem eficácia e significação (ões) depois
de concluído o trabalho” (LOUREIRO, 2001, p. 145). Ou seja, apesar de haver o projeto
inicial e estratégias a serem utilizadas no decorrer da pesquisa, é com a conclusão desta que a
metodologia é revista e pode ser efetivamente descrita.
A referida autora também considera que existe certa passividade do pesquisador
durante a pesquisa, raramente admitida nos tratados metodológicos. Esta passividade talvez
seja mais significativa nas pesquisas teóricas em psicanálise, pois é um traço característico de
Freud. Assim, Loureiro (2001) observa que Freud expõe os caminhos de sua investigação e,
em muitos momentos, ele descobre esses caminhos “durante a escrita e por meio dela”
(LOUREIRO, 2001, p. 149). Dessa maneira, ao contrário da concepção do pesquisador ativo e

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do objeto de estudo passivo, em muitos momentos o objeto de estudo também guia o
pesquisador.
A analogia e as considerações realizadas por Loureiro (2001) sobre o caso
metodológico, apesar de serem referentes à pesquisa, podem direcionar para o texto clínico
Construções em análise de Freud (1937, 2001). A relação entre as considerações da autora e
esse texto freudiano se torna possível, dada a analogia entre “caso metodológico” e “caso
clínico”. No entanto, é importante ressaltar que este trabalho não pretende equiparar a
pesquisa com a clínica.
No referido texto, Freud (1937, 2001) afirma que o tratamento analítico é uma
construção, é um acontecimento a partir da relação transferencial entre analista e analisando.
É justamente essa construção que constitui o vínculo entre o psicanalista e o paciente (Freud,
1937, 2001), uma construção executada de ambos os lados. Por exemplo, o analista não
detém um saber sobre o paciente, mas é justamente a partir do que o paciente lhe relata,
mediante relação transferencial, que o saber analítico é construído. Sendo assim, nesta
pesquisa o caso metodológico também consistiu em uma construção, já que foi a partir das
relações entre o pesquisador, os escritos e os sujeitos envolvidos no estudo, que ele se
constituiu.
Avançando nessas discussões, Garcia-Roza (1991) em A pesquisa acadêmica em
psicanálise propõe uma possível prática da pesquisa teórica em psicanálise na Universidade,
através do método da “releitura” (GARCIA-ROZA, 1991, p. 119). O autor esclarece que
“uma releitura não é um recitativo textual do original” (GARCIA-ROZA, 2001, p. 120), ou
seja, este método não consiste em buscar o conteúdo literal do texto, mas em “[...] produzir a
partir dele, um discurso” (GARCIA-ROZA, 1991, p. 120). A releitura é um trabalho de
construção, de transformação, e não de repetição. Seu objetivo não consiste em buscar o
sentido interpretativo do texto, mas na alusão das ideias que podem surgir, a partir do
encontro do pesquisador com o texto.
Nas próprias palavras do autor: “A releitura se propõe não como reveladora, mas
como transformadora, joga sobretudo com a textualidade do texto, e não com a mesmidade
do texto” (GARCIA-ROZA, 1991, p. 120). E por textualidade, Garcia-Roza (1991) concebe-a
como a potência geradora de múltiplos sentidos, que corresponde ao pluralismo insuperável
do texto. Como exemplo, as ideias suscitadas por um pesquisador ao ler um texto, tendo em

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vista seu objeto de pesquisa, provavelmente serão diferentes das de outro pesquisador. As
ideias, apesar de serem provocadas por um mesmo texto, serão possivelmente diferentes e
poderão ter usos distintos.
Nessa perspectiva, Figueiredo (1999) atenta para os contextos do leitor, para as
próprias questões do pesquisador, que dialogam com as produções textuais. Ele afirma que
“[...] o que um bom leitor deveria fazer é trazer o texto para o campo – para o contexto – de
suas próprias questões e, inversamente, deixar-se tocar pelas questões que o texto lhe faz e
pelas respostas que o texto lhe solicita” (FIGUEIREDO, 1999, p. 12-13). Com isso, ele
considera que o contato do pesquisador com o texto produz um diálogo, há uma ampliação
dos contextos e, dificilmente, haverá uma compreensão globalizante de um texto.
Em se tratando de pesquisa e “mesmidade”, Garcia-Roza (1991) propõe que uma
pesquisa não deve ser um reencontro com o mesmo. Buscar apenas o sentido interpretativo do
texto é reproduzi-lo; neste caso, não há novas produções, novos sentidos, novas ideias e novos
conhecimentos. É importante estabelecer que o método de releitura não visa desconsiderar os
conceitos centrais que existem em cada texto, mas é a partir do entendimento desses conceitos
que as possibilidades de construção e de diálogo se formam. Como Figueiredo (2001)
ressalta, para que uma pesquisa aconteça, é necessário que dois espaços sejam preservados.
São eles o espaço da ignorância e o do desejo de conhecer. Foi entre esses espaços que a
presente pesquisa se fundamentou. Houve uma busca pelo desconhecido, por conhecimentos,
e assim houve o surgimento de construções no decorrer do próprio processo.
Desta forma, foi a partir do diálogo do pesquisador com os textos, da leitura,
interpretação, construções e ideias, do que o texto provocou, que a pesquisa se estabeleceu.
Assim, este estudo se fundamentou a partir das contribuições de Sigmund Freud,
principalmente acerca dos estudos sobre “anorexia” (FREUD, 1893, 2001; 1893, 2003;
1895a, 2001; 1895b,

2003; 1904, 2003; 1905a, 2003; 1918, 2010); sobre a “cultura”

(FREUD, 1921, 2011; 1930, 2010); e a concepção de “sintoma” (FREUD, 1905c, 2003; 1913,
2010; 1915, 2010; 1917a, 2000; 1917b, 2000; 1920, 2010; 1926a, 2001; 1930, 2010; 1940,
2001).
De igual modo, lançou-se mão dos estudos de Jacques Lacan sobre a anorexia
(LACAN, 1957, 1995; 1958, 1998; 1964b, 2008); sobre o conceito de “comer nada”
(LACAN, 1957, 1995; 1964b, 2008); a noção de objeto a (1956a, 1995; 1956b, 1995; 1963,

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2005; 1964b, 2008); e sobre o conceito de gozo (LACAN, 1966, 2001). Foram também
utilizados estudos de autores contemporâneos, baseados na teoria psicanalítica, que discutiam
os binômios: culto ao corpo e cultura contemporânea; padrões e códigos de beleza e anorexia;
anorexia e ideal cultural; corpo ideal e modos/estilos de vida; anorexia e sintoma.
É importante ressaltar que além de estudos psicanalíticos, foram utilizados estudos de
outros campos, principalmente os ligados à temática da “cultura”, tais como o campo
sociológico e o filosófico. Nesse caso, tendo em vista os autores desses campos, que são
distintos da psicanálise, optou-se por informar no decorrer do texto o campo a que eles
pertencem. Os demais autores citados são estudiosos da teoria psicanalítica.
A procura pelos textos (livros e artigos científicos) foi ocasionada pelo uso de
materiais que discutiam as temáticas anorexia, cultura contemporânea e sintoma, assim como
a partir dos referenciais dos próprios textos utilizados na revisão de literatura. Os artigos
foram encontrados a partir de descritores (os binômios mencionados na página anterior) no
Scielo e na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS). Nas leituras foram realizadas anotações,
contendo, algumas transcrições de textos que foram utilizadas, e as ideias e construções que
surgiram.
Durante as leituras de textos sobre anorexia, foram encontrados dois casos clínicos
(CORDIÉ, 2000; SCAZUFCA, 2002) considerados relevantes para a investigação proposta na
presente pesquisa. Dada a indissociabilidade entre teoria e clínica na psicanálise, optou-se por
utilizá-los na medida em que, segundo Nasio (2001), o caso clínico em psicanálise “[...] é o
relato de uma experiência singular, escrito por um terapeuta para atestar seu encontro com um
paciente e respaldar um avanço teórico” (NASIO, 2001, p. 11). Assim, este autor ressalta que
há três funções em um caso clínico, a saber: didática, metafórica e heurística.
Com relação a essas funções e suas especificidades, este estudo se deteve
principalmente na função didática, que consiste em “transmitir a psicanálise por intermédio da
imagem, ou, mais exatamente, por intermédio da disposição em imagens de uma situação
clínica [...]” (NASIO, 2001, p. 12). Ou seja, trata-se de transmitir a teoria psicanalítica, os
conceitos, através dos casos clínicos. Diante dessa função que o caso clínico possui, optou-se
por utilizar dois casos clínicos (CORDIÉ, 2000; SCAZUFCA, 2002) para ilustrar a anorexia
como sintoma analítico.

16

A ilustração e a discussão dos casos possibilitaram a transmissão e o aprofundamento
de conceitos, especificamente da anorexia, na teoria psicanalítica. Para uma melhor
compreensão, a discussão foi agrupada em temas-eixo em que “o pesquisador enfatiza os
temas que, no contexto da pesquisa, lhe pareceram mais pertinentes aos propósitos da mesma”
(CRUZ, 2007, p. 27). Os temas-eixo foram utilizados a partir das discussões conceituais que constituíram esta
pesquisa.
No segundo capítulo, foram utilizados textos de autores que estudam não só os
aspectos culturais contemporâneos, como também os que mencionam a centralidade que o
corpo tem nesta cultura. A construção desse capítulo decorreu do encontro do pesquisador
com textos fundamentados, não apenas no campo psicanalítico, como também em outros
campos, tal como o campo das ciências humanas e sociais. Foi justamente a interlocução entre
os diversos campos que possibilitou descrever o culto ao corpo na contemporaneidade, para
então compreender como a anorexia se apresenta na cultura.
Esta cultura é demarcada pela queda de ideais tradicionais (FERRARI, 2004b) e
constituída por aspectos interligados ao excesso, hedonismo, consumo e narcisismo. Ante
esses aspectos, há a propagação de um ideal pela imagem do corpo magro e perfeito. Porém,
ao mesmo tempo que há uma idealização do corpo na contemporaneidade, há uma emergência
de sintomas corporais que apesar de já existirem anteriormente, eles não eram tão frequentes
na clínica. A anorexia é um desses sintomas, e além de denotar a presença do corpo, ela é
também um sintoma alimentar. Devido ao excesso e à ausência de limites, a alimentação é
muito realçada na atualidade. Nesse contexto, eis que surge o questionamento: “Comer ou não
comer: eis a questão!” (FERNANDES, 2006). Desse modo, o referido capítulo descreve esses
aspectos culturais, uma vez que eles podem estar relacionados ao aumento da incidência da
anorexia na atualidade.
No terceiro capítulo é apresentada a história da anorexia, desde as santas jejuadoras até
os primeiros estudos científicos sobre a anorexia. É feita uma descrição de como Sigmund
Freud retratava a anorexia em seus casos clínicos e estudos. A partir de conceitos clínicos, são
abordadas as diferentes concepções da anorexia no campo médico e no campo psicanalítico,
questionando-se se a anorexia consiste numa inapetência ou numa recusa. No final desse
capítulo, é explicitada a forma como a anorexia se apresenta na contemporaneidade, que está
relacionada com o movimento pró-anorexia e com a idealização do corpo magro.

17

A partir do modo como a anorexia se apresenta, no quarto capítulo é discutido se a
anorexia pode ser considerada um sintoma analítico. Para analisar esta possibilidade, foi
preciso primeiramente estudar os aspectos culturais que constituem a cultura atual, entender o
que é anorexia e como ela se apresenta atualmente, e por fim, a partir da interseção dessas
duas temáticas, compreender o conceito de sintoma analítico. Nesse sentido, foi feita uma
diferenciação do sintoma para medicina e para a psicanálise, visto que o modo como cada
uma o concebe está estritamente relacionado aos tratamentos que elas propõem. É então
detalhada a concepção de sintoma na teoria freudiana, tendo em vista a noção de
singularidade, a ideia de sintoma enquanto compromisso e de sintoma e pathos. É também
apresentado o conceito de demanda e sua relação com o sintoma, já que é a partir destes que o
tratamento analítico é iniciado. Por fim, neste quarto capítulo, é discutido se a anorexia pode
ou não ser considerada um sintoma analítico.
No quinto capítulo são apresentados dois casos clínicos (CORDIÉ, 2000;
SCAZUFCA, 2002). Eles foram utilizados com o propósito de exemplificar e ilustrar a
possibilidade de a anorexia ser considerada um sintoma e de se transmitir conceitos
psicanalíticos ligados à anorexia. É importante ressaltar que este trabalho não teve a intenção
de fazer uma análise desses casos. Dessa forma, há o resumo do relato de cada caso e, depois,
uma discussão que enfatiza aspectos pertinentes ao objetivo deste trabalho: a discussão sobre
cultura, anorexia e sintoma. São comentados os aspectos comuns aos dois casos, assim como
são realçadas as particularidades de cada um.

18

2

CULTO AO CORPO E CONTEMPORANEIDADE
Uma reflexão sobre a cultura atual se faz importante neste trabalho, uma vez que a

idealização do corpo ganha destaque e há uma emergência de sintomas corporais na
atualidade. É importante ressaltar que nesta dissertação as discussões apresentadas sobre a
cultura não devem ser concebidas em uma perspectiva negativista, de forma a preconizar os
tempos passados como ideais. Mas devem ser compreendidas a partir da reflexão dos aspectos
que constituem essa cultura e que podem estar relacionados com a busca do corpo ideal.
As especificidades dessa cultura têm sido abordadas por diferentes autores, e seus
trabalhos retratam a importância dessa contextualização. Nesse sentido, a cultura ocidental é
demarcada pela queda de ideais tradicionais e unificadores, e pelo declínio do pai (FERRARI,
2004b). Esses ideais tradicionais eram referências para os sujeitos. Era a partir deles, da
demarcação do que deveria e não deveria ser feito, que os sujeitos se relacionavam e viviam.
Segundo Ferrari (2004b), essa queda de ideais está ligada ao declínio do pai, pois ambos
constituíam as referências e ordens a ser seguidas.
Com essas mudanças, a cultura ocidental é marcada pelo hedonismo, ou seja, pela
busca do prazer imediato (FORTES, 2009; LIPOVETSKY, 2005). Pelo consumo, pois
comprar e consumir se tornaram fins desenfreados, sem corresponder à lógica da necessidade,
mas à lógica do “comprar por comprar” (BAUDRILLARD, 2008; LIPOVETSKY, 2005). E
pelo narcisismo já que há uma contemplação exacerbada de si mesmo (CARNEIRO, 2007;
LASCH, 1983). A regra é: ser feliz, consumir e exibir o que se tem. E o que se tem não é
suficiente. Para alcançar a felicidade, é preciso adquirir mais e mais, e, além disso, é
necessário mostrar as aquisições para ser contemplado. É a partir do mostrar-se, do “fazer-se
ver” que os sujeitos contemporâneos se relacionam.
Alguns autores do campo das ciências humanas e sociais analisam as mudanças
culturais que ocorreram a partir da modernidade. O momento atual é concebido por estes
autores como modernidade líquida (BAUMAN, 2001), hipermodernidade (LIPOVETSKY,
2005) e condição pós-moderna (LYOTARD, 2004). Bauman (2001) sob a denominação de
modernidade líquida propõe que a liquidez caracteriza a cultura atual. As relações são fluidas,
líquidas, moldadas, elas não são sólidas; a solidez, segundo este autor, não mais fundamenta
as relações humanas. Já Lipovetsky (2005), ao conceber a atualidade como hipermoderna,
observa que o prefixo “hiper” penetrou nas mais diversas esferas culturais. Não há uma

19

regulação de leis, tudo se apresenta em abundância. Eis o excesso! Também nessa
perspectiva, Lyotard (2004) na condição pós-moderna, afirma que as instituições e as
tradições históricas perdem seu atrativo e que cada sujeito é entregue a si mesmo. Apesar de
cada autor abordar as mudanças na cultura de um modo específico, tal como as suas
respectivas concepções apresentadas, observa-se concordância entre eles quanto à ideia de
uma mudança na época contemporânea frente aos ideais tradicionais que norteavam os
sujeitos.
A preocupação dessa discussão sobre a cultura não é nova no campo psicanalítico. A
psicanálise desde a sua criação considera a importância do contexto em que o sujeito está
inserido. A cultura atual também é tema de estudos e pesquisas em que diferentes autores
argumentam que a cultura passou por mudanças, as quais provocam repercussões na clínica.
Algumas dessas repercussões são: a incidência de sintomatologias e as “novas” formas de
sofrimento.
Dentre as mudanças sofridas, Carneiro (2007) ressalta a “narcisidade”, na qual o
sujeito contemporâneo vive em função da sua imagem, contemplando-a. A angústia da
destradicionalização e o temor da perda de valores (COSTA, 2005), assim como a linearidade
anestesiada dos ideais (FERNANDES, 2007), a queda de ideais tradicionais e unificadores
(FERRARI, 2004a) e o mundo desbussolado (MILLER, 2004) são formas como os autores
abordam a ausência de referências a que os sujeitos estão submetidos. Na falta “do que” e “a
quem” seguir, eles se sentem e se encontram desamparados (FORTES, 2009), ou melhor, se
“des-encontram”. Diante desse desamparo, eles vivem na função de contemplar a própria
imagem, denominada por Carneiro (2007) de “narcisidade” por enfatizar o mito de Narciso.
Freud (1921, 2011) em Psicologia das massas e análise do eu, afirma que a psicologia
individual é também desde o início psicologia social. É nessa perspectiva de que o sujeito se
constitui na e pela cultura que este trabalho é concebido. Apesar de Freud não utilizar em seus
textos o termo sujeito, este foi utilizado no presente trabalho de forma indiscriminada para se
referir ao ser humano. Com isso, se há mudanças culturais, há também mudanças nos sujeitos.
Eles são sujeitos da cultura contemporânea. Tendo em vista essas considerações, será
apresentado a seguir como as mudanças culturais acarretam transformações nas constituições
dos sujeitos, nos seus sintomas e, consequentemente, na clínica.

20

2.1

Globalização: hedonismo, consumo e narcisismo
As características da época atual não são correspondentes às da época de Sigmund

Freud. Mas os estudos deste autor nos quais a organização cultural é analisada apontam
alguns direcionamentos para uma compreensão acerca da formação cultural e da constituição
dos sujeitos contemporâneos. Para Freud (1908, 2003), o processo cultural provoca mudanças
na vida do homem, pois através dele são instituídas regras e leis para a convivência em
sociedade.
As instituições tradicionais, tais como o Estado, a Igreja, a Família, a Escola,
funcionavam como uma regulação dessas regras e leis. Essas instituições tinham o poder de
instituir o que deveria e o que não deveria ser realizado, ou seja, elas detinham o poder de
instituir limites. Era a partir dessas leis, em prol do desenvolvimento cultural, que os homens
se constituíam, viviam e se relacionavam. Em 1908, no texto A moral sexual cultural e a
nervosidade moderna, Freud (1908, 2003) apresenta a concepção do professor de filosofia
Von Ehrenfels sobre a moral sexual cultural. Esta estimulava os homens a um trabalho
cultural intenso e produtivo.
A moral sexual cultural impunha aos homens uma renúncia às pulsões sexuais, ao
mesmo tempo que regulava as relações entre eles e incentivava o desenvolvimento cultural.
Freud (1908, 2003) também propôs nesse estudo que a moral sexual cultural, com seu intenso
poder de inibição e sufocamento, possibilitou o aumento da “nervosidade moderna” (FREUD,
1908, 2003), ao ponto que ela se difundiu rapidamente. Esta enfermidade, tal como o autor se
refere, é marcada por dois grupos de estados patológicos nervosos, que são as neuroses
propriamente ditas e as psiconeuroses. Desta maneira, pode-se observar que o autor relaciona
a neurose com a moral sexual cultural inibitória, que constituía a cultura. E até mesmo, além
de relacionar, ele indica o importante papel que essa moral cumpre no desenvolvimento da
neurose. Na atualidade, essa moral sexual cultural já não é tão presente, pois as instituições
que postulam as normas e regras a ser seguidas já não detêm mais esse domínio.
A partir desse estudo de Freud (1908, 2003) sobre A moral sexual cultural e a
nervosidade moderna, Miller (2004), numa Conferência em Comandatuba, inicia sua fala
afirmando que desde que a moral sexual cultural se dissolveu e os sujeitos estão
desbussolados. Apesar da sua forma cruel de inibição e do seu apogeu no final da segunda
metade do século XX (época vitoriana), a moral sexual cultural fornecia uma orientação aos

21

sujeitos. Ela demarcava o que deveria ser feito e o que deveria ser evitado, em outras palavras,
o que era certo e errado. Com sua dissolução, “o que fazer” e “o que não fazer” tornaram-se
questões nebulosas para os sujeitos. Se anteriormente as respostas estavam postas, ainda que
com caráter repressor, hoje elas estão ausentes.
Nessa perspectiva, Forbes (2005) afirma que antes da globalização a cultura era
organizada por um eixo vertical de identificações. Ou seja, havia um modelo hierárquico
cultural de referências que norteavam e orientavam os homens. Porém, atualmente, as
referências que anteriormente determinavam ideais a ser seguidos, hoje “[...] se contrapõem,
são múltiplas, invalidam-se” (FORBES, 2005, p. 5).
Neste caso, é possível relacionar a dissolução da moral sexual cultural com o avanço
da globalização. Se antes da globalização os sujeitos se relacionavam mediante esses ideais,
na cultura da horizontalização esses ideais se fundem. Eles não são balizados e constituem
sujeitos desamparados. Assim, a cultura contemporânea é demarcada por uma multiplicidade
de referências, que culmina na horizontalidade das relações e constitui um “mundo
desbussolado” (FORBES, 2005, p. 7).
A discussão do filósofo Lipovetsky (2004) contribui com os estudos sobre atualidade,
visto que esta é, segundo esse autor, caracterizada pelo prefixo “hiper”. Ou seja, a cultura é
elevada à potência superlativa. O prefixo “hiper” remete à ideia de acréscimo, de maior, de
grandeza, de abundância; mas neste caso, “hiper” indica excesso. Nessa perspectiva, esta
época é constituída mediante o signo do excesso e do exagero, fundando a cultura do “sempre
mais” (LIPOVETSKY, 2004).
Nada é suficiente, nada satisfaz! Pelo contrário, o necessário não se limita mais às
necessidades vitais, mas se vincula desmesuradamente ao hedonismo e ao consumo. Hoje o
sujeito deve e tem de ser feliz, e para ser feliz é preciso consumir. Ser feliz e consumir se
tornaram necessários, e mais, viraram imposições! Essa é a engrenagem à qual o homem
contemporâneo está submetido.
O filósofo Charles (2004), na introdução ao pensamento de Lipovetsky, afirma que “a
era do hiperconsumo e da hipermodernidade assinalou o declínio das grandes estruturas
tradicionais de sentido e a recuperação destas pela lógica da moda e do consumo”
(CHARLES, 2004, p. 29). O declínio das estruturas tradicionais provocou mudanças nas

22

relações dos sujeitos, e estas passaram a ser instituídas a partir da lógica do consumo e
excesso.
Nesse contexto, Lipovetsky (2005) analisa que os sujeitos contemporâneos estão mais
frágeis devido ao desfalecimento das grandes instituições sociais. Estas não mais
proporcionam aos sujeitos “uma sólida armadura estruturante” (LIPOVETSKY, 2004, p.
123). Por armadura entende-se uma proteção; neste caso há um esmorecimento da proteção
que estruturava e orientava os homens. Estes se encontram desprotegidos e perdidos. O que
servia de orientação, hoje não tem mais essa função. A lógica que atualmente funciona
consiste na desorientação.
Na ausência de uma bússola, o estudo de Lipovetsky (2004) contribui para essa
discussão ao descrever a sociedade atual como “sem limites”. A falta de orientação implica
uma vida regida por inúmeras possibilidades, que apesar de serem aceitáveis, são voláteis.
São tantas opções que o sujeito não sabe o que escolher, como escolher, onde parar, onde se
deve impor limites.
Como o autor referido acima propõe: “O que privilegiar? E como não lamentar esta ou
aquela opção quando o tempo é destradicionalizado, entregue à escolha dos indivíduos?”
(LIPOVETSKY, 2004, p. 76). Neste caso, tudo fica à mercê de cada sujeito. É ele que deve
escolher e decidir, e nesse momento as dúvidas e os conflitos se intensificam. Se na era
vitoriana repressora, a moral sexual cultural (FREUD, 1908, 2003) constituía e fundava as
relações entre os homens, atualmente a ausência de limites abarca essas relações. Surgem e se
intensificam alguns aspectos que permeiam as relações dos sujeitos, ante essa ausência de
limites. São eles: hedonismo, consumo e narcisismo.
A respeito desses aspectos, Lipovetsky (2005) afirma que as mudanças relativas à
globalização emergiram na cultura ocidental desde os anos de 1950. Desde então, alguns
referenciais tais como o hedonismo, o consumo, o direito ao prazer e a felicidade cotidiana se
difundiram entre os sujeitos.
Com relação à felicidade, Freud (1930, 2010), no texto O mal-estar na civilização,
discute esse sentimento, designado inicialmente como uma sensação de eternidade, um
sentimento de algo ilimitado e oceânico. No decorrer do estudo, o autor afirma que a
dificuldade de o homem ser permanentemente feliz está inteiramente relacionada a três fontes

23

de mal-estar que impossibilitam esse encontro idealizado. O sujeito contemporâneo parece, a
todo o momento, desafiar essa impossibilidade, já que a busca incessante pela felicidade, e
mais, pelo dever de ser feliz, é caracterizada como imperativo da cultura atual. Isto se
denomina hedonismo: o imperativo de ter prazer, de buscar a felicidade e evitar o sofrimento
e a tristeza.
Ter a felicidade como o horizonte de todos os acontecimentos da vida, segundo Fortes
(2009), é a proposta da atualidade, que reina de forma soberana. Esta autora afirma que a
felicidade está na moda, ao ponto de que a mensagem que se passa culturalmente é que ela é
um bem a ser adquirido nas prateleiras de supermercado. Ou seja, a mensagem é: de qualquer
maneira, seja feliz! Se você não é feliz, você deve adquirir a felicidade. Eis aí a articulação
entre a felicidade e o consumo!
O consumo é também outro imperativo atual, já que a ideia de felicidade está
associada intrinsecamente a ele. Se não se é feliz, o consumo é uma tentativa de alcançar a
felicidade. Ser feliz implica consumir! Em outras palavras, na busca pela felicidade, o
consumismo se instaura de forma onipresente na cultura ocidental. Ele é idealizado, ao ponto
de ser concebido como a garantia da felicidade.
Neste sentido, o sociólogo Baudrillard (2008) sugere a denominação de “sociedade do
consumo” para simbolizar a ideia ilusória da cultura atual, de que se consome na tentativa de
alcançar a felicidade. Ele ressalta que os benefícios do consumo, na prática cotidiana, são
vivenciados como milagres, e não mais como frutos de trabalho. Há uma ruptura com o
utilitarismo, uma diferença entre consumir e fazer aquisições a partir das utilidades e
funcionamentos dos objetos, e de consumir por consumir.
Quanto a esta ideia de o consumo ser vivenciado como milagre, Lipovetsky (2004)
afirma que o universo do consumo surge como um sonho jubiloso, ou seja, como algo
exultante. O consumo, neste caso, obedece ao ideal de felicidade. Um ideal ilusório.
Avançando neste aspecto, Charles (2004) aponta que a lógica do consumismo culminou em
um sujeito “fundamentalmente instável, sem vínculos profundos, de gostos e personalidades
oscilantes” (CHARLES, 2004, p. 41). É justamente pelo “dever” de consumir que o sujeito
vai se moldando, afinal, se hoje se consome determinado objeto, hoje mesmo se pensa no
próximo que será consumido. Desse modo, o sujeito contemporâneo se tornou refém do
consumo.

24

Na mesma perspectiva, Ferrari (2004b) considera que nesse consumismo desenfreado
as relações são estabelecidas preferencialmente com os objetos de consumo, e não
necessariamente com as pessoas. É claro que isso tem implicações. A autora afirma que cada
homem está à procura de sua dose de gozo, e isso implica que quem decide sobre o consumo é
o gozo. Com isso, o consumidor também se torna objeto de consumo.
Para Lipovetsky (2004), o que se busca no ato de consumir é antes de tudo, um gozo
emotivo, a experiência do prazer da novidade. Este autor supõe que se consome muito mais
para satisfazer o eu do que para ser reconhecido pelo outro. Nesse caso, o prazer é
primordialmente da ordem de si mesmo do que do outro. Essa ideia demonstra que “comprar
é sentir gozo, é adquirir uma pequena revivência no cotidiano subjetivo. Talvez esteja aí o
sentido da engrenagem hiperconsumista” (LIPOVETSKY, 2004, p. 121). Desta maneira, ao
considerar a relação existente entre consumo e gozo, se torna mais evidente a relação entre
felicidade e consumo, pois o gozo pode culminar numa sensação de felicidade.
Nesse sentido, há uma máxima do gozar na atualidade (COSTA, 1986). Este autor, ao
analisá-la, afirma que o cogito cartesiano parece transformar-se em “gozo, logo sou”
(COSTA, 1986, p. 118). O sujeito contemporâneo, diante do excesso e da ausência de limites,
é subordinado ao imperativo: goze! É importante afirmar que a concepção de gozo, a partir da
teoria psicanalítica freudiana e lacaniana, não corresponde à obtenção de prazer, mas diz
respeito a uma tensão, um excesso (BIDAUD, 1998; LACAN, 1966, 2001). Esta ideia é
discutida mais adiante, no item 4.2.3.
Ainda a respeito do gozo, Santaella (2008) afirma que muitos dos modos
contemporâneos de gozo levam ao corpo ou estão relacionados a ele. O corpo, segundo esta
autora, tornou-se uma ancoragem entre o gozo e os imperativos da vida em sociedade. Tendo
em vista a relação entre consumo, gozo e corpo, Baudrillard (2008) analisa que o corpo é o
mais belo objeto de consumo. Ele se tornou objeto de salvação e se constitui como um
imperativo pelo fato de ser uma forma do capital. Ele então explicita: “Se não cumprir as
devoções corporais, se pecar por omissão, será castigada” (BAUDRILLARD, 2008, p. 170).
Como então não encarar a preocupação excessiva com o corpo nesta sociedade de consumo?
Esta inter-relação do ideal de felicidade, do consumo e da exibição é denominada pelo
filósofo Debord (1997) de palco espetacular. Se “ser feliz” implica consumir, deve-se mostrar
e exibir o que se consome. O termômetro da felicidade, ao indicar esse sentimento, deve ser

25

exibido, pois tem de ser contemplado. Assim, Debord (1997) afirma que na sociedade atual,
há uma imensa acumulação de espetáculos. Esses espetáculos estabelecem relações sociais
entre as pessoas, só que mediadas por imagens.
Este autor propõe que o espetáculo corresponde à principal produção da sociedade
atual. Imagens e espetáculos são produzidos para ser admirados e reconhecidos culturalmente.
Debord (1997) analisa que já aconteceu uma degradação “do ser para o ter”, ou seja, não
importa o que se é, mas sim o que se tem. Hoje, ele afirma que acontece outra mudança, a do
ter para o parecer. Deste modo, o que se tem não é suficiente; é preciso mostrar, é preciso “aparecer”. Os sujeitos permanecem então alienados ao palco espetacular, esperando
ansiosamente pela participação ativa neste palco. Neste sentido, o autor considera que:
A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta de sua
própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele contempla,
menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da
necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo
(DEBORD, 1997, p. 24).

O espetáculo está presente a todo o momento na cultura contemporânea, já que de
alguma, forma seja contemplando-o, seja ao se reconhecer nele, ele se firma e constitui as
celebridades do palco espetacular. É interessante que por espetáculo se define “tudo o que
chama atenção, atrai e prende o olhar” (FERREIRA, 2004, p. 371). Ou seja, se é uma
sociedade de espetáculos, os sujeitos devem chamar atenção, atrair e prender os olhares.
Portanto, afirma-se que também há um culto em prol da imagem de si mesmo. Trata-se da
contemplação a partir da própria imagem.
Com isso, é inevitável a referência ao mito de Narciso (OVÍDIO, 2003) na atualidade.
Este mito, a partir das considerações de Ovídio (2003), narra que o jovem Narciso, diante de
tanto encantamento por algo tão belo, mas nunca tido como a constituição de sua própria
imagem e de seu eu, extasiado, morre de amor pela própria imagem. O jovem, ao ser
surpreendido pela beleza de seu próprio corpo, refletido em águas jamais tocadas, se apaixona
e se entorpece pela própria imagem, e por seus próprios olhos morre de encantamento.
A partir desta mitologia, o historiador Lasch (1983) atenta para uma cultura do
narcisismo, ao analisar a sociedade americana na década de 70. Nesta sociedade há uma
contemplação exacerbada de si mesmo e os sujeitos pregam pela exaltação do eu,
contrapondo-se então aos valores tradicionais. Apesar de esta análise se referir à década de
70, existem aspectos extremamente pertinentes à realidade atual. No próximo item será

26

discutido o culto de si mesmo, que implica o culto da própria imagem do sujeito
contemporâneo.
2.2

O culto de si mesmo
A cultura atual é deslumbrada pelo poder sem limites do eu, demarcando um “culto

desmesurado ao eu” (FERNANDES, 2006). Há uma contemplação sem limites e sem
medidas, e evidencia desta forma segundo Roudinesco (2006), o culto de si mesmo. A autora
afirma que a nossa cultura “põe em primeiro plano uma visão da sociedade fundada na
superestimação da figura imaginária de um sujeito desprovido de sentido histórico, atemporal,
sem passado nem futuro, limitado ao claustro de sua imagem no espelho” (ROUDINESCO,
2006, p. 51). A imagem especular é o puro espetáculo, que é aplaudido e reverenciado pelo
próprio sujeito detentor da imagem.
Como foi abordado no tópico anterior, a figura de Narciso na atualidade é enfatizada.
Esta figura está relacionada aos aspectos da contemplação do eu, do encantamento de si e da
obtenção de prazer a partir do próprio corpo. Nesse sentido, Carneiro (2007) supõe que o
homem contemporâneo reivindica uma espécie de “narcisidade” e ressalta que ele está órfão e
desamparado. Este autor afirma que “Narciso luta por uma recomposição imagética, para que
possa morrer e daí poder reconstituir sua existência simbólica” (CARNEIRO, 2007, p. 82).
Assim, o sujeito desnorteado diante do enfraquecimento do simbólico, se sustenta no
imaginário do seu corpo, na tentativa de lidar com a angústia da orfandade.
Para um esclarecimento acerca do enfraquecimento do simbólico e da suplência do
imaginário, este estudo se deteve nas definições de Lacan (2005) sobre o simbólico e o
imaginário. Para este autor, o simbólico está relacionado ao símbolo, assim como o
imaginário corresponde à imagem. Por simbólico, simbolizar algo (LACAN, 2005), entendese algo que é demarcado. Já por imaginário, por fazer imagem (LACAN, 2005), não há um
sentido de demarcação, de fixidez. Há o sentido de fazer representações, mas estas não
necessariamente perduram. O simbólico, o que demarca, orienta e está para ser seguido, pode
ser concebido como as instituições tradicionais, que norteavam os sujeitos. Ou seja, as ações
dos sujeitos eram feitas e guiadas a partir dos valores instituídos por essas instituições.
No contexto contemporâneo, com o desfalecimento dessas instituições, há uma
supremacia do imaginário em detrimento do simbólico; ele se sobrepõe e a primazia é

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atribuída à imagem. Em outras palavras, na ausência de orientações, o que passa a mediar as
relações dos sujeitos são as imagens, que podem atualmente ser constituídas a cada dia, afinal
há um gozo em se contemplar e ser contemplado.
Como foi visto acima, a contemplação de si mesmo é realizada a partir da imagem
especular do sujeito. Neste caso, a contemplação ocorre através do Outro, uma vez que a
imagem especular do sujeito é constituída a partir do olhar do Outro (LACAN, 1949, 1998).
Há um momento na vida do sujeito, segundo Lacan (1949, 1998), em que surge essa
contemplação e também uma identificação, é o estádio do espelho. Neste, o sujeito se
reconhece e se identifica com a sua imagem no espelho a partir do olhar do Outro.
O estádio do espelho acontece em torno da idade de seis meses (LACAN 1949, 1998).
Esta imagem se mantém como sendo sua, a partir da mediação simbólica, através do Outro.
Queiroz (2007) ao analisar a relação do olhar com o estádio do espelho, propõe que a criança
solicita do outro a confirmação de que é ela que está projetada no espelho. Ela pede ao Outro
uma confirmação de que aquela é a sua própria imagem, que não é outro bebê que está ali
diante dela, mas sim que o reflexo é dela mesmo. Com isso, há um reconhecimento e uma
contemplação de si.
Esta autora afirma que “sem o olhar do outro, não existimos, mas a maneira como
somos olhados define um destino” (QUEIROZ, 2007, p. 61). A partir dessa citação,
compreende-se a importância que o olhar tem na constituição do sujeito. Se é a partir do olhar
do outro que se existe, a forma como o sujeito é olhado também participa dessa constituição.
Apesar de este momento ocorrer na infância, observa-se que na contemporaneidade, a
contemplação, o olhar e a exibição estão fortemente atrelados. É a partir do olhar, do que é
exibido e contemplado, que atualmente os sujeitos se relacionam. Desta forma, parece que há
a busca por um retorno ao momento do estádio do espelho. Ao ser olhado, se reconhece uma
imagem, se contempla, e com isso, há o desejo de mostrar-se, de exibir-se. A todo o momento
se pede uma confirmação e um reconhecimento.
Nessa perspectiva, o imperativo “mostre-se!” (QUINET, 2004, p. 284) é instituído na
atualidade pelos sujeitos, formando “uma sociedade escópica” (QUINET, 2004, p. 272). Por
corresponder ao olhar, a pulsão escópica para a psicanálise é referente ao objeto olhar. Nesse
sentido, Quinet (2004) ressalta que a pulsão escópica não se reduz à visão, ao olhar enquanto

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órgão, mas está relacionada à fonte libidinal. Do mesmo modo, Queiroz (2007) entende que
ver é função do olho, mas o olhar é objeto da pulsão escópica. Esta autora também afirma que
no olhar a pulsão é implicada como energia libidinal. Tendo em vista que o olhar é da ordem
da pulsão, Quinet (2004) afirma que é a pulsão escópica que possibilita um sujeito ser
considerado belo. Essa ideia demonstra que em vez de apenas ver o sujeito, o olhar possibilita
e institui outras relações.
Nesta cultura, como todos querem ser reverenciados pela beleza, precisam se
contemplar e se mostrar. O autor afirma que na sociedade escópica “encontramos o poder da
imagem, a prevalência do ideal do espetáculo, o imperativo da transparência e a vigilância
social como forma de controle da sociedade” (QUINET, 2004, p. 272). As relações entre os
sujeitos são perpassadas pelo imperativo da exibição, já que para serem considerados sujeitos
contemporâneos, precisam se exibir e se contemplar incansavelmente. A máxima “Sou visto,
logo existo” (QUINET, 2004, p. 284) é cabível nessa sociedade, que se encontra situada na
busca constante pela celebridade.
O autor citado acima ressalta ainda um aspecto interessante, referente ao mau-olhado e
ao sentimento de inveja presente na sociedade escópica. O mau-olhado é concebido como
aquele que se contrapõe ao que se demonstrava harmônico, sendo assim ameaçador para esta
sociedade. Ao mesmo tempo que o mau-olhado ameaça, o sujeito também sente prazer por ser
invejado, por de alguma forma despertar o interesse do outro. Há o prazer do sujeito em
despertar o interesse do outro, talvez por dessa maneira se sentir pertencente e admirado na
sociedade escópica.
Por ser, justamente, o que é exibido, visto e contemplado, o corpo ganha destaque na
atualidade. Nesse contexto, o sociólogo Le Breton (2010) afirma que “o corpo, lugar do
contato privilegiado com o mundo, está sob a luz dos holofotes” (LE BRETON, 2010, p. 10).
Por demarcar a presença de cada sujeito no mundo, além de ser admirado, ele é contemplado.
Da mesma forma, Ortega e Zorzanelli (2010) consideram que na sociedade contemporânea o
corpo tem sido colocado em evidência. Em outras palavras, ele ganha realce.
Le Breton (2010) ressalta que a corporeidade é socialmente construída, e a partir de
seus estudos elabora uma sociologia do corpo. Neste caso, o corpo é concebido enquanto
objeto de uma construção social e cultural. A relação entre os homens, entre o sujeito e o
outro, é importante, segundo o autor, na constituição da corporeidade. O destaque que o corpo

29

tem nos dias atuais relaciona-se com as formações e organizações culturais, e como já foi
ressaltado um pouco sobre os aspectos que demarcam a cultura atual, não é à toa que o corpo
está em foco.
Ortega e Zorzanelli (2010), ao considerarem que o corpo está em evidência, afirmam
que o desenvolvimento científico, e mais especificamente o da ciência médica, possibilita
uma abrangente redescrição dos limites dos corpos humanos. Com isso, o avanço tecnológico
e os estudos médicos também contribuem e produzem o destaque do corpo na atualidade.
Esses dois autores propõem que dificilmente os sujeitos não se submetem ou não conhecem
alguém que já tenha utilizado as seguintes tecnologias: raios X, ultrassonografias,
tomografias, ressonâncias magnéticas, videolaparoscopias. São instrumentos tecnológicos de
acesso ao espaço interior do corpo, ou seja, tenta-se ao máximo visualizar ou reproduzir de
fato o que acontece no organismo humano. Ele também está em evidência no diagnóstico
médico, que é feito a partir do que é visto, do que as tecnologias produzem a partir do corpo, e
não mais apenas pelo que o sujeito relata.
O avanço do desenvolvimento tecnológico das terapêuticas também produziu
mudanças corporais. Ortega e Zorzanelli (2010, p.82) ressaltam que, “[...] os corpos tornam-se
progressivamente biônicos, incorporando válvulas, marcapassos, peças de titânio, implantes
cocleares, membros robóticos, dispositivos potencializadores da visão, próteses orgânicas e
inorgânicas [...]”. Esses são dispositivos que produzem outros sentidos corporais para sujeitos
que apresentavam alguma incapacidade. Esses dispositivos, tal como os autores afirmam,
interfaces entre humano e não humano, são novas definições do corpo.
Sohn (2009) contribui com essa discussão quando esclarece que é a partir do século
XX que o corpo obtém atenção. Segundo esta autora, antes do século XX ele nunca fora
objeto de tantos cuidados. Ela ressalta que atualmente “cada um o exibe, o corpo está
onipresente no espaço visual, ocupa igualmente um papel sempre maior nas representações
tanto científicas quanto midiáticas” (SOHN, 2009, p. 109). Tanto a atenção quanto os
cuidados voltados para o corpo ocupam, e estão presentes, nos mais diversos meios, seja o
midiático, seja o científico. O corpo se tornou alvo de interesse. E como esta autora considera,
talvez não seja exagero defini-lo como onipresente na atualidade, afinal sobre ele é falado, ele
é consertado e reparado, ele é esculpido, ele é medicado, ele é cortado, ele é exibido, enfim
“ele é, ele está”.

30

A respeito dessa onipresença, Fernandes (2011) propõe que o corpo ganhou espaço
público, saindo do espaço privado das casas e das instituições de saúde e adentrando nas
academias, clínicas de estéticas, nas ruas. Ele passou a ser mostrado e aclamado
publicamente, e segundo a autora, ele está em alta: “alta cotação, alta produção, alto
investimento... alta frustração” (FERNANDES, 2011, p. 15). Se há uma cultura do escópico,
do que deve ser olhado e, portanto, exibido, o corpo é extremamente aclamado e reverenciado
nessas condições.
A corpolatria, segundo Costa (2005), demarca a contemporaneidade. Há uma idolatria
pelo corpo! Se a definição da palavra idolatria consiste em “culto prestado a ídolos; amor ou
paixão exagerada” (FERREIRA, 2004, p. 460), na atualidade há um culto ao corpo, o corpo é
venerado e aclamado. Ele se torna objeto de busca incessante de prazer para a qual o sujeito
se direciona, havendo com isso não só uma “constante preocupação” (LE BRETON, 2010,
p.78), mas uma preocupação excessiva com o corpo.
Podem ser citadas como algumas preocupações diárias: doenças, taxas de colesterol ou
triglicerídeos, as intervenções corporais, as cirurgias plásticas, longevidade, exercícios,
alimentação, dietética, diversas formas de emagrecimento, cosméticos e body building. Como
preocupação, o corpo também se configura como alvo de prazer ilimitado. A ele são
direcionadas inúmeras possibilidades de reparo, intervenção e modificação. Neste ponto,
Santos (2010) considera que o corpo entrou em cena como objeto de possibilidades. São
incontáveis as formas como ele se apresenta e é apresentado na atualidade. Ele se tornou
palco para muitas encenações.
Para Marzano-Parisoli (2004), o corpo jamais obteve tanto cuidado como na
atualidade. E aqui talvez seja possível aproximar cuidado e atenção. Segundo esta autora,
“[...] o corpo se tornou um verdadeiro objeto de administração, de programação, de
decomposição e recomposição” (MARZANO-PARISOLI, 2004, p. 65). Ele é objeto de
controle, há uma tentativa de domínio sobre o corpo.
É inegável que com a globalização, há um grande desenvolvimento das ciências
biológicas e um avanço das tecnologias. Este desenvolvimento viabiliza as intervenções
corporais. Costa (20005) supõe que “o avanço real ou ideologizado da ciência e da tecnologia
mudou o perfil da idealização da imagem corporal” (COSTA, 2005, p. 77). O que

31

anteriormente era apenas idealizado, hoje em dia, com as novas tecnologias médicas, pode
ser, além de idealizado, realizado. Da promessa tem-se, hoje, o seu cumprimento.
Segundo Ortega e Zorzanelli (2010), os corpos ideais são mesclas de artifício e
natureza, ou seja, muitas das intervenções realizadas são de ordem artificial, e as
possibilidades de aperfeiçoar o corpo se tornaram valores almejados e guias de conduta para
os sujeitos. Eis a constituição de um corpo híbrido, afinal o que se almeja é a concretização da
idealização do corpo perfeito.
Avançando nesse aspecto, Costa (2005) propõe que “hoje, somos o que aparentamos
ser, pois a identidade pessoal e o semblante corporal tendem a ser uma só e mesma coisa”
(COSTA, 2005, p. 198). Diante dessa afirmação surge o questionamento: de que forma o
corpo vem ganhando espaço na cultura ocidental ao ponto de que os sujeitos se referenciam a
partir dos seus corpos, dos seus atributos físicos? Do mesmo modo, Le Breton (2010)
assevera que “as qualidades dos homens são deduzidas da feição do rosto ou das formas do
corpo” (LE BRETON, 2010, p. 17). A descrição e as características do sujeito estão
estampadas em seu corpo, visto que é a partir do que é exibido que o sujeito se identifica.
Com isso, não é um corpo que fala, mas o corpo corresponde à própria fala e à identidade do
sujeito.
Essa ideia convida a pensar em outra, já que se a identidade do sujeito é revelada pelo
corpo que se tem, e hoje em dia existe a possibilidade de inúmeras intervenções, se a cada dia
se tem um novo corpo, a identidade também se refaz a cada dia. Assim, Costa (2005) afirma
que o sujeito é direcionado a buscar o corpo da moda, e desta forma, a identidade corporal é
refém do imprevisível. De acordo com o que está na moda, se intervém no corpo. É um
“corpo novo” a cada dia...
Hoje, além da moda das roupas, há também a moda do corpo. O corpo entrou e está
em moda. Goldenberg (2006) propõe que é possível pensar que além de o corpo ser mais
importante que a roupa, atualmente ele pode ser considerado a própria roupa. É ele que deve
ser “[...] exibido, moldado, manipulado, trabalhado, costurado, enfeitado, escolhido,
construído, produzido, imitado. É ele que entra e sai de moda” (GOLDENBERG, 2006, p.
118). Dentre essas tantas possibilidades, resta a cada um idealizar e escolher o corpo que quer.
Em se tratando de moda, é o objeto corpo e não mais o objeto roupa que os homens tentam
alcançar e vestir.

32

Kehl (2004), a partir de uma composição musical de Noel Rosa, denominada “Com
que roupa eu vou?”, provoca os questionamentos: “Com que corpo eu vou”, “Que corpo você
está usando ultimamente?”. Diante das inúmeras possibilidades que se tem, não se decide
apenas qual roupa usar, mas também com qual corpo usar, afinal ele também entra e sai de
moda! Por si só, o corpo já transmite mensagem para o outro. Atualmente, o sujeito se
direciona a partir do corpo que tem, do corpo que se “in-veste”.
A mídia sustenta e produz o modelo de corpo ideal, as diversas cirurgias estéticas, o
que comer e o que não comer, quais exercícios são adequados para se alcançar um belo corpo,
e muito mais. Como recurso midiático, a Internet também colabora bastante nessas
divulgações. Costa (2005), ressalta que o veículo de informações midiáticas se tornou
incontestável. Este autor considera que “o verdadeiro não é mais “aquilo que é”, pois os
proprietários dos meios de comunicação decidem o que deve ser visto” (COSTA, 2005, p.
229). Há uma diversidade de propagandas, de comerciais e programas que são transmitidos
que ditam a moda e designam as exigências corporais. A mídia contribui imensamente para a
repercussão dessas informações.
As propagandas e o marketing trabalham assiduamente para que os sujeitos se
convençam e continuem na busca pelo corpo perfeito. Santos (2010) observa que mesmo se
uma pessoa tem uma boa aparência física, os anúncios publicitários, de alguma forma,
inventam algum defeito. Eis a máxima: é preciso intervir no corpo! E as intervenções são
realizadas a partir dos códigos de beleza e padrões corporais ditados pela mídia, pela
tecnologia, pela estética, pelas ciências médicas... Enfim, pela cultura.
2.3

O corpo hiperinvestido
Os recursos midiáticos veiculam os códigos de beleza que a cultura estabelece como

ideais e também designam quais são os padrões corporais vigentes. Esses códigos e padrões
são veiculados e são idealizados a ponto de indicarem a garantia da felicidade. Com isso,
acredita-se que se é feliz ou infeliz a partir do corpo que se tem.
A felicidade é repentina, já que a cada dia surgem novidades a respeito do que fazer
com o corpo; já a infelicidade é uma constante. O culto ao corpo, a busca pelos códigos de
beleza e padrões corporais ocorrem ininterruptamente. Neste ponto, Birman (2006) afirma que

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os sujeitos estão sempre numa posição de dívida em relação à performance corpórea, já que
para que ela venha a ser melhor, sempre se pensa em algo que pode ser feito.
Na tentativa de atingir o corpo ideal, este autor aponta algumas situações que não são
irreais, pelo contrário, são até comuns:
Assim, consumimos quase todos os suplementos vitamínicos e antioxidantes, para
manter a boa saúde e prolongar a vida, pelo risco de morte que nos assalta
permanentemente. Ao lado disso, a dieta alimentar passa pela vigilância estrita dos
nutricionistas e esteticistas, para que seu equilíbrio saudável seja também produtor
de beleza. Sem falar, é claro, das caminhadas e dos exercícios diários, com tempo
cronometrado, para administrarmos a boa saúde e a bela forma física (BIRMAN,
2006, p. 214-215).

São situações em que os sujeitos se deparam diariamente, em busca da administração
corporal. Conforme Costa (2005) ressalta: “ser jovem, saudável, longevo e atento à forma
física, tornou-se a regra científica que aprova ou condena outras aspirações à felicidade”
(COSTA, 2005, p. 190). Manter-se jovem se destaca como código de beleza. Da mesma
maneira, Kehl (2008) considera que ser jovem se tornou um imperativo categórico e é uma
condição para pertencer a “uma elite atualizada e vitoriosa” (KEHL, 2008, p. 10).
Ser jovem está na moda; já o envelhecimento é considerado como desprezo e
indignação. Há uma aversão pela velhice. Neste caso, ser jovem corresponde à felicidade. E o
envelhecimento à tristeza. Portanto, há uma intensa busca pelo rejuvenescimento e pela
longevidade. Birman (2006) observa que o envelhecimento se transformou numa enfermidade
e que a longevidade está sempre em pauta. O envelhecimento tenta ser negado e desviado a
todo custo. Por exemplo, uma pele com rugas, se anteriormente não era motivo de
insatisfação, hoje em dia ela deve ser reparada, remodelada e esticada.
Em relação ao envelhecimento e à busca do “velho tentar manter-se jovem”, Forbes
(2003) ressalta o uso da toxina botulínica, o famoso botox, e seus efeitos paralisantes. Este
atualmente é utilizado constantemente em processos estéticos. Ele então constata:
Belas, sem dúvidas, mas bruxas. Aí, para retirar o efeito bruxa, só aplicando um
pouquinho mais de botox nas laterais da testa. Pronto, agora não há mais bruxas,
somente Barbies aparvalhadas, com cara de vazia. Finalmente – e esse é o prêmio de
consolação – basta aguardar alguns meses para o botox ser reabsorvido, voltando
tudo à velha forma (FORBES, 2003, p. 48).

É uma incansável tentativa de reparo, ao ponto que, na busca por esse ideal de beleza,
os danos prejudiciais à saúde ficam em segundo plano. Birman (2006), ao considerar a

34

longevidade como ideal, compara as academias aos templos religiosos. Para ele, “[...] as
academias de ginástica se transformaram em um dos templos seculares da atualidade, onde os
fiéis vão comungar em nome da longevidade e da beleza” (BIRMAN, 2006, p. 179). Os
homens contemporâneos comungam diária e incessantemente em prol do corpo. Este autor,
mais adiante, supõe que “ser saudável, belo e não envelhecer se transformaram hoje nos
nossos imperativos, moral e estético” (BIRMAN, 2006, p. 215). Ter saúde, ter beleza e ser
jovem: outra máxima contemporânea.
Outros pontos a serem discutidos são a preocupação com a alimentação e a busca pelo
emagrecimento. Com relação à alimentação, Fernandes (2006) propõe que a preocupação com
a alimentação tem na atualidade um lugar de destaque, pois diz respeito à tentativa de o
sujeito, a partir do que ele come e ingere, controlar seu corpo. Segundo esta autora, nunca se
falou tanto em alimentação como nos últimos tempos. O que comer e o que não comer se
tornaram apreensões.
Nesse aspecto, Costa (2005, p. 199) observa que:
Qualquer comentário sobre hábitos alimentares, por exemplo, desencadeia, em geral,
uma tagarela, bizarra e infantilizada competição sobre quem faz mais exercícios;
quem come menos gordura; quem é capaz de perder mais quilos em menos tempo;
quem deixou de fumar há mais tempo; quem ingere mais vegetais, alimentos e
fármacos naturais, etc.

São assuntos que proporcionam muitas “conversas” e comumente se escutam dicas
sobre alimentação. Alimentação é o assunto da moda. Apesar de essa preocupação com a
alimentação estar relacionada à busca de uma vida saudável, em alguns momentos o extremo
e o excesso vigoram e a saúde não é priorizada.
A comida, segundo Birman (2006), destaca-se como uma das compulsões do mundo
atual, por ser atraente e repelida ao mesmo tempo pelos sujeitos. A alimentação passou a ser
feita em busca da boa forma. A preocupação parece que se dá com a forma física, e não
apenas com o bom funcionamento do corpo. Juntamente à preocupação da alimentação, temse a busca pelo emagrecimento. Não é só a busca, mas o dever do emagrecimento. O corpo
magro, este é o padrão corporal ideal.
Conforme o autor citado acima, a magreza se destaca na contemporaneidade. Ser
gordo é não ter sensualidade, é preciso então evitar a comida. Como Costa (2005) concebe,
sem a boa forma não há nenhuma chance de ser consagrado como vencedor. Portanto, estar e

35

permanecer magro são considerados vitórias. Os sujeitos que possuem o IMC (Índice de
Massa Corporal) elevado estão fora dos padrões de beleza.
O IMC é calculado a partir do peso (kg) dividido pela altura (m) ao quadrado. Com o
cálculo, o resultado é enquadrado nas categorias correspondentes a muito magro (abaixo do
peso, índice menor que 18,5), dentro da normalidade (índice entre 18,6 e 24,9), com
sobrepeso (índice entre 25 e 29,9) e como obeso (índice acima de 30). Se este índice era
calculado por profissionais médicos e nutricionistas, ou seja, especialistas, atualmente ele é
veiculado em diversos meios, para que todos possam saber em qual categoria se encontram.
Segundo dados da Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD) 1, o Brasil é um dos
maiores consumidores de medicamentos anfetamínicos. A anfetamina é uma droga
anorexígena, um moderador de apetite, e seus principais usuários são mulheres em busca do
emagrecimento. Em muitos momentos, o uso é feito de forma indiscriminada, o risco de
dependência e as consequências negativas são ignorados. Juntamente com o uso desses
medicamentos, muitos sujeitos tentam melhorar a performance corpórea com as promessas
que são feitas diariamente através do mercado industrial.
Desta forma, há uma obsessão pela imagem do corpo magro. A preocupação com o
corpo não se dá apenas com o seu funcionamento, mas, sobretudo, com a sua forma, havendo
assim o culto ao corpo, ou seja, uma cultura da “fetichização do corpo” (FERNANDES, 2006,
p. 269). Há uma necessidade de se falar sobre o corpo, não só do corpo que se tem, mas das
inúmeras promessas acerca do corpo ideal, que é tão almejado.
Fernandes (2006) afirma que o corpo magro tem lugar de destaque. Essa
hipervalorização tem se acentuado, especialmente no público feminino: a relação entre a
autoestima e a imagem do corpo magro. A concepção de que autoestima elevada é sinal de um
corpo magro e que autoestima baixa é sinal de um corpo que está fora dos padrões de beleza
nem sempre pode ser afirmada. Existem mulheres magras que continuam em busca de uma
melhora da performance, pois estão completamente insatisfeitas com seus corpos. São tantas
as possibilidades de intervenções que podem ser feitas, que o sujeito nunca se dá por
satisfeito. Deseja-se o encontro imediato e eterno com o corpo ideal.

1

Anfetaminas. In: SENAD. Disponível em:
http://www.obid.senad.gov.br/portais/OBID/conteudo/index.php?id_conteudo=11285&rastro=INFORMA%C3
%87%C3%95ES+SOBRE+DROGAS%2FTipos+de+drogas/Anfetaminas. Acesso em: 9 ago. 2012.

36

É importante ressaltar que a magreza nem sempre foi considerada como ideal.
Segundo Fernandes (2006, p. 276), “[...] a Renascença valorizava mulheres de corpo farto,
quadris grandes e abdomens avantajados". Essa autora analisa que a exigência da magreza
começou por volta dos anos 20, se intensificou nos anos 60 e se acentuou consideravelmente
nos anos 70. As mudanças aconteceram com o passar dos anos, visto que, atualmente, o que é
tido como ideal é a imagem de um corpo magro e curvilíneo, e não mais a imagem de um
corpo arredondado.
Souza (2007) também contribui com essa discussão quando propõe que a beleza
feminina era associada a uma dádiva divina atrelada ao bom funcionamento do aparelho
reprodutor feminino. Segundo a autora, a figura feminina foi muito atuante no higienismo, ou
seja, no cuidado do corpo com os objetivos sanitaristas. Assim, a importância de um bom
funcionamento dos órgãos e o cuidado com as doenças adquiriam um destaque ante qualquer
aspecto de como a beleza é concebida na atualidade. O que em épocas anteriores era
considerado sinônimo de beleza, hoje em dia pode ser concebido como um descuido. Na
atualidade, o corpo é hiperinvestido, na tentativa de o sujeito alcançar o ideal de perfeição
através da performance corpórea (FERNANDES, 2011); ele é frequentemente apontado como
fonte de sofrimento. Constitui-se como meio de expressão do mal-estar contemporâneo
(FERNANDES, 2011).
Em relação ao mal-estar, Freud (1930, 2010) considera que ele é intrínseco e inerente
a todo processo cultural. As três fontes de mal-estar que impossibilitam o encontro do sujeito
com uma felicidade permanente, segundo esse autor são: o poder da natureza, o padecimento
dos nossos corpos e a convivência em sociedade. O corpo já é citado por Freud (1930, 2010)
como fonte de mal-estar e de sofrimento, e na atualidade é perceptível como essa relação
entre corpo e mal-estar se intensifica. Esta relação é dotada de sofrimento e conduz à
emergência de sintomas que atualmente são frequentes na clínica. Dentre esses, há o
surgimento e a incidência de sintomas corporais.
2.4

Sintomas corporais: reflexos do mal-estar contemporâneo
Na cultura contemporânea ocidental há uma incidência de sintomas comumente

denominados de “novos sintomas” (FERNANDES, 2011), “patologias contemporâneas
(GASPAR, 2010), “novas patologias”, “patologias atuais” ou “patologias da época”
(GURFINKEL, 2011). Apesar dessas denominações, é possível admitir que esses sintomas

37

existiam anteriormente? E tendo em vista essa possibilidade, o que aconteceu para que essas
denominações atuais surgissem?
Uma das principais características que demarcam esses sintomas é o aumento na
incidência, a frequência com que eles aparecem na clínica. Surge, dessa forma, a possibilidade
de se afirmar que anteriormente eles não eram tão comuns, mas já existiam, como será visto
no capítulo seguinte, sobre a anorexia. Gurfinkel (2011) contribui com essa discussão quando
ressalta, em seu estudo, as mudanças significativas na história da psicopatologia. Este autor
afirma que no decorrer da história da psicopatologia há mudanças significativas no quadro
geral descritivo das psicopatologias.
É importante destacar que a psicopatologia é classicamente uma disciplina relacionada
com a medicina psiquiátrica, e que essas mudanças descritivas apontadas pelo autor estão
estritamente interligadas a uma compreensão médica organicista. Como exemplo, há o
lançamento da nova e quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais DSM-V. Nesta edição, constarão mudanças consideráveis em relação aos manuais
anteriores, mudanças relativas a índices de dados, como também mudanças relacionadas ao
enquadramento dos transtornos.
Em face dessas mudanças, Gurfinkel (2011) assevera que “diversas categorias novas
são propostas, outras caem em desuso, e outras ainda são assimiladas, incorporadas ou
fundidas a outras formas clínicas [...]” (GURFINKEL, 2011, p. 39). Para enfatizar este
posicionamento, o autor utiliza a histeria como exemplo e propõe que houve um declínio no
diagnóstico psiquiátrico da histeria, e até mesmo um esquecimento desta pela psicanálise.
Mas considera que “[...] em muitas das chamadas “novas patologias” podemos encontrar
traços inequívocos da velha histeria, tais como na anorexia, na síndrome do pânico, na
fibromialgia e em diversas formas de depressão” (GURFINKEL, 2011, p. 39).
Nesse sentido, verifica-se que há mudanças na história das patologias, com novas
categorizações. Com o avanço dos estudos, algumas patologias ganham um destaque maior
que outras. Nesse realce, elas são mais estudadas, mais investigadas, até mesmo pelas
dificuldades que surgem diante de um tratamento, e são mais frequentes no âmbito clínico do
que outras. Um outro aspecto que deve ser considerado e que está interligado com a discussão
e reflexão que este capítulo se propõe diz respeito às mudanças culturais que demarcam o
contexto de cada época.

38

Como foi abordado no início deste capítulo, os sujeitos se constituem culturalmente, e
a cultura contemporânea é demarcada pelo hedonismo, consumo e narcisismo desenfreados.
Certamente, essas características são distintas em momentos culturais anteriores; elas
demarcam essa cultura e estão presentes nos sujeitos contemporâneos. A era vitoriana da
repressão, por exemplo, caracterizava um determinado momento da cultura. Nesse caso, os
sofrimentos dos sujeitos eram constituídos no contexto de uma cultura repressora. Já
atualmente, há outras demarcações culturais que propulsionam mudanças nos sofrimentos dos
sujeitos.
Sendo assim, patologias que outrora não eram tão frequentes, tão estudadas, tão
comentadas como as da época de Freud, começam a emergir e ganhar outro espaço. Estudos
acerca delas são intensificados, a indústria farmacêutica passa a desenvolver medicamentos
específicos, surgem dificuldades nos tratamentos, mudanças na forma de os sujeitos
encararem seus sofrimentos, enquanto as patologias que já eram conhecidas e comuns ganham
outras especificidades, e de certa forma “perdem seu espaço”. Tendo em vista a emergência
desses “novos sintomas”, será apresentado e discutido como autores, baseados na teoria
psicanalítica, compreendem a incidência e a relação dos sintomas com a cultura atual.
Forbes (2005) propõe que a quebra da verticalização deve-se ao avanço da
globalização e corresponde a uma desorientação pulsional. Para Freud (1915a, 2010), a pulsão
é o conceito utilizado para situar a fronteira entre o psíquico e o somático. Segundo Moretto
(2001), esse conceito indica que a pulsão é a representação psíquica de uma excitação
somática, e com isso os fenômenos corporais estão ligados a representações psíquicas. Desta
forma, se há uma desorientação pulsional, há uma mudança justamente naquilo entre o
psíquico e o somático, uma mudança nesses fenômenos e nessas representações. De acordo
com Forbes (2005), há uma emergência de novas doenças ou um aumento na incidência de
patologias já existentes.
A esse respeito, Besset et al. (2009) consideram que atualmente, os sintomas
entendidos como formas de apresentação do sofrimento psíquico se mostram distintamente
dos sintomas da época de Freud. As autoras apontam que os sujeitos contemporâneos estão
descrentes e desnorteados, e isto se reflete na clínica. Nesta, os sintomas podem ser
concebidos como formas de o sujeito contemporâneo se sustentar diante da queda de ideais
tradicionais e do mundo globalizado.

39

Avançando um pouco nessa discussão, Fernandes (2006) ressalta que o privilégio que
o corpo adquiriu revela para a emergência de determinadas patologias que começam a ser
muito presentes na clínica da atualidade. Ela afirma que estas patologias, consideradas como
“novos sintomas” denotam a submissão completa do corpo, e da seguinte forma exemplificaos:
[...] os abundantes e variados transtornos alimentares, a compulsão para trabalhar,
para fazer exercícios físicos, as incessantes intervenções cirúrgicas de modelagem
do corpo, a sexualidade compulsiva, o horror do envelhecimento, a exigência da
ação, o terror da passividade, a busca psicopatológica da saúde, ou ao contrário, um
esquecimento patológico do corpo, e ainda a variedade dos quadros de somatização
(FERNANDES, 2011, p. 17).

Por serem relacionados ao corpo, são denominados de sintomas corporais. Do mesmo
modo, Besset et al. (2009) e Costa (2005) atentam para o lugar relevante e prevalente do
corpo nas queixas e sofrimentos dos sujeitos contemporâneos que buscam tratamento
analítico. Tendo em vista a prevalência do corpo, Costa (2005) destaca dois grandes conjuntos
que retratam as sintomatologias corporais, são eles: transtornos na percepção da imagem
corporal e abusos na exploração das sensações corporais. De fato o corpo entra no contexto da
clínica, retratando a dor e o sofrimento do sujeito.
A imagem do corpo é evidenciada nos sintomas citados acima e reflete o mal-estar
contemporâneo. Há uma “pregação” do culto ao corpo e também o surgimento de sintomas
referentes a eles. Como Fernandes (2006) afirma, a emergência do corpo como estandarte do
ideal de perfeição tem um custo muito caro na atualidade. Há um preço a se pagar, e como o
corpo está onipresente nesta cultura, ele também está em foco nos sintomas e sofrimentos dos
sujeitos. É algo de ordem paradoxal, já que ao mesmo tempo que as intervenções corporais
são tão idealizadas, surgem e disparam os sofrimentos no próprio corpo.
Nesse contexto, Lipovetsky (2004) analisa e ressalta a existência de duas tendências
contraditórias contemporâneas. São elas: mais do que nunca os sujeitos contemporâneos
cuidam do corpo, porém de outro lado proliferam as patologias. São os paradoxos atuais, os
extremos que regem a sociedade. Há um cuidado e controle excessivo com o corpo. Algo
então escapa, e há o surgimento do sofrimento corporal.
A ideia do paradoxo, do extremo, direciona para o estudo dos sintomas alimentares.
Lipovetsky (2004) considera que a “nossa sociedade da magreza e da dieta é também a do
sobrepeso e da obesidade” (LIPOVETSKY, 2004, p. 21). Se existe tanto a busca pelo

40

emagrecimento, o controle do que se deve comer, há também o descontrole, que provoca o
sobrepeso. Destacam-se como sintomas alimentares: anorexia, bulimia e obesidade. Sintomas
esses que, segundo Fortes (2010), têm se apresentado como um dos modos de sintomas
corporais de maior incidência na clínica. Tendo em vista esses sintomas e a incidência, é
importante ressaltar que este trabalho se dedica especificamente ao estudo da anorexia.
Com relação à incidência da anorexia na atualidade, Gaspar (2010) afirma que ela
“[...] é uma patologia marcante no mundo contemporâneo e, vale pontuar, com grande
incidência em adolescentes e jovens do sexo feminino” (GASPAR, 2010, p. 14). Essa
incidência pode estar relacionada não só a uma afetação no corpo, como também com os
extremos da cultura referentes aos hábitos alimentares, já que tais sintomas corporais são
sintomas da alimentação. Neles há o controle excessivo do que comer e o descontrole
excessivo seguido da culpa.
Nesse contexto se insere a dúvida contemporânea: “Comer ou não comer: eis a
questão!” (FERNANDES, 2006, p. 278). Ou se come demais, ou se come muito pouco. Esta
autora ressalta que, “denunciando o mal-estar da atualidade, a anorexia e a bulimia parecem
exemplares para apontar o paradoxo do excesso e da falta, numa cultura marcada pela busca
da linearidade anestesiada dos ideais” (FERNANDES, 2006, p. 267). Há o excesso da
magreza e o excesso de comida. A falta de limites diante desses excessos que pode
proporcionar o aumento desses sintomas.
Como este trabalho se dedica ao estudo da anorexia, será apresentada no próximo
capítulo uma discussão sobre a anorexia, a partir do seguinte questionamento: a dúvida
contemporânea e os paradoxos do excesso estão relacionados com a forma como a anorexia se
apresenta na cultura contemporânea ocidental? Para tanto, serão abordados a história da
anorexia, diferentes concepções sobre anorexia, conceitos referentes à anorexia e a forma
como ela se apresenta na contemporaneidade.

41

3

DO “NÃO COMER” À RECUSA ANORÉXICA
O que é anorexia? Seria uma patologia que indica a falta de apetite? Uma recusa

alimentar? A busca malsucedida por um corpo magro? Uma disfunção orgânica alimentar?
Um transtorno? Um sintoma? Um estilo de vida? A veracidade de cada uma dessas respostas
dependerá de quem está respondendo, assim como do que se propõe com a resposta.
Talvez, o médico afirme que se trata de um transtorno que representa uma disfunção
orgânica alimentar. É possível que um sujeito que reverencie a anorexia, afirme que ela não é
uma patologia, mas sim um estilo de vida. Talvez aquele que sofre possa revelar que se trata
de uma busca malsucedida pela magreza. Quem sabe o psicanalista concebe-a como uma
recusa? Com isso, é possível observar que o questionamento “O que é anorexia?” pode ser
associado a diversas ideias e concepções. Os questionamentos e as possibilidades de se
compreender um conceito não se esgotam. Mas também é possível se aprofundar em uma
determinada concepção de um modo mais específico. Assim, será apresentada, e discutida a
seguir, a concepção psicanalítica de anorexia na qual este estudo foi baseado, tendo em vista o
seu percurso histórico, o que a caracteriza e como ela se apresenta nesta cultura.
3.1

Um percurso pela história: das santas jejuadoras à anorexia
Como foi abordado no final do capítulo anterior, na atualidade há um aumento na

incidência dos sintomas alimentares. Como este trabalho se propõe a investigar a anorexia, é
conveniente realizar um percurso pela história da anorexia, visto que apesar dessa presença
contemporânea, há indícios históricos de que ela e algumas de suas características
diagnósticas já existiam anteriormente.
Fernandes (2006) ressalta que foi por volta de 1584 que surgiu na língua latina o termo
“anorexia”, derivada do vocábulo grego “anorektos” (an+orektos), que significa “sem desejo,
sem apetite”. Ela também afirma que para o substantivo anorexia encontram-se dois adjetivos
para denominar quem sofre de anorexia, são eles: anorético e anoréxico. Os substantivos
inapetência, jejum e inanição são comumente empregados quando se estuda anorexia. Para
Ferreira (2008), inapetência corresponde à “falta de apetite” e apetite significa “vontade de
comer; vontade, disposição, ânimo”. Quanto ao significado do termo jejum, Ferreira (2008)
propõe que se trata da “abstinência total ou parcial de alimentos, em certos dias, por
penitência ou prescrição religiosa ou médica”. Já inanição significa “prostração por falta de

42

alimento”. Pode-se entender que inapetência é a falta de vontade, a ausência de disposição
para comer; o jejum é uma privação alimentar por uma questão religiosa ou médica; e a
inanição corresponde ao enfraquecimento e degradação física e corporal, decorrente da
ausência de alimentação. São termos distintos, mas que podem estar relacionados de alguma
forma com o sujeito que sofre de anorexia.
A respeito da prática de jejum, Weinberg e Cordás (2006) comentam que vários povos
da Antiguidade praticavam o jejum voluntário como uma prática religiosa e tinham a
abstinência alimentar como uma forma de purificação. O jejum estava integrado à religião, e
nestes casos eram de curto tempo, não demoravam muito. Já em relação aos jejuns
prolongados, esses autores recorrem à Bíblia; afirmam que Moisés jejuou antes de receber os
Dez Mandamentos e que Jesus também jejuou antes de receber a iluminação divina, ambos
por quarenta dias. Apesar de ser considerado um jejum prolongado, esses autores entendem
que esse número, quarenta dias, corresponde a algum significado religioso. É tanto que a
Quaresma corresponde aos quarenta dias de jejum e penitência que antecedem o período
Pascal.
O médico Hipócrates, considerado o “pai da medicina”, recomendava o jejum a partir
da prática médica, visto que a saúde era preocupação dos gregos e a escolha adequada dos
alimentos nutritivos possibilitaria uma vida saudável (WEINBERG; CORDÁS, 2006). Com
isso, os médicos receitavam períodos de jejuns para tratar muitas doenças, dada a importância
conferida à alimentação e à saúde. É importante refletir sobre essa recomendação dos
médicos, pois o jejum era receitado para tratar doenças e em prol da saúde dos sujeitos.
Bidaud (1998), ao apresentar os marcos históricos da anorexia, ressalta que existem
duas formas de se compreender o jejum: uma é vertical e está baseada na relação dos homens
com os deuses das religiões, enquanto a outra é horizontal e se dá entre os homens. Essa
diferença existente é relevante, pois os primeiros casos retratados como possíveis anorexias
nos séculos passados, os casos das santas que jejuavam, podem ser entendidos na forma
vertical, já que elas buscavam a purificação divina através da privação alimentar. Esses casos
são concebidos como casos de anorexia santa (BIDAUD, 1998) ou como os casos das santas
jejuadoras (WEINBERG; CORDÁS, 2006). Ao contrário da história de que Moisés e Jesus
jejuaram por quarenta dias, essas santas jejuavam por períodos realmente longos, muitas
vezes incessantes, o que ocasionou a morte de muitas delas.

43

3.1.1 As santas jejuadoras
Bidaud (1998) analisa, a partir de textos religiosos, as condutas religiosas de
abstinência alimentar e cita o ensaio de um francês que apresenta um grupo de 261 mulheres
conhecidas oficialmente pela Igreja Católica como santas e que viveram entre os anos 1200 e
1994. Ele aponta que dessas 261 mulheres, mais da metade manifestou sinais claros de
anorexia. Ou seja, apesar de esse termo ter surgido em 1584, desde 1200 há estudos que
identificam casos de sujeitos com sinais de anorexia ligados à religião.
A respeito desses registros de anorexia em outras épocas, Weinberg e Cordás (2006)
ressaltam que as santas e beatas da Idade Média com seus jejuns autoimpostos buscavam um
ideal de ascese e de comunhão com Deus, e também faziam desta ação uma forma de
conservarem a virgindade e de se oporem aos casamentos arranjados por seus familiares.
A história da Santa Catarina de Siena, que nasceu em 1347 e faleceu em 1380, é
tratada por Bidaud (1998) de forma minuciosa. Apesar de haver santas jejuadoras anteriores a
esta, apresentadas por Weinberg e Cordás (2006), tais como Santa Vilgefortis e Santa Clara
de Assis, os jejuns autoimpostos tiveram seu apogeu a partir de Santa Catarina. Este trabalho
se deteve um pouco na sua história, tendo em vista o relato da história feito por Bidaud (1998)
e retomado por Weinberg e Cordás (2006). A disseminação das profecias e a sua história
foram conhecidas por outras mulheres da época, que também se tornaram adeptas desta
prática alimentar, tais como Santa Maria Madalena de Pazzi, Santa Rosa de Lima e Santa
Veronica Giuliani (WEINBERG; CORDÁS, 2006).
A história de Catarina é apresentada por Bidaud (1998) como uma lenda e de maneira
detalhada. Ele retrata aspectos ligados à alimentação de Santa Catarina desde a sua mais tenra
idade, enfatiza a relação de Catarina com sua mãe e ressalta que aos sete anos, quando ela
decidiu se dedicar à Virgem, começou a se privar de alimentos. O jejum vertical relativo à
religião se iniciou muito cedo em sua vida. No decorrer de sua vida, diante de situações
inesperadas, como a morte de sua irmã mais velha, ela se privava ainda mais de alimentos.
A mãe de Catarina, ao se deparar com a determinação alimentar da filha, suspeitava
que essas privações indicavam a presença do diabo. Diante do contexto religioso, a expressão
da anorexia como diabólica é também uma forma de apontar a incipiência de estudos acerca
dela, além do que as explicações para comportamentos atípicos outrora, geralmente eram

44

dadas como algo contra o divino, de ordem diabólica, e também como desrazão. Devido a
uma extrema privação alimentar, aos poucos o corpo descarnado de Catarina assume a
aparência de um cadáver. No começo de 1380 ela decidiu não mais se alimentar e terminou
falecendo.
O relato da vida de Santa Catarina mostra uma história que data do século XIV e
aponta aspectos importantes de serem pensados nos sujeitos com anorexia. Por exemplo, a
relação entre a alimentação e amamentação de Catarina, e a relação de Catarina com sua mãe.
Neste caso, é possível perceber que o que hoje é considerado patologia, anteriormente estava
relacionado a concepções religiosas; nesse caso, a privação alimentar era concebida como a
obra do diabo. Esse estudo também indica que a privação alimentar era feita em busca de
algo, em prol de um determinado objetivo – neste caso, alcançar a elevação espiritual.
Também nessa perspectiva, Ferrari (2004a) analisa alguns estudos realizados e
demonstra que desde o século XI existiam sujeitos anoréxicos. Segundo Fernandes (2006),
entre os anos 1200 e 1500, muitas mulheres praticavam jejuns prolongados e eram
consideradas santas ou milagrosas por sobreviverem ao estado de inanição em que se
encontravam após esses jejuns.
Fernandes (2006) afirma que com o movimento da Reforma houve um declínio desses
casos, pois os jejuns prolongados passaram a ser considerados hereges, e os sujeitos que
decidissem por fazê-los poderiam ser queimados na fogueira. Weinberg e Cordás (2006)
também comentam sobre esse declínio do jejum religioso; não era apenas o jejum que fazia a
santidade, mas para serem considerados santos, os jejuadores deveriam ter bons atos, bom
caráter e virtudes.
Este trabalho também se utilizou do conto “Um artista da fome”, de 1922, do escritor
Franz Kafka (1922, 2003). O autor invoca de forma literária e ficcional a privação alimentar,
para compreender a anorexia. Apesar do seu caráter ficcional, este texto pode de, alguma
forma, referir-se aos “artistas de fome do final do século XIX” e aos “esqueletos vivos”
(WEINBERG; CORDÁS, 2006, p. 57). Os primeiros viveram de fato jejuando, com a
finalidade de ganhar dinheiro ao se apresentar praticando a abstinência alimentar; e os outros
não jejuavam publicamente, mas exibiam seus corpos magros em público.

45

3.1.2 Um artista da fome
Kafka (1922, 2003), nesse conciso texto, refere-se aos jejuadores como artistas da
fome e ressalta que a cidade espectadora se ocupava com a apresentação deles. Ele descreve,
especialmente, a história de um artista da fome que jejuava dentro de uma jaula por no
máximo quarenta dias seguidos. Observa-se também aqui a delimitação de quarenta dias de
jejum.
No quadragésimo dia de jejum, dois médicos entravam na jaula para uma avaliação
clínica no artista da fome, e depois ele saía da jaula com auxílio de duas jovens. Na sua saída,
ele era coroado numa cerimônia e recebido com um banquete de alimentos, ao qual ele
sempre resistia e não comia. Na verdade, ele saía da jaula porque tinha de sair e não porque
queria, visto que quando ele estava no melhor do jejum, ocorria uma suspensão. Após alguns
dias ele voltava a jejuar aos olhos do público.
Houve um momento em que a plateia não comparecia mais ao espetáculo ao ar livre,
então o artista da fome começou a participar de um grande circo. Porém, no decorrer do
tempo, o artista não saía mais da jaula, e passou a jejuar como então almejava. Nesse jejum
desenfreado, ele se tornou invisível até para os funcionários do circo, que ao verem a jaula
não se lembravam do que ela significava e o que ela continha.
Em um momento, um inspetor ao se deparar com a jaula e se recordar do artista da
fome, trocou algumas palavras com ele, e nesta troca houve questionamentos acerca do jejum.
O inspetor lhe perguntou se ele ainda estava jejuando e por que ele continuava a jejuar. Ele
lhe respondeu que estava jejuando e que sempre quis que todos admirassem o seu jejum, já
que não pôde evitá-lo, pois não encontrou o alimento que lhe agradasse. Ele continua e afirma
que certamente, se tivesse encontrado esse alimento, ele teria se empanturrado de comida
assim como todos faziam. Logo depois essa conversa, o artista da fome faleceu e foi retirado
da jaula.
Nesse conto, verifica-se que a privação alimentar, assim como a de Catarina de Siena,
foi levada aos extremos, visto que tanto ele quanto ela faleceram devido à ausência de
alimento e à inanição. Pode-se observar que o artista da fome, quando questionado sobre seu
jejum, afirmou que a admiração pela sua intensa privação alimentar era algo que ele sempre
desejara obter da sua plateia. Porém esta, aos poucos, não suportou mais presenciar aquele

46

“espetáculo”. Assim como Debord (1997), ao afirmar que atualmente há uma sociedade do
espetáculo em que todos almejam ser admirados, o artista da fome, por não ter encontrado um
alimento que lhe fosse afável, ao exibir seu corpo descarnado e cadavérico, demandava a
admiração e a contemplação da plateia.
A partir desses possíveis casos em épocas passadas, foram efetuados estudos
científicos sobre a anorexia. Esses estudos proporcionaram não só um conhecimento acerca
do diagnóstico, como também o surgimento de terapêuticas e de tratamentos para esses casos.
3.1.3 Os primeiros estudos sobre anorexia
Com relação ao surgimento de estudos sobre anorexia, Bidaud (1998), Weinberg e
Cordás (2006) e Fernandes (2006) declaram que em 1689, o médico inglês Richard Morton
publicou em latim um livro intitulado Tisiologia sobre a doença da consunção. Esta é
considerada uma síndrome do sistema nervoso e descrita como uma diminuição da força, com
perda total do apetite. Aproximadamente 100 anos depois, em 1789 na França, o médico
Naudeau mencionou sobre uma doença nervosa seguida de uma repulsa alimentar.
Weinberg e Cordás (2006) apresentam a contribuição de Louis-Victor Marcé, médico
colaborador de Jean-Martin Charcot, em 1859, quando ele descreveu um quadro clínico de
inapetência em jovens que poderia chegar a limites extremos. Este quadro clínico era
concebido como um distúrbio nervoso, acompanhado de disfunção menstrual e de uma
convicção delirante de que não se deveria comer. O médico Marcé trouxe ideias interessantes
sobre a anorexia, pois ele afirma que há uma relação da anorexia com a puberdade e com os
limites extremos a que se pode chegar. Apesar da sua contribuição, ele raramente é ressaltado
nos estudos que retratam a historia da anorexia (WEINBERG; CORDÁS, 2006).
Dando continuidade ao percurso histórico, o autor Pereira (1998) assevera que em
1868, essa síndrome foi redescoberta na Inglaterra pelo médico William Gull. Este “passou a
empregar o termo ‘anorexia nervosa’ para designar pacientes que apresentavam grave
debilitação física, mas que não podiam ser descritos como melancólicos” (PEREIRA, 1998, p.
155-156). Aqui é feita uma distinção entre anorexia e melancolia, e é possível assegurar que
foi pela diferença entre elas que se constituiu o termo e suas especificidades. Fernandes
(2006) propõe que Gull apresentou em um encontro da British Medical Association a

47

descrição de um quadro clínico comum a três jovens, que denominou inicialmente de “apepsia
histérica”. Porém em 1874, ele passou a empregar o termo “anorexia nervosa”.
Foi também nessa época que o médico francês Charles Lasègue (1873, 1998) se
dedicou ao estudo da anorexia. Esta foi denominada, por ele, de anorexia histérica em De
l´anorexie hystérique, texto publicado em 1873 na França, nos Archives Générales de
Médecine. Com essa denominação, ele situou a anorexia no campo da histeria com precisão
nas suas descrições clínicas. Segundo Pereira (1998), esse texto é considerado um dos marcos
na história patológica da anorexia, e mesmo tendo se passado mais de um século da sua
publicação, continua amplamente atual.
De fato, Lasègue (1873, 1998) aborda questões inteiramente pertinentes aos quadros
de anorexia histérica. Ele afirma que o termo “anorexia” poderia ter sido substituído por
“inanição histérica” e a considera como uma das formas de histeria com foco gástrico. Ele
observou oito mulheres de 18 a 32 anos e concluiu que as histéricas com anorexia reduziram a
alimentação por algum pretexto, e passado algum tempo, as repugnâncias se tornaram “uma
recusa da alimentação que será prolongada por tempo indefinido” (LASÈGUE, 1873, 1998, p.
161). Dessa forma, a redução da alimentação se tornou uma recusa alimentar.
Esse autor propõe sobre a relação da anoréxica com os esforços da família e afirma
que “o excesso de insistência evoca um excesso de resistência” (LASÈGUE, 1873, 1998, p.
164). Ou seja, quanto mais a família insiste para que o sujeito se alimente, mais o sujeito
recusa a alimentação. A anorexia se torna uma preocupação extrema e constante da família,
visto que todos que estão ao redor do sujeito se envolvem. A obstinação da histérica com
anorexia, segundo o autor, pode persistir por meses, como também pode durar anos. Segundo
ele, quando não há um tratamento adequado, um acontecimento inesperado pode vir a quebrar
o curso da doença, como, por exemplo, um incidente físico, um casamento, uma gravidez.
Tendo em vista a aproximação entre histeria e anorexia de Lasègue (1873, 1998), o
médico da Salpêtrière, Jean-Martin Charcot, em 1885 reconhece a anorexia como um sintoma
puramente histérico (BIDAUD, 1998; WEINBERG; CORDÁS, 2006). Charcot propôs o
método de tratamento relativo ao isolamento terapêutico para os sujeitos que estavam
acometidos por essa patologia. Novamente, anorexia e histeria se encontram relacionadas, e se
iniciou um método de tratamento para esses sujeitos.

48

Goulart (2003) menciona que o psiquiatra Huchard, na tentativa de dissociar a
anorexia da histeria, passou a utilizar o termo “anorexia mental”. Ou seja, este psiquiatra nos
seus estudos não concebe a anorexia como sintoma da histeria. Conde (2007) assinala que
essa outra forma de se conceber a anorexia deve-se ao fato de alguns sintomas clássicos da
histeria, tais como paralisia, cegueira e anestesia, não se fazerem presentes nas queixas das
anoréxicas.
A partir dos estudos citados, começou a ser investigado e tratado o sofrimento do
sujeito referente à privação alimentar e inanição. Tem-se como embasamento teórico
psicanalítico deste trabalho textos em que Freud menciona a anorexia. Para tanto, serão
expostos a seguir os momentos em que Freud (1893, 2001; 1893, 2003; 1895a, 2001; 1895b,
2003; 1904, 2003; 1905a, 2003; 1918, 2010) utilizou o termo anorexia e que contribuíram
para o avanço dos estudos psicanalíticos desta temática.
3.2

A anorexia em Freud
A anorexia é retratada nos textos freudianos desde as publicações pré-psicanalíticas,

ou seja, desde os primórdios psicanalíticos. Nesses textos, apesar de Freud expor
considerações sobre anorexia, ele não se debruça em teorizações sobre essa temática. Mas
essas considerações são muito importantes, visto que outros autores se interessaram e até hoje
se interessam por esses estudos. Desse modo foi possível avançar nas discussões teóricas.
Em um de seus primeiros textos, Um caso de cura por hipnose, Freud (1893, 2001)
descreve o caso de uma jovem senhora que fora tratada com a técnica da hipnose. Diante do
nascimento dos filhos, essa jovem tinha dificuldades de se alimentar. Essas dificuldades eram
seguidas de vômitos recorrentes e aversão a alimentos, aspectos que impossibilitavam à
paciente amamentar seus filhos. No nascimento do terceiro filho, quando Freud (1893, 2001)
foi convocado pela segunda vez para atendê-la, a paciente estava enjoada consigo mesma,
pois não podia eliminar com sua própria vontade a anorexia e os demais sintomas.
Freud (1893, 2001) concebe este caso como uma histeria ocasional, pois o surgimento
dos sintomas da jovem senhora coincidia com o nascimento de seus filhos. O nascimento era
a ocasião do surgimento dos sintomas referentes à alimentação. Este caso retrata a presença
do alimento na relação mãe-filho, visto que a paciente se queixava de não conseguir se
alimentar e também não tinha condições de amamentar seus filhos. Havia não só uma

49

privação de alimentos, como também aquele que ela gerou era privado do alimento materno.
Nesse estudo, a anorexia é compreendida enquanto um sintoma da histeria. Este caso de
histeria de ocasião demarca um aspecto muito importante, que é o da oralidade e maternidade,
que fundamentará estudos de autores posteriores a Freud.
No texto Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação
preliminar, Freud (1893, 2003) afirma que vômitos permanentes e anorexia são sintomas da
histeria. Ele ressalta que os sintomas histéricos estão estritamente relacionados a um trauma
infantil. Apesar de este ser um fato da infância, produz para todos os anos seguintes um
fenômeno patológico. Nesse estudo ele considera mais uma vez que a anorexia é um sintoma
da histeria e analisa a relação do surgimento desses sintomas com um fato traumático infantil.
Já em Manuscrito G, Freud (1895a, 2001) ao analisar a melancolia, relaciona-a com a
anorexia. Ele afirma que a anorexia é uma neurose alimentar paralela à melancolia. Neste
estudo, ao contrário dos dois textos anteriores, no qual o autor propõe que a anorexia é um
sintoma histérico, Freud (1895a, 2001) aproxima a anorexia da melancolia. Desse modo, ele
considera que a “anorexia nervosa” nas moças jovens parece uma melancolia em que a
sexualidade não se desenvolveu, pois a perda de apetite, em termos sexuais, é concebida como
perda de libido. Segundo ele, a melancolia consiste no luto por perda de libido. Para o autor, é
este aspecto, a perda de libido, que permite e proporciona essa relação entre anorexia e
melancolia, visto que ela constitui ambas.
Também em 1895, Freud (1895b, 2003) cita a anorexia em Históricos clínicos, mais
especificamente no caso da Senhora Emmy Von N (paciente que pede a Freud para deixá-la
“falar livremente”). Ele considera esta senhora como uma histérica e relata que ela sofria de
abulias, ou seja, “perda ou diminuição da vontade, da capacidade de ter iniciativa”
(FERREIRA, 2004, p. 85). Neste caso clínico, Freud (1895b, 2003) relata que a paciente
comia muito pouco e o ato de comer estava relacionado a lembranças infantis repletas de
repugnância e enjoo relativos a alimentos. A anorexia foi descrita pelo autor como um dos
sintomas das abulias, como a perda da vontade de se alimentar, e está associada a uma
lembrança de repulsa da vida infantil. O surgimento desse sintoma, acompanhado de dores
gástricas, coincidiu com o falecimento do esposo da paciente e pelo fato da mesma não ter
tido condições de ajudá-lo, pois acabara de dar à luz. No presente texto, a anorexia é mais
uma vez concebida como um sintoma histérico; seu surgimento estava relacionado a uma
situação inesperada na vida da paciente e às lembranças infantis que ocorreram na relação

50

analítica, de repugnância e aversão a alimentos, têm a ver com a própria sintomatologia
alimentar.
Freud (1904, 2003) no estudo O método psicanalítico de Freud, declara o abandono da
hipnose e propõe o uso do divã para pacientes. Ele enfatiza que ao contrário do método
hipnótico, a proposta empreendida não visava exercer nenhuma influência para os pacientes.
Como este é um texto que aborda discussões sobre o tratamento em psicanálise, ele afirma
que os casos mais favoráveis para tratamento são os de psiconeuroses com escassos sintomas
violentos ou perigosos. Porém, nos casos graves de histeria, em que ele inclui a anorexia,
Freud (1904, 2003) sugere esperar uma fase mais calma do paciente, devendo-se evitar um
tratamento que exija esforço deste.
Da mesma maneira, em Sobre a psicoterapia, Freud (1905a, 2003) concebe que não se
recorrerá ao método psicanalítico quando for necessário eliminar com rapidez fenômenos
perigosos e cita como exemplo a “anorexia histérica”. Esses dois textos trazem considerações
sobre o tratamento em pacientes com anorexia. Alertam para se considerar as dificuldades dos
tratamentos com esses pacientes, na cautela que se deve ter ao tratá-los e até mesmo do
tratamento psicanalítico não ser adequado a sujeitos com anorexia grave. Essas
recomendações freudianas podem estar direcionadas ao cuidado que se deve ter ao tratá-los,
tendo em vista a gravidade dos casos e o risco de vida que esses sujeitos podem correr.
A última referência ao termo anorexia é na publicação de 1918, em História de uma
neurose infantil “O homem dos lobos” (FREUD, 1918, 2010). Nesta obra, o autor apresenta o
caso de um paciente que adoeceu seriamente aos 18 anos e que sofre de uma histeria de
angústia. Ao esboçar um panorama do desenvolvimento sexual do paciente, relata que a
primeira coisa que escutou foi sobre um distúrbio do apetite. Tendo isso em vista, Freud
(1918, 2010) afirma que, em meninas que estão no momento da puberdade, há uma neurose
que exprime a recusa sexual através da anorexia e que está relacionada com a fase oral da vida
sexual. Nesse texto, apesar de o paciente ser homem, ele atenta para a relação da anorexia
com “as meninas”. E também enfatiza outros aspectos, como a relação com a puberdade e a
oralidade, que podem ser propulsoras para o surgimento da anorexia.
Será possível observar no decorrer deste trabalho como esses aspectos propostos por
Freud, que foram corroborados pela ideia de Lasègue (LASÈGUE, 1873, 1998) e também
influenciados pelas reuniões com Jean-Martin Charcot, fomentam as pesquisas psicanalíticas

51

atuais sobre a anorexia. Atualmente, existem estudos fundamentados na relação da anorexia
com a melancolia (LIMA, 2012); aproximação entre anorexia, maternidade e oralidade
(CLERCQ, 2012; FERNANDES, 2006; GASPAR, 2010; RECALCATI, 2001; ROVERE,
2011; SILVA; BASTOS, 2006; VIEIRA, 2008); anorexia e a puberdade (FERNANDES,
2006; GASPAR, 2010; SILVA; BASTOS, 2006; VIEIRA, 2008); anorexia e o feminino
(FERNANDES, 2006; GASPAR, 2010; PENCAK; BASTOS, 2009). Apesar de Freud não ter
se dedicado de forma mais profícua ao estudo da anorexia, é possível afirmar, a partir de seus
estudos, que ele forneceu ideias que possibilitaram a construção de importantes teorizações
sobre esta temática.
Os psicanalistas Karl Abraham, Melanie Klein, Anna Freud, Donald Winnicott,
Jacques Lacan, Maud Mannoni, Françoise Dolto, reconhecidos como discípulos de Freud,
também realizaram alguns estudos em que a temática da anorexia foi abordada. Como não faz
parte do objetivo deste trabalho apresentar as diversas compreensões psicanalíticas pósfreudianas acerca da anorexia, mas sim se deter nas que estão de acordo com o objetivo deste
estudo, que é a discussão de sintoma, não serão abordadas essas diversas compreensões. Elas
foram discutidas de forma minuciosa por Fernandes (2006).
Tendo em vista o percurso pela história da anorexia, os estudos freudianos que
retratam a anorexia e que há autores pós-freudianos que aprofundaram esta temática, observase que a anorexia não surgiu na contemporaneidade. Apesar de existirem determinados casos
que na época não eram vistos como patológicos, mas causavam reações principalmente nos
familiares, há indícios da anorexia em épocas passadas. Além do aumento na incidência, a
forma como a anorexia se apresenta na cultura atual não está relacionada a práticas religiosas.
Ao contrário da época das santas anoréxicas, há na atualidade uma descrição médica que
diagnostica a anorexia como um transtorno. Serão apresentados, a seguir, diferentes estudos
que concebem a anorexia como inapetência e transtorno e como uma recusa alimentar.
3.3

Anorexia: inapetência ou recusa?
Na quarta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais DSM-

IV (concepção médica), a anorexia é concebida como uma disfunção orgânica. É denominada
como Anorexia Nervosa e enquadrada como Transtorno Alimentar. As características
diagnósticas que definem essa disfunção são: recusa do indivíduo a manter o peso corporal
em um nível igual ou acima do mínimo normal adequado à idade e à altura; medo intenso de

52

ganhar peso ou se tornar gordo, mesmo estando com peso abaixo do normal; perturbação no
modo de vivenciar o peso ou a forma do corpo; amenorreia nas mulheres pós-menarca
(AMERICAN PSYCHIATRY ASSOCIATION, 1994, p. 516).
Nesta concepção médica, há dois tipos de anorexia, o tipo restritivo e o tipo compulsão
periódica/purgativo. No primeiro, a perda de peso acontece a partir de dietas, jejuns ou
exercícios excessivos; já no segundo tipo, há uma perda de peso, mas com compulsões
periódicas e/ou purgações. Essas purgações são: os episódios de vômitos autoinduzidos e/ou
o uso indevido de laxantes e diuréticos. A principal diferença entre eles, é que enquanto no
primeiro não há episódios de comer compulsivo e de métodos purgativos, no segundo eles
estão presentes.
O DSM-IV apresenta dados importantes sobre a incidência de anorexia, e nele consta
um aumento da incidência de anorexia nas últimas décadas. Apesar de não especificar os
dados numéricos referentes a essa afirmação, descreve que a idade média para o início da
anorexia é aos 17 anos, com alguns picos bimodais aos 14 e aos 18. Mais de 90% dos casos
ocorrem em sujeitos do sexo feminino. Em relação à prevalência, os estudos entre “mulheres
na adolescência tardia e início da idade adulta verificam taxas de 0,5% e 1,0%, para
apresentações que satisfazem todos os critérios diagnósticos” (AMERICAN PSYCHIATRY
ASSOCIATION, 1994, p. 515).
Apesar de a edição ser de 1994, é possível observar que há um aumento na incidência
e demonstração quanto à prevalência da anorexia. Diante dessas considerações, conceber a
anorexia a partir da concepção médica é compreendê-la enquanto uma desordem alimentar
devido a uma causa orgânica, que necessita ser rapidamente revista dada as deficiências que
esse transtorno provoca no corpo do indivíduo. O médico, ao avaliar o Índice de Massa
Corporal do sujeito e verificar que ele está abaixo do peso, busca normalizar o peso, fazer
com que o paciente volte a comer e possivelmente associar ao tratamento algum
medicamento.
Esse tratamento também pode acontecer através de hospitalizações com separação do
ambiente familiar (FERNANDES, 2006), em que o sujeito, diante de sua grave condição
clínica (extrema desnutrição), necessita ser internado para restabelecimento das suas
condições vitais. Nesse contexto, o tratamento nutricional é associado ao tratamento médico,
visto que as medidas dietéticas são aplicadas em face da natureza e gravidade dos casos

53

(FERNANDES, 2006). Segundo esta autora, para limitar as consequências da desnutrição são
realizados tratamentos nutricionais através de “[...] realimentação enteral por sonda, ou
parenteral, ou medidas de enquadramento alimentar e conselhos dietéticos” (FERNANDES,
2006, p. 83).
Em uma situação de anorexia, normalmente as pessoas que estão ao redor do sujeito
anoréxico dizem que ele “deixou/parou de comer”, “não come nada”, “não come mais”, “não
quer comer”. Essas frases estão em consonância com o próprio significado do termo anorexia,
traduzido por inapetência e também com essa concepção médica de disfunção orgânica
devido à ausência de apetite. Portanto, o principal tratamento é feito para o sujeito voltar a se
alimentar normalmente.
A autora Ferrari (2004a), com base na teoria psicanalítica, afirma que apesar de o
termo anorexia ter o significado de inapetência, ela corresponde a uma recusa do alimento e
não à inapetência. Em outras palavras, a anorexia não decorre da falta de apetite, mas consiste
numa recusa alimentar. É nesta concepção, anorexia enquanto recusa, que este trabalho se
fundamenta. Serão apresentados alguns estudos que defendem essa concepção e não a de
inapetência, que demanda um outro tratamento.
O médico Lasègue (1873, 1998), além de afirmar que o fato de a família insistir para
que o sujeito se alimente aumenta a resistência do sujeito para se alimentar, ressalta que o
jejum da anoréxica: “[...] não é absoluto e nada tem em comum com a recusa de alimentar dos
melancólicos. A anorexia não piorou e essencialmente não se transformou numa repulsão
análoga àquela sentida pelos tísicos e muitos cancerosos” (LASÈGUE, 1873, 1998, p. 165).
Pode-se afirmar, a partir dessa citação, que há uma diferença na questão alimentar
entre os anoréxicos, melancólicos, cancerosos e tísicos. Assim como este autor, Scazufca e
Berlinck (2002) consideram que na anorexia não há perda do apetite, como na recusa
alimentar da melancolia. Nos melancólicos, cancerosos e tísicos, os sujeitos sofrem de uma
inapetência devido a sua condição patológica. Eles não comem, pois não sentem apetite e
disposição para se alimentar, enquanto na anorexia não há perda de apetite. Os sujeitos se
recusam a comer, há uma renúncia alimentar.
Fernandes (2006) também se detém nessa concepção e observa que a recusa alimentar
da anoréxica não se deve a uma ausência da vontade de comer. Nesse caso, há uma vontade

54

de comer, mas o que se intensifica no sujeito é a recusa ao alimento. Recusar o alimento é
diferente de não ter fome, de não ter vontade de se alimentar.
Avançando nesse aspecto, Tfouni, Mouraria e Ferriolli (2011) constatam que
inicialmente não ocorre inapetência nesses sujeitos com anorexia, mas sim uma recusa, uma
aversão à comida. O que persiste é uma “[...] luta ativa e secreta contra a fome” (TFOUNI;
MOURARIA; FERRIOLLI, 2011, p. 364). As autoras afirmam que a recusa “[...] é o traço
mais marcante da anorexia, ou ainda, é o que constitui a própria marca da anorexia”
(TFOUNI; MOURARIA; FERRIOLLI, 2011, p. 364). Há aqui aspectos importantes de serem
analisados, visto que recusa e inapetência são divergentes, até mesmo porque na recusa
anoréxica há, segundo essas autoras uma luta contra a fome. Há fome, há apetite, há
disposição, mas o que persiste e demarca a anorexia é a recusa a se alimentar, é o não querer
comer.
Bidaud (1998) contribui com essa concepção de “luta contra fome” quando propõe que
“essa repulsa, que induz a uma conduta de “passar fome”, produz um efeito de prazer intenso.
Os sujeitos buscam a fome [...]” (BIDAUD, 1998, p. 23). Essa ideia integra outro aspecto
importante, que é o da relação entre prazer, gozo e fome. Dessa forma, os sujeitos com
anorexia sentem prazer e gozo ao sustentar essa posição de recusa, e não sofrem de
inapetência.
Outro aspecto que também auxilia no entendimento da anorexia enquanto recusa são
os episódios de compulsão alimentar de que os sujeitos são acometidos. Há uma privação tão
intensa, que quando ela não se sustenta, ocorre uma compulsão alimentar desordenada, e
geralmente eles se culpam e se utilizam de métodos purgativos na tentativa de sanar a
compulsão.
Dessa maneira, apesar de este trabalho não se deter no sintoma alimentar referente à
bulimia, há estudos que defendem uma estreita relação entre anorexia e bulimia (BIDAUD,
1998; BLANCO, 2000; CLERCQ, 2012; FERNANDES, 2006; FUKS; CAMPOS, 2010;
RECALCATI, 2000). Segundo Fernandes (2006), a palavra bulimia significa fome devorante
e é mais popularmente conhecida como “fome bovina”. Nesse sentido, a autora afirma que ela
é caracterizada por episódios repetidos de compulsões alimentares, com comportamentos
compensatórios tais como vômitos autoinduzidos, uso de laxantes e diuréticos, jejuns e

55

exercícios físicos excessivos. Ao contrário da anorexia, na bulimia não há uma perda de peso
tão significativa.
Fernandes (2006) analisa: “durante muito tempo a bulimia foi considerada o polo
oposto da anorexia, o outro extremo de um mesmo problema. A passagem da anorexia à
bulimia é mais frequente do que o contrário” (FERNANDES, 2006, p. 75). A aproximação
entre anorexia e bulimia é tanta, que segundo essa autora, muitos estudos que discutem a
anorexia também se referem à bulimia, tendo em vista que há uma “descrição de uma
síndrome mista denominada anorexia-bulimia” (FERNANDES, 2006, p.75).
Nessa perspectiva, Bidaud (1998) considera a bulimia como o inverso da anorexia,
como sendo dois tempos alternantes de uma mesma patologia. Nesse caso, “a anorexia seria o
par inverso e negativo de uma apetência temida” (BIDAUD, 1998, p. 24). Da mesma maneira,
Fuks e Campos (2010) entendem que anorexia e bulimia são duas faces do mesmo pathos.
Enquanto a anorexia é almejada pelas bulímicas, a bulimia é uma ameaça compartilhada pelas
anoréxicas (FUKS; CAMPOS, 2010). Ou seja, esses autores consideram que apesar de serem
opostas, a anorexia e a bulimia compartilham de um mesmo sofrimento alimentar. Isso
também pode ser observado quando Clercq (2012) relata na sua autobiografia Todo o pão do
mundo, as suas angústias, o tratamento realizado para a anorexia e os episódios bulímicos, que
perduraram em sua vida por muito tempo. Há diversas situações em que Clercq (2012)
descreve os vômitos, a recusa alimentar, as dietas hipocalóricas, o uso de anorexígenos, os
jejuns, os vestígios da comida em excesso e todo o sofrimento que essas situações lhe
causavam. Como a autora propôs, “A gangorra do peso iniciava seu vaivém” (CLERCQ,
2012, p. 33). Ou seja, ela vivia de um extremo ao outro.
Apesar dessa inter-relação, Blanco (2000) apresenta situações em que há anorexia e
não há bulimia; em que há anorexia e bulimia; em que há bulimia sem vômitos. Nessas
situações em que a anorexia e a bulimia coexistem, o autor afirma que esses sujeitos comem
sem limites e que eles se empanturram para depois sentir um vazio. Assim, “pelo excesso,
chegam à inanição” (BLANCO, 2000, p.52). Já Recalcati (2000) ressalta que, apesar da
equivalência entre anorexia e bulimia, há uma diferença no modo como a anoréxica e a
bulímica se relacionam com o objeto. Em relação ao objeto no próximo item apresentado, é
feita uma discussão a esse respeito.

56

Feita essa consideração sobre anorexia e bulimia, na concepção em que a anorexia se
trata de uma recusa, há também outra importante ideia que distingue a anorexia da ausência
de apetite. É o conceito de “comer nada”, proposto por Lacan em 1957 (LACAN, 1957,
1995), que demarca uma diferença com o “não comer”. Para compreender esse conceito
lacaniano, que depende do conceito de objeto também proposto por Lacan (1963, 2005), foi
necessário percorrer estudos anteriormente publicados que auxiliam nesse entendimento.
Serão então apresentadas as ideias de Freud sobre o “recalque orgânico” e a “coisa”, e os
conceitos de “objeto a” e de “nada” a partir da perspectiva lacaniana, que auxiliam no
entendimento da anorexia como recusa e no uso que a anoréxica faz de seu corpo.
3.4

Do “não comer” ao “comer nada”
Na quarta parte do texto O mal-estar na civilização, Freud (1930, 2010) escreve uma

nota de rodapé acerca de algo que ele já havia nomeado anteriormente em 1906, mas que
nesse momento ele conceitua de forma mais clara: trata-se da noção de recalque orgânico.
Segundo o autor, a adoção da postura ereta pelo homem demarca o início do processo
civilizatório, ou seja, essa decisão humana trouxe algumas implicações à sua vida,
interessantes de serem consideradas. A mudança da quadrupedia para a bipedia implicou na
retração dos estímulos olfativos. A fidedignidade que o olfato dava ao homem na sua vida, e
mais especificamente, na sua vida sexual (ciclos reprodutivos), visto que era através da
exalação do cheiro que o encontro sexual entre os humanos acontecia, foi perdida.
A capacidade olfativa é vista claramente nos animais mamíferos, que se relacionam a
partir do cheiro. Esta capacidade no homem, agora bípede, é perdida e o olhar passa a ter
importância. Entretanto, o olhar não produz a certeza que se tinha através do olfato. Dessa
forma, não houve uma substituição precisa, afinal são órgãos de sentidos divergentes. Com
isso, nessa mudança, algo da espécie humana é perdido. Trata-se então de um objeto para
sempre perdido da espécie humana. Essa ideia de Freud (1930, 2010) é muito pertinente,
porquanto essa mudança provoca e induz uma barreira; ela dificulta o acesso preciso para o
encontro sexual, o que corresponde ao recalque, a uma barreira orgânica a que os sujeitos
culturais já nascem submetidos.
A esse respeito, é interessante ressaltar o que Freud (1905b, 2003) propõe nos Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade sobre o momento da puberdade e o encontro do objeto.
Ele afirma que todo encontro na verdade se trata de um reencontro; em outras palavras, o que

57

se busca não é um objeto novo, mas um encontro com algo da ordem sexual que está perdido.
Neste texto fica claro que justamente quando há o encontro do sujeito com o sexo
(adolescência), busca-se algo da ordem sexual que fora perdido. Trata-se sempre de um
encontro faltoso e traumático, visto que esse objeto é inalcançável, e o que se tem são
substitutos também faltosos para lidar com essa perda.
Para avançar no entendimento sobre o recalque orgânico e a noção de objeto em
psicanálise, foi importante a compreensão de outra ideia que Freud (1895, 2001) propôs no
texto Projeto para uma psicologia científica. Nesse texto, ele utiliza muitas ideias
neurológicas e apresenta uma concepção, que dialoga com esse trabalho, designada como a
coisa. Por este não ter sido um conceito fácil de ser entendido, até mesmo pelas outras ideias
que são abordadas nesse texto, as proposições feitas por Jorge (2011) ajudaram a esclarecer o
conceito de a coisa freudiana e sua relação com o objeto. Primeiramente será apresentada a
ideia freudiana, e logo depois aparecerão as contribuições desse autor.
No referido texto, há um momento em que Freud (1895, 2001) afirma que o sujeito
tem inicialmente sua experiência de satisfação com outro ser humano. É a partir desta relação
que os seus complexos perceptivos emanam. Nessa relação, há algo que parece ser uma
estrutura persistente, denominada pelo autor como uma “coisa” (FREUD, 1895, 2001, p. 377)
e há algo que pode ser compreendido através da atividade de memória do sujeito.
Um pouco mais adiante, ele ressalta a seguinte frase “O que chamamos coisas do
mundo são restos que se subtraíram da avaliação do juízo” (FREUD, 1895, 2001, p. 379).
Diante dessas assertivas, há a possibilidade de aproximação entre as palavras: “persistência e
restos” com “perdido e tentativa de reencontro”, como foi ressaltado acima. Algo que é resto e
está perdido, juntamente com algo que persiste e que busca ser reencontrado.
É nessa relação de satisfação entre o infante e o outro (objeto materno), outro este de
quem depende o infante, que essa falta originária é imposta, que esse objeto perdido se
perpetua como ausente na história da espécie humana. Ao mesmo tempo que há a transmissão
dessa perda, acontece essa experiência de satisfação com o outro, que posteriormente será
interferida, havendo também nesta, outra perda. Ainda que sejam tratadas de maneiras
diferentes, as discussões sobre recalque orgânico, coisa, objeto perdido, estão muito
próximas.

58

Nesse sentido, é muito interessante a leitura feita por Jorge (2011) sobre essas
distinções, visto que ele afirma ser necessário distinguir a coisa. Esta para o autor está
relacionada com o objeto perdido da espécie humana, com o objeto materno. Ele opina que há
uma confusão entre esses dois objetos, mas que não é por acaso, pois “[...] o objeto materno
apresenta o poder de funcionar para o sujeito como se fosse o objeto perdido da estrutura,
comparecendo como o primeiro objeto que vem ocupar o lugar deste” (JORGE, 2011, p. 143).
Ele também ressalta a importância dessa distinção, visto que a coisa perdida da espécie
humana está imbricada em um impossível de se ter, e o objeto materno pressupõe o âmbito do
proibido. Dessa maneira, se eles fossem o mesmo, a troca se daria entre o impossível e o
proibido, porém é sabido que eles não são da mesma ordem.
Ainda sobre a coisa, este autor propõe que “é o objeto perdido desde sempre, ou seja,
trata-se de uma perda relativa à história da espécie e não à história dos indivíduos da espécie”
(JORGE, 2011, p. 143). Dessa maneira, o objeto materno corresponde à história dos
indivíduos da espécie e, apesar de ele passar a ocupar este lugar da coisa, não deve ser
confundido com ela. Pode-se afirmar que o objeto materno vem a ser um substituto para esse
objeto perdido da espécie humana, dada a experiência primordial de satisfação. Porém,
também haverá nessa relação uma perda mediante a separação entre mãe e bebê, na qual algo
também é perdido.
A respeito do conceito de objeto, Lacan (1956a, 1995), na introdução do Seminário 4,
sobre a relação de objeto, retoma o texto de Freud (1905b, 2003) sobre o reencontro do
objeto. Neste momento de seu ensino, ele apresenta considerações sobre o sujeito e o objeto
perdido, tendo em vista a relação do infante com o objeto materno. Nesse contexto, Lacan
(1956a, 1995) ressalta que esse objeto que se busca reencontrar foi o objeto que inicialmente
participou das primeiras satisfações da vida do infante e que a partir do desmame, ou seja, da
separação entre mãe e bebê, tornou-se perdido. Com isso, há o sentimento de nostalgia por
parte do sujeito, que busca recuperá-lo durante sua vida.
Assim, o sujeito “[...] está sempre fadado nas suas exigências primordiais a um
retorno, que é, por isso mesmo, um retorno do impossível [...]” (LACAN, 1956a, 1995, p. 1415). Esse impossível indica plenamente que o reencontro não corresponde ao objeto inicial,
mas, de certa forma, trata-se de um objeto ou objetos sempre remetidos e ligados ao inicial.
Lacan (1956b, 1995, p. 25), mais adiante, afirmará que “trata-se de reencontrar o real”. Nesse

59

contexto o real, que não cessa de se repetir, o que demanda incessantemente esse reencontro,
pode ser compreendido como totalmente intricado a essa experiência de satisfação primordial.
A ideia do reencontro com o real, da busca incessante, do que sempre retorna e se
repete, pode ser também pensada a partir de Lacan (1964a, 2008) no Seminário 11, os quatro
conceitos fundamentais, com as noções de tiquê e autômaton. Ele propõe que a tiquê se trata
do “encontro do real” (LACAN, 1964a, 2008, p.59), do encontro faltoso que está relacionado
com o trauma, em outras palavras, ela corresponde ao buraco, ao vazio. Ao contrário do
autômaton, que comporta a “insistência dos signos” (LACAN, 1964a, 2008, p. 59). Este autor
afirma que a tiquê está para além do autômaton, está para além da cadeia simbólica. Ou seja,
pode-se afirmar que ela está relacionada com a repetição e com o objeto perdido, já que a
própria repetição subjaz à noção da busca constante desse objeto.
Os termos “repetição” e “objeto perdido” direcionam para o entendimento da
concepção de objeto no ensino lacaniano, designado como objeto a. Lacan (1963, 2005)
designa a letra a articulada com a noção de objeto para conceber a angústia e o desejo. Para
este autor, a função do objeto a corresponde à função de resto, e resto segundo as suas
palavras, significa: “é aquilo que sobrevive à provação da divisão do campo do Outro pela
presença do sujeito” (LACAN 1963, 2005, p. 243). Assim, este objeto é o que resta da
constituição do sujeito, visto que ele é perdido a partir da entrada do Outro em sua vida. Este
vem romper algo da relação mãe-bebê, rompe algo da ordem da satisfação do infante. Para o
bebê poder se constituir como sujeito, algo passa a ser resto, e este não é simbolizado. É
perdido, fica de fora e demanda ser revivido.
Segundo Brousse (2007), quando o sujeito se torna falante, ele perde um pedaço do
corpo, um pouco de satisfação, e o objeto consiste, justamente, nessa perda. Ela também
relembra que esse objeto a, definido por Lacan, é separado do próprio organismo do bebê.
Deste modo, há uma lógica na busca de ser reencontrado por se tratar de um pedaço perdido
do corpo. É tanto que Lacan (1963, 2005) apontará em seu Seminário cinco formas do objeto
a, que estão atreladas ao corpo: mamilo, cíbalo, falo, olhar e voz. Essas formas são ligadas à
pulsão. Como exemplo, o mamilo está relacionado com a oralidade e tem a ver com a pulsão
oral. Esse exemplo indica a aproximação existente entre nutrição, objeto a e pulsão oral, na
anorexia.

60

Como fora abordada a ideia de a coisa em Freud, é interessante analisar as relações e
as diferenças entre a coisa e o objeto a. Jorge (2011) afirma que foi a noção freudiana da
coisa que direcionou Lacan na denominação da dimensão real do objeto a. Nesse sentido,
apesar da aproximação dessas concepções, elas são diferentes. Jorge (2011) propõe que a
coisa corresponde ao objeto perdido do desejo, enquanto o objeto a designa o objeto causa do
desejo. Portanto, se o primeiro diz respeito à perda da capacidade olfativa do homem, o
segundo é introduzido como resto de uma operação na qual há o surgimento do sujeito. Resto
este que causa o desejo por tentar ser reencontrado em substitutos.
Diante dessa distinção, Jorge (2011) analisa a relação entre ambos, afirmando que
“[...] nesses re-encontros, por trás dos objetos privilegiados de seu desejo, o sujeito irá sempre
se deparar de forma inarredável com a Coisa perdida da espécie humana [...]” (p. 142). Em
outras palavras, na tentativa de reencontrar o resto, o sujeito sempre irá se deparar com a
coisa, com algo que sempre lhe escapa, que é faltoso, o objeto perdido do desejo.
É curioso refletir sobre essa tentativa do reencontro, pois como Quinet (2012, p. 34)
ressalta “[...] nunca o reencontramos a não ser somente seus substitutos, transitórios e fugazes.
Basta um olhar, às vezes uma voz, e ei-lo. Não, ele não está de volta, é apenas eco do que foi
perdido sem nunca ter existido”.
E esses substitutos que parecem sê-lo, mas não são, correspondem ao objeto a, ao
objeto causa de desejo. É ele que incita o sujeito na exigência da satisfação pulsional, já que a
pulsão também não se satisfaz completamente. A pulsão, pela sua fonte corporal e pelo seu
objetivo de satisfação (FREUD, 1915a, 2010), também demanda esse reencontro.
Diante dessas considerações sobre o objeto a será abordada agora a sua relação com o
tão citado “nada” da anorexia (LACAN, 1957, 1995; LACAN 1964b, 2008; RECALCATI,
2001). A esse respeito, Lacan (1964b, 2008) afirma em relação ao objeto a que primeiro é
preciso que ele seja um objeto separável, para só depois ser relacionado com a falta. Então,
primeiramente ele é perdido, para depois ser faltoso. Logo depois, este autor exemplifica tal
ideia ao ressaltar que “no nível oral, é o nada, no que aquilo de que o sujeito foi desmamado
não é nada mais para ele. Na anorexia mental, o que a criança come é o nada” (LACAN,
1964b, 2008, p. 105). Nesse sentido, identifica-se a estreita relação entre a oralidade e o nada:
o nada é aquilo que indica a falta, a separação.

61

Quanto à segunda frase desta citação, Lacan (1964b, 2008) no Seminário 11, os quatro
conceitos fundamentais retoma essa ideia do comer nada, apresentada no Seminário 4, a
relação de objeto, para situar o nada enquanto falta na anorexia. Neste Seminário ele propõe
que “[...] a anorexia mental não é um não comer, mas um comer nada. Insisto: isso quer dizer
comer nada. Nada é justamente algo que existe no plano do simbólico” (LACAN, 1957, 1995,
p. 188). Assim, ele demarca a diferença existente entre a negação da atividade de comer e o
comer nada, que já implica que se come algo.
Mais adiante, ele observa que “esta ausência saboreada como tal, ela a emprega diante
daquilo que tem a sua frente, a saber, a mãe, de quem depende. Graças a este nada, ela faz a
mãe depender dela” (LACAN 1957, 1995, p. 188). Esta “ausência saboreada” corresponde ao
nada, a justamente o que o sujeito com anorexia mental come, e é este nada que se interpõe na
relação entre mãe e filho (a), provocando, de alguma forma, uma tentativa de interrupção
nessa relação.
Segundo Fuks e Pollo (2010), a anorexia, a partir dessa perspectiva lacaniana, “[...] é a
consequência da relação do sujeito com o Outro [...]” (FUKS; POLLO, 2010, p. 415).
Consequência, pois ela é decorrente dessa relação mãe-filho. Essa mãe, que se apresenta ao
bebê a partir de uma onipotência incalculável, tenta preencher sua falta enchendo o bebê de
alimento. Tendo em vista que o objeto a é causa de desejo, o nada é aquilo de que o sujeito
inconscientemente se utiliza para tentar cavar essa falta no Outro e a sua própria falta, que
constituirá o rumo de seu desejo.
A tentativa de cavar essa falta, segundo essas autoras, é exposta no corpo do sujeito.
Nesse caso, elas afirmam: “Seu corpo transforma-se em um semicadáver: deixa-se consumir
para abrir no Outro materno uma falta” (FUKS; POLLO, 2010, p. 416). É nesse sentido que o
corpo do sujeito vai se deteriorando e, portanto, a anoréxica come o nada. O nada como
“objeto separador” (RECALCATI, 2001, p.27) entre ela e a mãe, indicando que o desejo está
para além dessa relação. Assim, o sujeito consegue inverter a relação de onipotência materna,
sendo agora ele onipotente, a partir desse nada, e sua mãe impotente, visto que tudo que ela
lhe oferece é recusado. Nesse sentido, Recalcati (2000) ressalta que a anoréxica se identifica
ao objeto perdido, fazendo dela mesma o objeto perdido para o Outro com o propósito de
cavar uma falta no Outro. Na tentativa de cavar essa falta, ela inverte essa relação de
onipotência.

62

Dessa maneira, Silva e Bastos (2006) afirmam que “[...] a anorexia seria, então, uma
manobra de separação do sujeito em relação ao Outro. Aí onde o Outro parece sufocar toda
falta, a recusa surge como desejo [...]” (SILVA; BASTOS, 2006, p. 100). Essa citação indica
que esse sintoma é consequência da relação entre o sujeito e o Outro, visto que de alguma
maneira o sujeito busca essa operação de separação em detrimento da alienação, a favor do
surgimento de seu desejo.
A recusa neste caso confirma que não se trata de um não comer, não se trata da
inapetência, da ordem da necessidade, mas sim desse “nada” propulsor ao desejo. Nesse
sentido é interessante quando Recalcati (2001, p. 28) enuncia a seguinte frase: “É o nada
como escudo e como suporte do desejo”. É o nada que protege o sujeito do Outro sufocante e
que ao tentar cavar a falta, pode fazer eclodir o desejo.
A partir da concepção de Lacan (1957, 1995) de que a anorexia não se trata um “não
comer”, mas sim de um “comer nada”, é possível refletir sobre a denúncia do corpo da
anoréxica. Tendo em vista que na anorexia não se trata da negação da atividade de comer,
mas sim de “comer nada”, “nada” enquanto objeto, objeto separador que o sujeito busca para
causar furo no Outro onipotente, esse corpo esquelético funciona como tentativa de cavar a
falta no Outro. Em outros termos, o sujeito com seu corpo e sob o signo do “nada” se
apresenta numa posição onipotente ao recusar o alimento oferecido pelo Outro, agora
impotente.
O que o sujeito demanda ao Outro, segundo Greco (2012) na introdução da
autobiografia Todo o pão do mundo de Clercq (2012), é que ele lhe dê a sua falta e não que
ele lhe encha de alimento. Para Lacan (1958, 1998), a mãe ao empanturrar a criança com a
papinha sufocante, confunde seus cuidados com seu dom de amor, ou seja, confunde a
necessidade com o amor. E “é a criança alimentada com mais amor que recusa o alimento e
usa sua recusa como um desejo (anorexia mental)” (LACAN, 1958, 1998, p. 634). Nesse
sentido, Greco (2012) colabora na análise dessa relação entre necessidade e amor, quando
afirma que: “[...] o verdadeiro transtorno “alimentar” da anorexia: a fome de amor, que
nenhum objeto ou substância – nem todo o pão do mundo – é capaz de saciar” (GRECO,
2012, p. 12). Assim, o pão é o alimento em que a mãe insiste, porém não é esse alimento de
que o sujeito necessita, “não é fome de pão, mas de um objeto não comestível, vindo de quem
representa uma referência simbólica para o sujeito” (GRECO, 2012, p. 5). O sujeito então usa
a recusa alimentar na busca pelo alimento necessário.

63

Com relação ao corpo extremamente magro da anoréxica, Cordié (2000, p. 210)
ressalta que “todas as anoréxicas mantêm o mesmo corpo”. É através desse corpo cadavérico
que a anoréxica provoca o surgimento da falta no Outro, tendo em vista o surgimento de seu
desejo. Dessa forma, Criscaut (2000) anota que o vazio da anoréxica, ou seja, o vazio do seu
corpo, pode ser concebido como uma tentativa de construir um terceiro. Um terceiro ante essa
relação fusional materna. O terceiro que proporcione e provoque a falta no Outro, o terceiro
que revele que há o desejo para além dessa relação dual.
O aspecto que o corpo detém nos casos de anorexia remete para a imagem corporal
que a anoréxica tem de si. A esse respeito, Lima (2012) propõe que o sintoma anoréxico se
organiza em torno de um impasse identificatório do sujeito com sua imagem corporal. Nesse
contexto, a anoréxica, embora extremamente emagrecida, continua a se ver gorda no espelho
(LIMA, 2012). Essa questão da distorção da imagem corporal é uma das condições para o
diagnóstico médico da anorexia enquanto transtorno.
Como foi concebido no capítulo anterior, a imagem do sujeito é constituída através do
olhar do Outro (LACAN, 1949, 1998). Segundo Queiroz (2007), a maneira como somos
olhados determina um destino. Desse modo, pode-se afirmar que essa distorção da imagem
que a anoréxica detém de si mesma está relacionada com o olhar recebido do Outro. E mais
especificamente, está relacionada com a relação entre a anoréxica e sua mãe, o Outro
intrusivo. Assim, Fernandes (2006) afirma que a ausência de um investimento materno
adequado evidencia a percepção corporal distorcida da sua imagem.
É interessante quando Clercq (2012, p. 65) ressalta, em sua autobiografia, a percepção
de seu corpo:
Emagreci lentamente e não tenho a percepção do quanto esteja magra. De fato, é só
porque os outros dizem que estou esquelética que posso acreditar que realmente
estou. Encontrar roupas que me sirvam tornou-se uma dificuldade, sou obrigada a
comprar nas lojas para crianças.

Ou seja, a imagem que ela tinha de si mesma não condizia com a do seu corpo
extremamente emagrecido. Ela se olha no espelho e a imagem que aparece não condiz com a
sua própria imagem, pois é distorcida. É diante do que os outros lhe falam sobre seu corpo
esquelético que ela pode acreditar que realmente está muito magra. O corpo esquelético só
ganha significado a partir do que as outras pessoas lhe dizem, a partir do olhar do Outro. É
também a partir dessa percepção corporal que se pode conceber a questão da morte na

64

anorexia. Segundo Fernandes (2006), as anoréxicas ao recusarem o alimento e levar seus
corpos à inanição, não querem se matar, ou seja, sua condição física não indica uma tentativa
de suicídio. Talvez, justamente porque a imagem corporal é distorcida, ela não tem ideia, ou
ao menos, uma noção de que sua condição física diante de uma inanição pode ocasionar em
sua morte.
Este “nada” e o corpo esquelético do sujeito com anorexia podem ser concebidos
como tentativa de interrupção na relação do sujeito com o Outro. É através desse corpo
esquelético que o sujeito busca a vida, o seu desejo, já que este é praticamente inexistente
diante da intrusão materna. Portanto, quanto mais os profissionais e familiares insistem na
alimentação, mais o sujeito recusa, demonstrando sua onipotência e tentando constituir o seu
desejo. Nessa perspectiva é interessante quando Bellini (2000) aponta dois questionamentos
que podem ser feitos em torno do sujeito com anorexia, o primeiro pela medicina, “por que
não come?”, e o segundo pela psicanálise, “por que come nada?”. Ou seja, não é que não se
come na anorexia; o que se come é o nada, pois apesar de parecer um “não comer”, visto que
não há alimentação, esse “nada” é dotado de significados para o sujeito. É isso o que ele
come!
Essa consumação direciona para a compreensão do uso que a anoréxica faz de seu
próprio corpo, corpo este constituído através da relação do sujeito com significantes, que não
se esgotam no corpo anatômico. É tanto que, na atualidade, observa-se também uma mudança
no modo como a anorexia se apresenta. Esse corpo cadavérico, a partir do ideal do corpo
magro que demarca esta cultura, vem sendo idealizado, visto que há sujeitos que reverenciam
a anorexia como modo e estilo de vida. Ao invés de conceber a anorexia como uma patologia
que necessita de tratamento, há sujeitos do movimento pró-anorexia que a exaltam. Será
apresentado a seguir como os sujeitos exaltam a anorexia na contemporaneidade.
3.5

O movimento pró-anorexia
O movimento pró-anorexia corresponde a uma disseminação a favor da anorexia,

principalmente no meio virtual. Esse movimento está relacionado com a idealização da
magreza contemporânea, e na internet a imagem do corpo magro é idealizada, exibida e
bastante veiculada. As redes sociais, os sites de relacionamentos e os blogs, são espaços
virtuais nos quais se propaga o culto pela magreza. Esse culto pode ser evidenciado pela
exibição de fotos assim como através do compartilhamento de práticas que reportam ao

65

emagrecimento, ao emagrecimento extremo. A internet é o palco da cultura narcisista
(LASCH, 1983) e da sociedade do espetáculo (DEBORD, 1997) e os sujeitos são
contemplados através dessas práticas.
Os estudos da nutricionista Erbert (2005) sobre anorexia apresentam relatos de casos
clínicos e trechos de blogs do movimento pró-anorexia que a retratam como estilo de vida.
Segundo essa autora, esses blogs, nos quais os sujeitos compartilham informações diárias,
surgiram em massa em 2001 nos Estudos Unidos. Muitos não existem mais, mas no Brasil
eles ainda são frequentes. Na sua análise, os sujeitos nesses espaços virtuais “utilizam fotos de
modelos magérrimas como fonte de inspiração para emagrecer e fotos de pessoas com
obesidade mórbida para incentivar a não comer” (ERBERT, 2005, p. 41). Essas são formas de
os sujeitos se apoiarem na anorexia, e mesmo sabendo dos riscos que correm, não buscam
tratamento.
Em seu texto, Erbert (2005) apresenta a “Carta da Ana: anorexia”, que foi retirada de
um site em prol da anorexia. Nesta Carta há trechos interessantes que podem ajudar na
compreensão desse movimento pró-anorexia. Como, por exemplo, este: “você olha no espelho
com enjôo. Você fica enjoada quando vê tanta banha no seu estômago, e sorri quando
começam a aparecer seus ossos” (ERBERT, 2005, p. 44).
Quando é exposta nessa Carta uma espécie de recaída do sujeito que não conseguiu
recusar o alimento e comeu compulsivamente, há o seguinte trecho: “eu vou te forçar a ir ao
banheiro ajoelhar-se olhando para a privada! Seus dedos vão para dentro da sua garganta, e
com uma boa quantidade de dor, a comida vai sair toda” (ERBERT, 2005, p.46). Nesse caso,
há um incentivo para os mecanismos compensatórios, como é a indução de vômitos, em um
momento que o sujeito comeu, talvez, de forma exagerada.
Ainda no estudo dessa autora, há a análise de um blog em que a exposição da meta de
um sujeito com anorexia é a seguinte: “nova dieta, nova meta, finalmente apaguei aquela
velha meta de 44 kg e coloquei a nova, 38 kg, vamos ver no que vai dá. Espero não ter que
voltar para o hospital, mas eu engano direitinho os médicos [...]” (ERBERT, 2005, p. 51).
Aqui, o sujeito provavelmente já esteve no hospital devido a sua condição física, mas opta por
iniciar uma restrição alimentar ainda mais intensa e compartilha essa ideia socialmente. Esses
assuntos que são compartilhados trazem aspectos importantes para ser pensados e discutidos,
visto que nessa concepção a anorexia não é vista como uma patologia, como um sofrimento.

66

Foi possível observar as ideias desse movimento pró-anorexia ao realizar uma busca,
no início deste trabalho, no site de relacionamento Orkut (rede social, filiada ao Google, que
surgiu em 2004)2 por comunidades sobre anorexia. Ao procurar por blogs nos quais os
usuários postam diariamente informações temáticas que retratam a anorexia, foram
encontrados diversos que consideram a anorexia como estilo de vida. Alguns com postagens
recentes desse ano, outros com postagens de anos anteriores. Na rede social Facebook, foram
localizados perfis sobre anorexia e sintomas alimentares nos quais os usuários “curtem” as
publicações que são feitas. Nesses perfis temáticos são colocadas definições sobre anorexia e
modos de prevenção e há também perfis contra o movimento pró-anorexia.
Nessas comunidades do Orkut e nos blogs, os usuários compartilhavam inúmeras
informações, tais como: diários, desabafos, superações, dúvidas sobre a sintomatologia, risco
de morte, medicamentos para emagrecimento, indução de vômito, tratamento, grupos de
ajuda, cálculo do IMC. Existem comentários dos participantes que exaltam movimentos em
prol da anorexia: “a comida é inimiga da perfeição”; “você não deve comer”; “oração próanorexia”; “comida é um veneno que te consome”; “pesar 40kg significa atingir a perfeição”;
“estar fraca é ser forte”. São comentários que reverenciam a anorexia. O sujeito não só tem
anorexia, como expõe que tem e ainda propaga a anorexia como um bem. Um bem que se
tem, que se mostra e que deve ser “adquirido”, pois ela é concebida como um estilo de vida.
Na descrição da comunidade do Orkut Eu tenho anorexia e bulimia, há um texto que
induz para a reflexão sobre a forma como a anorexia se apresenta, juntamente com o padrão
corporal vigente e os códigos de beleza da cultura atual. A descrição é a seguinte: “não nos
julguem, porque nós estamos buscando o caminho da perfeição, o caminho que nos fará muito
lindas e perfeitas. E, além do mais, magras e felizes porque a nossa alegria consiste em
emagrecer. Anorexia não é uma dieta, uma modinha, é um estilo de vida”.
Dessa forma, os criadores da comunidade pedem para não ser julgados por
conceberem a anorexia dessa maneira. Outro ponto que deve ser destacado é o culto pela
magreza, que consta nessa descrição e está em consonância com o que a cultura propõe como
ideal. Há nesses sujeitos uma tentativa de manter o ideal anoréxico. A anorexia é concebida
pelos sujeitos de tal modo que se torna estilo e modo de vida, e essa prática muitas vezes
corresponde aos aspectos idealizados pelos próprios sujeitos contemporâneos.

2

Orkut. In: WIKIPEDIA. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Orkut. Acesso em: 8 fev. 2012.

67

Também é válido ressaltar que essas práticas virtuais podem ser incentivadoras.
Muitas mulheres começaram a jejuar depois de saber da história e prática alimentar de Santa
Catarina; muitos sujeitos podem ser influenciados a essa prática ao se depararem com uma
divulgação virtual idealizadora da anorexia. Nesse sentido, Weinberg e Cordás (2006)
atentam para o desenvolvimento da anorexia em sujeitos que passaram a ter algum tipo de
familiaridade com a doença. É como se esse contato contribuísse para a formação, sendo
importante destacar que contribuição e causalidade são fundamentos distintos. Esses autores
também propõem que o movimento pró-anorexia pode ser tido como agente provocador e
pode estar relacionado ao aumento da incidência na atualidade.
A anorexia, ao ser retratada como estilo e modo de vida por esses sujeitos, aparenta
não ser vivida como sofrimento, como algo que faz questão para o sujeito e demanda um
tratamento. Foram encontrados estudos que investigam e mencionam esses dados virtuais que
retratam a anorexia reverenciada como estilo de vida (MILLER, 2004; ERBERT, 2005;
FERNANDES, 2006; WEINBERG; CORDÁS, 2006; SILVEIRA JÚNIOR; REIS, 2009;
FUKS; CAMPOS, 2010; GIACOMOZZI, 2010; RIBEIRO; QUEIROZ, 2010; RAMOS,
PEREIRA; BAGRICHEVSKY, 2011).
Tendo em vista a concepção de anorexia enquanto estilo de vida e sua relação com o
ideal do corpo magro, será que esse aumento na incidência de anorexia na atualidade é
decorrente da obsessão pela magreza? O corpo de um anoréxico é um corpo magro? Caso esta
resposta seja positiva, há limites na busca pelo ideal da magreza? O aumento na incidência
pode estar relacionado com o uso excessivo de drogas anorexígenas?
Silva (2007) traz considerações importantes sobre o ideal do corpo magro e a anorexia,
pois entende que esse ideal não é suficiente para o desencadeamento da anorexia:
Não negamos os efeitos que o ideal de um corpo magro possa ter sobre o sujeito de
uma forma geral, mas pensamos ser mais interessante nos perguntarmos por que
alguns sujeitos desenvolvem anorexia e outros não, se todos estão, de alguma forma,
sob o efeito dessas mensagens (SILVA, 2007, p. 124).

Nessa perspectiva, para os autores Nascimento e Faveret (2009), a anorexia condiz
com uma “perturbação que faz o corpo definhar” (NASCIMENTO; FAVERET, 2009, p. 48).
O organismo do sujeito aos poucos perde as funções vitais. Apesar de o corpo magro ser
almejado e tido como o padrão de beleza da atualidade, o sujeito anoréxico se apresenta para
além da magreza. A idealização da magreza pode existir, porém nesses sujeitos o corpo está

68

para além desse ideal. É o excesso e o extremo; ele não só está magro, muito magro, como
também os órgãos aos poucos vão se consumindo e se deteriorando.
Da mesma maneira, Fortes (2010, p. 86) observa em relação à anorexia:
[...] a exigência do corpo magro tem ressonância com o ideal de magreza da
atualidade, mas nesse quadro clínico ela assume dimensões macabras, pois passa a
servir às forças mortíferas, atingindo a magreza o limiar de um corpo-cadáver que
desafia o outro ao flertar com a morte.

Neste caso, se todos pertencem à cultura contemporânea, certamente alguns estão mais
propensos ao desenvolvimento da anorexia diante da sua própria história e condição de vida,
tal como visto nos tópicos discutidos acima. Será que a anorexia surgiu na vida de um sujeito
quando ele se empenhou na busca por um corpo magro? E em vez de um corpo magro, ele
obteve um corpo esquelético e cadavérico? Essa reverência e essa idealização do corpo magro
não são suficientes para que a anorexia surja na vida dos sujeitos. Há algo nesses sujeitos que
provoca o surgimento que está para além desse ideal e que está relacionado à constituição do
sintoma.
Tendo em vista a anorexia como estilo de vida, é possível analisar a propulsão para a
anorexia na atualidade, visto que ela é enfatizada por uma cultura que idealiza a magreza.
Porém, segundo os autores citados (FORTES, 2010; NASCIMENTO; FAVERET 2009;
SILVA, 2007) nos dois últimos parágrafos, a anorexia se apresenta para além da magreza.
A causalidade cultural não determina essa incidência, apesar de possuir aspectos que
podem ser propulsores, mas não determinantes. Nesse sentido, este trabalho se direcionou ao
estudo do sintoma, visto que o surgimento da anorexia em cada sujeito se deve à formação
sintomática. No próximo capítulo será abordado o conceito de sintoma, uma vez que o
objetivo do estudo é analisar a relação entre a cultura do culto ao corpo e a anorexia,
refletindo se, nesse contexto, a anorexia pode ser considerada sintoma analítico.

69

4

ANOREXIA: SINTOMA ANALÍTICO?
A partir dos aspectos que constitui esta cultura e da forma como a anorexia se

apresenta na contemporaneidade, surge o questionamento: a anorexia pode ser considerada
um sintoma analítico? Mas o que é um sintoma analítico? Pode-se afirmar que o sintoma
analítico é concebido na teoria psicanalítica; desse modo, primeiramente deve se responder à
seguinte pergunta: o que é um sintoma?
Neste capítulo serão apresentadas as concepções de sintoma, tendo em vista a
perspectiva médica e a perspectiva psicanalítica. Na concepção psicanalítica serão discutidos
os seguintes aspectos: o sintoma na teoria freudiana, a relação entre sintoma e demanda, e por
fim, se a anorexia pode ou não ser considerada um sintoma. É importante ressaltar que essa
definição de sintoma na teoria psicanalítica será feita a partir da estrutura neurótica, pois há
particularidades que devem ser consideradas na relação entre estrutura e sintoma (FREUD,
1924b, 2011). Este trabalho se deteve na análise da anorexia enquanto sintoma, considerando
a estrutura neurótica.
4.1

O sintoma nas concepções médica e psicanalítica
Para introduzir a questão do sintoma nas concepções médica e psicanalítica, é

importante compreender que tipo de relação existe entre medicina e psicanálise. A respeito
dessa relação, Lacan (1966, 2001) analisa o lugar que a psicanálise ocupa na medicina. Ele
ressalta que é um lugar marginal e extraterritorial. Nas palavras do autor:
Ele é marginal por conta da posição da medicina com relação à psicanálise – ela
admite-a como uma espécie de ajuda exterior, comparável àquela dos psicólogos e
dos outros distintos assistentes terapêuticos. Ele é extraterritorial por conta dos
psicanalistas, que provavelmente têm suas razões para querer conservar esta
extraterritorialidade (LACAN, 1966, 2001, p. 8).

Com a definição, observa-se a distinção existente entre psicanálise e medicina. A
medicina coloca a psicanálise à margem, e a psicanálise opta por uma extraterritorialidade.
Apesar de a psicanálise ter surgido no campo médico, afinal Freud era neurologista, esse lugar
de margem e de extraterritorialidade é demarcado desde o início de sua obra. Tendo em vista
essa distinção, Clavreul (1978), em A ordem médica, explicita que o discurso médico se
sustenta através da objetividade, ao contrário do discurso psicanalítico, que reivindica a
inclusão da subjetividade.

70

Assim, a medicina e a psicanálise ocupam posições distintas: uma se coloca ante a
outra. Entretanto, essa distinção não impossibilita um trabalho associado entre elas. O
trabalho psicanalítico é solicitado pela medicina, seja para trazer uma técnica complementar,
seja para colocar ordem no famoso “fator psíquico”, e a psicanálise pretende subvertê-la nessa
solicitação (CLAVREUL, 1978). Nota-se que medicina e psicanálise não se constituem a
partir de um mesmo discurso e tampouco se mantêm no mesmo discurso.
As contribuições de Zanotti e Monlleó (2012) evidenciam essa distinção, quando as
autoras ressaltam os desafios de uma experiência de atendimento integrado entre medicina e
psicanálise. Elas afirmam que na medicina o tempo destinado para o diagnóstico e tratamento
é modulado pelos riscos à saúde; trata-se de um tempo cronológico; já na psicanálise não se
tem como prever a duração de um tratamento, é o tempo de cada sujeito. Outro desafio nessa
experiência de atendimento integrado foi quanto ao uso de termos e conceitos da literatura
médica e psicanalítica, visto que “foi necessário certo tempo e empenho da equipe para
conhecer a terminologia utilizada por cada profissional” (ZANOTTI; MONLLEÓ, 2012, p.
263).
Pode-se observar nesse desafio a distinção existente no tratamento médico e
psicanalítico, tendo em vista os diferentes conceitos que os dois campos constituem. O
aspecto do sigilo também foi discutido, devido à importância da sua preservação, ainda que o
atendimento integrado fosse pensado a partir das discussões do atendimento de cada caso.
Com a exemplificação desses desafios, entende-se que há distinções nos tratamentos e nesse
sentido, serão apresentadas as concepções do sintoma na psicanálise e na medicina.
De acordo com as proposições de Tizio (2009), analisa-se a posição de um tratamento
clínico a partir do sintoma. Há diferenças nas concepções de sintoma para a medicina e para a
psicanálise. Miller (1997) afirma que o sintoma não é o mesmo no campo psiquiátrico e no
psicanalítico. Segundo este autor, a medicina psiquiátrica é uma clínica da observação: o
médico observa o sintoma, descreve-o, classifica-o e lhe dá um nome. É uma clínica do que
pode ser observado, é uma clínica do olhar.
Freud (1926b, 2001) contribui com essa discussão em Podem os leigos exercer a
psicanálise? Diálogos com um juiz imparcial, ao propor que:
O analista não utiliza instrumentos, nem sequer para examinar o paciente e
tampouco prescreve medicamentos. Sempre que é possível, faz com que durante o

71

tratamento o paciente permaneça em seu ambiente e mantenha suas relações
habituais (FREUD, 1926b, 2001, p. 175).

Essa citação exprime a diferença entre a psicanálise e a medicina. Enquanto esta é uma
clínica do que pode ser observado, para isso, o médico utiliza instrumentos, examina o
paciente e diante do quadro clínico receita medicamentos como tratamento; o psicanalista
assume outra posição, já que sua clínica é a da escuta. A observação não é o fundamento da
sua clínica, pois ele exerce sua função a partir da fala do paciente. Mais adiante, Freud
(1926b, 2001) continua: “O analista fixa um determinado horário do dia com o paciente, faz
com que ele fale, escuta-o, depois ele conversa com o paciente e faz com que ele ouça”
(FREUD, 1926b, 2001, p. 175). Pode-se afirmar que é uma clínica da fala, uma clínica da
escuta, uma clínica do silêncio e das palavras.
Nesse caso, Miller (1997) propõe que o sintoma analítico só existe se for falado pelo
paciente, e não quando observado pelo médico, pois “[...] a clínica psicanalítica é feita pelo
paciente, oriunda de seu próprio discurso” (MILLER, 1997, p. 123). Leite (2010) ressalta que
“na psicanálise, o sintoma não é observável nem pode ser descrito, pois é reduzido à fala, e o
que se diz numa sessão analítica é o que se transforma em sintoma” (LEITE, 2010, p. 128).
Moretto (2001) também contribui com essa discussão ao afirmar que no campo da
medicina, o sintoma, apesar de ser apresentado pelo doente, é constituído pelo médico. Já o
sintoma analítico “[...] só existe quando falado pelo paciente, ou seja, a clínica psicanalítica é
fundamentalmente uma clínica feita pelos pacientes, oriunda do seu próprio discurso”
(MORETTO, 2001, p. 91). São maneiras diferentes do médico e do analista se posicionarem
diante do sintoma, e essa posição é evidenciada nos tratamentos clínicos.
Pode-se entender que na psicanálise o tratamento acontece apenas quando o sujeito
fala do seu sofrimento, e não quando o sujeito é examinado e observado clinicamente pelo
médico. O sintoma não é da ordem do observável, do que pode ser visto, examinado, previsto;
é da ordem da fala e da escuta. Diante dessas considerações, Clavreul (1978) assevera que, a
experiência da psicanálise evidencia um discurso em que se diz mais do que se sabe; o sujeito
encontra uma resposta para uma questão que até então ele não havia se colocado. Neste
sentido, Moretto (2001, p. 94) ressalta que
Na análise, o esperado é que o paciente confesse ele mesmo a sua verdade e que o
faça sem sabê-lo, na medida em que, independentemente de sua boa ou má vontade,
ele termina não dizendo o que queria dizer; diz o que não queria dizer e se depara
com o fato de que seu discurso não é aquele que ele crê.

72

Com essa citação pode-se observar que tanto a fala quanto a escuta estão atreladas a
cada sujeito e à relação analítica; assim, não se tem como prever o que vai ser dito e quais
intervenções analíticas acontecerão. O próprio sujeito se depara com associações inesperadas
que surgem diante do seu “falar livremente”; já no campo médico, a fala do sujeito é ouvida
para ser descartada imediatamente (JORGE, 1978). Segundo este autor, sob a máscara de um
diálogo se instaura um monólogo nessa relação médico-paciente. Nesse monólogo se
evidencia a função silenciadora do discurso médico, função esta que é totalmente inversa na
perspectiva psicanalítica.
Nesse sentido, é através do relato inicial do sujeito, juntamente com a observação e
exames clínicos, que o médico poderá diagnosticar se há ou não uma disfunção. Porém o
relato do sujeito só é realçado para o diagnóstico. Logo depois, essa fala é silenciada e até
mesmo destituída pelo profissional.
O sujeito com determinado sofrimento será atendido pela medicina de maneira
diferente de quando atendido pela psicanálise. O termo curar é utilizado comumente pelo
discurso médico, que concebe o sujeito como paciente, como passivo diante de seu
sofrimento. É o médico com suas técnicas, seu diagnóstico e com a indicação terapêutica
medicamentosa que tratará o sofrimento, que eliminará o sintoma.
O sujeito nessa posição de passividade não é responsabilizado por seu sintoma, ele é
passivo perante sua queixa. Desse modo, Leite (2010) considera que o psicanalista não pode
prometer uma cura ao paciente, mas sim um tratamento. Em outras palavras, o tratamento
psicanalítico não visa a cura da doença, mas é através da responsabilização do sujeito ante seu
sofrimento que as associações acontecem, mudanças surgem e os sintomas podem vir a
desaparecer. O objetivo desse tratamento não está relacionado à eliminação do sintoma, e se
isso acontece, é a partir dos efeitos do tratamento, mas não como seu objetivo principal
(MORETTO, 2001).
Diante dessas considerações, Tizio (2009, p. 117) afirma que “[...] não é a mesma
coisa o diagnóstico que o profissional faz e o reconhecimento que o sujeito tem de seu
padecimento”. Essa diferença é interessante, pois o sujeito relata a sua queixa ao médico e a
partir desta, o médico, ou seja, uma pessoa distinta diagnostica o que o outro (sujeito) tem.
Essa diferença é observada quando o autor propõe que “Há diferença entre dizer que ‘tem’ um

73

rechaço a certos alimentos, e é necessário ver do que se trata, e asseverar ‘é anoréxico’
(TIZIO, 2009, p. 128)”. De rechaço passou a ser anorexia.
Este é um diagnóstico feito mediante manuais diagnósticos (DSM-IV), baseado em
categorizações nosológicas e nosográficas que contêm uma série de sintomas e patologias
correspondentes, enquadradas como transtornos. O sujeito assume então uma posição passiva,
visto que é o outro que detém um saber, técnico, sobre seu sintoma. É dessa maneira, segundo
Clavreul (1978), que o sujeito entra no discurso médico, através da nomeação da doença,
através do diagnóstico. O saber sobre si, sobre o sofrimento, é transformado, pelo médico, em
um transtorno.
Na medicina, tanto as técnicas como as terapêuticas medicamentosas são utilizadas na
tentativa de reparar uma disfunção de determinado órgão do sujeito. Organismo e corpo são
sinônimos na concepção médica, ou seja, eles correspondem ao orgânico, ao biológico, ao
anatômico. Nesse caso, se há uma disfunção no paciente, ela necessita ser reajustada para que
o organismo funcione normalmente. Esse sintoma, ou disfunção, relatado na queixa do sujeito
ao buscar um atendimento médico, é considerado como sinal que evidencia a disfunção e
pode ser detectado por exames clínicos e avançados feitos ou solicitados por este profissional.
O avanço da tecnologia na área médica tem facilitado a detecção precoce dessas disfunções. A
detecção pode ser rápida, o que em muitos momentos possibilita um tratamento eficaz.
Também diante do sofrimento, na cultura pragmática da atualidade, há a exigência por uma
solução imediata.
Esta solução imediata muitas vezes consiste em uso de medicamentos. Tal como
Clavreul (1978) ressalta, é possível prever que o leitor (o leitor de sua obra), quaisquer que
sejam as suas convicções pessoais, tomará medicamento caso sinta algum mal-estar. Com o
desenvolvimento e o avanço da indústria farmacêutica, em alguns dias os medicamentos
começam a atuar em localidades específicas do organismo e a produzir seus efeitos. Apesar
das reações e efeitos colaterais dos medicamentos, o que interessa para os sujeitos hedonistas
na atualidade é a supressão do sofrimento da maneira mais rápida possível.
O medicamento pode ser entendido como a resposta do profissional ao sujeito que lhe
questiona um saber sobre seu sofrimento. É importante também ressaltar o uso desenfreado de

74

medicamentos que os sujeitos contemporâneos ingerem por conta própria 3. A automedicação
é frequentemente utilizada pelos sujeito, que ao invés de buscar ajuda profissional para tratar
o seu sintoma, decidem por si só, muitas vezes apoiado em pesquisas no meio virtual,
medicar-se. O medicamento, quando administrado indiscriminadamente e no intuito de
reparar a disfunção de maneira rápida, seja por recomendação médica ou por automedicação,
silencia e tampona o surgimento de reflexões e posicionamentos dos sujeitos, em face dos
seus sofrimentos, que podem ser favoráveis para o próprio tratamento.
Por exemplo, um sujeito que busca um tratamento e começa a fazer uso de medicação,
não é que ele não necessite da medicação, mas esse uso ajuda-o a ignorar influências
cotidianas que podem estar relacionadas com a formação sintomática. O medicamento, muitas
vezes, é recomendado como a única possibilidade que o sujeito tem para tratar seu sintoma, e
em alguns casos o uso pode não ser suficiente para tratá-lo. Porém, esse é o recurso que o
sujeito possui, e ante uma promessa medicamentosa de cura, opta por esse uso, sem
questionar o tratamento e seu próprio sofrimento.
À medida que o diagnóstico e o medicamento lhe são oferecidos, o espaço para o
sujeito se posicionar de forma ativa ante seu sofrimento, muitas vezes, torna-se inexistente.
Como o sujeito se questionará sobre seu sofrimento, já que o outro lhe disse o que deve ser
feito para que este seja eliminado? Como Tizio (2009, p. 121) afirma: “[...] o medicamento
assim empregado obtura um espaço de onde surgiriam as perguntas”. Ou seja, o medicamento
pode impossibilitar o sujeito de indagar sobre o seu sofrimento, já que ele detém a possível
solução para o sofrimento, o medicamento indicado.
Dessa maneira, existem aqueles que se ajustam a esse método e os que não se
conformam com o diagnóstico, com o tratamento e com o sofrimento. Esses sujeitos são os
que geralmente buscam e optam por outras formas de tratar seu sofrimento. Como ressaltaram
as autoras Canavêz e Herzog (2007) no final do século XIX, a postulação freudiana subverteu
a concepção médica de sintoma que predominava no meio científico. Para as autoras, em vez
de o sintoma ser entendido como “um mal a ser eliminado” (CANAVÊZ; HERZOG, 2007, p.
119), Freud considerou que “o sintoma expressava um conflito intransponível, apontando para
forças contrárias que não podiam ser anuladas” (CANAVÊZ; HERZOG, 2007, p. 119). Essa

3

AUTOMEDICAÇÃO. Revista da Associação Médica Brasileira, São Paulo, v. 47, n. 4, 269-270, 2001.
Disponível
em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010442302001000400001&lng=pt&tlng=pt. Acesso em: 7 jan. 2013.

75

eliminação, comumente feita pelo uso de medicamentos, não deve acontecer de forma brusca,
visto que o sintoma pode expressar algo do próprio sujeito. Algo que, de certo modo, estrutura
e sustenta o sujeito. Dessa forma, a concepção psicanalítica de sintoma é divergente da
concepção médica, e tem seu início com estudos freudianos.
Laia (2008) observa que apesar de o sintoma ser apresentado como um problema, na
psicanálise ele não é tratado como algo que deve ser extirpado. Dessa forma, “[...] será no
tratamento analítico que o sujeito poderá, segundo Freud, encontrar uma solução para a
solução de compromisso em jogo em seu próprio sintoma” (LAIA, 2008, p. 67). Há uma
função do sintoma na vida do sujeito. É na análise que ela provavelmente surgirá, e é também
nela que o sujeito encontrará uma solução para o sintoma, que não é necessariamente a
eliminação deste.
Nessa perspectiva, diferentes autores que pesquisam na interface psicanálise e
medicina (BESSET et al., 2009; CANAVÊZ; HERZOG, 2007; GASPARD, 2012; LAIA,
2008) corroboram esta concepção freudiana da função do sintoma. Eles concordam com o pai
da psicanálise quanto à premissa de que o sintoma tem uma função para o sujeito e que o
tratamento psicanalítico não deve ser baseado na remoção dos sintomas, mas sim na
compreensão das manifestações dos mesmos.
Outro conceito que auxilia nessa distinção do sintoma para a medicina e para a
psicanálise é a de corpo. Para a medicina o corpo tem um estatuto biológico, orgânico. Para a
psicanálise, a concepção de corpo é mais ampla e inclui a pulsão. O conceito de pulsão foi
apresentado no segundo capítulo desta dissertação: é um conceito-limite da psicanálise entre o
físico e o psíquico (FREUD, 1915a, 2010). Nesse sentido, compreende-se que o corpo para a
psicanálise está “para além” da noção de organismo, e que erogeneidade, representações,
significações e investimentos compõem esse corpo pulsional. Este não se restringe à
concepção médica de corpo organicista.
Gaspard (2012) também realiza considerações sobre o sintoma e propõe que em lugar
de conceber o sintoma como disfunção ou déficit, o sintoma na concepção psicanalítica é um
recurso utilizado pelo sujeito ante uma situação de impasse psíquico. Nesse caso, há uma
implicação do sujeito em seu próprio sintoma e sofrimento, e ao contrário da ideia de
disfunção, além de eles terem uma função na vida do sujeito, a formação do sintoma está

76

relacionada com o próprio sujeito. A singularidade do sintoma é realçada nessa perspectiva,
visto que as categorizações nosológicas e nosográficas generalizam os sintomas.
Como foi abordado no Capítulo 3, na medicina a anorexia é diagnosticada enquanto
transtorno alimentar, a partir de uma série de critérios clínicos. São esses critérios constantes
dos Manuais Diagnósticos que definirão se ela é ou não uma patologia. Em outras palavras,
esses critérios não dependem do sujeito, pois são critérios gerais e padronizados. Já na
psicanálise, a anorexia não é concebida a partir desses critérios e o sintoma está a serviço de
cada sujeito.
Nesse caso, na perspectiva médica, se um sujeito apresenta o mesmo quadro clínico
que outro, ambos serão diagnosticados com o mesmo transtorno. Já na concepção
psicanalítica, o sintoma é da ordem do singular, pois apesar de o quadro clínico ser o mesmo,
o sintoma tem sentidos e significados totalmente divergentes na vida de cada sujeito. Tendo
em vista a diferença da concepção de sintoma na medicina e na psicanálise, serão
apresentadas as ideias freudianas acerca do sintoma, e a partir dessas ideias serão discutidos
os aspectos concernentes à relação sintoma e anorexia.
4.2

O sintoma em Freud

4.2.1 Sintoma e experiências da vida do sujeito: singularidade
No início da 17ª Conferência – O sentido dos sintomas, Freud (1917a, 2000, p. 235)
afirma que “[...] os sintomas são ricos em sentido e se entrelaçam com as experiências do
paciente”. Com essa afirmação, que persiste durante toda a Conferência, entende-se que há
um saber, algo a ser revelado sobre o sintoma, e que tanto esse saber quanto o próprio sintoma
estão estritamente relacionados à história do sujeito.
Nessa afirmação freudiana também se observa que o sintoma se relaciona com as
experiências do paciente, e cabe a este a descoberta do sentido e a função de seu sintoma na
experiência com o analista. Esta é uma maneira de compreender a noção da singularidade,
contrária à generalização do sintoma (BESSET et al., 2006). No exemplo que foi dado, em
que dois ou mais sujeitos ao terem um mesmo sintoma serão diagnosticados com o mesmo
transtorno, há uma generalização. Já a singularidade é realçada na concepção psicanalítica
quando a mesma sintomatologia em diferentes sujeitos poderá ter, e certamente terá, sentidos
e significados totalmente divergentes. O que acontece no tratamento analítico, a partir da

77

relação transferencial do sujeito com o analista, é justamente a identificação do sentido, dos
significados e dessa função do sintoma.
A respeito dessas experiências, em Inibições, sintomas e angústia, Freud (1926a,
2001) ressalta que no caso do Pequeno Hans, o costume do pai de brincar de cavalo com Hans
determinou a escolha inconsciente do cavalo como o animal causador de angústia no menino.
Nesse texto, Freud (1926a, 2001) também considera que no caso do Homem dos Lobos, o
animal lobo foi escolhido na constituição do sintoma devido ao fato de que o pai do paciente,
quando brincava com ele, fingia ser um lobo que ia devorá-lo. Essas considerações
exemplificam a ideia de Freud (1917a, 2000) relacionada aos fatos da vida do sujeito e à
formação do sintoma. Coube aos sujeitos desses casos, através do tratamento analítico,
desvendar os episódios e fantasias inconscientes que possibilitaram essa formação.
Ao relacionar sintoma, experiências do sujeito e os ideais da cultura contemporânea,
compreende-se que a busca incessante pelo corpo magro pode ser um fator que favoreça o
aumento na incidência dos casos de anorexia na atualidade. Porém, a partir dessa citação
freudiana, entende-se que a anorexia no sujeito é constituída por diversos fatores que
perpassam pela vida dele, por suas experiências, e essas são datadas culturalmente. Seria
então errôneo afirmar que a cultura contemporânea é causadora desse aumento. Pelo termo
causa entende-se “aquilo ou aquele que faz que uma coisa exista; aquilo ou aquele que
determina um acontecimento; razão, motivo” (FERREIRA, 2008, p. 221). Dessa forma, ela
pode ser propulsora e impulsionar esse aumento, mas ela não é a única determinante. O
sujeito e suas experiências se constituem nesta cultura, mas a anorexia está relacionada com a
singularidade de cada caso, com as experiências de cada sujeito. Por isso, há um sentido a ser
desvelado, sentido este que difere de uma explicação orgânica e biológica do sintoma.
Como apresentado no item 3.2, no caso da Senhora Emmy Von N (FREUD, 1895b,
2003), a perda da vontade da paciente em se alimentar estava associada a uma lembrança de
repulsa alimentar da vida infantil. A anorexia e o ato de comer estavam interligados às
lembranças infantis repletas de repugnância e enjoo relativos a alimentos. Ou seja, a anorexia
estava relacionada com essas lembranças alimentares da vida de Emmy Von N.
Provavelmente, se esses episódios alimentares de repulsa não tivessem acontecido, não
haveria a constituição desse sintoma alimentar. Na época em que Freud acompanhava essa
paciente, não havia uma forte incidência de anorexia, mas foram as situações vividas pela
paciente que determinaram essa constituição sintomática.

78

4.2.2 Sintoma e conflito: compromisso
Quanto à definição de sintoma analítico, Freud (1917b, 2000), na 23ª Conferência –
Os caminhos da formação dos sintomas, propõe que os sintomas decorrem de um conflito de
forças contrárias:
[...] os sintomas neuróticos são resultados de um conflito que surge em torno de uma
nova modalidade de satisfação pulsional. As duas forças contrárias encontram-se
novamente no sintoma; reconciliam-se, por assim dizer, graças ao compromisso da
formação do sintoma (FREUD, 1917b, 2000, p. 326).

Nesta definição, há ideias importantes a ser discutidas. Para o autor, os sintomas são
formados devido a um conflito. Conflito este no qual a libido, ao ser impedida de se satisfazer
devido à moral cultural da época, busca outras maneiras de ser satisfeita. A libido é a energia
sexual que rege a vida do sujeito e sempre demanda satisfação (FREUD, 1905b, 2003).
Porém, a cultura impõe regras e limites à busca dessa satisfação.
Como produto dessas forças antagônicas, há o mecanismo do recalque e o surgimento
do sintoma (FREUD, 1915b, 2010). O impulso é então recalcado, e a formação do sintoma
revela que houve uma falha nesse mecanismo. Se o impulso tivesse sido devidamente
recalcado, não haveria o sintoma, enquanto retorno do recalcado (FREUD, 1915b, 2010).
Dessa maneira, observa-se que o sintoma está relacionado à libido, à cultura e ao mecanismo
que regula essa relação.
Porém, como abordado no início do segundo capítulo desta dissertação, Miller (2004)
ressalta a dissolução dessa moral cultural inibitória na contemporaneidade. Como então
considerar o conflito próprio ao sintoma, se por conflito se entende uma tensão, uma luta de
forças contrárias? Se essa moral não constitui mais esta cultura, pelo contrário, são os
aspectos relativos ao hedonismo, consumo e narcisismo que demarcam a atualidade, como
analisar a constituição do sintoma? Se a libido busca satisfação e esses aspectos
contemporâneos também induzem os sujeitos a satisfação, há conflito? Se há mudanças na
cultura e o que a libido busca sempre é a satisfação, certamente há mudanças na formação dos
sintomas, pois essas mudanças culturais provocam transformações na relação entre cultura e
libido, e também no mecanismo regulador.
Tendo em vista a implicação da energia libidinal na formação dos sintomas, no texto
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud (1905b, 2003) afirma que “[...] os sintomas

79

são as práticas sexuais dos pacientes” (FREUD, 1905b, 2003, p. 148). Essa afirmação é
baseada nos atendimentos dos casos de histeria e de outras neuroses que Freud realizara, e
remete para a presença constante da libido na formação e manutenção dos sintomas. Essa
equivalência entre os sintomas e a atividade sexual denota justamente a satisfação que a
energia sexual exige e demanda.
Um pouco mais adiante, Freud (1905b, 2003, p. 149) enfatiza novamente o papel da
libido e ressalta que
A psicanálise elimina os sintomas dos histéricos baseados na premissa de que
eles são substitutos – transcrições, por assim dizer - de uma série de
processos psíquicos investidos de afeto, desejos e vontades, que em virtude
de um processo psíquico particular (a repressão) foi denegado (frustrado) o
acesso de tramitar para uma atividade psíquica consciente.

Os processos psíquicos, desejos e vontades citados são impulsos de ordem sexual
advindos da libido que, diante de um processo civilizatório e da constituição do sujeito, não
podem ser realizados (conflito). Com isso são recalcados e como o objetivo da descarga do
impulso não foi concretizado, os sintomas se formam e são substitutos desses impulsos. Como
substitutos, de alguma forma, realizarão o objetivo inicial do impulso, pois proporcionarão
outro método de satisfação da libido.
Essas ideias também são apresentadas no texto Princípios básicos de psicanálise
(FREUD, 1913, 2010), onde o autor evidencia esse outro método de satisfação da libido nos
sintomas. Ele afirma que “os sintomas neuróticos são, nesse sentido, disfarçadas formações
substitutivas para satisfações sexuais” (FREUD, 1913, 2010, p. 271). Do mesmo modo, na
obra Mal-estar na civilização (FREUD, 1930, 2010) define que “os sintomas das neuroses
são, como vimos, essencialmente satisfações substitutivas para desejos sexuais não
realizados” (FREUD, 1930, 2010, p. 113).
Nessas citações pode-se observar que há uma satisfação inconsciente nos sintomas,
decorrente de uma impossibilidade anterior (primeira) de satisfação. O sintoma ao ser
constituído impossibilita a evidência consciente da satisfação, visto que ele está implicado
nesta realização. No tratamento psicanalítico, há o surgimento de lembranças que retratam
esses impulsos que inicialmente não foram realizados e que estão relacionados ao sofrimento,
ao sintoma de cada sujeito. Nesse caso, as lembranças possibilitarão ao sujeito uma
significação dessas situações que estão carregadas de energia, e poderá haver uma
modificação do sintoma que detinha essas energias.

80

Na sétima parte do texto freudiano Esquema de Psicanálise, intitulada Uma amostra
de trabalho psicanalítico, Freud (1940, 2001) também aborda a concepção de sintoma que
constitui a sua teoria. Nesse estudo, o autor retoma as principais ideias que fundamentam a
psicanálise e que já foram explicitadas em textos anteriores. Porém esse texto, um dos últimos
escritos freudianos, tem o objetivo de reunir e elencar os princípios psicanalíticos
fundamentais. Freud (1940, 2001, p. 186) analisa em seu estudo que
Os sintomas das neuroses, são do começo ao fim, pode-se dizer, uma satisfação
substitutiva de algum impulso sexual ou bem umas medidas para impedi-las, e, via
de regra, são compromissos entre ambas, como as que se produzem contrariamente,
seguindo as leis que regem o inconsciente.

Esse comentário freudiano retoma novamente a ideia do sintoma como substituto, do
conflito que constitui o sintoma, mas também afirma que os sintomas são compromissos de
forças contrárias, libido e cultura. O compromisso pode ser concebido enquanto uma tentativa
de conciliação, e este termo é interessante para entender a concepção de sintoma na
psicanálise, visto que a palavra conciliar significa “pôr em boa harmonia; reconciliar; aliar;
combinar; estar ou pôr-se de acordo; harmonizar-se” (FERREIRA, 2008, p. 253). Esse
significado demonstra como a formação do sintoma visa harmonizar a luta inconsciente
dessas forças contrárias.
4.2.3 Sintoma e pathos
A respeito do sofrimento que há no sintoma, na 23ª Conferência – Os caminhos da
formação dos sintomas (FREUD, 1917b, 2000, p. 326), o autor propõe que os sintomas “[...]
são atos, prejudiciais, ou, ao menos, inúteis à vida da pessoa, frequentemente a pessoa se
queixa deles como sendo indesejados e envolvem desprazer ou sofrimento para ela”. Ou seja,
o sintoma denota desprazer, mal-estar e sofrimento na vida dos sujeitos. Desse modo,
retornando à anorexia, pode-se identificar o sofrimento decorrente da anorexia nos sujeitos
que participam ativamente do movimento pró-anorexia?
Ao contrário dessa queixa do sintoma, de tê-lo como indesejado e inútil, eles exaltam a
anorexia. Se eles não se queixam, a busca por tratar o sintoma se torna um pouco distante.
Mas não se pode afirmar que não há sofrimento nesses militantes, mesmo quando idealizam a
anorexia. E também, que apesar de a anorexia ser nomeada um estilo de vida, eles não
buscam, de forma alguma, um tratamento.

81

Como exemplo, nessa exaltação também há exposições de recaídas, quando o sujeito
não consegue recusar alimento e come compulsivamente. Ao mesmo tempo que há o prazer
da alimentação, há o sentimento de culpa e o sofrimento por não ter conseguido recusar. Há
um mal-estar. Diante dessas situações, os sujeitos expõem nos blogs os mecanismos
compensatórios para lidar com esse mal-estar. Apesar da suposição de que há sofrimento,
cabe a cada sujeito, ainda que exalte a anorexia, sentir e revelá-lo durante um tratamento.
A noção de sofrimento é também realçada no texto Inibições, sintomas e angústia
(FREUD, 1926a, 2001), quando o autor realiza a distinção entre inibição e sintoma. Freud
(1926a, 2001) considera que a inibição se trata da restrição de uma função, quando há uma
redução de uma função, mas não tem necessariamente uma implicação patológica. Por outro
lado, no sintoma, a função passa por uma modificação e denota a presença de um processo
patológico.
Apesar dessa distinção, há uma correlação entre inibição e sintoma, visto que a
inibição também pode tornar-se sintoma. Por meio da relação do sintoma com o patológico,
deduz-se o termo patologia. A respeito deste termo, Berlinck (2000) afirma que patologia
corresponde a “[...] um discurso sobre o sofrimento, as paixões, a passividade” (BERLINCK,
2000, p. 20), já que “pathos” significa sofrimento, paixão, passividade e patologia. Dados
esses significados e a relação entre sintoma e patologia, pode-se afirmar que o sofrimento,
sentido como mal-estar, está presente nos sintomas.
Ao considerar a diferença entre inibição e sintoma juntamente com a ideia de anorexia,
é possível deduzir que enquanto a anorexia pode ser um sintoma, a inapetência vivida por
qualquer outro sujeito pode ser entendida como uma inibição. Enquanto o sintoma é uma
modificação da função nutricional que causa sofrimento ao sujeito, a inibição corresponde a
uma restrição da função nutricional. Quando o problema da função não constitui inapetência e
sim recusa alimentar, vivenciada com sofrimento, poderá haver a existência de um sintoma.
No texto Inibições, sintomas e angústia, Freud (1926a, 2001) propõe uma ideia muito
importante na concepção de sintoma analítico, que foi retomada e aprofundada na teoria
lacaniana (BIDAUD, 1998; LACAN, 1966, 2001; QUINET, 2004; VALAS, 2001). Esta ideia
corresponde à satisfação do sintoma. Apesar de em outros estudos ele indicar que o sintoma
realiza a satisfação dos impulsos recalcados, nesse momento Freud (1926a, 2001) amplia esta
ideia da satisfação. O referido autor afirma que ao mesmo tempo que o sujeito sofre, ele não

82

quer abrir mão do seu sintoma, pois há uma satisfação inconsciente provocada por este. Ao
mesmo tempo que no tratamento o sujeito busca tratar o sintoma, existem mecanismos que
impedem essa eliminação, pois há uma função do sintoma na vida do sujeito. É o que Freud
(1926a, 2001) denomina de “ganho secundário” da doença.
Essa ideia de ganho secundário é proposta na análise do Caso Dora (FREUD, 1905c,
2003), sendo enfatizada no texto posterior, em 1926. Em Fragmento da análise de um caso de
histeria, Freud (1905c, 2003), quando se refere aos ganhos primários e secundários derivados
da doença, ressalta que “Quem visa curar o doente tropeça então, para seu espanto, com uma
grande resistência, lhe que ensina que a intenção do paciente de se livrar da doença não é tão
inteira e séria” (FREUD, 1905c, 2003, p. 39-40). Em outras palavras, enquanto o sujeito
suplica ao outro pela cura do seu sintoma, a nível inconsciente há o desejo da permanência do
sintoma. A satisfação, ganho secundário, que o sintoma lhe provoca, impede, através do
mecanismo de resistência, que o sintoma seja rapidamente curado. O sujeito “quer e não quer
abrir mão” do seu sofrimento.
Apesar dessa referência freudiana de 1905, é em 1926 que essa compreensão de ganho
secundário é estabelecida e realçada na teoria do sintoma. Assim, Freud (1926a, 2001) afirma
que há uma satisfação proveniente da doença que faz com que haja uma permanência do
sintoma na vida do sujeito. Quando o analista intervém nessa luta contra o sintoma, ele
verifica que a resistência impossibilita a eliminação do sintoma, pois, como este é derivado do
impulso que exigia satisfação, ele assume a posição que demanda satisfação. Nesse texto é
enfatizado que a satisfação provocada pelo sintoma impede e até mesmo faz com que o sujeito
não busque um tratamento, havendo resistência.
Esse texto em que Freud (1926a, 2001) estabelece essa noção de ganho secundário e,
portanto, de satisfação do sintoma é posterior ao texto Além do princípio do prazer (FREUD,
1920, 2010). Neste, ele desenvolve a noção de pulsão de morte e de compulsão à repetição e
afirma que “na vida psíquica há realmente uma compulsão à repetição, que sobrepuja o
princípio do prazer” (FREUD, 1920, 2010, p. 183). Ou seja, os sujeitos têm uma tendência a
repetir situações ainda que desprazerosas, situações que estão para além do princípio do
prazer. Esta ideia contribui no entendimento de que o sintoma, mesmo causando sofrimento e
desprazer ao sujeito, é mantido de forma inconsciente na vida do próprio sujeito, pela
compulsão à repetição. Esta ocorre através da pulsão de morte e proporciona, de alguma
forma, uma satisfação.

83

A esta concepção de satisfação, Lacan (1966, 2001) denomina de gozo e com isso
aprofunda a ideia de satisfação dos estudos freudianos. Segundo Valas (2001), em seu estudo
sobre as dimensões do gozo, “Freud usa às vezes o termo Gennus, para designar o gozo na sua
conotação sexual, mas para ele é uma palavra da língua, e não um conceito da sua teoria”
(VALAS, 2001, p. 18). Da mesma forma, Bidaud (1998) afirma que “na obra de Freud, a
noção de gozo jamais foi elevada ao nível de conceito” (BIDAUD, 1998, p. 101), e que o
avanço nessa reflexão se deve aos estudos lacanianos.
A esse respeito, Lacan (1966, 2001) no texto “O lugar da psicanálise na medicina”,
propõe que quando o doente procura o médico, não necessariamente ele o procura para ser
curado. Segundo o autor, “Ele põe o médico à prova de tirá-lo de sua condição de doente, o
que é totalmente diferente, pois isto pode implicar que ele está totalmente preso à ideia de
conservá-la. Ele vem às vezes nos pedir para autenticá-lo como doente” (LACAN, 1966,
2001, p. 10).
Essa afirmação pode auxiliar na compreensão da manutenção do sintoma, que o
sujeito realiza de forma inconsciente, pois até mesmo quando há a procura por um tratamento,
não significa que o sujeito quer a eliminação de seu sintoma. Pelo contrário, ele pode querer o
reconhecimento, através do outro, do seu sintoma. Ele pode querer que o outro ateste o seu
sofrimento. A satisfação obtida com o sintoma, inconscientemente, é tão intensa, que o
desprazer sentido não é suficiente para o sujeito se dispor a eliminá-lo. Nesse contexto, é
importante ressaltar mais uma vez, que o sintoma tem uma função na vida do sujeito e que
nele também há satisfação.
Mais adiante, Lacan (1966, 2001), ao conceituar a noção de gozo, diferencia gozo e
prazer. Enquanto prazer é a “[...] excitação mínima, aquilo que faz desaparecer a tensão [...]”
(LACAN, 1966, 2001, p. 12), gozo

[...] é sempre da ordem da tensão, do forçamento, do gasto, até mesmo da proeza. Há
incontestavelmente gozo no nível que começa a aparecer a dor e nós sabemos que é
somente neste nível da dor que pode se experimentar toda uma dimensão do
organismo que de outra forma fica velada.

Com essa citação lacaniana, é possível observar que o prazer é o oposto do desprazer,
enquanto que o gozo é da ordem do excesso. Bidaud (1998) afirma que, se comumente gozo e
prazer são utilizados como sinônimos, a psicanálise não contribui com esse uso. Ele propõe

84

que “[...] a psicanálise os opõe, considerando o gozo, seja com um excesso, um mais-além do
prazer, seja como uma manifestação do corpo próxima da dor e do sofrimento” (BIDAUD,
1998, p. 101). Entende-se que apesar do uso comum, na psicanálise o conceito de gozo não
corresponde ao princípio do prazer, trata-se de um excesso que está para além do prazer.
Nessa mesma perspectiva, Quinet (2004) retoma o conceito lacaniano de gozo e
comenta que “o termo gozo, proposto por Lacan, engloba a satisfação pulsional com seu
paradoxo de prazer no desprazer” (QUINET, 2004, p. 84). É o prazer obtido mesmo no
desprazer, é o prazer no sofrimento, é a satisfação no sintoma. Diante dessas assertivas, podese afirmar que a satisfação não é sinônimo de prazer, pois também há desprazer na satisfação.
Dessa maneira, entende-se, neste trabalho, que os termos satisfação e gozo podem ser
concebidos como sinônimos.
Quanto a essa noção de gozo como uma manifestação do corpo próxima da dor, Lacan
(1966, 2001) afirma que “um corpo é algo feito para gozar, gozar de si mesmo” (LACAN,
1966, 2001, p. 12). Ou seja, há uma relação peculiar entre corpo e gozo pois o gozo ocorre
através do corpo, já que na teoria lacaniana o corpo foi feito para gozar. A esse respeito,
Vieira (2002) ao comentar esse texto lacaniano, ressalta que com essa ideia, Lacan marca uma
ruptura com a concepção de corpo harmonioso, concebido para a vida. Nessa perspectiva, este
autor afirma que Lacan ao enfatizar que o corpo é feito de gozo, retoma a ideia da pulsão de
morte, que assim como a pulsão de vida, constitui a vida pulsional do sujeito. E segundo
Vieira (2002), o caos pulsional, ou seja, pulsão de vida e pulsão de morte que coexistem e
regem a vida do sujeito, é organizado pelo gozo.
Esta ideia de que o gozo organiza a vida pulsional remete à análise sobre a
contemporaneidade realizada por Forbes (2005), de que há uma desorientação pulsional,
porquanto há uma emergência de novos sintomas ou um aumento na incidência de sintomas já
existentes. Se o corpo é feito para gozar e se o gozo organiza a vida pulsional, as mudanças
culturais que acarretam essa desorientação pulsional podem estar relacionadas com essa
emergência de sintomas corporais.
Como foi abordado nos Capítulos 2 e 3, a pulsão com sua fonte corporal está
relacionada ao objeto a. Ao objeto perdido que demanda ser reencontrado. Para Lacan (1963,
2005) o mamilo, que está relacionado com a pulsão oral, é considerado uma das cinco formas
desse objeto. Assim, esse objeto está relacionado a uma parte do corpo que foi perdida. O

85

mamilo e a pulsão oral, tendo em vista a relação do sujeito com o alimento materno
(nutrição), estão presentes na constituição da anorexia.
Desse modo, na anorexia, diante da desregulação pulsional, há um gozo desse corpo
cadavérico que está regido muito mais pela pulsão de morte do que pela pulsão de vida. Essa
desregulação pulsional advinda das mudanças culturais pode ser um dos fatores que
contribuem para a incidência da anorexia, e até mesmo para a exaltação e satisfação que o
sujeito detém ante o movimento pró-anorexia.
A partir dessas considerações, compreende-se que a satisfação é um termo relevante
para se entender a constituição do sintoma na contemporaneidade, pois hoje o que se tem é a
exaltação dessa satisfação. A anoréxica detém uma satisfação, um gozo do seu corpo
cadavérico. No movimento pró-anorexia, por exemplo, quando o sujeito se vangloria de seu
sintoma essa satisfação é evidenciada. Com isso, pode-se deduzir que o sintoma é produto de
um conflito, conflito este em que há um sentido que possibilitou sua formação, e que apesar
do sofrimento, há satisfação, há gozo.
De acordo com essas proposições, na época de Freud os sujeitos buscavam um saber
sobre seu sintoma (BESSET et al., 2009). Eles demandavam um tratamento na busca de um
sentido para seu sofrimento, até mesmo porque a satisfação obtida, além de ser inconsciente,
naquela época repressora, também deveria ser suprimida. Já atualmente, como é o exemplo do
movimento pró-anorexia, muitos se denominam a partir do seu sintoma: “sou anoréxica”. E
apesar dessa autorreferência, os sujeitos na clínica não estão inicialmente em busca de um
sentido para este sofrimento.
Não há um questionamento inicial sobre seu modo de vida e também, na maioria dos
casos, não há uma demanda inicial de tratamento. Será então que ao ser reverenciada, a
anorexia deixa de ser fonte de sofrimento? Se a anorexia, para esses sujeitos, não consiste em
um sofrimento que demanda tratamento, ela expressa o conflito próprio ao sintoma, a noção
patológica e a satisfação definidos por Freud?
4.3

Sintoma e demanda de tratamento
Se os sujeitos, na época freudiana, demandavam um tratamento para o seu sofrimento,

o que pode se entender do termo demanda? Para Ferreira (2008), demandar significa ir em
busca de, dirirgir-se para, necessitar, pedir. Nesse caso, demanda corresponde a uma ação

86

quando o sujeito solicita um tratamento. Porém não é que os sujeitos da época freudiana
procuravam um tratamento para seus sofrimentos e os sujeitos contemporâneos, não. Apesar
desta possibilidade quanto à iniciativa da automedicação; aos diagnósticos feitos pelos
próprios sujeitos diante das descrições contidas no meio virtual; e também na propagação de
informações sobre patologias nos meios de comunicação, seja na televisão, nos jornais, em
revistas, a diferença não está na procura pelo tratamento. Os sujeitos contemporâneos
continuam, muitas vezes, procurando profissionais para tratar seus sintomas ou são levados
por familiares para serem tratados, porém o que há de diferente é a implicação dos sujeitos em
seus sintomas.
O termo demanda para a psicanálise adquire outro valor, não sendo apenas entendido
como a busca pelo tratamento. Segundo Quinet (2007), em psicanálise, a implicação do
sujeito no seu sintoma, ou ao menos, a construção dessa implicação, é essencial no tratamento
clínico, visto que é quando o sujeito questiona seu próprio sintoma que surge a demanda
analítica e o tratamento psicanalítico de fato se inicia. É nesse sentido que para a psicanálise,
demanda não se restringe à busca por tratamento, não se trata apenas da procura do sujeito por
um psicanalista. O sujeito poderá até procurar um psicanalista, mas se não houver demanda e
aceitação da demanda pelo psicanalista, o tratamento possivelmente não acontecerá.
O tratamento acontece quando na demanda há uma implicação do sujeito em seu
sintoma; “a demanda de análise é correlata à elaboração do sintoma enquanto ‘sintoma
analítico’” (QUINET, 2007, p. 16). É quando o sintoma sai da condição de queixa e se torna
uma questão para o sujeito (sintoma analítico), que o sujeito é implicado no seu sofrimento e
demanda um tratamento (QUINET, 2007). Tratamento este que acontecerá a partir da relação
transferencial entre analisando e analista, pois é uma construção que acontece a partir de dois
saberes (FREUD, 1937, 2001).
A partir dessas considerações sobre a concepção de demanda na teoria psicanalítica,
Besset et al. (2009) e Lima (2011) retratam em seus estudos a relação presente nos sujeitos
contemporâneos, entre demanda e sintoma. Os autores afirmam que esses sujeitos se
apresentam na clínica de um modo diferente da época freudiana. Muitas vezes, os sujeitos se
apresentam na clínica a partir do seu sintoma, porém ficam restritos inicialmente a essa
autorreferência. Apesar de se denominaram pelo sintoma, o sintoma não é uma questão para
esses sujeitos; muitos não demandam inicialmente um tratamento, pois é como se o sintoma
não fosse um sofrimento que urge ser tratado.

87

Nesse contexto, Lima (2011), na exposição de um caso clínico sobre anorexia, ressalta
que esses sujeitos que chegam à clínica por iniciativa própria ou quando levados por suas
famílias, apresentam em comum a característica de “ausência de sinais de uma subjetivação
capaz de fazer funcionar seus sintomas como demanda” (LIMA, 2011, p. 113). Há procura
pelo tratamento, porém não há demanda. Não é que não exista sofrimento, pois caso não
existisse não seria necessário buscar um tratamento, mas há uma mudança na forma do sujeito
se relacionar com seu sintoma e criar uma demanda de análise. É como se o sujeito apenas
sinalizasse que há algo que não está bem, porém ele não consegue prosseguir e formular um
pedido de tratamento.
Besset et al. (2009) consideram que atualmente, os sintomas, entendidos como formas
de apresentação do sofrimento psíquico, se apresentam distintamente dos sintomas da época
de Freud. As autoras afirmam que há uma emergência de sintomas que se apresentam no
corpo, mas não se convertem em questão para o sujeito. Sujeito, este da contemporaneidade,
que se apresenta descrente e desnorteado (BESSET et al., 2009). Se anteriormente ele buscava
um sentido para seu sofrimento, nos dias atuais a busca por esse sentido não é evidenciada.
Em relação ao sintoma “[...] para o sujeito que os porta, ele não quer dizer nada” (BESSET et
al., 2009, p. 153). Ou seja, ele porta o sintoma visto que até se autorreferencia por ele, mas
não há uma implicação e busca de um sentido para seu sofrimento. Segundo as autoras, o
sintoma não tem nada a dizer para esses sujeitos. Não há nada a declarar. Nesse contexto,
Besset et al. (2009) propõem que esses são geralmente sintomas corporais e citam como
exemplos a bulimia, a anorexia, o pânico e os excessos sexuais, nas drogas e no consumo.
Essa nomeação do sujeito pelo sintoma pode ser observada de forma aparente no movimento
pró-anorexia.
Nesse movimento, além de os integrantes exaltarem a anorexia, eles expõem situações,
dicas para se manterem anoréxicos e incentivam os outros a adquirir também esse tipo de
relação com a anorexia, de uma forma que parece não haver procura por parte desses sujeitos
para um tratamento. O que hoje se tem é a constatação da satisfação, quando o sujeito
enaltece a anorexia. Apesar dessa satisfação, é quando o sujeito sofre que ele procura um
tratamento. Quando não é ele que procura, sua família assume essa posição. Ela supõe que o
sujeito está sofrendo, e muitas vezes, sofre juntamente com ele.
Se o sofrimento se tornar muito maior que a exaltação, havendo um mal-estar, existirá
a possibilidade de o sujeito procurar um tratamento. Apesar de ele reverenciar a anorexia, o

88

sofrimento se intensifica e seu corpo padece. Como então pode ser concebida a anorexia
nesses casos, visto que há uma exaltação que demarca a satisfação e a formação do
sofrimento?

Como

conceber

um

tratamento

psicanalítico

para

a

anorexia

na

contemporaneidade, se considerada sintoma, se na época de Freud o conflito do sintoma era
realçado, a vertente da satisfação não era tão evidente e os sujeitos buscavam um sentido para
seu sofrimento? Há possibilidade de a anorexia ser considerada sintoma, com uma satisfação
sintomática tão exacerbada, presente na atualidade?
4.4

A anorexia pode ser considerada sintoma analítico?
Como ressaltado, existem diversos aspectos que constituem a teoria freudiana do

sintoma. Dessa maneira, o sintoma tem um sentido que está relacionado com as experiências
de cada sujeito e denota uma satisfação decorrente de um conflito de forças contrárias
(FREUD, 1917a, 2000). Essa satisfação corresponde à realização de um desejo sexual que
fora recalcado e que encontrou no sintoma uma maneira de ser satisfeito. Para tanto, Freud
(1926a, 2001) observa que apesar de haver sofrimento diante de um sintoma (FREUD, 1917b,
2000), há também uma satisfação intensa. Há um prazer diante desse sofrimento, que Lacan
(1966, 2001) denominou de gozo.
Nesse contexto, Tizio (2009) afirma que enquanto a concepção freudiana de sintoma
se refere ao conflito, a concepção lacaniana trata da satisfação do sintoma. Segundo esta
autora, “Lacan pega a envoltura formal do sintoma, mas não descuida da questão do gozo que
ele comporta. Realmente seu último ensino mostra uma clínica do funcionamento sem
conflito no nível do gozo” (TIZIO, 2009, p. 123). Com a afirmação, pode-se observar que os
estudos lacanianos sobre o sintoma não desconsideram as proposições freudianas do sintoma
enquanto conflito, mas a satisfação (nomeada de gozo na teoria lacaniana) é muito mais
realçada.
É importante ressaltar a relação entre sintoma e cultura, já mencionada nos itens
anteriores, pois nessa cultura hedonista, consumista, narcisista e do excesso, a busca pela
satisfação é muito mais evidente do que em épocas passadas. E essa busca provoca mudanças
na formação dos sintomas. Se anteriormente os sujeitos demandavam um tratamento perante
seu sofrimento, hoje em dia a vertente da satisfação é tão intensa que ele não é capaz de
formular uma demanda.

89

Se os sujeitos não se interessam mais por um saber sobre o seu sintoma, há algo que
possibilita e autoriza o sujeito a reverenciar seu sintoma. Esse algo é justamente a satisfação,
que não exclui o sofrimento. Há sofrimento e há satisfação. Há gozo! E a satisfação, tal como
foi visto nas explicações freudianas e enfatizada na teoria lacaniana, também constitui o
sintoma. Na cultura atual, diante da queda dos ideais tradicionais, da ausência de limites e do
excesso, a vertente da satisfação é muito mais intensa e destacada do que a expressão do
conflito, que subjaz à busca pelo sentido do sintoma.
A satisfação do sintoma pode ser observada quando Gaspard (2012), ao analisar a
noção de sintoma na psicanálise, afirma sobre o paradoxo existente no momento em que o
sujeito procura um tratamento: “[...] o paradoxo que consiste em se queixar de um sintoma do
qual não se quer abrir mão” (GASPARD, 2012, p. 99). Por que então, se há sofrimento diante
de um sintoma, o sujeito ao procurar um tratamento, ao mesmo tempo que denuncia o que lhe
causa mal-estar, não quer se abster do sintoma? Certamente porque há satisfação; e a
satisfação, nesse contexto, não deve ser entendida como algo puramente prazeroso, mas como
prazer e desprazer ao mesmo tempo. Como um prazer na dor, um prazer no sofrimento. É essa
satisfação inconsciente que faz com que o sujeito, inconscientemente, não queira eliminar seu
sintoma.
Essa ênfase da teoria lacaniana na satisfação presente nos sintomas aconteceu,
possivelmente, devido às mudanças culturais que acarretaram mudanças nos sujeitos e na
própria clínica. Com isso, se há o surgimento de mudanças, as concepções teóricas são
aperfeiçoadas na tentativa de dar conta dessas diferenças, e não há somente mudanças nas
teorias, como também nas intervenções e práticas clínicas.
A respeito do encontro do sujeito anoréxico com o clínico, Cosenza (2012) analisa
quatro aspectos que devem estar relacionados com o sintoma, são eles: a divisão subjetiva, o
enigma do sintoma, a demanda e o encontro com o analista. Ele aponta que a anorexia é um
sintoma de sentido um pouco diferente do que se considera normalmente, pois esses aspectos
são distintos. Para este autor, a anorexia é um sintoma que não divide o sujeito; pelo
contrário, ele se identifica ao sintoma. Inicialmente, a queixa do sintoma não é enigmática, ou
seja, o sujeito, por se identificar ao sintoma, não faz um questionamento inicial. Dessa forma,
não há uma demanda inicial evidente, pois ele não demanda que sua condição seja
modificada; e, com isso, não supõe um saber do analista sobre seu sintoma, já que ele não se
questiona sobre este. Os quatro aspectos demonstram que assim como em outras condições

90

clínicas, o sintoma depende do encontro do sujeito com o analista. Entretanto, na anorexia,
esses aspectos diferem um pouco com relação a outras patologias.
Nos casos em que não há uma demanda inicial do sujeito, Tizio (2009) propõe que
“ajudar a construir um sintoma é muito importante em casos em que parece não haver
demanda” (TIZIO, 2009, p. 123). Ou seja, não é porque houve uma mudança na maneira de o
sujeito chegar à clínica que o analista não vai atendê-lo e tratá-lo. Pelo contrário, se há
mudanças, se não há uma demanda inicial, por que não proporcionar ao sujeito a constituição
da demanda? Nesses casos, essa constituição já pode ser considerada terapêutica e até mesmo
fazer parte do tratamento. Afinal, os sujeitos quando buscam um outro, certamente esperam
que algo aconteça nesse encontro.
Quanto a essa ausência de demanda, Viganò (2012) constata em casos de anoréxicas
que “Ela não diz: ‘eu não consigo comer’, também não nos diz: ‘quando eu como não consigo
parar’. Ela diz: ‘sou anoréxica’” (VIGANÒ, 2012, p. 215). A esse respeito, o autor afirma
que na anorexia há uma vontade de realizar o controle absoluto sobre tudo, e ela procura um
analista quando alguma coisa foge do seu controle. É tanto que não há uma demanda inicial,
pelo contrário, há uma afirmação da sua condição. O mesmo autor propõe que “é preciso
esperar o sujeito que está atrás deste distúrbio alimentar. O analista é aquele [...] que fará com
que antes ou depois o sujeito surja, é por isso que ele deve ser paciente” (VIGANÒ, 2012, p.
225). Ou seja, em algum momento a demanda surgirá, e é necessário paciência para que esse
momento ocorra. Trata-se de um surgimento que acontecerá a partir da relação transferencial
do sujeito com o analista.
Também nesse sentido, Gaspard (2012) menciona que se o encontro do analista com o
analisando “[...] tornou-se possível, foi porque, no início, houve demanda” (GASPARD,
2012, p. 92). A demanda pode não ter sido formulada inicialmente, mas a partir do contato do
sujeito com o outro e do tempo de cada sujeito, essa demanda pode surgir, pois houve uma
busca para o sujeito ser tratado e isso não pode ser simplesmente descartado.
Aqui é importante ressaltar a posição do analista nesses casos de anorexia. Se ambos
constituirão o tratamento e se nos casos de anorexia não há uma demanda inicial dos sujeitos,
a posição do analista diante desses casos pode ser determinante para o surgimento do sujeito e
da demanda de análise. Tal como Silva, Pereira e Celeri (2010) propõem, a posição e mais
especificamente o desejo do analista na clínica da anorexia, poderá conduzir o sujeito a um

91

trabalho em relação a seu próprio desejo, já que o analista se mantém desejante, sustentando
uma falta. Ou seja, a função do desejo do analista é possibilitar o surgimento do desejo do
paciente, que até então se mantém velado em face da recusa alimentar. É essa função que
possibilitará a existência de um espaço para o surgimento do desejo da anoréxica. Assim,
constitui-se a demanda analítica, e o tratamento se torna possível.
Dessa maneira, é a partir do desejo do analista que a emergência do desejo do
analisando pode surgir através da relação transferencial entre analista e analisando. É por
meio dessa relação que se pode interrogar se a anorexia é um sintoma. Se não há demanda
inicial e o analista se dispõe a ajudar o sujeito a construir uma demanda, a anorexia poderá ser
um sintoma analítico. Se não há demanda, se não há disposição e se não há procura por
tratamento, ela não será considerada um sintoma analítico, pois para isso, é preciso que haja
uma relação de aposta, tanto no sujeito quanto no analista. São os dois que possibilitarão e
proporcionarão o tratamento.
Ainda a respeito dessa aposta do analisando e do analista, Laurent (2007) traz a
seguinte consideração: “[...] fazer acreditar no sintoma. Encontrar a forma de endereçar-se à
angústia do sujeito é fazê-lo entender que os sintomas inéditos de nossa civilização são
legíveis” (LAURENT, 2007, p. 176). O analista, portanto, ao acreditar e apostar no sujeito,
que diante do seu sofrimento lhe procurou como profissional para auxiliá-lo, possibilitará o
tratamento do sujeito que detém sintomas providos de uma satisfação intensa, mas que não
impossibilita um tratamento.
Quanto à anorexia nos sujeitos que participam dos movimentos em prol dela, só pode
ser concebida como sintoma, a depender de se há ou não há sofrimento. Sofrimento este que
os direcione a buscar um tratamento. Se neles não há demanda, a anorexia não pode ser
entendida como sintoma, pois há uma relação entre sintoma e sofrimento. E também, ela pode
ser um sintoma, a depender da relação transferencial do sujeito com o analista e de se a
demanda de tratamento foi constituída.
A partir dessas considerações, a anorexia pode se tornar um sintoma analítico, a
depender da posição do sujeito no tratamento e na intervenção do analista. O que se torna
diferente na cultura atual é a forma como ela se apresenta e sua exaltada vertente de
satisfação. Um sujeito que reverencia seu sintoma põe em evidência a satisfação que esse
sintoma lhe traz. Com isso, surgem mudanças na postura de receber esses sujeitos, na clínica;

92

a maneira de intervir e atender também é diferente. Desse modo, pode-se considerar que os
aspectos culturais contemporâneos não impedem a anorexia de se tornar um sintoma analítico.
Dada a possibilidade da anorexia ser um sintoma analítico, no próximo capítulo serão
apresentados dois casos clínicos (CORDIÉ, 2000; SCAZUFCA, 2002) e uma discussão
acerca deles, tendo em vista o objetivo deste trabalho. A partir da contribuição de Nasio
(2001) acerca da função didática que o caso clínico possui, será discutido se nesses dois casos
clínicos a anorexia pode ser considerada um sintoma analítico.

93

5

DA QUEIXA À DEMANDA: A ANOREXIA É UM SINTOMA
Os casos clínicos, apresentados a seguir de forma resumida, contribuem com este

trabalho, pois na psicanálise o sintoma só pode ser considerado na situação analítica. Como a
constituição e o tratamento do sintoma na psicanálise dependem da relação analista e
analisando, esses casos evidenciam a relação transferencial que possibilitou a constituição do
sintoma. A ilustração desses casos clínicos tem como objetivo exemplificar a anorexia como
sintoma analítico. Para tanto, em ambos, primeiramente há o resumo do relato de cada caso e,
depois, uma discussão sobre aspectos pertinentes ao objetivo deste trabalho: cultura, anorexia
e sintoma. Também é importante ressaltar que as autoras dos casos foram as analistas
responsáveis por cada tratamento clínico.
5.1

Caso Clara
O primeiro caso clínico a ser relatado, intitulado Clara, uma mocinha amarrada, é de

autoria de Ana Cecília Scazufca, publicado na Revista Insight em 2002. Clara tem 27 anos e
desde a adolescência tem anorexia. Há 15 anos é amenorreica, sofre de osteoporose e tem
dentes desgastados: sequelas da anorexia. A paciente aceitou ser internada em uma enfermaria
psiquiátrica pública, pois estava tendo pensamentos suicidas e tinha medo de cometer
suicídio. Foi nesse local que o tratamento clínico teve seu início. A analista passou a atendê-la
a partir de uma solicitação, e os atendimentos começaram após duas semanas que Clara estava
internada. A paciente era atendida duas vezes por semana individualmente.
A analista relata que no primeiro encontro que elas tiveram, Clara lhe contou sobre o
início de sua paixão pela magreza. Afirmou que antes da anorexia era uma menina saudável e
ativa. Clara lhe contou que “gostava de comer, e sempre que chegava da escola tomava uma
‘copada’ de leite com chocolate. Não se preocupava em engordar” (SCAZUFCA, 2002, p.1).
Porém, a repulsa pela comida começou aos 12 anos, idade em que menstruara pela primeira
vez. Juntamente a essa situação, Clara lembra que o nojo que começara a sentir pela comida
se deu quando seu pai comentou que ela estava comendo muito. A paciente contou que tinha
medo de sujar seu pai de sangue quando sentasse no colo dele e que perderia seu amor por ter
se tornado mulher. Também ficou com receio de engordar e ficar com barriga de grávida.
Quando a analista lhe perguntara o que significava ser gorda, a paciente lhe disse que
“significava dependência e sinal de extrema fraqueza” (SCAZUFCA, 2002, p. 1). Ela também

94

contou que “queria ter o corpo de uma modelo, um corpo perfeito e bem delineado”
(SCAZUFCA, 2002, p.1). Afirmou não gostar de seu corpo, pois se julgava baixa e com
quadris largos. Contou ter começado “o regime e a ginástica pensando mudar seu corpo,
transformá-lo num outro corpo, ideal” (SCAZUFCA, 2002, p. 1).
No relato, consta que a paciente sofria de episódios bulímicos; ela dizia que se sentia
violentada quando comia e era impedida de vomitar por conta da vigilância da enfermagem.
Quanto a esta vigilância, uma enfermeira deveria sempre lhe acompanhar ao banheiro para a
impedir de vomitar, porém ela afirma que conseguia burlar essa vigilância pelo menos em
uma refeição. Ela conta que se sentia “enorme, como se fosse explodir e perder os limites do
seu corpo” (SCAZUFCA, 2002, p. 1) Nesses episódios de comer compulsivo, a paciente se
desesperava quando comia “uma fatia de bolo ou uma colher a mais de comida. Isto era o
bastante para se desesperar achando estar gorda demais” (SCAZUFCA, 2002, p. 1). Com isso
vomitava e afirmava ter uma sensação de paz.
Ainda no primeiro encontro, Clara contou à analista ter vivido um quadro grave de
anorexia na adolescência e que chegou a pesar 26 quilos. Foi internada contra sua vontade em
uma clínica de dependentes químicos e os médicos disseram para seus pais que não havia
mais o que fazer para salvá-la. A paciente contou que saiu daquela situação com a ajuda de
um psicoterapeuta. Este lhe possibilitara falar de suas angústias e tristezas, e aos poucos ela
melhorou. Ela afirmou que “não achava que pudesse morrer ou que houvesse algo errado com
a sua saúde” (SCAZUFCA, 2002, p. 1); segundo a analista, ela “estava perdida, sem ter noção
da realidade. Quando se olhava no espelho, sentia-se monstruosa, deformada, e só conseguia
pensar nisso o dia todo” (SCAZUFCA, 2002, p. 1). Nesse encontro, Clara contou que
resolveu procurar a atual internação por conta própria, e no final desse primeiro atendimento,
a analista estabeleceu com a paciente um contrato para os dias e horários das sessões a serem
realizadas.
A analista ressalta que “Clara falava somente de comida e vômitos. Dizia que
precisava melhorar, mas não sabia como sair desse ‘círculo vicioso’, deixar de vomitar era
insuportável e impossível. Comer também” (SCAZUFCA, 2002, p. 1). Diante dessa situação,
em um determinado dia, a paciente ameaçou vomitar no chão durante o atendimento e a
analista reagiu e disse para ela não vomitar no seu pé. A analista comenta que
“transferencialmente imaginava que ela poderia vomitar em mim e reagi dizendo para não
fazê-lo no meu pé” (SCAZUFCA, 2002, p. 1). Assim, Clara

95

Tentou reagir e estabelecer aquele equilíbrio de volta, olhando-me surpresa e
indignada e dizendo não estar brincando. Ela que raramente me olhava, encarou-me
durante alguns minutos, aborrecida. Esta intervenção inesperada tanto para ela
quanto para mim, teve uma função de inscrever um limite entre nós. Um limite que
foi dado pela minha fala e confirmado pelo seu olhar contrariado (SCAZUFCA,
2002, p. 1).

Essa situação provocou um desequilíbrio na estrutura defensiva que a paciente vinha
mantendo (só falava de comida e vômitos) e teve uma função de inscrever um limite entre
ambas. Após essa intervenção, Clara lembrou de uma brincadeira da sua infância em que ela
era a mocinha prisioneira de um bandido que a amarrava e a beijava na boca à força. Ela
afirmou que ela era sempre essa mocinha e que não deixava ninguém ocupar esse lugar.
Diante do comentário sobre essa brincadeira, a analista refletiu que Clara vivenciava
na internação a atualização dessa brincadeira, quando os profissionais e familiares insistiam
para que comesse. A analista compreendeu que Clara se sentia amarrada e violentada pelo
bandido quando era obrigada a comer, e que não poderia assumir esse lugar de bandido.
Portanto, não deveria se ocupar com o peso de Clara e com sua preocupação pela comida.
No decorrer do tratamento, Clara contou um sonho, e neste havia uma mão enfiandolhe pizzas na boca. Ela era obrigada a comer tudo sem respirar; sentia-se sufocada e iria
morrer. Ela afirmou que acordou assustada e que com esse sonho, lembrou-se do bandido de
quem era refém. Queria se libertar dele. Seria “um bandido que lhe impede desejar?”
(SCAZUFCA, 2002, p.2). Esse relato e a história dos pais de Clara revelaram à analista que
Clara sentia seu corpo como prisioneiro de uma mãe que, assim como o bandido, amarrava-a.
A analista comenta que recusar o alimento parecia uma tentativa de existir com um corpo e
uma demanda própria, uma tentativa de Clara se separar de sua mãe. Havia uma
indiferenciação entre Clara e sua mãe, e a paciente muitas vezes relatava nos atendimentos
uma imagem embaçada de dois corpos sem sexo, entrelaçados.
O pai da paciente era descrito como uma pessoa depressiva, sem autoridade e que
jamais se colocava entre ela e sua mãe. Vários homens da família, quando ela era criança,
praticaram suicídio, e no momento ela tinha receio de cometer esse ato. O pai era como o
príncipe da brincadeira, ela aguardava ser salva do bandido (mãe) por ele. Entretanto, o papel
do príncipe estava apagado. A ocupação do lugar desse terceiro para o trabalho prosseguir era
julgada como importante pela analista e ela então deveria ocupar esse lugar.

96

Segundo a analista, comumente Clara entrava em atrito com outras pacientes e em
muitos momentos ela pediu a analista que a defendesse. A analista sempre negou esses
pedidos, e houve uma sessão em que Clara relatou se sentir triste, sozinha e desamparada,
pois a analista não a defendera numa briga dela com outra paciente. Diante dessa situação, a
paciente relatou a lembrança de um sonho em que ela estava preparando um sanduíche em
casa, mas não conseguia terminá-lo, pois sempre faltava um ingrediente. Nesse momento sua
irmã chegava em casa com uns amigos e a colocava para fora de casa. Ela estava chorando
sozinha na rua, quando seu pai aparecia e a levava embora. Ao relatar esse sonho, Clara
chorou na sessão e pediu que a analista a tirasse da enfermaria. Era como se a analista
representasse a pessoa que salvaria Clara do bandido. E nessa situação, a analista entendeu
que se o lugar do bandido era uma amarração, o do mocinho que a salvaria também seria.
A analista relata que após Clara lhe contar da briga, ela recorda que trazia consigo uma
poesia de Fernando Pessoa intitulada Eros e Psique, e então a leu para a paciente. Nessa
poesia havia uma princesa adormecida que só seria despertada por um infante. No final da
lenda, o infante, ele mesmo, era a princesa que dormia. Com a leitura, a paciente contou que
ficou emocionada com o fato de na poesia o príncipe também ser a princesa. A analista afirma
que essa foi uma maneira de mostrar à paciente que ela, enquanto profissional, não seria um
príncipe que a salvaria do bandido, mas acreditava que Clara poderia ter vontade própria e
sair da enfermaria quando quisesse.
A paciente durante os atendimentos relatava os medos que possuía. Dentre esses, tinha
medo de ficar sozinha e perder o amor dos pais; revelou ter medo da sua morte, da morte dos
pais, já que não aguentaria a dor da perda; o não entendimento da morte de seu avô paterno
quando ela era criança; e também contou sobre o medo que tinha de manter relações sexuais.
Clara contou à analista que quando pensava numa relação sexual, só conseguia ver um
borrão, como se fossem corpos entrelaçados, mas sem forma. Ela via a sexualidade como algo
pecaminoso e sujo. Segundo a analista, quando Clara se via no espelho, somente via sua
cabeça, como se ela não possuísse corpo. Clara lhe contou que queria ser feminina, como ela,
poder casar e ter filhos. A partir desse momento, “Clara passou a cuidar mais de sua
aparência, passou a usar batom e vestidos. Vi o quanto era bonita” (SCAZUFCA, 2002, p. 4).
Ela se interessou por um rapaz, amigo de sua família, que a visitava semanalmente durante a
internação. Estava apaixonada novamente, depois de muito tempo.

97

Após oito meses de internação, a paciente pôde viajar para visitar sua família, e depois
voltou e declarou não desejar mais a internação. Decidiu voltar a trabalhar e cuidar de sua
casa. Saiu antes da alta prevista, “porque não fazia mais sentido viver como num conto de
fadas. O desejo de ter um corpo ideal e a preocupação com o peso sempre fariam parte da sua
vida, mas precisava ir ao encontro das pessoas” (SCAZUFCA, 2002, p. 4). Como a paciente
morava em outro local, um novo tratamento foi iniciado em sua cidade e a analista manteve
contato com ela durante alguns meses. Sendo assim, nas palavras da analista: “amarrada, ela
só poderia ser encontrada; desamarrada, poderia viver” (SCAZUFCA, 2002, p. 4).
5.2

Caso Virginie
O relato do caso Virginie, a anoréxica está incluído em uma discussão que a analista

Cordié (2000) realiza sobre a formação do sintoma no livro Malaise chez l'enseignant.
L'éducation confrontée à la psychanalyse. Segundo Cordié (2000), este caso clínico
demonstra como o sintoma representa o sujeito em sua complexidade.
Virginie tem 22 anos, sofre de anorexia e é amenorreica desde os 14 anos. Ela já foi
hospitalizada diversas vezes devido às suas condições físicas, com um peso de 34 quilos.
Entretanto, esse tratamento acontece na clínica da analista. Ela é a mais velha de cinco filhos
e sempre se considerou a segunda mãe de seus irmãos e irmãs. Sua mãe, oriunda de um meio
aristocrata, casou-se com seu pai contra vontade da família, e se arrependeu dessa paixão. O
pai da paciente é “um psicopata, trapaceiro, cujo próprio nome era falso” (CORDIÉ, 2000, p.
204). O surgimento da anorexia de Virginie tem início quando seu pai é preso. A analista
ressalta que “o corpo é seu lugar eleito para expressar seu conflito, Virginie exibe seu corpo
emagrecido como lugar de seu sofrimento” (CORDIÉ, 2000, p. 204).
Virginie relata à analista que, “como sou o espelho de mamãe, eu reproduzo os anjos,
mamãe está segura de que eu não tenho nenhum desejo” (CORDIÉ, 2000, p. 205). Dessa
forma, ela tenta viver o ideal de pureza de sua mãe, que vive arrependida de ter se apaixonado
por um homem desse tipo. Esse ideal de pureza vem de sua própria família, e ela o reencontra
na figura de um amigo religioso da família que ajudou a mãe de Virginie a educar os filhos.
Ele é como uma espécie de pai ideal.
Nesse contexto, a paciente afirma o seguinte: “eu represento aquela que é assexuada
na casa” (CORDIÉ, 2000, p. 205), e conta que: “se eu dormisse com qualquer um, eu teria a

98

impressão de cometer um sacrilégio com minha mãe” (CORDIÉ, 2000, p. 205). Esse
sacrilégio está, segundo a paciente, ligado à ideia de desejar sexualmente um homem. Ela
então ressalta que “não suporta ver a barriga inchar” (CORDIÉ, 2000, p. 205) e que não
concebe a ideia de ter um filho. Para a analista, o fato de a paciente engordar e ter formas
femininas seria introduzir o risco de seduzir o pai; há com isso uma recusa de entrar no jogo
do desejo. Nas palavras de Virginie:
Eu cansei de menstruar (ela não menstrua desde os 14 anos). Certas moças têm um
ar fabricado, eu gostaria de ser como elas, ter uma fachada bonita sem me ocupar do
resto. Talvez eu não quisesse ter corpo perante papai... eu sei que papai gosta de
traseiros grandes. Diante de papai eu prefiro que meu corpo não exista (CORDIÉ,
2000, p. 206)

Assim, a analista observa que ser um anjo e ser assexuada são evidências de que a
paciente recusa ser uma mulher, que ter formas femininas poderia seduzir o pai e aqui reside o
perigo incestuoso. Não desejar e não se fazer objeto do desejo sexual do pai. Diante dessa
recusa, Virginie se torna mestre de seu desejo, mestre de seu corpo, “um corpo domesticado,
subordinado à sua vontade, está aí o sonho de toda anoréxica” (CORDIÉ, 2000, p. 207).
A paciente comenta que as suas preocupações alimentares são preocupações também
de seu pai. Em relação aos alimentos, ela: “eu como legumes com água, um pão inteiro, carne
não... meu pai se preocupa com a alimentação, para ele o pão é sagrado... o retorno às origens,
é o pão completo... ele é magro como um prego” (CORDIÉ, 2000, p. 207). Regime e magreza
são características dele que ela toma para si. A analista afirma que a anorexia para Virginie
pode ser concebida com um vício, assim como o alcoolismo e o traço perverso são para seu
pai. Enquanto ele vai para a prisão, ela vai para o hospital. Tem crises bulímicas, e assim
como seu pai, que roubava dinheiro da bolsa da esposa, ela rouba alimentos da geladeira e os
esconde em lugares secretos. Nesses momentos, “ela se empanturra “até não poder mais”, e
em seguida se põe a vomitar: “Então eu caio no fundo do abismo, como papai”, diz ela”
(CORDIÉ, 2000, p. 207).
Segundo a analista, Virginie reencontra em seus sonhos a angústia de devoração, de
desaparição e morte. A morte da anoréxica é negada, sendo esperada e temida, mas também
há os desejos de morte. Nesse sentido, a analista relata que “a transferência é marcada por
certa violência, colocando frequentemente o terapeuta pouco à vontade, e lhe provoca reações
agressivas e comportamentos de rejeição” (CORDIÉ, 2000, p. 213).

99

Desse modo, a analista ressalta que, paralelo a esse tratamento, Virginie também era
tratada por uma equipe médica que, durante as hospitalizações, estipulava o peso a que ela
deveria retornar para que pudesse sair do hospital. Segundo a analista, esse tratamento
consistia no isolamento, sem visitas; e afirma que Virginie havia passado por isso entre seus
14 e 22 anos, antes de chegar à clínica onde começou esse tratamento analítico. A equipe
médica que tratava Virginie propôs, em um determinado momento, que a paciente deveria
morar sozinha, que ela deveria se separar de sua família. A paciente seguiu a recomendação
médica e passou a morar sozinha, porém se sentiu muito mal, e houve um aumento
significativo dos episódios bulímicos. Segundo a analista, esta foi “uma maneira um pouco
simplista de querer romper com os laços patogênicos com os pais e confundir a ‘separação’
psíquica com o processo de desalienação das imagos parentais” (CORDIÉ, 2000, p. 208).
Diante dessa situação, a analista solicitou aos psiquiatras que a paciente voltasse para casa,
porém eles eram contrários a essa posição. Mas, em um determinado dia, “Virginie ignora os
conselhos médicos e retorna para seu quarto de menina” (CORDIÉ, 2000, p. 208).
Com o decorrer do tratamento, Virginie passou a dissociar sua própria história das de
seus ascendentes, passando a compreender a relação que existia entre ela e sua mãe. A
resolução do conflito se precipita quando o que era impensável para ela, ter um
relacionamento com um homem, passa a acontecer na sua vida, pois ela pôde estabelecer uma
relação com um namorado. Assim, segundo a analista, “a emergência da pulsão, o imprevisto
do desejo, um outro prazer do corpo vislumbrado, tudo isso pôde enfim vir à tona e lhe faz
esperar um outro destino” (CORDIÉ, 2000, p. 209).
5.3

Discussão dos casos clínicos
Apresentados os resumos dos casos, é chegado o momento da discussão, de como

esses casos se relacionam com as considerações feitas no decorrer deste trabalho sobre
cultura, anorexia e sintoma. Para facilitar a compreensão, será utilizada a descrição Caso 1
para o primeiro caso, e Caso 2 como referência ao segundo caso. Serão comentados os
aspectos comuns aos dois casos, assim como serão enfatizadas as particularidades de cada um.
É importante ressaltar que em nenhum momento este trabalho tem como objetivo fazer uma
análise desses casos, mas se detém na função didática (NASIO, 2001), porquanto a ilustração
dos casos contribui com as discussões deste trabalho. Para uma melhor compreensão, a
discussão foi agrupada em temas-eixo (CRUZ, 2007).

100

 Cultura contemporânea: excesso e ausência de limites
No Capítulo 2 foi discutido como a ausência de limites, que acarreta um excesso
desmesurado, constitui os sujeitos contemporâneos. Principalmente no Caso 1, há uma
evidência da falta de limites e da presença do excesso na vida da paciente. Essa ausência de
limites pode ser observada na relação da paciente com seu corpo: quando ela afirma se sentir
enorme, como se fosse explodir; quando se desespera por comer uma colher a mais de
comida; quando começa o regime e a ginástica; e na própria relação analítica entre a paciente
e a analista. Uma colher a mais, e a paciente sente que vai explodir; exemplifica como não há
limites: é tanto que a paciente se utiliza de mecanismos compensatórios para poder lidar com
essa situação.
Quando a paciente ameaça vomitar durante o atendimento e a analista reage
transferencialmente, ao dizer que a paciente não o faça em seu pé, houve segundo Scazufca
(2002), a inscrição de um limite. De alguma maneira, um limite, uma separação entre ela e a
analista é feita nesse momento. Esse limite que foi dado, através da relação analítica, é um
limite estruturante e que não era evidente na constituição da paciente enquanto sujeito. Tendo
em vista essa ausência de limites tanto na vida da paciente quanto na cultura contemporânea,
é possível observar como os aspectos que constituem esta cultura, influem na constituição dos
sujeitos e na própria formação sintomática. Nesse sentido, o limite, que é estruturante, que
faltava na vida da paciente e que também possibilitou o surgimento da anorexia, foi inscrito a
partir da relação analítica.
 O corpo ideal
No Caso 1, é interessante ressaltar quando a paciente conta do anseio pelo corpo ideal
e das suas estratégias para consegui-lo, através de regime e academia. Nesse caso, é possível
visualizar os padrões e códigos de beleza corporais da cultura contemporânea: a idealização
de um corpo magro e esbelto. A paciente decide começar um regime e uma ginástica, no
intuito de alcançar esse corpo ideal, porém o que acontece nessa busca, se o anseio por um
corpo magro e esbelto se transforma na obtenção de um corpo cadavérico? Um corpo “para
além da magreza”? Se os sujeitos contemporâneos almejam o encontro com esse corpo ideal,
praticam academia e fazem regime, o que aconteceu com essa paciente, visto que não há
necessariamente o surgimento da anorexia nos demais sujeitos adeptos dessas práticas?

101

Quando a busca do corpo ideal é relatada pela paciente, observa-se a onipresença
dessa idealização na constituição do seu sintoma. Entretanto, existe uma série de aspectos que
se relacionam nessa constituição. Foi o entrelaçamento desse aspecto com os demais da vida
da paciente que possibilitou o surgimento e a constituição da anorexia. Há a fala do seu pai
para ela não comer demais, a primeira menstruação, a brincadeira infantil, o sonho revelador,
os pensamentos suicidas, a relação dela com sua mãe e com seu pai, a paixão pela magreza,
ou seja, são aspectos revelados e associados pela paciente durante o tratamento, que estão
interligados na constituição da sua anorexia.
Não há como dissociá-los, pois eles constituem o conflito próprio ao sintoma definido
por Freud (1917a, 2000). Os relatos da paciente demonstram a formação desse conflito, o
entrelaçamento dessa formação e a constituição sintomática. Dessa forma, a ideia de que a
cultura não é causadora, apesar das idealizações corporais contemporâneas, é reforçada. Não
há uma causa única, mas sim uma associação de diversos aspectos que resultam na formação
do sintoma (FREUD, 1917a, 2000).
 Anorexia e Adolescência
Tanto no Caso 1 quanto no Caso 2, a anorexia teve início na adolescência, uma com
12 anos e outra com 14 anos. No Caso 1, mais especificamente, o surgimento estava
relacionado com a primeira menstruação da paciente, ou seja, com as transformações
hormonais e físicas acarretadas pela puberdade. Nesse sentido, há estudos de autores baseados
na psicanálise, que discutem essa constituição da anorexia na adolescência (FERNANDES,
2006; FREUD, 1918, 2010; GASPAR, 2010; SILVA; BASTOS, 2006; VIEIRA, 2008).
Fernandes (2006) propõe que o aumento da demanda pulsional no momento do
adolescer possibilita o surgimento da anorexia. Esse aumento da demanda pulsional
corresponde ao excesso da pulsão e está relacionado com as mudanças da puberdade, em que
há transformações hormonais e físicas na vida do sujeito. Para esta autora, esse excesso está
relacionado aos perigos que emanam do interior do corpo e que podem impulsionar esse
surgimento. Na mesma perspectiva, Gaspar (2010) considera que a incidência da anorexia na
adolescência se deve ao turbilhão de mudanças abruptas que acontecem no corpo do
adolescente, pois o corpo é colocado em cena.

102

Em Freud (1918, 2010), a relação entre anorexia e adolescência aparece no texto
História de uma neurose infantil “O homem dos lobos”. Como apresentado no item 3.2,
Freud (1918, 2010) assevera que no momento da puberdade (ele não utiliza o termo
adolescência), há nas meninas uma neurose que exprime a recusa sexual. Para ele, a
incidência da anorexia na adolescência está relacionada com a recusa sexual, com a recusa da
sexualidade. Diante das mudanças corporais, o sujeito está apto e pronto nesse momento, para
o encontro de um objeto de ordem sexual, aliás, para um reencontro do objeto (FREUD,
1905b, 2003). Para o autor, a recusa alimentar é também uma recusa sexual, uma recusa desse
encontro com o sexo, através de um corpo cadavérico e dessexualizado. No Caso 2, essa
recusa sexual, recusa também do desejo sexual, pode ser observada quando a paciente afirma
que é assexuada, ou seja, como um sujeito sem sexo, um sujeito desprovido de desejo.
Já as autoras Silva e Bastos (2006) comentam que “é justamente quando o sujeito se
depara com o desejo do Outro em sua vida, seja nas transformações que o corpo sofre na
adolescência, seja em seu encontro com o sexo, que a anorexia aparece” (SILVA; BASTOS,
2006, p. 104). Essas autoras afirmam que o surgimento acontece quando o sujeito se depara
com o desejo do Outro. Ou seja, quando ele questiona “o que o Outro quer de mim?”, desejo
este tanto relacionado às modificações corporais quanto ao encontro com o sexo que emerge
na adolescência.
Ainda sobre anorexia e adolescência, Vieira (2008) afirma que há uma relação entre
ambas devido à ressignificação edípica que surge na adolescência. É interessante esse
posicionamento, pois no relato do Caso 2, Cordié (2000) considera que o caso da paciente é
constitutivo de uma estrutura histérica, e o sintoma da anorexia tem relação com a castração e
com a problemática edipiana. A problemática edipiana é revivida na adolescência da paciente,
e dessa maneira, há o surgimento do conflito que constitui o sintoma.
Esses aspectos da adolescência relacionados às transformações corporais advindas das
mudanças hormonais, da recusa sexual, do desejo do Outro, do encontro com o sexo, da
ressignificação edípica podem ser observados nos relatos dos dois casos clínicos. E de forma
mais específica, na questão da recusa alimentar das pacientes.
 A recusa alimentar

103

No Caso 1, quando a paciente menstrua pela primeira vez, ou seja, quando há
mudanças corporais, isso coincide com o fato de seu pai ter comentado que ela estava
comendo muito. Diante dessas duas situações, a paciente passou a sentir nojo e repulsa pela
comida, e teme, ao mesmo tempo, engordar e ter barriga de grávida; sentar no colo do seu pai
e sujá-lo de menstruação.
O encontro com o sexo acontece, justamente, quando essa paciente do Caso 1 não sabe
o que fazer com seu novo corpo, que está muito modificado. Recusa a comida com medo de
engordar, tem medo de sentar no colo do pai e de sujá-lo de menstruação. Além de ter de lidar
com o temor desse corpo, se depara com o desejo do Outro, sem saber o que o Outro quer
dela. Se o pai comenta que ela está comendo muito, a partir desse comentário, ela começa a
recusar o alimento. Talvez essa seja a resposta que ela pode dar a seu pai, diante do
comentário feito por ele. O corpo de uma adolescente não é mais um corpo infantil. Ao
recusar o alimento, a paciente também recusa esse novo corpo que está apto para o encontro
sexual.
Quanto ao Caso 2, a paciente ao comentar que cansou de menstruar (não menstrua
desde os 14 anos), que não suporta ver a barriga inchar e que prefere que diante de seu pai seu
corpo não exista, exprime, de forma clara, a recusa sexual. Essa recusa engloba todos os
aspectos citados anteriormente, já que ela afirma preferir que o seu novo corpo não exista
diante de seu pai. Ela detém um corpo dessexualizado, talvez na tentativa de,
inconscientemente, recusar o encontro com o sexual, de não saber o que o Outro quer dela, já
que seu corpo está modificado e apto para a procriação.
São aspectos da adolescência que perpassam pela vida da paciente, e ela decide,
através da recusa alimentar, apagar seu corpo. Dessa forma, provoca uma recusa sexual, um
afastamento do encontro com o objeto sexual. Aqui também há a expressão de um desejo
velado de maternidade. A recusa alimentar e sexual evidencia esse desejo através do que
Freud (1925, 2011) denomina de negação. Segundo o autor, a negação é uma manifestação do
inconsciente na tentativa de recalcar algum juízo. Com a recusa, há uma negação do desejo
de maternidade da paciente, ele então fica velado. O desejo existe, porém está velado,
dissimulado, encoberto.
É também válido ressaltar que quando Freud (1918, 2010) evidencia a relação entre
anorexia e adolescência, utiliza o termo “meninas”. Nesse caso ele faz referência à incidência

104

da anorexia em mulheres. Como se pode observar, tanto no Caso 1 quanto no Caso 2, as
pacientes são mulheres e evidenciam a complexidade do tornar-se mulher (FREUD, 1931,
2010), seja quando comenta que tem medo de sentar no colo do pai e sujá-lo de menstruação,
seja quando é a assexuada da casa e prefere que perante o pai seu corpo não exista. Apesar de
haver casos de anorexia em homens, assim como Freud (1918, 2010), alguns desses autores
citados acima relatam a preponderância da anorexia em mulheres (FERNANDES, 2006;
GASPAR, 2010; PENCAK; BASTOS, 2009).
 A relação com o pai
Outro aspecto da formação do sintoma nos dois casos é referente à relação das
pacientes com seus pais. No Caso 1, a paciente começa a sentir repulsa alimentar quando seu
pai comenta que ela está comendo muito, e no Caso 2, quando o pai da paciente é preso.
Nesses dois momentos é possível identificar que houve um recalcamento de situações
indesejadas das pacientes com seus pais e com isso, houve a formação do sintoma, o retorno
do recalcado (FREUD, 1915b, 2010). Esta ideia remete aos textos freudianos sobre a anorexia
(FREUD, 1893, 2003; 1895b, 2003), quando ele relaciona o surgimento desse sintoma com
um fato traumático e com lembranças da vida infantil.
Como Freud (1917a, 2000) afirmara, a constituição do sintoma está relacionada às
experiências do sujeito e, nesse sentido, a presença paterna esteve relacionada ao surgimento
de ambos os casos. Ainda que a figura paterna esteja presente na formação da anorexia, a
relação que cada paciente tem com seu respectivo pai é diferente uma da outra, é uma relação
singular. Mesmo tendo em vista isso, em ambos se pode considerar a questão da
ressignificação edípica que surge na adolescência e que também está relacionada com a
formação da anorexia nas pacientes.
Segundo Freud (1905b, 2003), essa ressignificação edípica corresponde ao momento
da adolescência em que o sujeito revive as fantasias incestuosas da vida infantil. Essas
fantasias são referentes ao Complexo de Édipo, momento da vida infantil de investimentos
objetais em que o filho se sente atraído pela mãe, e a filha pelo pai. Segundo Freud (1924a,
2011), na dissolução desse Complexo, “os investimentos objetais são abandonados e
substituídos pela identificação” (FREUD, 1924a, 2011, p. 208). Nessa identificação, a menina
tende a se identificar com a mãe e o menino com o pai, ou seja, tende a ser uma identificação
distinta dos respectivos investimentos objetais. Mas nos dois casos, o início da anorexia nas

105

pacientes ocorreu não só a partir de situações em que o pai, que um dia fora idealizado, esteve
presente, seja em um comentário, seja com a notícia de que ele foi preso. Mas também a partir
da identificação das pacientes com seus respectivos pais, ou seja, uma identificação com o
mesmo objeto, com o mesmo investimento.
A identificação das pacientes com suas mães não é realçada. Nos dois casos, há uma
identificação com a figura paterna. Seja quanto às preocupações alimentares da paciente
serem decorrentes de preocupações alimentares de seu pai, seja quanto à marca da tragédia
familiar que o pai trazia, pois vários homens de sua família tinham praticado suicídio, e no
momento do tratamento, a paciente relatou ter pensamentos suicidas. De algum modo, nesse
momento da adolescência, em que há uma reedição do Complexo de Édipo, essas situações
em que o pai de cada uma estava envolvido também possibilitaram a constituição desse
sintoma.
É interessante perceber que a figura paterna está presente no surgimento, e que nos
dois casos o pai não se coloca entre a filha e a mãe. O pai do Caso 1 é idealizado ao ponto de
ser considerado pela filha o príncipe que poderia salvá-la, mas ele não se põe nesse lugar.
Com isso, deixa espaço para a representação da imagem dos dois corpos entrelaçados, que a
paciente menciona. O pai do Caso 2 é ausente e ao mesmo tempo presente na vida familiar da
paciente. Ausente, pelas situações em que ele se envolve e também pelo fato de o amigo da
família ocupar o seu lugar de promover a educação da família. Presente, pois a mãe da
paciente se arrepende de ter se apaixonado pelo pai dos filhos, e isso é compartilhado e vivido
intensamente, sobretudo pela paciente.
Nos dois casos, a figura paterna possibilitou a presença materna onipotente na
constituição do sintoma das pacientes. A esse respeito, há estudos que discutem sobre a
ausência da figura paterna, ausência de um terceiro que interdite a intensa relação e sem
limites entre mãe e filha (FERNANDES, 2006; GASPAR, 2010; ROVERE, 2011; SILVA;
BASTOS, 2006; VIEIRA, 2008). Diante dessa fusão, resta ao sujeito recusar o alimento como
uma tentativa de se separar dessa mãe intrusiva e constituir seu próprio desejo (LACAN 1957,
1995; RECALCATI, 2000).
Nos casos clínicos, as histórias das pacientes com seus pais demonstram a ausência
deles na relação entre elas e suas mães. Não há interdições entre ambas, e no decorrer dos
tratamentos, as pacientes começam a se diferenciar do outro, pois de alguma forma a analista

106

ocupou a posição desse terceiro. Tal como Consenza (2009) propõe, a analista encarnou “a
espécie de um outro Outro”, distinto daqueles que as pacientes encontraram em suas vidas. As
analistas assumiram uma posição que até então não tinha sido bem ocupada e que era
fundamental na vida de cada uma, pois era uma posição estruturante. Eis que dessa forma a
separação pôde acontecer, a partir do desvencilhamento do sintoma, através de
ressignificações, e não mais mediante a recusa alimentar.
 Anorexia e morte
Nos dois casos, aparece a relação entre anorexia e morte. No Caso 1, apesar de em um
determinado momento a paciente não achar que pudesse morrer por pesar apenas 26 quilos,
ela é internada na enfermaria psiquiátrica em que acontece o tratamento com a analista, por
ter pensamentos suicidas e medo de cometer o ato. Enquanto em um momento a morte é
negada, em outro ela ressurge como medo. Do mesmo modo, no Caso 2, apesar de a morte ser
negada, há também desejos de morte que surgem em sonhos relatados na análise.
É possível compreender que nos dois casos a negação da morte pode estar relacionada
à distorção da percepção da imagem corporal. Apesar de estarem com um corpo
extremamente magro, as pacientes não acreditavam que poderiam morrer. Essa ideia da
distorção da imagem nas anoréxicas é intrigante, visto que a intensa recusa alimentar não
corresponde à tentativa de suicídio. Pelo contrário, é através da recusa que elas buscam a vida.
Será que a negação da morte, a distorção da imagem e a recusa não evidenciam o olhar do
Outro que as pacientes obtiveram e que determinou o destino de cada uma delas?
Tanto no medo desses pensamentos suicidas quanto nos sonhos que revelavam desejos
de morte, a morte foi vivenciada pelas pacientes de outra forma que não a negação. No
decorrer do tratamento analítico, foi possível as pacientes recordarem como a morte era
presente em suas vidas. O relato e a lembrança do medo e dos sonhos possibilitaram as
pacientes em tratamento, recordar, repetir e elaborar a questão da morte em suas histórias e
vidas (FREUD, 1914, 2010).
 Anorexia e bulimia
É também importante ressaltar, além da anorexia, a presença nos dois casos de
episódios bulímicos. No Caso 1, comer uma colher a mais de comida ou uma fatia de bolo
eram o bastante para que a paciente se sentisse enorme e como se fosse explodir, e com isso

107

burlava a enfermagem, para conseguir vomitar o que havia ingerido. Eram episódios
recorrentes e concomitantes aos momentos de recusa alimentar. A paciente tanto recusa
quanto come desenfreadamente, e depois se utiliza de mecanismos compensatórios. Já no
Caso 2, esses episódios são considerados o vício da paciente, o vício de comer-vomitar:
bulimia, o vício. A paciente rouba alimentos da geladeira e os esconde nos lugares mais
secretos, empanturra-se até não poder mais e, logo depois, ela inicia os rituais de vômitos.
Tal como no Capítulo 3 foi apresentado, há estudos que discutem a relação entre
anorexia e bulimia (BIDAUD, 1998; BLANCO, 2000; CLERCQ, 2012; FERNANDES, 2006;
FUKS; CAMPOS, 2010; RECALCATI, 2000). Nesses episódios, as pacientes não
conseguiam conter a recusa alimentar e se empanturravam de comida. Diante dessa situação,
os episódios de comer-vomitar são frequentes e evidenciam a relação entre anorexia e
bulimia. Uma intensa relação entre a recusa e a fome desmesurada. Essa proximidade remete
à ideia de que a anorexia não se trata de inapetência, visto que nesses casos há uma disposição
tão grande das pacientes para comer (há apetite), que quando elas não conseguem recusar,
empanturram-se de comida.
 Psicanálise e Medicina
Os dois casos clínicos demonstram o tratamento psicanalítico das duas pacientes e a
particularidade de cada um. Quanto ao tratamento que a medicina propõe para as pacientes,
por conceber a anorexia como uma disfunção, corresponde a um contrato em que há um
estabelecimento do peso que as pacientes devem atingir. Elas devem se alimentar para atingir
um determinado peso, que certamente normaliza essa disfunção orgânica. Esta é uma parte
importante do tratamento, pois a magreza extrema e a desnutrição podem acarretar diversas
consequências, que já eram até presentes nas vidas delas, como a ausência de menstruação.
Essas consequências e esse peso tão abaixo do que é indicado são os principais propulsores da
hospitalização. É necessário recuperar, ao menos um pouco, esses déficits nutricionais e
orgânicos, para que o paciente sobreviva a essa magreza excessiva.

É uma condição

essencial, até para que outros trabalhos possam ser desenvolvidos e ser associados a esse
tratamento.
O fato de a psicanálise e a medicina serem distintas possibilita que haja a associação
do tratamento de uma com o da outra; é o caso de um trabalho em equipe. Freud (1926b,
2001) contribui com essa discussão quando em Podem os leigos exercer a psicanálise?

108

Diálogos com um juiz imparcial propõe que toda ciência é unilateral e que é uma insensatez
lançar uma contra a outra. Ele então afirma:
[...] a física não desvaloriza a química, não pode substituí-la e tampouco pode ser
substituída por ela. A psicanálise é, sem dúvida, extremamente unilateral, enquanto
ciência psíquica do inconsciente. Então, não se pode contestar às ciências médicas o
direito à unilateralidade (FREUD, 1926b, 2001, p. 217).

Desse modo, compreende-se que por serem unilaterais, a medicina não substitui a
psicanálise, e vice-versa. Elas têm naturezas diferentes, mas podem trabalhar de forma
conjunta e associada. Por serem discursos diferentes, é possível um trabalho associado.
Zanotti e Monlleó (2012) contribuem com essa discussão quando apresentam um estudo
baseado na interlocução entre psicanálise e medicina a partir de uma experiência de
atendimento integrado. Apesar do possível trabalho em conjunto, as autoras afirmam que a
interlocução e o atendimento integrado devem ser reconstruídos a cada caso e entre os
integrantes da equipe. Ou seja, a interlocução deve ser construída e estabelecida diante de
cada caso.
É justamente pelo fato de a psicanálise e de a medicina terem lugares distintos que
uma se afirma perante a outra e possibilita um trabalho conjunto. Se elas ocupassem a mesma
posição, não haveria necessidade desse trabalho. Em ambos os casos, o tratamento analítico
acontece e o tratamento médico, também. Um não impossibilita o outro. São maneiras
diferentes de conceber o sujeito e o sintoma, mas isso não impede que os tratamentos ocorram
concomitantemente (LACAN, 1966, 2001; ZANOTTI; MONLLEÓ, 2012).
No Caso 1, a paciente está internada em uma enfermaria psiquiátrica pública em que a
analista participa da equipe. Nesse caso, não é porque a analista participa da equipe que ela
deve agir como os demais profissionais. Se nesse caso ela, enquanto analista, percebe que
quanto mais implorar para a paciente comer, também representará o lugar do bandido, ela
entende que não deve se posicionar nesse lugar. Entretanto, ela não tem como impedir a
equipe clínica de realizar o seu trabalho, ainda que a equipe esteja implorando para a paciente
comer. Essa atitude demonstra que, como analista, ela está a serviço do sujeito, da história do
sujeito, e não de obrigá-lo a restituir seu peso. O aumento de peso, com o decorrer do
tratamento, poderá vir a acontecer, poderá até ser um efeito dele, mas não é seu objetivo
principal (MORETTO, 2001, p. 106).

109

No Caso 2, quando a equipe médica recomenda que a paciente resida sozinha e ela
acata essa recomendação, a analista entende que essa recomendação pode não ser positiva
para a condição da paciente. Ela entende que não é essa separação de ordem física que fará a
paciente melhorar do quadro anoréxico, ainda mais quando o quadro clínico piora e há um
aumento significativo de episódios bulímicos. Apesar de essa posição da analista não ser
aceita pelos médicos, a paciente, por não aguentar mais viver sozinha, decide ignorar a
recomendação e retornar para sua casa.
Foram opiniões contrárias, da analista e dos médicos, mas é possível afirmar que a
paciente, por perceber que aquela situação não lhe era favorável, resolveu retornar para casa.
Talvez por notar que aquela recomendação não lhe estava sendo benéfica. No decorrer do
tratamento, ela conseguiu visualizar qual era sua posição e qual era a dos seus familiares.
Houve uma separação da demanda do Outro (RECALCATI, 2000), mas que não se deu,
necessariamente, pela imposição física.
 O tratamento analítico
Quanto à anorexia ser ou não ser considerada um sintoma analítico, apesar de nos
relatos dos casos alguns dos aspectos citados por Cosenza (2012), que envolvem a divisão
subjetiva, o enigma do sintoma, a demanda e o encontro com o analista, não terem sido muito
realçados, é possível afirmar que esses aspectos foram construídos a partir do encontro entre
analista e analisando. Talvez não inicialmente, como nos sintomas clássicos freudianos, mas
sim no decorrer do tratamento.
Em algum momento nos casos, as queixas iniciais e a ausência de demanda se
tornaram demanda de análise. Como Quinet (2007) ressalta, não basta o sujeito se queixar do
seu sintoma e pedir para se desvencilhar dele; “é preciso que essa queixa se transforme numa
demanda endereçada àquele analista e que o sintoma passe do estatuto de resposta ao estatuto
de questão para o sujeito [...]” (QUINET, 2007, p. 16). E mais adiante, ele continua: “quando
esse sintoma é transformado em questão, ele aparece como a própria expressão da divisão do
sujeito” (QUINET, 2007, p. 17).
Nos casos, com a divisão do sujeito, o sintoma passou a ser um enigma, um enigma a
ser explicado, e que estava endereçado ao analista. As associações, fantasias e os sonhos
surgiram, e o conflito passou a ser desvelado. O aspecto da fantasia é relevante nos dois casos,

110

quando as pacientes revelam seus medos à analista: o medo da morte, o medo da morte dos
pais, o medo de ficar sozinha, o medo do sexo e o medo de a barriga inchar. Esses medos
estavam relacionados às fantasias inconscientes que permeavam a vida das pacientes.
A respeito das fantasias, Freud (1917b, 2000) afirma que elas possuem realidade
psíquica, em contraste com a realidade material, e que no mundo das neuroses “a realidade
psíquica é decisiva” (FREUD, 1917, 2000, p. 336). Dessa maneira, compreende-se que esses
medos que as pacientes relataram eram contrastados com a realidade material, uma vez que
eles, enquanto fantasias, demonstravam a força da realidade psíquica. Essas fantasias foram
endereçadas às analistas, de modo que puderam ser trabalhadas e estavam interligadas com a
formação do sintoma. Com isso, se elas não supunham que havia um saber na analista acerca
dos seus sofrimentos, houve o surgimento dessa suposição, já que existiu um endereçamento.
Houve um espaço para o surgimento dessas associações e fantasias. Só assim o tratamento
pôde acontecer e em ambos os casos a anorexia se tornou um sintoma analítico.
É um sintoma, pois houve um encontro entre analista e analisando que possibilitou o
acontecimento de um tratamento, o desvelamento do conflito e da satisfação que constituía
cada sintoma. Apesar da recusa da anoréxica ao tratamento (COSENZA, 2009), que pode ser
evidenciada quando a paciente do Caso 1 no início dos atendimentos relatava apenas a sua
relação com a comida e com os vômitos, algo aconteceu que possibilitou a criação de uma
demanda pela paciente. As demandas dos tratamentos se constituíram através do encontro das
pacientes com suas respectivas analistas.
As intervenções das analistas possibilitaram o surgimento de diversos aspectos
relatados nas falas das pacientes que estavam associados à constituição da anorexia. Foram
intervenções que não necessariamente visaram que as pacientes comessem (LASÈGUE, 1873,
1998), que as pacientes alcançassem o peso ideal para suas condições, pelo contrário, elas
proporcionaram o surgimento dessas construções (FREUD, 1937, 2001) e permitiram que
essas questões referentes à alimentação fossem abordadas pelos devidos profissionais. Às
analistas não cabiam essa posição.
Por exemplo, no Caso 1, a paciente está internada em uma enfermaria psiquiátrica e há
uma solicitação para a analista atendê-la. No relato não fica claro se essa solicitação foi feita
pela equipe ou pela paciente, mas é possível afirmar que houve um encontro entre analista e
paciente. Houve um espaço para que esse tratamento acontecesse, e se findou uma aposta na

111

relação terapêutica. Inicialmente, na fala da paciente só havia espaço para se falar de comida e
vômito, certamente porque esse já era o discurso da paciente com outras pessoas ao seu redor,
seja com os profissionais, com colegas, ou com sua família. Quando a paciente ameaçou
vomitar durante uma sessão e a analista reagiu, essa intervenção, feita segundo Scazufca
(2002) a partir da relação transferencial, provocou uma série de associações. Estas foram
relatadas pela paciente e possibilitaram um avanço no tratamento. Nesse momento é como se
com essa intervenção o tratamento ganhasse outro rumo: a paciente se recordou de
lembranças infantis, relatou um sonho e contou da imagem de dois corpos entrelaçados.
Recordações que estavam relacionadas com a constituição da anorexia.
É importante destacar a relação transferencial nesses casos, visto que Cordié (2000)
ressaltou no relato do caso que a transferência era marcada por certa violência, pois a paciente
lhe provocava reações agressivas e lhe deixava pouco à vontade. Da mesma forma, no Caso 1,
quando Scazufca (2002) comenta acerca dessa intervenção que fizera, ao afirmar que a
paciente não vomitasse em seu pé, também demonstrou a agressividade que perpassava pela
relação transferencial. Essa violência indica a presença de uma transferência negativa
(FREUD, 1912, 2010) que revelava a transferência de sentimentos hostis para as respectivas
analistas. Mas, no Caso 1, quando a paciente afirma que quer ser como a analista, quer se
casar e ter filhos assim como ela, isso indica que há uma idealização e que há também uma
transferência de sentimentos ternos da paciente para a analista. Essa transferência, tanto
negativa quanto positiva, constitui, segundo Freud (1912, 2010), a relação transferencial que
possibilita o tratamento.
Foi através da relação transferencial que, no Caso 1, a analista se fez presente, não
sendo a heroína que salvaria a paciente do bandido, da mãe, e até mesmo do pai. Ela permitiu
que nessa relação de escuta, cuidado e acolhimento, a paciente percebesse que ela mesma
poderia se salvar, e não necessariamente ser salva por outra pessoa, de quem de certa forma
ela também seria refém.
No Caso 2, há também uma série de associações feitas pela paciente através da relação
transferencial com a analista. Há lembranças dos relacionamentos da paciente com seu pai e
com sua mãe, os diferentes posicionamentos da paciente ante o pai e a mãe, ao corpo
inexistente perante o pai e a impossibilidade de se relacionar com um homem. São lembranças
que se articulam na constituição da anorexia e que também surgem através da relação
transferencial com a analista. É interessante a posição da analista, quando os médicos

112

recomendam que a paciente deve morar sozinha. Apesar de a analista saber do conflito
familiar, presente na vida da paciente, já que é por ela relatado, ela entende que o afastamento
da família não necessariamente possibilitará uma melhora na sua vida. O fato de a paciente
morar sozinha seria apenas um artifício de ordem física para afastá-la a paciente dos conflitos
familiares, porém o que estava em jogo na constituição desse sintoma não eram questões que
seriam aliviadas com o afastamento físico.
Segundo Cordié (2000), com as intervenções e o tratamento analítico a paciente foi
conseguindo distanciar a sua própria história das de seus familiares. É nessa ordem, e não
fisicamente, que a separação começa a acontecer. É a partir do momento em que a paciente se
posiciona, que sua vida pode se direcionar de outra forma. Não foi a analista que impôs que
ela deveria retornar para seu lar familiar; foi ela que percebeu o que era melhor, talvez até
mesmo por ter experimentado viver sozinha, e assim assumiu outra posição em face dos que
dela tratavam e de sua própria família.
Foi possível o acontecimento de ambos os tratamentos não só pelo fato de que as
demandas foram construídas. Além desse encontro entre analista e analisando e da construção
de cada demanda, havia uma função desse sintoma na vida das duas pacientes, e
principalmente por isso os tratamentos ocorreram. Essa função estava vinculada ao conflito
que constituía o sintoma de cada uma das pacientes. O sintoma era a solução de compromisso
a condensar diversas situações que não tinham sido elaboradas na vida delas. A anorexia
expressava esse conflito através da recusa alimentar.
Em ambas, o conflito pôde ser identificado no tratamento analítico e estava
relacionado com as situações: relação mãe e filha, intrusão materna, ausência do pai,
idealização paterna, fantasias, reedição edípica, recusa sexual, alimentos, recusa alimentar,
cultura, satisfação, ideais, sonhos e desejos. Situações estas que foram vividas de maneira
singular por cada uma das pacientes, assim como foram elaboradas ao modo de cada encontro
analítico.
Com essas considerações, conclui-se que a anorexia poderá ser considerada um
sintoma para a psicanálise, a depender de um encontro entre analista e paciente, do
desvelamento do conflito e da satisfação existente no sintoma, na vida de cada sujeito. Nesses
dois casos apresentados, as pacientes se dispuseram ao tratamento com as respectivas
analistas, visto que elas explicitaram essa disposição e possibilitaram a ressignificação e a

113

elaboração desse conflito sintomático. O tratamento analítico de cada caso aconteceu devido à
construção (Freud, 1937, 2001) realizada por Clara e sua analista, e por Virginie e sua
analista. Dessa maneira, a anorexia se tornou um sintoma analítico.

114

6

CONCLUSÃO
Os capítulos do presente trabalho foram elaborados com o objetivo de analisar a

relação entre a cultura do culto ao corpo e a anorexia no contemporâneo, refletindo se nesse
contexto, a anorexia pode ser considerada um sintoma analítico. Nesses capítulos, as
temáticas centrais (cultura contemporânea, anorexia e sintoma) foram questionadas, expostas
e discutidas.
Compreendeu-se que as mudanças culturais que repercutem na contemporaneidade
proporcionam mudanças nos sujeitos. Se há mudanças culturais, há também mudanças na
constituição e nas relações dos sujeitos. A partir da queda de ideais tradicionais que
orientavam os sujeitos e dos aspectos do excesso, do hedonismo, do consumo e do narcisismo
que demarcam esta cultura, há novas idealizações. Como uma dessas, tem-se a idealização do
corpo perfeito e magro. Porém, neste trabalho observou-se que ao mesmo tempo que há a
idealização corporal, há um aumento na incidência de sintomas alimentares.
A relação existente entre os aspectos que constituem a cultura contemporânea e esse
aumento na incidência foi entendida a partir da ideia de que as mudanças culturais provocam
uma desorientação pulsional. Uma desorientação no nível da pulsão, no limite entre o
psíquico e o somático. Como o gozo organiza o caos pulsional, e se há uma desorientação que
reflete na emergência de sintomas, existe nesses sintomas uma forte presença do gozo. Nessa
cultura do excesso, o gozo (satisfação) não é regulado, e isso provoca uma desorientação
pulsional.
Assim, é possível conceber que o sujeito não só é constituído culturalmente, como
também que se há mudanças culturais que provocam essa desorientação, elas podem
contribuir para a emergência de determinados sintomas. Sintomas que apesar de já existirem,
não eram comuns e frequentes na clínica. Nesse caso, as mudanças culturais proporcionam
mudanças nos sujeitos, e também mudanças na clínica.
A anorexia é um desses sintomas. Neste trabalho foi visto que ela, apesar do aumento
da incidência, não surgiu na contemporaneidade. As santas praticavam jejuns intensos, e com
o avanço dos estudos científicos, essas práticas puderam ser analisadas e até mesmo
consideradas casos de santas anoréxicas. Diferentemente de quando se buscava através dos

115

jejuns a purificação divina, a anorexia atualmente se apresenta de outra forma, tal como ela é
concebida nos estudos atuais, nos casos clínicos e nos movimentos que a exaltam.
A anorexia explicita nos sujeitos um corpo extremamente magro, um corpo que
demonstra o excesso da magreza e, por si só, já denuncia de qual patologia se trata. É um
corpo do excesso, do extremo, e denota um horror. A presença do gozo nesse sintoma pode
ser observada quando os sujeitos do movimento pró-anorexia a reverenciam. Eles exaltam
esse gozo, essa satisfação, ainda que em um corpo esquelético e descarnado. Eles evidenciam
a satisfação do sintoma, visto que o gozo do corpo é extremamente realçado.
A partir dos conceitos clínicos interligados à anorexia na teoria psicanalítica,
verificou-se que apesar da idealização do corpo magro, na anorexia o sujeito detém um corpo
para além da magreza. A anorexia foi concebida como uma recusa alimentar. Ao contrário da
concepção da anorexia enquanto uma ausência de apetite, ou seja, o sujeito não come, pois ele
sofre de inapetência, na concepção de recusa o sujeito tem apetite, mas recusa o alimento. Ele
sente fome, e isso pode ser observado na relação entre a anorexia e os episódios bulímicos,
em que o sujeito come tudo o que vê a sua frente, depois se sente culpado e se utiliza de
mecanismos compensatórios. Apesar da fome, ele recusa o alimento que lhe é oferecido. E
até mesmo se pode considerar que nessa privação alimentar intensa há um gozo que permite
ao sujeito se sustentar ainda mais nessa posição de recusa. O aspecto da recusa nos casos de
anorexia é importante de ser analisado, pois está presente nas diversas relações da vida desses
sujeitos.
Isso pode ser exemplificado quando os sujeitos militantes dos movimentos próanorexia a reverenciam devido à busca pelo corpo magro. Eles idealizam esse corpo ao ponto
de se fixarem nessa idealização e de recusarem tudo que for contrário ao alcance desse corpo
e às exaltações que são feitas. Essa questão da recusa deve ser considerada na anorexia, visto
que o sujeito não só recusa o alimento. Com este estudo, observou-se que a recusa está
presente nas relações desse sujeito com o Outro. Ou seja, quanto mais o Outro insiste para que
ele se alimente, mais ele recusa. Há também a recusa do tratamento, até mesmo a ausência de
demanda inicial e a autorreferência que ele faz da anorexia podem ser concebidas como
formas de recusa. O sujeito recusa o alimento, recusa certas relações, recusa o tratamento,
enfim ele recusa. Desse modo, observa-se a presença marcante da recusa na vida desses
sujeitos, o que indica a importância de esta ser estudada e pesquisada nesses casos. Como o
sujeito que está sempre nessa posição de recusa conseguirá formular uma demanda de

116

tratamento? Se essa recusa perpassa por diversas relações, como é possível a mudança de
posição? São questionamentos que surgiram durante o trabalho e não foram muito discutidos
por não estarem relacionados diretamente ao objetivo deste, mas que poderão ser
aprofundados em estudos posteriores.
A partir da concepção de recusa alimentar, a anorexia foi concebida como um “comer
nada”, ao contrário de um “não comer”. Apesar de parecer um “não comer” visto que não há
alimentação, os sujeitos com anorexia comem algo que é dotado de significados para eles.
Através desse “nada” eles buscam o acesso ao desejo, até então impossibilitado pela intrusão
materna. Essa diferença reluz no título desta dissertação (“do não comer à anorexia”), já que
nessa cultura desmesurada, sem limites, destacam-se os extremos relacionados à alimentação.
Ou se come muito, ou se come pouco: não há limites. O título demarca a diferença entre o
“não comer” e a anorexia (“comer nada”). O comer pouco (“não comer”) está presente nos
sujeitos contemporâneos e até mesmo em suas idealizações. Porém, nos sujeitos com anorexia
é o “nada” que está presente nessa constituição. Ele situa a diferença entre o corpo esquelético
do sujeito com anorexia e o corpo magro idealizado pelos sujeitos contemporâneos.
Ele possui um corpo cadavérico, e se com a idealização ele tinha a intenção de
conseguir um corpo magro, algo aconteceu com ele e esse alcance não teve sucesso. Afinal,
não é um corpo cadavérico, esquelético, em que os órgãos estão a definhar que é idealizado
pelos sujeitos contemporâneos. A tentativa de conseguir o corpo ideal pode ser um dos
aspectos que possibilitaram o surgimento da anorexia, porém, com o decorrer da pesquisa,
percebeu-se que ele não é o único aspecto relevante.
Diante da hipótese deste trabalho (de que o aumento da incidência da anorexia na
atualidade era decorrente dos atuais aspectos que constituem a cultura, especialmente o da
idealização do corpo magro), constatou-se que a cultura pode ser propulsora da incidência de
anorexia. Porém, ela não é causadora (determinante) desse surgimento, já que este está
relacionado à constituição do sintoma e às diversas experiências da vida do sujeito. Nesse
sentido, não é porque um sujeito exalta a anorexia e socializa essa exaltação, que os demais
também exaltarão e desenvolverão essa “patologia”. Entretanto, essa exaltação pode
contribuir para o surgimento da anorexia em um determinado sujeito, dada as experiências de
vida que ele teve e tem, e que também constituem a anorexia.

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Além das experiências da vida do sujeito que podem constituir o sintoma, ele é
concebido a partir da formação de um conflito. Este é uma tentativa de conciliação de forças
contrárias, já que enquanto uma satisfação demanda ser realizada, as regras culturais impedem
essa realização. Porém, se na cultura contemporânea essas regras não se acham mais tão
estabelecidas, o gozo não é regulado. Há o conflito, porém o gozo (satisfação) dos sintomas é
extremamente realçado. Por mais que exista o sofrimento nos sintomas, há também a
satisfação, uma vez que o sujeito “quer e não quer abrir mão do seu sofrimento”.
Apesar da intensa presença da vertente do gozo nos sujeitos com anorexia, é apenas
quando o sujeito demanda um tratamento, quando ele se implica em seu sintoma, que o
tratamento analítico acontece. Os sujeitos contemporâneos se apresentam na clínica sem
demandar um saber sobre seu sofrimento. Eles chegam à clínica sem uma demanda inicial, e
esta ausência pode ser observada na satisfação advinda dos sintomas. Embora os sujeitos se
autorreferenciem através dos seus sintomas (como exemplo: sou anoréxica), o sofrimento não
é tão evidenciado. Ante essas mudanças culturais e a desorientação pulsional, não é que não
exista sofrimento nesses sujeitos com anorexia, pois caso não existisse, não seria necessário
buscar um tratamento. Entretanto, observa-se que há uma mudança na forma de o sujeito se
relacionar com seu sintoma e criar uma demanda de análise. São as mudanças que surgem na
clínica, e nesse caso, também cabe ao analista ser paciente e com suas intervenções
possibilitar ao sujeito a construção de uma demanda.
Tanto o Caso Clara quanto o Caso Virginie demonstraram como os conceitos
relacionados à anorexia surgem no âmbito da clínica. Em ambos os casos, a anorexia se
tornou um sintoma analítico, tendo em vista o encontro entre analista e analisando. Foi a partir
da relação transferencial constituída nos atendimentos iniciais, e durante todo o tratamento,
que houve a identificação do conflito e da satisfação que constituíam o sintoma.
Observou-se como a constituição do sintoma estava relacionada a diversas situações,
vividas distintamente por cada paciente, que possibilitaram o quadro clínico de anorexia. A
idealização do corpo magro estava presente, principalmente no Caso Clara; é tanto que a
paciente relatou para a analista que começou a fazer regime e entrou na academia para
alcançar esse corpo. Porém, o que aconteceu a Clara, que ao invés de obter um corpo magro,
alcançou um corpo cadavérico e esquelético? Foram, justamente, as experiências vividas
singularmente por cada paciente que possibilitaram o surgimento da anorexia. É tendo em
vista a demanda analítica e as experiências de cada sujeito que o sentido e a função do

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sintoma podem ser identificados no tratamento analítico, a partir da relação transferencial
entre analista e analisando. Sendo assim, apesar dos aspectos culturais contemporâneos não
serem os causadores determinantes da incidência da anorexia, eles provocam mudanças no
modo como os sujeitos se constituem e como eles chegam à clínica. Uma dessas mudanças é a
ausência de demanda inicial; entretanto, a depender do encontro entre analista e analisando,
ela pode ser formulada, o tratamento é iniciado e a anorexia poderá ser considerada um
sintoma analítico.
O sintoma analítico é formado durante o tratamento, a partir do momento em que o
sujeito, ao questionar o seu sintoma, endereça esse questionamento ao analista. Ou seja, se
existe apenas gozo no sintoma, não há a criação de uma demanda, já que é com a implicação
do sujeito em seu sofrimento que ela é formada. Dessa forma, a anorexia pode ser considerada
sintoma analítico, a depender da constituição da demanda e certamente da relação
transferencial entre analista e analisando. No caso do movimento pró-anorexia, não se tem
como analisar se a anorexia é ou não é um sintoma, pois ele só pode ser considerado no “caso
a caso”. Em outras palavras, é apenas quando o sujeito se dirige ao analista, apenas no âmbito
da clínica, que a anorexia pode se tornar um sintoma analítico. Se não há demanda inicial, se
ela não é constituída, a anorexia não pode ser considerada um sintoma analítico.

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