Adriano Roberto Alves da Silva - Conversas com usuários do Consultório de Rua de Maceió sobre o cuidado
DISSERTAÇÃO - ADRIANO - REVISADA E FORMATADA - 11-12-2017.pdf
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Adriano Roberto Alves da Silva
CONVERSAS COM USUÁRIOS DO CONSULTÓRIO NA RUA DE MACEIÓ EFEITOS DO CUIDADO
Maceió
2017
ADRIANO ROBERTO ALVES DA SILVA
CONVERSAS COM USUÁRIOS DO CONSULTÓRIO NA RUA DE MACEIÓ EFEITOS DO CUIDADO
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Psicologia da Universidade Federal
de Alagoas, como requisito para a obtenção do
título
de
Mestre
em
Psicologia.
Orientador:
Bernardes.
Maceió
2017
Prof.
Dr.
Jefferson
de
Souza
ADRIANO ROBERTO ALVES DA SILVA
Conversas com Usuários do Consultório na Rua de Maceió - efeitos do cuidado
Dissertação como requisito para a obtenção do título de Mestre em Psicologia, pelo
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFAL.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Jefferson de Souza Bernardes (orientador)
Universidade Federal de Alagoas – UFAL
Profª. Drª. Telma Low Silva Junqueira
Universidade Federal de Alagoas - UFAL
Prof. Dr. Charles Elias Lang
Universidade Federal de Alagoas – UFAL
Dedicado a Adriano Vicente (in memoriam), Avelino (in
memoriam), Claudiomar (in memoriam), Ezequias (in
memoriam), Fabiano (in memoriam), Israel “Baiano” (in
memoriam), Ivanildo (in memoriam), Maria Alexandrina (in
memoriam), Sorlene (in memoriam), Valdício (in memoriam)
e a todas as pessoas em situação de rua acompanhadas pelo
Consultório na Rua de Maceió que tiveram suas trajetórias de
vida ceifadas antes do tempo em virtude da não garantia de
direitos e/ou continuidade do cuidado iniciado nas ruas, em
razão das inúmeras dificuldades e adversidades arbitrariamente
impostas e instituídas para se desenvolver e estabelecer um
trabalho baseado na Clínica Ampliada, intersetorial e/ou em
rede.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha mãe, Cícera, por todas as demonstrações de amor e cuidado ao longo
destes trinta anos de convivência, que apesar de todas as dificuldades enfrentadas, jamais
desistiu de ir à luta nesta selva de pedra, por me ensinar diariamente o que é dignidade,
honestidade, simplicidade e humildade e a importância destes valores cada vez mais raros à
vida em sociedade.
À minha namorada, Vânia Cristiane “Pretinha”, companheira de todas e mais algumas
horas, pela confiança em acreditar naquilo que pulsa dentro de mim, pelas bebidas e comidinhas
light’s (só que não, risos!); dona de uma paciência incomparável e com a qual aprendi bastante
sobre o tema. (Risos!). Não tenho palavras para agradecer a sua compreensão, força, apoio,
espaço físico e de tempo destinados à minha pessoa desde o início desta jornada. Com certeza,
a tua presença tornou esta caminhada mais leve.
Ao meu querido orientador, Jefferson Bernardes “Jeff”, por ter topado mergulhar
comigo nesta história, que me possibilitou a realização de um sonho antigo, desde a graduação:
o de aprender, trabalhar e construir junto consigo. Agradeço pelos momentos inesquecíveis de
conversas e (des)orientações intermináveis, as quais levarei como aprendizado à vida. Também
por toda a paciência dedicada a mim, um marinheiro de primeira viagem em pesquisa, por
acreditar e apostar que seria possível ir adiante quando nem eu mesmo sabia mais o que estava
fazendo e não mais acreditava que fosse conseguir. E, ainda, por me ensinar que fazer pesquisa
não é nenhum bicho de sete cabeças.
À professora Vera Mincoff Menegon, pelas contribuições no momento de qualificação
do meu trabalho e que, através do contato com seus escritos, foi mostrando-me que fazer
pesquisa com conversas no cotidiano não só era possível, mas necessário.
Ao caro Charles Elias Lang, pelas contribuições no período de qualificação e por aceitar
fazer parte da banca de avaliação/defesa desta dissertação, assim como por todo o aprendizado
compartilhado durante a graduação em disciplinas muito caras à minha formação, como
“Fundamentos da Clínica” e “Teorias da Subjetividade” e pelas memoráveis (des)orientações
nos momentos de supervisão de estágio na Clínica de Psicologia da UFAL.
À queridíssima Telma Low, pelos encontros, conversas, momentos diversos de trocas
de saberes e aprendizado coletivo e, sobretudo, pela gentileza em aceitar compor e contribuir à
minha banca de defesa.
Aos meus queridos e queridas do grupo de pesquisa “PROSA”, que me proporcionaram
momentos de trocas e aprendizado incomensuráveis, pelas novas amizades e parcerias que pude
fazer e se constituíram a partir de então, as quais levarei comigo por onde quer que eu vá.
Às Professoras Maria Auxiliadora “Xili” e Cristina Camelo “Cris” pela partilha de
experiências, aprendizados e trajetórias nos momentos divididos no curso desta dissertação.
Aos Professores Charles Lang, Frederico Costa “Fred”, Jefferson “Jeff”, Simone
Hüning e Xili pelas riquíssimas discussões em salas de aula, durante o mestrado, ou fora delas,
na casa de alguém ou na mesa de um botequim.
Meus agradecimentos especiais aos Professores Marcos Mesquita e Simone Hüning,
pelo acolhimento desde o início do curso de graduação em psicologia e pela oportunidade de
trabalhar junto no Projeto de Extensão “Identidade cultural e patrimônio imaterial: uma
intervenção na comunidade de pescadores do Jaraguá”, o qual foi crucial à minha formação,
escolhas e trajetórias acadêmica e, posteriormente, profissionais.
À Professora Mariana Tavares, que ainda no comecinho da graduação possibilitou-me
a aproximação decisiva e necessária à área de saúde do município de Maceió, sobre a qual faria
toda a minha trajetória desde então. Agradeço também por ter me apresentado a Fábio Mota e
Samuel Delane, figuras capitais à minha aproximação e participação no Consultório de/na Rua
de Maceió.
Aos fofos, Fábio Mota e Samuel Delane, pela oportunidade e confiança depositados na
minha pessoa e no meu trabalho. Talvez vocês não tenham a noção exata da importância de
vocês na minha trajetória, mas os diversos encontros nos serviços de saúde e/ou assistência,
restaurantes, barzinhos e saraus desta vida foram cirúrgicos para a tomada de decisão e/ou
escolhas que viria a tomar mais a frente e as quais dão sentido a minha vida desde àquela época.
Meus agradecimentos infinitos.
À fofa, Jorgina Sales, coordenadora do Consultório na Rua de Maceió, pela
oportunidade de fazer parte de um serviço incrível como é o Consultório na Rua. Pela
orientação de TCC na graduação, que me provocou/instigou a realizar esta pesquisa. Pelos
diversos espaços de conversa, escuta (incansável), trabalho desde 2011 até agora, como também
de muita música, arte e poesia, e por todos os momentos vivenciados e divididos até aqui. Meu
muito obrigado! Salve, Jorge!
Àqueles profissionais que um dia já fizeram e aos que hoje fazem parte daquilo que
começou como “Projeto Fique de Boa”, passou a Consultório de Rua e depois Consultório na
Rua. Vocês não têm noção da enorme diferença que fizeram e fazem na vida das pessoas que
atendem.
Aos profissionais da equipe de Consultório na Rua (Benedito Bentes), Andrea, Atilane,
Isaac, Raquel, Rita, Sarah, Vânia e Thamires, que foram bastante compreensivos no período
em que precisei estar ausente em função da aulas de mestrado e outros momentos de produção
e/ou realização desta pesquisa.
Ao Isaac Bittencourt, pelas conversas na UBS, no carro e campo de atuação. Através de
sua experiência, trajetórias e histórias pude (e isto ainda acontece) aprender e conhecer como
são as vidas daqueles que estão nas ruas.
Ao Welison, Eyre (in memoriam), Nilton, Marcelo Santos, Darlan e Stephane pelo
acolhimento, conversas e trocas fundamentais nos encontros do grupo de pesquisa “PROSA” e
em tantos outros espaços. Sem o abraço de vocês no começo desta jornada certamente as coisas
teriam sido mais difíceis. Vocês são amigos que fiz e levarei comigo para toda vida.
Aos meus colegas de turma de mestrado Carolina “Carol”, Erise “Erisinha”, Fabíola
“Bion”, Hélida “Helinda”, Kaanda “Amarela”, Karine, Karolline “Karol”, Lara “Larinha”,
Lívia, Priscila “Pri” e Renata “Renatinha do Pará” pelas discussões em sala e fora dela também.
Agradecimento especial à Renata “Renatinha do Pará” e Kaanda “Amarela” por tudo o que
passamos, dividimos e construímos juntos durante este período. Sem vocês por perto, com
certeza, a caminhada teria sido ainda mais árdua.
Às queridíssimas Aline Santana e Bárbara Guerreiro pelos encontros sempre recheados
de ternura, afeto, abraços e conversas instigantes que faziam a hora passar rapidinho. O meu
agradecimento por todo apoio, força e confiança em mim, no trabalho que faço junto ao
Consultório na Rua e na minha pesquisa. Vocês moram de graça no meu coração!
Ao meu caríssimo amigo Alisson Vieira “Mano Brown”, pela amizade genuína que
começou ainda no período da graduação em psicologia e vem ganhando cada vez mais força de
lá pra cá. Sou imensamente agradecido pelas conversas, trocas, afetos, abraços, puxões de
orelha, beliscões. Vindos de você, sempre serão bem-vindos. Mano Brown, nada justifica!
Correto? Risos!
À caríssima Mayara Vieira “Branquela”, pela sua amizade, por todos os encontros,
conversas e trocas de afeto, carinho, aprendizado. O seu compromisso e dedicação com aquilo
que você faz me contagiam e me inspiram a continuar lutando e sonhando com dias melhores.
A luta continua, Branquela!
Ao meu querido amigo Narlan, pela amizade sincera, apoio, conversas, partilha de
alegrias e dores, momentos de comidas e bebidas, resenhas e gargalhadas sinceras.
À querida Francine Lopes “Joãzinho”, pelo reencontro inusitado, disponibilidade em
meio a tantas ocupações e compromissos, conversas, trocas, bebidas e comidas, por sua
confiança e por acreditar em mim, nas minhas escolhas e decisões.
Ao Miguel, meu amigo psicólogo-palmeirense mais otimista que já conheci, pelo
acolhimento, conversas, e andanças pelas ruas de São Paulo (e que ainda acontecerão em
Maceió, assim espero), amizade, questionamentos, provocações e apoio. Avanti, Palestra!
À querida Paula Andrade, pela sua amizade, confiança, incentivo, conversas
provocadoras e instigantes no início desta jornada e, sobretudo, por acreditar naquilo que faço.
Ao meu analista Cleyton Andrade, pelo espaço de acolhimento, escuta, reflexões e
provocações destinado a mim.
À Secretaria Municipal de Saúde de Maceió, pela autorização para realização desta
pesquisa.
À FAPEAL, por financiar os custos da minha pesquisa.
À todas as pessoas que participaram e aceitaram conversar comigo para a realização
desta pesquisa, meus agradecimentos mais do que especiais. Espero poder retribuir o
acolhimento, atenção, carinho, afeto e participação que me foi dedicado.
À todas as outras pessoas que contribuíram, de uma forma ou de outra, para que fosse
possível realizar este trabalho.
Grato!
(...) Há tantos quadros na parede,
Há tantas formas de se ver o mesmo quadro.
Há tanta gente pelas ruas,
Há tantas ruas e nenhuma é igual a outra,
Ninguém = ninguém.
Há palavras que nunca são ditas,
Há muitas vozes repetindo a mesma frase:
Ninguém = ninguém.
Me espanta que tanta gente minta
(descaradamente) a mesma mentira.
São todos iguais e tão desiguais,
uns mais iguais que os outros (…)
Humberto Gessinger
RESUMO
Esta pesquisa propõe compreender os efeitos do Consultório na Rua de Maceió junto aos seus
usuários, a partir de conversas no cotidiano, tendo como foco o cuidado dos dispositivos de
saúde. É realizada análise por categorias temáticas de conversas no cotidiano e das observações
realizadas durante o trabalho de campo da pesquisa, utilizando-se para isso da produção de
diários de campo. O Consultório na Rua de Maceió caracteriza-se por ser constituído por
equipes multiprofissionais de saúde itinerantes, que atuam de forma interdisciplinar,
responsáveis por atender à população em situação de rua e/ou aqueles que se encontram em
situação de vulnerabilidade social in loco. Parte-se de perspectivas teórico-metodológicas
apoiadas no Construcionismo Social, Etnografia e Análise por Categorias a posteriori. Quatro
conjuntos temáticos foram identificados e analisados a partir de fragmentos selecionados nos
diários de campo: vínculo/cuidado; acessibilidade aos serviços; preocupações com os processos
de trabalho; outros. A partir da análise, observamos, dentre outras questões: que a construção
de vínculo é a base do trabalho do CnaR de Maceió junto a PSR e pessoas em vulnerabilidade
social; O CnaR de Maceió possibilitou à PSR e pessoas em vulnerabilidade social uma
aproximação e/ou ampliação consideráveis do acesso à rede de serviços existentes. Entretanto,
este público ainda enfrenta dificuldades e preconceitos para acessá-la de forma espontânea, sem
o acompanhamento de profissionais do CnaR; que muitos dos discursos e práticas profissionais
ainda estão ancorados em uma perspectiva assistencialista/paternalista, limitando as
potencialidades de cuidado compartilhado, co-construído e/ou co-gerido; falta estrutura e apoio
da gestão de saúde para o funcionamento das equipes de Consultório na Rua de Maceió, o que
tem comprometido as ações e fragilizam os vínculos junto à população assistida; a relação com
a comunidade possui redes informais e se mostra uma possibilidade potente e favorável à
produção de cuidado; A relação estabelecida com as drogas daqueles que utilizam é concebida
de diversas maneiras; por fim, o trabalho deve prezar pelas conversas no cotidiano, baseadas
em práticas dialógicas, cultivando espaços para reuniões de equipe e educação permanente.
Palavras-chave: Saúde Pública. Consultório na Rua. Conversas no Cotidiano. Psicologia.
ABSTRACT
This study aims to understand the effects of Street Clinic in Maceió with its users, based on
daily conversations, focusing on the care of health services. The analyses carried out by
thematic categories of daily conversations and observations made during the field work of the
research, using for this the production of field dairies. The Street Clinic of Maceió is
characterized with the constitution of roaming multiprofessional health team, responsible for
attending the population in the street and/or those who find themselves in situation of social
vulnerability in loco. Our theoretical-methodology perspective is supported in Social
Construcionism, Ethnographic and Categories Analyses a posteriori. Four thematic sets were
identified and analysed from fragments selects in field diaries: links/care; services accessibility;
worries with work process; others. In our analyses, we noticed, among others questions that the
construction of connections is the work basis of StCon of Maceió together with PSR and people
in social vulnerability. The StCon of Maceió has made possible to PSR and people in social
vulnerability get closer and/or amplifies their access to the existence service network.
Therefore, this public still struggle difficulties and prejudices to access this network in a
spontaneous way, without the company of StCon professionals; we also observe that many of
the speeches and professionals practises are still supported by a paternalist/assistentialist,
limiting the potentials of share caring, co-constructed and/or co-administrated; the lacking of
structure and support of health management for the operation of the consulting teams of Street
Clinic of Maceió, which has compromised the actions and weaken the ties with the population
assisted; the relation with the community has informal nets and show a strong and benign
possibility to the production of caring. The relation stablish with the drugs by its users has
various ways of understanding; at last, this work should focus in daily conversation, based on
dialogical practises, cultivating spaces for team reunion and permanent education.
Keywords: Public Health. Street Clinic. Daily Conversation. Psychology.
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
ACS
Agentes Comunitários de Saúde
AIDS
Síndrome da Imunodeficiência Adquirida
APS
Atenção Primária em Saúde
BVS
Biblioteca Virtual em Saúde
CAPS AD
Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas
CdeR/CR
Consultório de Rua
CERVI
Centro de Reabilitação Visual
CEP
Comitê de Ética em Pesquisa
CETAD
Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas
CnaR
Consultório na Rua
CNS
Cartão Nacional de Saúde
CORA
Complexo de Regulação de Serviços de Saúde
CTA
Centro de Testagem e Aconselhamento
DST
Doenças Sexualmente Transmissíveis
ESF
Estratégia Saúde da Família
ESF POP RUA Estratégia de Saúde da Família Para População em Situação de Rua
GT
Grupo de Trabalho
HGE
Hospital Geral do Estado
HIV
Vírus da Imunodeficiência Humana
IOFAL
Instituto Oftalmológico de Alagoas
LILACS
Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde
MPE
Ministério Público Estadual
MS
Ministério da Saúde
NASF
Núcleo de Apoio à Saúde da Família
ONG
Organização Não Governamental
PEAD
Plano Emergencial de Ampliação de Acesso ao Tratamento e Prevenção em
Álcool e outras Drogas
PIBIP-AÇÃO
Projeto de Pesquisa-Ação
PIEC
Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas
PNAB
Política Nacional de Atenção Básica
PNH
Política Nacional de Humanização
PRD
Política de Redução de Danos
PSR
População em Situação de Rua
PTS
Projeto Terapêutico Singular
RAS
Rede de Atenção à Saúde
RAPS
Rede de Atenção Psicossocial
RD
Redução de Danos
SAE
Serviço de Assistência Especializada
SAMU
Serviço de Atendimento Móvel de Urgência
SCIELO
Scientific Eletronic Library Online (Biblioteca Científica Eletrônica em
Linha)
SEMAS
Secretaria Municipal de Assistência Social
SMR
Saúde em Movimento nas Ruas
SMS
Secretária Municipal de Saúde
SNDH
Secretaria Nacional de Direitos Humanos
SUAS
Sistema Único de Assistência Social
SUS
Sistema Único de Saúde
TCLE
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
UBS
Unidade Básica de Saúde
UFAL
Universidade Federal de Alagoas
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 14
2
APROXIMAÇÕES COM O TEMA DA PESQUISA .......................................... 16
3
POLÍTICAS PÚBLICAS EM SAÚDE .................................................................. 18
3.1
O Consultório de/na Rua......................................................................................... 24
4
CONSULTÓRIO DE/NA RUA DE MACEIÓ ..................................................... 27
5
REVISITANDO PUBLICAÇÕES SOBRE CONSULTÓRIO DE/NA RUA..... 37
6
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA ...................................... 47
6.1
Construcionismo Social e Etnografia: caminhos para pesquisar ....................... 47
6.2
Construcionismo Social e Psicologia: diálogos possíveis sobre o pesquisar ....... 52
6.3
Conversas no Cotidiano .......................................................................................... 53
6.4
Conversas Metodológicas ........................................................................................ 55
7
INFORMAÇÕES CONSTRUÍDAS: O QUE DÁ PRA FAZER NA RUA? ....... 58
7.1
Conversas com Usuários do Consultório na Rua de Maceió ............................... 58
8
DISCUSSÃO – ANALISANDO AS INFORMAÇÕES PRODUZIDAS ........... 65
8.1
Vínculo/Cuidado ...................................................................................................... 65
8.2
Acessibilidade aos Serviços ..................................................................................... 76
8.3
Preocupações com os Processos de Trabalho ........................................................ 82
8.4
Outros ....................................................................................................................... 90
9
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 99
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 104
APÊNDICES ............................................................................................................ 108
14
1 INTRODUÇÃO
Mesmo com os avanços obtidos por meio do Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS),
historicamente, percebe-se que alguns grupos de populações específicas continuam com
dificuldades para acessar os serviços ofertados pela rede, dentre eles, a população em situação
de rua. Diante deste contexto, tem se constituído uma lacuna assistencial, fazendo-se necessária
a criação de novas estratégias, novas formas de fazer saúde, capazes de reverter a contenção do
acesso à saúde e a tantos outros recursos sociais (JORGE; CORRADI-WEBSTER, 2012).
Neste ínterim, o Consultório na Rua (CnaR), tomando por base a clínica ampliada e a
política de redução de danos, surge como possibilidade de efetivar e garantir o acesso e a
aproximação dessas populações à rede de serviços de saúde. O CnaR é composto por equipes
itinerantes e multiprofissionais de saúde, que atuam de forma interdisciplinar, responsáveis por
articular e prestar atenção integral à saúde das pessoas em situação de rua e/ou aqueles que se
encontram em situação de vulnerabilidade social in loco, objetivando a garantia e a ampliação
do acesso desses usuários à rede de atenção de saúde. Fundamenta-se na clínica ampliada
(BRASIL, 2007) porque esta propõe uma nova configuração nos modos de fazer saúde, pautada
na intersetorialidade e interdisciplinaridade. Para isto, a criação de vínculo entre usuários,
famílias, comunidade e equipes de saúde se torna crucial para a orientação do trabalho.
Nesse sentido, esta dissertação de mestrado tem como objetivo compreender os efeitos
do Consultório na Rua de Maceió na perspectiva dos usuários, em relação ao cuidado prestado
por meio dos dispositivos (oficiais ou não) de saúde. Tal questão será produzida a partir de
conversas no cotidiano com os usuários do Consultório na Rua e na produção de diários de
campo.
O interesse por esta pesquisa surge de minha trajetória e experiência profissional no
Consultório na Rua de Maceió. Esta pesquisa pode contribuir para o repensar o Consultório na
Rua como produtor de saúde, qualidade de vida, cuidado, acolhimento, exercício da cidadania,
como também da garantia de direitos etc. Importante, também, aproximar a discussão sobre o
Consultório na Rua e as formas de cuidado produzidas neste dispositivo da formação em
psicologia e da universidade como um todo.
Esta pesquisa parte de aproximações com dois referenciais teórico-metodológicos:
primeiro, de tipo Etnográfico (GEERTZ, 2008), pois parte da inserção do pesquisador na
dinâmica e no contexto diário do serviço; segundo, por meio do Construcionismo Social
(IÑIGUEZ, 2002; IBAÑEZ, 2009). Para isto, realizei conversas com os usuários atendidos no
CnaR que, de acordo com Vera Menegon (1998), são formas privilegiadas de interação social.
15
A pesquisa aproxima-se, também, de Peter Spink (2003), que redimensiona o conceito
de campo para pesquisa construcionista, deslocando este de um lugar onde supostamente se
realizaria a coleta de dados da pesquisa para as conversas sobre a temática. Nesta perspectiva,
a ideia de campo é ampliada e ganha novos sentidos, pois o pesquisador vivencia o campo e o
tema sobre o qual se pesquisa. O campo é sempre um tema (campo-tema), ou seja, é o nosso
próprio tema de pesquisa o que nos faz estar em campo a todo o momento.
Em função do campo-tema, a utilização do diário de campo foi fundamental para a
produção de informações. Diehl, Maraschin e Tittoni (2006) consideram o diário de campo uma
ferramenta que transcende o simples registro dos fatos ocorridos e se configura como uma
importante ferramenta ético-política-reflexiva.
Para isto, esta dissertação está dividida em 8 capítulos. No primeiro capítulo
apresentarei, a maneira como me aproximei do tema da presente pesquisa. No segundo capítulo,
apresentarei breve histórico do CnaR, princípios, modus operandi e objetivos. Já no terceiro
capítulo, apresentarei e discutirei o referencial identificado acerca do Consultório na Rua de
Maceió. No quarto capítulo, apresento uma revisão da literatura sobre o Consultório na Rua.
Em seguida, no quinto capítulo, falarei das bases e pressupostos teórico-metodológicos
que fundamentam a pesquisa: Construcionismo Social (INIGUEZ, 2002; IBANEZ, 2009;
GERGEN, 1985), Etnografia (GEERTZ, 2008) e Análise por Categorias (MINAYO;
DESLANDES; GOMES, 2011). No sexto capítulo, apresentarei as informações produzidas e
no sétimo capítulo as análises realizadas. O último capítulo é referente às considerações finais.
16
2 APROXIMAÇÕES COM O TEMA DA PESQUISA
Em 2011, ainda durante minha graduação, fui convidado a conhecer e a participar do
Projeto “Fique de Boa”, que estaria ampliando suas ações na cidade de Maceió 1 e que,
posteriormente, passaria a ser o Consultório de Rua “Fique de Boa”, dispositivo da Rede de
Atenção Psicossocial (RAPS), vinculado à Coordenação de Saúde Mental do Ministério da
Saúde. Participei e fui aprovado em processo seletivo para compor uma das quatro equipes do
projeto. Cada equipe era composta, em média, por seis ou sete profissionais.
Este trabalho era voltado às pessoas em situação de rua, usuários de álcool e outras
drogas, e consistia em realizar atendimentos, ações de cuidado em saúde, procedimentos
técnicos, orientações em prevenção de doenças e promoção de saúde, dentre outras ações, na
perspectiva da Redução de Danos in loco, ou seja, na rua. Além disso, eram distribuídos
insumos como preservativos masculinos, femininos, gel lubrificante, água mineral, kits de
higiene etc. A finalidade era propor ações de cuidado em saúde junto das pessoas que não
conseguiam acessar a rede de assistência local do Sistema Único de Saúde (SUS).
Vale destacar que o público-alvo do Consultório de Rua “Fique de Boa” eram não só as
pessoas em situação de rua, usuários de álcool, crack e outras drogas, mas também pessoas em
condições de vulnerabilidade social, sendo esta a justificativa para realizar o acompanhamento
e atendimento às comunidades “vulneráveis” que os profissionais do serviço identificassem no
entorno de sua área de cobertura.
Comecei a trabalhar no Consultório de Rua “Fique de Boa” em agosto de 2011, no
horário da noite, de segunda à sexta-feira. Diariamente me encontrava com os colegas de equipe
no prédio sede da Secretaria Municipal de Saúde, na sala da Coordenação de Saúde Mental,
onde nos organizávamos e conversávamos sobre o que faríamos e o trajeto que percorreríamos
em cada dia. A equipe de trabalho era multiprofissional e tinha pelo menos três profissionais
de nível superior (psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional e/ou enfermeiro), dois de
nível médio (agente redutor de danos e/ou agente social) e/ou técnico (técnico em enfermagem
ou em saúde bucal) e mais um ou dois agentes pares (pessoas que já estiveram em situação de
rua e/ou vulnerabilidade social, usuários de álcool, crack ou outras drogas, e que estão em
tratamento) e atuava de forma interdisciplinar.
1
O convite foi feito por Fábio Lins Barbosa Mota e Samuel Delane Lima Junior após participação em evento
alusivo ao dia mundial de prevenção à AIDS/HIV. Ambos eram psicólogos da Secretaria Municipal de Saúde de
Maceió e trabalhavam no bloco de referência em atendimento às pessoas com HIV e outras infecções sexualmente
transmissíveis.
17
Assim ocorreu a minha aproximação com este dispositivo de saúde do SUS,
componente da rede de atenção psicossocial e da rede substitutiva de saúde mental, o
Consultório “de” Rua “Fique de Boa”, que, posteriormente, viria a se transformar em
Consultório “na” Rua, componente da rede de atenção primária em saúde e em constante
diálogo com as outras coordenações, com ênfase em ações mais ampliadas que as do anterior,
que estava vinculado somente à Coordenação de Saúde Mental (nível de atenção secundária em
saúde).
O contato diário com os profissionais do serviço, o público assistido e as situações
vivenciadas ao longo destes anos neste contexto me foram marcantes, pois me possibilitaram
um lugar diferente de reflexão e ação, que possibilita pensar a saúde a partir da garantia de
direitos, da promoção e estímulo ao exercício da cidadania e da redução das diversas formas de
vulnerabilidade e riscos, possibilitando o acesso ao cuidado, realizado, dentre outros modos,
pelo acolhimento, diálogo, fortalecimento do vínculo, confiança, corresponsabilidade etc.
A atuação da psicologia no Consultório na Rua é uma possibilidade de estar em
constante aprendizado e criação, dada a dinamicidade do espaço de atuação da equipe (a rua),
sendo constantemente exigida a elaboração crítica de estratégias de mobilização e aproximação
da população atendida, o que favorece a consolidação do vínculo entre a equipe, serviços de
saúde e usuário.
Dessa forma, ao longo de minha inserção e permanência no âmbito do CnaR, algumas
questões me suscitaram, inquietaram e acompanharam, algumas destas se apresentaram como
problema desta pesquisa: Como estão situados o cuidado, vínculo e acolhimento neste
contexto? Quais os efeitos produzidos aos usuários da aproximação com o CnaR e outros
dispositivos de saúde? É na perspectiva dos usuários que tentaremos responder estas questões.
18
3 POLÍTICAS PÚBLICAS EM SAÚDE
O SUS é algo distinto, especial, não se reduzindo a
reunião de palavras como sistema, único e saúde.
Jairnilson Silva Paim
Em 1990 o Brasil deu um grande passo no que diz respeito à garantia de acesso aos
serviços de saúde da sua população, uma vez que a partir da lei nº 8.080, de 19 de setembro de
1990, a saúde passa a ser um dever do Estado e um direito da população (BRASIL, 1990).
Desde então, o Estado foi responsabilizado em organizar uma rede de saúde pública, a qual
teria que abarcar e/ou dar conta de atender às demandas de todas as camadas da sociedade
brasileira que procurassem e/ou necessitassem de atendimento, sem concessões de privilégios.
A proposta de um sistema de saúde público para toda a população era muito audaciosa, mas
pertinente e necessária, principalmente se considerarmos os níveis de desigualdade social do
país e a grande parcela da população que não conseguia acessar e/ou receber nenhum tipo de
atendimento até antes do seu surgimento.
Mendes (2011) aponta que o Sistema Único de Saúde foi organizado em três níveis de
atenção à saúde e/ou complexidade visando atender as demandas da população:
1. Atenção Primária ou de Baixa Complexidade: diz respeito a todos os serviços da Atenção
Básica, ou seja, aqueles de baixo custo, mas não só estes, e que não necessitam
necessariamente de recursos tecnológicos e/ou avançados para dar cabo das demandas
trazidas pela população. É e deve ser a porta de entrada do cidadão aos serviços do Sistema
Único de Saúde e, se bem estruturada e organizada, poderá minimizar a busca por
atendimento nos demais níveis de atenção.
2. Atenção Secundária ou de Média Complexidade: refere-se às ações e serviços de saúde que
precisam de uma rede de atendimento e profissionais especializados, de reabilitação, de
realização de exames e/ou pequenos procedimentos cirúrgicos com acesso a recursos
tecnológicos.
3. Atenção Terciária ou de Alta Complexidade: como o próprio nome já diz, remete-se às
demandas de ações, serviços e procedimentos de saúde que demanda altos custos e
tecnologias, de níveis de complexidade maiores do que os dois anteriores e que visam dar
cabo das necessidades da população. Alguns exemplos deste segmento são o trabalho
realizado em Hospitais Gerais, as cirurgias de grande porte e tratamentos de enfrentamento
ao câncer.
19
Neste modelo de organização, ainda hegemônico, os sistemas de saúde são
fragmentados e se organizam de forma isolada, sem estabelecer contatos efetivos entre si, o que
impede o desenvolvimento de uma atenção integral e continuada à população (MENDES, 2011,
p. 50).
Para Mendes (2011), um dos maiores problemas do SUS é a implantação de uma Rede
de Atenção à Saúde (RAS) compatível com as demandas e necessidades de seus usuários, pois
do modo como essa rede está organizada há uma incongruência entre o sistema de atenção à
saúde e a situação de saúde da população. O modelo de rede de atenção à saúde vigente no SUS
é hierarquizado, em modelo de pirâmide, pensado a partir das complexidades relativas de cada
um dos níveis, da atenção básica/primária, atenção secundária e atenção terciária.
Esta compreensão é sustentada num conceito de complexidade enganoso, o qual coloca
a atenção primária à saúde como sendo menos complexa dos que os níveis secundário e
terciário, o que não é verdade. Essa ideia distorcida e limitada de complexidade provoca a
banalização e/ou desvalorização da atenção primária à saúde e uma hipervalorização, tanto
material como simbólica, dos níveis secundário e terciário, pelo fato de suas práticas exigirem
e/ou necessitarem de maior acuidade tecnológica (MENDES, 2011, p. 51).
Na mesma linha, Mendes (2011) sugere que este modelo de redes de atenção hierárquico
seja substituído pela noção de redes poliárquicas de atenção à saúde, nas quais são consideradas
as diferenças das densidades tecnológicas entre os diferentes níveis de atenção de saúde, mas
rompem-se as relações verticalizadas, constituindo-se redes policêntricas horizontais. Aqui,
ganha destaque a Atenção Primária à Saúde como centro de comunicação, ordenamento e
acionamento entre os demais níveis de atenção.
Concordamos com Mendes (2011, p. 83) quando faz a seguinte afirmação:
as RAS são organizações poliárquicas de conjuntos de serviços de saúde, vinculados
entre si por uma missão única, por objetivos comuns e por uma ação cooperativa e
interdependente, que permitem ofertar uma atenção contínua e integral a determinada
população, coordenada pela APS – prestada no tempo certo, no lugar certo, com o
custo certo, com a qualidade certa, de forma humanizada e segura e com equidade –,
com responsabilidades sanitária e econômica pela populaçãoadstrita e gerando valor
para essa população.
Ainda que a Atenção Primária em Saúde possa ser um grande pilar desta rede de cuidado
e esteja cada vez mais ampliando o raio de suas ações, não tem dado conta das demandas
trazidas pelos usuários e ainda deixa a desejar no cuidado. Historicamente, no campo da saúde,
percebe-se que mesmo com os avanços obtidos por meio do SUS alguns grupos populacionais
específicos continuaram com dificuldades para acessar aos serviços ofertados pela rede, dentre
20
eles a população em situação de rua (e aqueles que se encontram e/ou vivem em situação de
vulnerabilidade social, como quilombolas, índios, profissionais do sexo, pessoas que vivem
com HIV/AIDS etc.).
Estes, muitas vezes, quando buscam atendimento, não são acolhidos de maneira
equânime e igualitária, isto quando não são desrespeitados, discriminados e tratados com
indiferença, causando-lhes frustração, insatisfação e revolta, o que reforça ainda mais a
distância/barreira existente entre eles e os serviços de saúde.
Por estas e outras situações, os sujeitos pertencentes a estes grupos permaneceram (e
ainda permanecem) à margem, excluídos, tendo-lhes negado algo que é seu por direito, sem
gozar dos benefícios que lhes são garantidos por lei. Diante desse contexto, tem se constituído
uma lacuna assistencial, fazendo-se necessária a criação de novas estratégias, novas formas de
fazer saúde, capazes de reverter a contenção do acesso à saúde e a tantos outros recursos sociais
(JORGE; CORRADI-WEBSTER, 2012).
Pensando em dar respostas às lacunas existentes e persistentes no âmbito do SUS, foi
criada em 2004 a Política Nacional de Humanização (PNH). Por humanização compreende-se
a valorização dos diferentes sujeitos implicados nos processos de produção de saúde (usuários,
trabalhadores e gestores); defesa de um SUS que reconhece a diversidade do povo brasileiro e
a todos oferece a mesma atenção à saúde, sem distinção de idade, raça/cor, origem, gênero e
orientação sexual (BRASIL, 2008).
A PNH tem como finalidade o aperfeiçoamento da ampliação do acesso com qualidade
aos serviços e bens de saúde, como também a ampliação do processo de co-responsabilização
entre trabalhadores, gestores e usuários nos processos de gerir e de cuidar, ou seja, de fazer
saúde (BRASIL, 2008). A efetivação de mudanças no modelo de atenção deste ínterim, exige,
indispensavelmente, mudanças no modelo de gestão.
A ideia é que, a partir desta política, fossem feitos os ajustes e mudanças necessários
capazes de dar resolutividade às problemáticas citadas, repensando vários aspectos como, por
exemplo, as relações de trabalho (precarizadas), os processos de educação permanente em
saúde (pouco desenvolvidos/aplicados), participação dos usuários na gestão dos serviços
(controle social), vínculo entre usuários, trabalhadores e serviços de saúde etc.
Tal política visa tornar o SUS mais acolhedor, ágil e resolutivo, norteando-se pelos
seguintes valores: a autonomia e o protagonismo dos sujeitos, a corresponsabilidade entre eles,
o estabelecimento de vínculos solidários, a construção de redes de cooperação e a participação
coletiva nos processos de gestão (BRASIL, 2008).
21
A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), pela Portaria nº 2.488, de 21 de outubro
de 2011, caracteriza a atenção básica como um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual
e coletivo, que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o
diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde, com o
objetivo de desenvolver uma atenção integral que impacte na situação de saúde e autonomia
das pessoas e nos determinantes e condicionantes de saúde das coletividades (BRASIL, 2012).
Vale a pena ressaltar que a pactuação clara de responsabilidades entre os diferentes
serviços no sistema de saúde, a interação entre as equipes e a cogestão dos recursos existentes
num dado território podem ampliar as possibilidades de produção de saúde. A diversidade de
situações vivenciadas na atenção básica requer, ainda, a atuação articulada com os movimentos
sociais e outras políticas públicas, potencializando a capacidade de respostas para além das
práticas usualmente desenvolvidas pelos serviços de saúde (BRASIL, 2009).
A atenção primária considera o sujeito em suas especificidades e contexto sóciohistórico-cultural, buscando produzir a atenção integral, e deve ser o contato preferencial dos
usuários com a rede de saúde, orientando-se pelos princípios da universalidade, da
acessibilidade e da coordenação do cuidado, do vínculo e do acompanhamento longitudinal, da
integralidade, da responsabilização, da humanização, da equidade e da participação social
(BRASIL, 2012).
Os conceitos predominantes da PNH são o acolhimento, a clínica ampliada, a cogestão,
a produção de redes, valorização do trabalho e do trabalhador de saúde. A consolidação destes
conceitos depende da aproximação e implicação de todos os sujeitos envolvidos neste processo,
profissionais de saúde, usuários, gestores, comunidade etc. É importante que este trabalho seja
desenvolvido em equipe, pautado na intersetorialidade e interdisciplinaridade, ponto chave
desta política, que deve ser explorado ao máximo.
A clínica ampliada, por sua vez, traduz o entrelaçamento de todos os sujeitos partícipes
no processo de cuidado em saúde. Vale lembrar que a existência de uma clínica ampliada só é
possível com a criação de vínculos afetivos e efetivos entre usuários, famílias, comunidade e
equipes de saúde.
Segundo a PNH (2007), para se desenvolver a clínica ampliada é preciso: um
compromisso radical com o sujeito doente visto de modo singular; assumir a responsabilidade
sobre os usuários dos serviços de saúde; buscar ajuda em outros setores, ao que se dá nome de
Intersetorialidade; reconhecer os limites dos conhecimentos dos profissionais de saúde e das
tecnologias por ele empregadas e buscar outros conhecimentos em diferentes setores; assumir
22
um compromisso ético profundo (BRASIL, 2007, p. 12−13).
Nesta direção, compreende-se que o conceito de saúde não pode ser compreendido
como a simples “ausência de doença”. Para Canguilhem (2011), saúde não pode ser lido como
o oposto de doença, pois ela é uma norma de vida, ou seja, a maneira por meio da qual os
sujeitos expressam seus jeitos, suas formas de ser e/ou existir.
Segundo Canguilhem (2011), uma das características do ser humano é a capacidade
normativa, inovadora e/ou criativa. Canguilhem (2011) define doença como uma variação do
estado de saúde, os processos em que os sujeitos têm sua capacidade criativa reduzida frente às
situações e adversidades da vida, ou seja, tem-se uma redução significativa de tolerância às
infidelidades do meio.
Se reconhecemos que a doença não deixa de ser uma espécie de norma biológica,
consequentemente o estado patológico não pode ser chamado de anormal no sentido
absoluto, mas anormal apenas na relação com uma situação determinada.
Reciprocamente, ser sadio e ser normal não são fatos totalmente equivalentes, já que
o patológico é uma espécie de normal. Ser sadio significa não apenas ser normal numa
situação determinada, mas ser, também, normativo, nessa situação e em outras
situações eventuais. O que caracteriza a saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma
que define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma
habitual e de instituir normas novas em situações novas (CANGUILHEM, 2011, p.
138).
Ainda sobre doença, Canguilhem (2011, p. 127) afirma que a doença é uma norma de
vida, mas uma norma inferior, pois “não tolera nenhum desvio das condições em que é valida,
por ser incapaz de se transformar em outra norma. O ser vivo doente esta normalizado em
condições bem definidas, e perdeu a capacidade normativa, a capacidade de instituir normas
diferentes em condições diferentes”. Dessa forma, a doença passa a ser uma experiência de
inovação positiva ao sujeito e não apenas um fato diminutivo ou multiplicativo. Por isso, “a
doença não é uma variação da dimensão da saúde; ela é uma nova dimensão da vida”
(CANGUILHEM, 2011, p. 129).
Nessa direção, a clínica ampliada transcende o modelo clínico biomédico, ultrapassando
a compreensão do sujeito, suas avaliações, processos e limites estruturais impostos pela lógica
ambulatorial especializada centrada na doença e/ou no corpo do indivíduo. Nessa perspectiva,
o exercício da clínica se dá em diálogo permanente, envolvendo diversos atores, abrindo-se
para novas possibilidades de cuidado em saúde e formas de saber e fazer em que se desenvolva
uma clínica singular/do sujeito e se estimule a autonomia e protagonismo dos sujeitos
assistidos.
Esse modo de produzir saúde exige dos profissionais uma avaliação contínua de sua
prática, de seus valores e dos valores da sociedade. Cabe ainda a estes atender aos usuários
23
tratando suas doenças, mas também lhes auxiliar a elaborar e constituir novos horizontes,
capazes de fazer outras coisas na e da sua vida, considerando as limitações e especificidades de
cada um, seu contexto sócio-histórico-cultural, entendendo que cada um possui uma história de
vida muito singular. Por isso, é fundamental pensar num projeto terapêutico também de caráter
singular, que contemple e atenda às suas necessidades.
Em 23 de dezembro de 2009 foi determinado o Decreto Presidencial nº 7.053, que
instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua. Deve-se considerar
população em situação de rua:
o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os
vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia
convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas
como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem
como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia
provisória (BRASIL, 2009).
O conceito adotado pela Política Nacional para População em Situação de Rua, embora
amplo, diverso e fale de uma heterogeneidade de pessoas, não dá conta de toda a diversidade
existente e presente nas ruas, por esse motivo merece ser problematizado, (re)discutido,
(re)visto e/ou (re)pensado. Isso porque nem todas as pessoas em situação de rua possuem em
comum os aspectos elencados e defendidos pela ideia sustentada na Política. Tal definição
ameaça e pode deixar desassistidas pessoas que não se encaixem e/ou ultrapassem o que é
trazido por ela.
Esta política prevê como princípios, além da igualdade e equidade, o respeito à
dignidade da pessoa humana, o direito à convivência familiar e comunitária, a
valorização e respeito à vida e à cidadania, o atendimento humanizado e
universalizado, o respeito às condições sociais e diferenças de origem, raça, idade,
nacionalidade, gênero, orientação sexual e religiosa, com atenção especial às pessoas
com deficiência (BRASIL, 2009).
Desse modo, configura-se um desafio desenvolver e efetivar políticas públicas de saúde
que deem conta da complexidade intrínseca às condições de vulnerabilidades experienciadas e
experimentadas pela População em Situação de Rua, sem falar das demandas psicossociais
causadoras de sofrimento físico e psíquico que produzem grandes riscos de saúde a este grupo.
Dentre os vários dispositivos de saúde existentes na Atenção Primária, tais como a
unidade básica de saúde, unidade de referência, os NASF’s, o Consultório na Rua é aquele que
atende pessoas em situação de rua in loco ou que se encontrem em situação de vulnerabilidade
social, e está vinculado a uma Unidade Básica de Saúde e/ou de referência na área onde atua.
24
3.1 O Consultório de/na Rua
Diante da conjuntura apresentada, foram instituídos pela Política Nacional de Atenção
Básica − Portaria nº 122 de 25 de janeiro de 2012 (BRASIL, 2012) −, as definições e diretrizes
de organização e funcionamento do Consultório na Rua que passam a integrar a atenção básica
da Rede de Atenção Psicossocial e devem seguir os fundamentos e as diretrizes definidos na
PNAB, buscando operar frente aos diferentes problemas e necessidades de saúde da população
em situação de rua, inclusive na busca ativa e cuidado aos usuários de álcool, crack e outras
drogas.
Segundo a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) (BRASIL, 2012), as equipes
de Consultórios na Rua devem ser compostas por profissionais de saúde responsáveis em
articular e prestar atenção integral à saúde das pessoas em situação de rua, objetivando a
ampliação do acesso desses usuários à rede de atenção à saúde.
Ainda de acordo PNAB (BRASIL, 2012), as equipes de CnaR devem realizar suas
atividades de forma itinerante, desenvolvendo ações in loco, ou seja, na rua, em instalações
específicas, na unidade móvel e também nas instalações das Unidades Básicas de Saúde do
território onde está atuando. E, sempre que possível e necessário, estabelecendo parcerias com
as demais equipes de atenção básica da região, como o Núcleo de Apoio à Saúde da Família
(NASF), como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços de Assistência Social,
entre outras instituições públicas e da sociedade civil.
Vale ressaltar que as primeiras experiências de “Consultório de Rua” surgiram por volta
de 1997, em Salvador, Bahia, tendo como idealizador o Professor Dr. Antônio Nery Filho,
coordenador do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (CETAD), vinculado à
Universidade Federal da Bahia. Após a realização de uma pesquisa etnográfica com pessoas
em situação de rua que faziam uso de algum tipo de drogas, o Prof. Nery se deu conta de que
estas pessoas apresentavam dificuldades para frequentar ao CETAD e, quando iam, por
diversos motivos não conseguiam continuar.
Percebendo tal obstáculo, o Professor Nery propiciou dar continuidade aos
atendimentos e tratamentos indo até esta população. Dessa forma, à medida em que foi se
desenvolvendo por entre as ruas, praças, marquises, becos e vielas de Salvador, o Consultório
de Rua se mostrou como uma possibilidade favorável ao atendimento às pessoas que faziam
uso de drogas.
25
No trabalho de Jorge e Brêda (2011), as autoras destacam que os Consultórios de Rua
surgem ancorados na lógica dos serviços substitutivos do Sistema Único de Saúde (SUS),
guiam suas práticas a partir dos princípios da Redução de Danos como forma de/para
aproximação e produção de cuidado no contexto das ruas. O objetivo é desenvolver ações
diversas de promoção à saúde, prevenção às doenças, além de realizar procedimentos primários,
contando com o apoio em rede dos demais serviços existentes.
Os Consultórios de Rua são, portanto, dispositivos públicos componentes da rede de
atenção substitutiva em saúde mental, cujo objetivo principal é estender o cuidado aos
usuários de álcool e outras drogas em situação de rua, historicamente desassistidos e
distantes dos serviços de saúde. As ações de promoção, prevenção e cuidados
primários são realizadas in loco, ou seja, fora de ambientes institucionalizados
(JORGE; BRÊDA, 2011, p. 80).
Nesse sentido, considerando o êxito das ações e intervenções do Consultório de Rua em
Salvador, o Ministério da Saúde, em 2009, concebeu o Consultório de Rua enquanto uma das
estratégias do Plano Emergencial de Ampliação de Acesso ao Tratamento e Prevenção em
Álcool e outras Drogas (PEAD) no SUS. Já em 2010, o Consultório de Rua foi integrado ao
Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas (PIEC):
sendo o Consultório de Rua considerado como uma clínica inovadora a ser
desenvolvida em contexto de rua, abandona a lógica da demanda espontânea, tão
característica dos serviços de saúde, e da abstinência como meta do cuidado. Para
tanto, adota os referenciais da singularidade do sujeito, a integralidade do cuidado, a
intersetorialidade das ações, a redução de danos, a atuação no território, a
consideração à subjetividade e à intersubjetividade, a cidadania, os direitos humanos,
o acolhimento e o vínculo (JORGE; BRÊDA, 2011, p. 80).
Vale salientar que a proposta de estruturação do Consultório na Rua (equipe
multiprofissional para atenção integral a saúde das pessoas em situação de rua) do Ministério
da Saúde é descrito a partir da junção das equipes de Consultório de Rua (equipe
multiprofissional itinerante com ênfase em atendimento a saúde mental) e equipes de Estratégia
de Saúde da Família específicas para atenção integral à saúde das pessoas em situação de rua
(Estratégia Saúde da Família sem Domicílio).
A ideia era que, de forma gradativa, as equipes de Consultório de Rua já existentes
fossem se adequando à nova proposta de funcionamento e ampliação das ações. Entretanto,
nem todas as equipes de Consultório de Rua optaram por aderir a mudança sugerida pelo
Ministério da Saúde e se mantiveram com o apoio e contrapartida do governo local municipal
ou estadual.
Algumas poucas regiões do Brasil, como as cidades de Porto Alegre, Belo Horizonte,
São Paulo e Rio de Janeiro, chegaram a desenvolver e implementar equipes de Estratégia Saúde
26
da Família sem domicílio, o que favoreceu posteriormente a implementação das equipes de
Consultório na Rua, uma vez que os profissionais da atenção primária já estavam mais
familiarizados com as necessidades da população em situação de rua. Contudo, esta é uma
realidade bem diferente de outras áreas do país que sequer possuem equipes de Estratégia Saúde
da Família para aqueles que são residentes em pontos fixos e/ou moradias convencionais.
Além disso, há também alguns Programas de Redução de Danos que seguem em
paralelo às propostas de trabalho do Consultório “de” e “na” Rua, desenvolvendo ações e
orientações de saúde com foco em Redução de Danos, mas sem estar vinculados diretamente
ao Ministério da Saúde. Estes, na sua grande maioria, funcionam a partir de Organizações Não
Governamentais (ONG’s), que participam e concorrem à capitalização de recursos via editais
ou tendo suas ações custeadas pelos governos municipal e/ou estadual locais.
Em Maceió, o “Consultório na Rua” surgiu em 2011 a partir da experiência do
Consultório de Rua, que anteriormente funcionava como Projeto Piloto “Fique de Boa”. Esta
passagem é gradual e, às vezes, adversa e conturbada. Os limites e obstáculos são muitos e os
apoios poucos, acarretando, algumas vezes, por exemplo, dificuldades de algumas equipes em
acessar ou se vincular às suas unidades de referência, o que fortaleceria a rede de cuidados e
atenção.
27
4 CONSULTÓRIO DE/NA RUA DE MACEIÓ
[...] A cidade é tanto do mendigo
quanto do policial.
Todo mundo tem direito à vida,
Todo mundo tem direito igual.
Travesti, trabalhador, turista,
Solitário, família, casal.
Todo mundo tem direito à vida,
Todo mundo tem direito igual.
Sem ter medo de andar na rua,
Porque a rua é o seu quintal […]
Lenine
A busca de informações sobre o surgimento do Consultório de/na Rua de Maceió foi
incessante. No entanto, até o momento de início desta pesquisa encontrei pouco material
documental que traçasse um percurso histórico do serviço. Os artigos de Jorge e CorradiWebster (2012) e o de Jorge e Brêda (2011) foram os principais documentos e serviram de base
tanto para a construção deste capítulo quanto para o trabalho de maneira geral. Utilizei também
os contatos e conversas com a equipe para apresentar um pouco da história e das atividades
desenvolvidas no cotidiano.
Antes mesmo do CnaR alguns profissionais de saúde investiam e insistiam em levar
algumas ações de cuidado em saúde in loco. Por meio do “Projeto Fique de Boa” encontravamse em pontos estratégicos do centro da cidade de Maceió, atendiam pessoas que faziam uso de
álcool, crack e outras drogas, em situação de rua e/ou que se encontravam em vulnerabilidade
social.
De acordo com Jorge e Corradi-Webster (2012), por volta de abril de 2009, devido à
grande repercussão sobre os problemas vinculados ao uso de crack em Maceió o Ministério
Público Estadual de Alagoas (MPE-AL) solicitou a formação de um Grupo de Trabalho (GT)
que discutisse e pensasse estratégias de intervenção para as pessoas que usavam drogas e se
encontravam no centro da cidade. Associada a esta solicitação estava o interesse do pequeno
grupo de profissionais de saúde em implantar um Programa de Redução de Danos (PRD) na
capital.
O desejo era o de contribuir de alguma forma para a melhoria da qualidade de vida das
pessoas que fazem/faziam o uso de drogas em situações adversas, no contexto da rua, dadas as
dificuldades tanto relacionadas à insegurança, exposição às intempéries, assim como as de se
conseguir manter hábitos de cuidados em saúde em contextos extremamente inóspitos e/ou
insalubres. Este interesse foi fundamental para conseguir apoio da gestão da época.
28
As ideias iniciais foram pensadas por um pequeno grupo de profissionais do Centro
de Atenção Psicossocial – Álcool e outras Drogas (CAPSad) e do Programa Municipal
de DST/Aids durante a participação na oficina de “Prevenção ao Uso de Álcool e
Drogas na Perspectiva de Redução de Danos facilitada pela Coordenadora do
Programa de Redução de Danos da Secretaria de Saúde do Distrito Federal e por uma
Consultora Técnica do Ministério da Saúde (JORGE; CORRADI-WEBSTER, 2012,
p. 42).
Após intensas discussões no âmbito do Grupo de Trabalho (GT) com participações e
envolvimentos de alguns setores da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Maceió foram
pensadas ações de Redução de Danos com foco na promoção de saúde, prevenção ao uso de
drogas e às DST/AIDS; de cunho intersetorial a serem desenvolvidas in loco, ou seja, nas ruas,
becos, esquinas, vielas, debaixo das marquises e onde quer que as pessoas estivessem. De
acordo com o artigo de Jorge e Corradi-Webster (2012), este trabalho passou a ser conhecido
como “Fique de Boa!”, à aludindo uma expressão comum entre a população mais jovem e que
significa ficar bem e/ou curtir a vida numa boa.
Em conversas que tive foi relatado que havia incômodos e insatisfações com a maneira
como os profissionais dos serviços de saúde olhavam e/ou assistiam às pessoas que faziam uso
de álcool, crack e outras drogas, em situação de rua e que se encontravam em situação de
vulnerabilidade social. Assim, as discussões fomentadas e radicalizadas nos encontros do GT
foram de grande valia para produzir reflexões sobre as práticas de cuidado em saúde voltadas à
esta população, bem como para legitimar novas formas de cuidado e atenção em saúde que
olhassem para os sujeitos naquele contexto a partir de suas histórias de vida e singularidades, e
não somente/exclusivamente pela substância da qual faziam uso (se é que faziam, pois nem
toda pessoa em situação de rua e/ou em vulnerabilidade social faz uso de drogas) ou pela
condição em que se encontravam naquele momento.
Passaram-se dois meses até o lançamento do projeto e início da implementação de
suas ações, voltadas, prioritariamente, para crianças, adolescentes e jovens usuários
de drogas em situação de rua. Inicialmente, contava-se com uma equipe
multidisciplinar formada por 03 assistentes sociais, 01 técnica de Enfermagem, 01
enfermeira, 03 psicólogos e 02 voluntários que atuavam semanalmente em dois pontos
móveis e um ponto fixo (Praça Marechal Deodoro) no Centro da cidade de Maceió
(JORGE; CORRADI-WEBSTER, 2012, p. 43).
Em outros momentos de conversas ficou explícito que, embora a proposta inicial fosse
de desenvolvimento de ações de cuidado em saúde no contexto da rua, com o passar do tempo
e a aproximação aos usuários foi escancarando-se a necessidade de ampliar o raio destas ações,
de se fazer algo para além dos procedimentos técnicos adscritos de cada profissão, das ações
de promoção e prevenção em saúde.
29
Em dezembro de 2009, o Ministério da Saúde divulgou o edital para selecionar projetos
de Consultório de Rua e Redução de Danos em todo o país. Assim, percebendo que as ações do
Projeto “Fique de Boa!” caminhavam na mesma linha daquelas que o Ministério da Saúde
preconizava para a implantação do Consultório de Rua do SUS, os profissionais que
trabalhavam no Projeto “Fique de Boa” enviaram a proposta de trabalho desenvolvida em
Maceió para análise junto ao Ministério da Saúde e, em seguida, foram contemplados com a
implantação do Consultório de Rua (JORGE; CORRADI-WEBSTER, 2012).
Jorge e Corradi-Webster (2012) destacam como momento de grande importância para
a qualificação dos profissionais que trabalhavam e/ou iniciaram no projeto a I Oficina Nacional
de Projetos de Consultório de Rua, ocorrida em março de 2010, realizada pela Coordenação
Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas. Somado a isto, estavam os encontros entre
os profissionais que integravam a equipe do projeto na época, que construíam e pensavam as
atividades deste a partir de suas vivências, saberes e práticas inter-relacionados.
As autoras ainda enfatizam como importante estratégia de aproximação junto às pessoas
em situação de rua, a participação de três usuários do CAPS AD e uma pessoa em situação de
rua, o que facilitou a abertura do campo de atuação, assim como a admissão dos profissionais
e do trabalho a ser desenvolvido por estes. Referem-se também à Secretaria Municipal de
Assistência Social (SEMAS) como instituição parceira, uma vez que através desta foi possível
uma articulação para ampliação das ações realizadas:
Aos poucos, a equipe constituída por voluntários e profissionais que se
disponibilizaram espontaneamente para o trabalho foi se fortalecendo e aprimorando
sua atuação, ganhando a confiança e o respeito dos usuários atendidos. A partir da
identificação com a proposta de trabalho do Consultório de Rua, os profissionais
foram cedidos por suas instituições (CAPSad, SAE/CTA, ProgramaMunicipal de
Saúde Mental, Diretoria de Vigilância Epidemiológica) durante dois turnos para
atuação no Consultório de Rua “Fique de Boa”. A permanênciadestes profissionais
favoreceu o vínculo a partir do reconhecimento da equipe pela população atendida
(JORGE; CORRADI-WEBSTER, 2012, p. 43).
As áreas de atuação da equipe iam se ampliando ao passo que os profissionais percebiam
resultados satisfatórios das intervenções e abordagens no cotidiano. Mas o quê os profissionais
consideravam como sendo de resultado satisfatório a partir das intervenções? No período de
maio a dezembro de 2010 as atividades aconteciam nos arredores do centro de Maceió com
ênfase em quatro áreas: Praça da Independência, Praça Floriano Peixoto, Trilho do trem e
Mercado da Produção. Além disso, um dia na semana era reservado para que a equipe pudesse
conversar sobre as situações vivenciadas, traçar estratégias de intervenção a partir dos casos,
30
organizar e planejar o trabalho como um todo, assim como discutir as relações/afetações de/no
trabalho (JORGE; CORRADI-WEBSTER, 2012).
Ainda de acordo com Jorge e Corradi-Webster (2012), para que o trabalho fosse
realizado in loco os profissionais contavam com um carro amplo e algumas das ações
desenvolvidas eram distribuição de insumos (preservativo masculino, feminino, gel
lubrificante, água mineral e, as vezes, mel em sachê), realização de limpezas, coleta de exames
e vacinação, curativos e pequenos procedimentos, orientações diversas em saúde e Redução de
Danos, escuta qualificada, atividades lúdico-educativas com a utilização de mesas, bancos,
cadeiras, tenda, materiais de papelaria, álbuns seriados de prevenção em DST/AIDS, violência
etc.
A implantação e o desenvolvimento desse dispositivo em Maceió têm possibilitado o
desafio de construir, dia a dia, uma prática diferente da até então vivenciada,
suscitando muitas reflexões, dúvidas e inquietações na equipe que o compõe. Como
fazer uma coleta de sangue, um curativo na rua, por exemplo? Como realizar um
atendimento psicológico, agachado em um trilho de trem? Como atender sentindo o
cheiro das drogas, do corpo e do lixo? Dentre esses diferentes dilemas que envolvem
a atenção na rua, uma coisa é certa: a equipe é o principal recurso do cuidado (JORGE;
BRÊDA, 2011, p. 81).
Nesta passagem as autoras trazem à tona algumas questões suscitadas a partir da
dinâmica do trabalho e, apesar de evidenciarem a força do trabalho em equipe, nos chama
atenção que por mais que a proposta do dispositivo seja de desenvolver um trabalho
diferenciado, pautado em práticas inovadoras, ainda aparece e prevalece a assunção de práticas
comumente realizadas em ambientes reconhecidos tradicionalmente como locais de produção
e/ou cuidado em saúde como, por exemplo, fazer a coleta de sangue.
Vale refletir sobre qual a relevância para uma pessoa em situação de rua realizar uma
coleta de sangue no contexto em que se encontra, se naquele momento suas prioridades estão
voltadas para outras questões do seu cotidiano? Por que se encontra tanta dificuldade em
realizar um atendimento in loco às pessoas onde o cheiro das drogas esteja presente? O que nos
faz olhar para uma situação como esta com tanta surpresa, medo e/ou rejeição? Seria isso
reflexo de como a temática das drogas, pessoas em situação de rua e/ou que fazem uso de drogas
lícitas e/ou ilícitas tem sido trabalhado e/ou discutido na academia/universidade e na nossa
própria sociedade?
Nesse sentido, embasados na perspectiva da Redução de Danos (RD), o grupo de
profissionais buscava trabalhar de forma cuidadosa temas que se relacionavam diretamente com
o contexto dos usuários, como a garantia de direitos, empoderamento, autoestima, resgate de
cidadania, prevenção à violência, sensibilização ao autocuidado etc. Mas, diante da condição
31
em que as pessoas se encontravam, enfrentava-se certa dificuldade para conseguir trabalhar
questões que, no entendimento dos profissionais de saúde seriam importantes. Isso porque, a
partir do contato frequente com as pessoas atendidas no contexto da rua, os profissionais aos
poucos foram percebendo que outras demandas e/ou necessidades se apresentavam de forma
mais incisiva. Uma das preocupações trazidas era a questão da alimentação, pois onde estavam,
não havia como garantir se iam, nem o quê iriam comer. O que dificultava abordagens e
intervenções mais demoradas. Tal situação, inclusive, serviu como estímulo e reflexão para os
profissionais pensarem estratégias que tentassem contemplar em parte esta demanda durante os
atendimentos e/ou em alguma das atividades/abordagens no cotidiano.
Baseando-se em experiências exitosas desenvolvidas pelo Consultório de Rua de
Salvador, os profissionais passaram a fomentar intervenções em que fosse possível
disponibilizar algum tipo de lanche durante e/ou ao final de cada atividade, além da distribuição
dos insumos e demais atividades que já faziam parte do cotidiano do trabalho. O fato é que
houve cuidado e esforço grande para que o serviço não fosse confundido com outros trabalhos
de cunho filantrópico e/ou de caridade que acontecem em várias áreas de atuação.
E, como não dava para bancar uma atividade com lanche todos os dias, em função de
não haver recurso disponível para isto, mesmo tentando acionar a Secretaria Municipal de
Assistência Social (SEMAS) e/ou fazendo parcerias, pensava-se em um dia na semana e/ou
quinzenalmente, onde fosse possível, realizar uma atividade com este atrativo. A ideia de
distribuir algo para comer e beber durante e/ou após a atividade, abordagem e/ou intervenção
em curso facilitou a aproximação e favoreceu a formação e consolidação do vínculo com muitas
das pessoas atendidas pelo serviço.
Nos momentos de reunião da equipe eram discutidas, pensadas e planejadas datas
estratégicas para a realização de alguma atividade seguida da distribuição de lanche. Para isso,
era considerado o calendário programático das ações de saúde da própria Secretaria Municipal
de Saúde, algumas datas festivas/comemorativas, como, por exemplo, o período de carnaval e
de festas juninas, assim como em diversos momentos fora comemorado o aniversário de um ou
mais usuários.
A esta atividade os profissionais deram o nome “aniversariantes do mês” e havia um
empenho de todos os envolvidos, inclusive da própria Coordenação de Saúde Mental da
Secretaria Municipal de Saúde de Maceió da época, para que todos os meses em que houvesse
um usuário aniversariando fosse possível realizá-la. Esta é apenas uma dentre as várias
32
atividades das quais o serviço lança mão de forma estratégica para poder se aproximar e se
vincular aos usuários acompanhados.
No estudo de Jorge e Corradi-Webster (2012), consta que entre, as 83 pessoas atendidas
pelo serviço no ano de 2010, a maioria era do sexo masculino, tinha faixa etária predominante
entre 12 e 25 anos e não estava em posse de nenhum documento pessoal, não possuía moradia
fixa e tinha nascido em Maceió. O êxito e reconhecimento das ações desenvolvidas pelo serviço
junto à população alvo, bem como o aumento da demanda e a presença de pessoas em situação
de rua e/ou em vulnerabilidades noutros bairros e/ou regiões da cidade escancarou a
necessidade da implantação de outras equipes.
Diante deste contexto e sabendo da real possibilidade de ampliação do trabalho em
Maceió em função dos ecos pelo trabalho realizado, os profissionais que integravam o
Consultório de Rua “Fique de Boa” submeteram o projeto para quatro novas equipes. No
começo de 2011 veio a contemplação: 92 novos projetos receberam incentivo financeiro do
Ministério da Saúde. Maceió teve todas as propostas aceitas e agora, além da região do Centro
e do Mercado da Produção, haveria Consultório de Rua no Vergel (Orla Lagunar),
Jaraguá/Pajuçara (Orla Marítima) e Benedito Bentes.
O primeiro semestre de 2011 foi bastante movimentado. Isso ocorreu porque houve um
processo de seleção dos profissionais que iriam compor as novas equipes do CdeR “Fique de
Boa”, que contou com a aplicação de uma prova de conhecimentos específicos sobre as práticas
de redução de danos, entrevista com os selecionados, momentos de interação e avaliação de
trabalho em grupo e encontros destinados a qualificação/alinhamento na perspectiva da redução
de danos.
Em agosto de 2011 os trabalhos iniciaram nos novos campos de atuação com um
trabalho de mapeamento e abertura de campo que consistiu em identificar os locais onde havia
maior concentração de pessoas em situação de rua e/ou em risco social. Neste período foi
fundamental contar com o conhecimento de alguns usuários que frequentavam o CAPS AD e
algumas pessoas em situação de rua para aproximação e aceitação do serviço junto ao público
alvo.
Foram também consultados os serviços de saúde e a rede intersetorial (igrejas,
lideranças comunitárias, associações do bairro, escolas, ONGs etc.) presentes na comunidade a
fim de obter informações que ajudassemna identificação dos locais que posteriormente seriam
visitados e/ou acompanhados pelas equipes de CdeR.
33
A partir disto, foi possível ir adentrando nos territórios existenciais, habitados por
pessoas diversas com histórias de vida singulares, assim como foram sendo definido os locais
mais favoráveis para estacionar o carro da equipe com os seus materiais e onde seria possível
ser montada uma estrutura à qual nos referimos por “ponto fixo”. O ponto fixo era o
estabelecimento de um local de referência estratégico para o encontro entre a equipe e as
pessoas atendidas numa determinada área, possibilitando conversar, escutar as demandas, fazer
orientações em saúde e procedimentos in loco.
A formação dos integrantes da equipe era diversa. Havia enfermeiros (as), assistentes
sociais, psicólogos (as), terapeutas ocupacionais, técnicos (as) de enfermagem, músicos, atores
e atrizes, agentes de ação social/redutores (as) de danos e os agentes pares2, pessoas transexuais,
pessoas em tratamento no CAPS AD e/ou em situação de rua. Cada uma das equipes de CdeR
tinha um agente par que conhecia minimamente o território onde o trabalho iria ser
desenvolvido por já ter estado do lado de lá, na mesma situação daqueles que agora estávamos
pretendendo atender ou por ser local de passagem e/ou moradia.
À medida que o trabalho se desenvolvia junto às pessoas em situação de rua, em
condição de vulnerabilidade social, usuários (as) de álcool, crack e outras drogas, além das
atividades de praxe (distribuição de insumos, orientações de promoção e prevenção de/em
saúde e redução de danos, acompanhamentos e encaminhamentos diversos etc.). Algumas
atividades inovadoras chamaram atenção dos usuários e foram dando a cara do CdeR de
Maceió, por exemplo, a comemoração dos “Aniversariantes do Mês”, em que era feita uma
celebração à vida de quem estivesse aniversariando com direito a torta, bolo, doces, salgados,
sucos e/ou refrigerantes. A proposta de lembrar e comemorar a existência singular das pessoas
atendidas pelo serviço provocava momentos de extrema alegria, demonstrações e trocas de
afeto entre os usuários e profissionais, além de convidá-los a refletir acerca da vida, de
lembranças do passado, desejos e sonhos futuros.
Outra atividade de destaque foi chamada de “Cinema na Rua”, na qual eram exibidos
filmes, curtas e/ou documentários in loco, ou seja, no contexto da rua e/ou nas comunidades
onde o serviço atendia. Vale lembrar que os usuários participavam de todo o processo de
realização da atividade desde organizar o espaço onde esta aconteceria, até a escolha do que
seria exibido. Após a exibição do vídeo, abria-se um espaço para conversa sobre o tema
2
Agentes pares são aqueles profissionais que já estiveram em situação de rua e/ou vulnerabilidade social e, com
sua experiências, vivências e trajetórias no contexto da rua, facilitam a aproximação e aceitação da equipe junto
as áreas de atuação e as pessoas atendidas, uma vez que domina os repertórios linguísticos e compreende bem a
dinâmica de funcionamento da rua.
34
abordado, onde eram trazidas as afetações e impressões, bem como possíveis conexões,
reflexões e/ou relações do conteúdo com o contexto de vida de cada um deles.
A prática esportiva, mais precisamente o futebol e o vôlei, também foram atividades de
grande mobilização e participação dos usuários, mas que, por conta da logística envolvida à
realização, demoraram um pouco para acontecer. No entanto, após diversas conversas, pedidos
e acordos, a atividade esteve entre as mais requisitadas entre alguns grupos de usuários(as)
atendidos pelo serviço. Isso porque, para além de um momento de pura diversão, aproximava,
reunia, integrava os atores envolvidos, trabalhava-se em equipe em prol de produzir um cuidado
em saúde de modo diferenciado, via esporte e lazer.
Outras atividades
ganhavam forma e eram pensadas
a partir de datas
comemorativas/festivas, feriados locais e nacionais e do calendário da própria Secretaria
Municipal de Saúde de Maceió. Assim, o período de carnaval (“carnaval da redução”), de festas
juninas (“São João da Redução”), dia das crianças (“dia das crianças na rua e na praça é dia
feliz”), outubro rosa, novembro azul, festas natalinas e tantas outras datas e/ou períodos eram
aproveitados de tal forma que fosse possível relacionar e/ou incrementar estes eventos ao
contexto e dinâmica de vidas e encontros nas ruas e comunidades onde o serviço estava presente
e atuante.
Pouco tempo depois das novas equipes de CdeR de Maceió começarem as suas
atividades, o Ministério da Saúde (MS) através de uma nota técnica conjunta/2012 e as
portarias 122 e 123, de 25 de janeiro de 2012 instituiu e divulgou mudanças no que concerne à
alocação do serviço, operacionalização e abrangência de suas ações. A partir de então, o
Consultório de Rua, antes vinculado à coordenação de saúde mental, passa a Consultório na
Rua, integrando agora a Rede de serviços de saúde da Atenção Básica/Primária.
A proposta do Ministério da Saúde era de que as equipes de Consultório de Rua
existentes no país fossem adequadas à Consultório na Rua. No caso de Maceió, as equipes de
CdeR continuaram trabalhando vinculadas à coordenação de saúde mental por um tempo
considerável (até meados de 2013).
O período de inserção nas unidades básicas de saúde às quais estariam vinculados a
partir de agora foi bastante lento, conturbado e cheio de adversidades, por isso as equipes de
CnaR do Centro, Jaraguá, Pajuçara e Vergel utilizavam o prédio da sede da Secretaria
Municipal de Saúde de Maceió para se encontrar, reunir a equipe, planejar as ações e guardar
os materiais de uso cotidiano no trabalho. Os profissionais das unidades básicas de saúde,
começando pelos seus gestores, esboçavam dificuldades (em alguns casos chegaram até ignorar
35
o serviço, seus profissionais e usuários) em admitir os profissionais do Consultório na Rua
como integrantes da mesma, assim como em receber os usuários acompanhados pelo serviço.
Eram necessários momentos e/ou reuniões intersetoriais para discutir, preparar,
sensibilizar e qualificar os profissionais da rede de atenção básica para receber os usuários do
Consultório, processo este que permanece difícil, sendo que ainda surgem momentos em que
usuários não têm acesso à rede ou aos seus direitos.
A transição para atenção básica era vista com bons olhos por quase todos os
profissionais, já que as equipes disporiam (em tese) de mais recursos financeiros à sua
disposição. A promessa e/ou proposta era de que o serviço agora estaria esticando/alargando as
suas ações, visto que não atuaria mais somente no foco no cuidado em saúde mental, mas num
cuidado e atenção integrais. Entretanto, com o início da nova gestão municipal no ano de 2013,
muitas mudanças estruturais e operacionais aconteceram e, infelizmente, de lá pra cá, o
Consultório na Rua teve suas ações e atividades extremamente prejudicadas, interrompidas e/ou
fragilizadas.
Algumas perdas significativas acumuladas ao longo destes anos foram a demissão de
profissionais de psicologia qualificados para o trabalho junto ao público alvo sem reposição, de
agentes pares e agentes sociais/redutores de danos, ausência de veículo adequado e devidamente
caracterizado para o serviço, falta de insumos importantes como a água mineral e mel em sachê,
dificuldade para dar continuidade às atividades de rotina em função de não conseguir acessar
os recursos financeiros destinados ao serviço etc.
Vale frisar que a partir de maio de 2014, as equipes de CnaR tem o valor de
incentivo/custeio repassado pelo Ministério da Saúde dobrado, mas isto não repercute de modo
positivo na prática e os processos de aquisição de materiais para as atividades rotineiras que
caminhavam com certa celeridade quando o serviço ainda estava vinculado à coordenação de
saúde mental da antiga gestão municipal. Desde então, eram cada vez mais burocratizados e
boicotados e, infelizmente, não saiam mais do papel.
É importante salientar que a maioriados profissionais (32 dos 45) que integravam e ainda
integram as equipes do CnaR de Maceió não possuem vínculo empregatício efetivo com a
Secretaria Municipal de Saúde e/ou município de Maceió, são prestadores de serviço
contratados, mas de forma totalmente informal, sem garantias e direitos trabalhistas. Sabemos
que esta situação não é uma peculiaridade local, mas que ela reverbera e/ou influencia
diretamente no comportamento, postura e/ou tomada de decisões dos profissionais, que em
36
diversas situações se sentem acuados em fazer qualquer movimento de contraposição e/ou
conteste a gestão por medo de sofrerem represálias e/ou serem demitidos.
É de se admirar a disposição, doação, entrega, dedicação, paixão e compromisso que
alguns profissionais demonstram pelo serviço e pelas pessoas atendidas, a ponto de comovidos
e/ou afetados pela situação delas, decidirem custear atividades que deveriam ser
geridas/financiadas com o recurso destinado ao e para o serviço. Mais uma vez, penso que vale
pensar: Quais os efeitos disto no serviço, para o serviço, profissionais e pessoas atendidas?
Considerando que o trabalho do CnaR parte da aproximação e constituição de vínculo
com as pessoas atendidas e que, após certo tempo de convívio, trocas de afetos, saberes e/ou
informações se forma uma relação de afeto e de confiança, torna-se difícil lidar com situações
de perda. Silva (2013), em sua pesquisa de mestrado, destaca que desde os anos 2000, ano após
ano, Maceió acumula um número alarmante de assassinatos de pessoas em situação de rua, cuja
maioria é negra.
Com certeza a história do CnaR de Maceió não para por aqui e está longe de se restringir
ao que tentamos expor aqui nos parágrafos anteriores. O que aqui apresentamos não tem
pretensões de ser absoluto e/ou irrefutável, ao contrário, trata-se de uma versão da história deste
serviço de saúde, permeada pelos afetos, andanças, trajetórias, conversas no cotidiano,
experiências e vivências.
37
5 REVISITANDO PUBLICAÇÕES SOBRE CONSULTÓRIO DE/NA RUA
Para construção desta revisão de literatura foram realizadas pesquisas em bases de
dados, no período de março a dezembro de 2015, buscando referenciais já produzidos e/ou
publicados sobre “Consultório de Rua”e “Consultório na Rua”, do ano de 2011 até 2015, pelo
fato de o serviço ser recente no SUS. Em função do pouco material publicado sobre o tema até
então, realizamos pesquisa aberta a todos os campos. A pesquisa começou por três bases de
dados científicas virtuais, a Biblioteca Virtual em Saúde (BVS – Brasil), Literatura LatinoAmericana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) e Scientific Eletronic Library Online
(SciELO-Brasil).
Na BVS foram selecionadas somente cinco das dezessete produções científicas listadas
na busca realizada, pois somente estas abordavam e/ou se relacionavam diretamente ao tema
pesquisado. Na LILACS foram selecionadas apenas quatro das seis produções listadas na busca,
sendo que três destas já tinham sido selecionadas na BVS. Desse modo, somente uma produção
foi agregada às cinco já selecionadas anteriormente. A busca feita na página da SciELO não
listou nenhuma produção diferente das demais já encontradas. Sendo assim, não houve
acréscimo vindo desta fonte.
Além disso, também foram feitas pesquisas no site de busca “Google”, o qual
possibilitou entrar em contato com quatro trabalhos de conclusão de curso e duas dissertações
de mestrado que foram selecionados para ajudar na elaboração desta revisão de literatura.
Outros documentos também serão utilizados como materiais de auxílio à construção
desta revisão, são eles o Manual de Cuidado para População em Situação de Rua (BRASIL,
2012) e o Caderno de Atividades do Curso de Atenção Integral às Pessoas em Situação de Rua:
com ênfase nas equipes de Consultório na Rua (LOPES, 2014), entre outros. A partir da leitura
e conversa com os materiais encontrados foi realizado um recorte dos seus elementos principais
com o intuito de conhecer, refletir sobre o que já existia e auxiliar no delineamento do objeto
de pesquisa.
Em estudo realizado em 2012, Jorge e Corradi-Webster descreveram e avaliaram o
processo de implantação do Consultório de Rua (CdeR) “Fique de Boa” na Cidade de Maceió,
a partir de relatos de seis profissionais atuantes na equipe naquele momento. O referencial
teórico utilizado foi o Construcionismo Social, que compreende a ciência como uma prática
social, situada num contexto social, histórico e cultural, produzida a partir da linguagem em
uso.
38
De acordo com Jorge e Corradi-Webster (2012), no Construcionismo Social as pessoas
estão a todo instante produzindo sentidos sobre as suas experiências de vida, no qual a
linguagem é um elemento fundamental que, ao invés de representar, possibilita a construção ou
produção da realidade. Foram utilizados os seguintes instrumentos: documentos relacionados à
implantação do CdeR, fichas de atendimento diários com informações das pessoas atendidas,
entrevistas semi-estruturadas com os profissionais da equipe, compostas por questões
formuladas baseadas na Investigação Apreciativa. O momento da entrevista se configurou
como um espaço de produção de sentidos que, neste caso, utilizou um roteiro que favoreceu a
visibilização do que a equipe já vinha fazendo e, sobretudo, o que vinha dando certo.
No estudo acima, as profissionais entrevistadas fizeram relatos diversos, como ações de
vacinação bem sucedidas no espaço da rua, testagem, aconselhamento e detecção de pessoas
com HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis. Se constatada a positividade, essas
pessoas eram aconselhadas, encaminhadas e acompanhadas aos serviços de atendimento
especializado caso elas assim quisessem e/ou permitissem. Falaram ainda na construção de
relações baseadas no vínculo, confiança, respeito, acolhimento e escuta sensível e qualificada,
que possibilitaram e possibilitam a aproximação destes sujeitos dos serviços de saúde.
A partir das entrevistas realizadas, Jorge e Corradi-Webster (2012) propuseram a
organização de cinco eixos temáticos: 1. razões que caracterizam o sucesso da experiência; 2.
articulações realizadas; 3. posturas da equipe que contribuem para o sucesso; 4. aprendizados
na prática; 5. desafios enfrentados na implementação do CdeR. Estes foram fundamentais para
a compreensão do material produzido e desfecho da pesquisa.
O acolhimento, a aceitação e a construção de vínculos aparecem como aspectos
essenciais para o sucesso da implementação e efetivação do CdeR. Já para atender às questões
demandadas pela população em situação de rua, verificou-se a necessidade de contratação de
equipes multiprofissionais. Jorge e Corradi-Webster (2012) frisam que o CdeR se apresenta
como dispositivo potente, já que o alcance de suas ações possibilita o acesso e o cuidado em
saúde às pessoas em situação de rua, de extrema vulnerabilidade social e que fazem uso de
drogas, sem que elas tenham necessariamente que se deslocar para serem atendidas.
Em pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Ministério da
Justiça (2009), Maceió figura entre os 43 municípios com maiores índices de vulnerabilidade
social do país. Este dado foi preponderante para que a capital de Alagoas viesse a ser uma das
contempladas para implementação do CdeR.
39
De acordo com Jorge e Corradi-Webster (2012), a mídia local difunde a ideia de que o
uso de álcool, crack e outras drogas está interligados a situações de violência e criminalidade.
Esta associação acaba reforçando o estigma e o preconceito da pessoa que faz uso, assim como
contribui para exclusão social desta e para a compreensão equivocada da realidade de quem faz
uso de álcool e outras drogas, bem como dos seus efeitos.
Fica claro que os profissionais devem pensar novas formas de atuação frente às
demandas emergentes junto aqueles que fazem uso de drogas e que estão em situação de rua,
numa perspectiva ampliada, do exercício de uma escuta qualificada, da promoção e resgate da
cidadania, que valorize a vida, a trajetória e as singularidades de cada um deles. Saber e fazer
precisam estar a todo o momento imbricados/entrelaçados visando à criação de novas
tecnologias de cuidado para atenção integral das pessoas que fazem uso de álcool e estão em
situação de rua.
O CdeR de Maceió evidenciou que as diferenças nas formas de atuar dos profissionais
é subtraída e posta em xeque diante da gama de necessidades que emergem no contexto da rua:
as relações entre os diferentes integrantes das equipe migram para a horizontalidade
e a transdisciplinariedade, sobrepondo-se a todas as outras formas disciplinares de
processar o trabalho em saúde. Assim, na rua, enfermeiros, assistentes sociais,
motoristas, auxiliares de enfermagem e psicólogos transformam-se em redutores de
danos (JORGE; BRÊDA, 2011, p. 81-82).
Jorge e Brêda (2011) destacam que, diante do contexto no qual o trabalho precisa ser
desenvolvido, o cuidado se faz no cotidiano, de forma coletiva, numa parceria e/ou a partir da
rede territorial/assistencial entre usuários, profissionais e comunidade. Para tanto, é preciso
lidar com a imprevisibilidade e a capacidade de se moldar às situações que se apresentem no
cotidiano.
Vale ressaltar que em alguns momentos o reconhecimento da equipe de profissionais do
Consultório de Rua e o estabelecimento de vínculo afetivo e efetivo junto aos usuários
assistidos pelo dispositivo eram ameaçados pela falta de garantias, continuidade e manutenção
destes profissionais no serviço. Por outro lado, as razões que caracterizariam o sucesso desta
experiência são: a possibilidade de levar e desenvolver uma clínica in loco, na rua, aproximando
os serviços de saúde da população em situação de rua e vice-versa; a construção de vínculo
baseado numa relação de confiança, dialógica, de respeito às diferenças, singularidades, o que
facilita o acesso aos aparelhos sociais e de saúde, assim como a aceitação dos procedimentos
ofertados pela rede.
Na pesquisa qualitativa realizada por Leitão et al (2012), cujo objetivo consistia em
descrever as práticas de saúde de 15 mulheres profissionais do sexo que trabalhavam em bares
40
de Maceió e eram atendidas pelo CdeR, fez-se uma categorização das práticas de saúde
presentes no cotidiano destas profissionais.
Estas práticas eram orientadas pela condição de vulnerabilidade social, contexto sóciohistórico-cultural nos quais elas se encontravam. Embora tenham sido constatadas deficiências
nas práticas de saúde realizadas pelas profissionais do sexo, não se pode negar que estas buscam
formas para melhorar a sua condição de saúde física, social e mental, assim como também
procuram por serviços e profissionais de saúde em busca de algum tipo de cuidado.
Muitas das mulheres entrevistadas afirmaram procurar o serviço de saúde via
Consultório de Rua normalmente quando se quer tratar algo relacionado à ginecologia. As
autoras (2012) ainda observaram que há uma relação pautada na confiança e no vínculo, pois
as mulheres entrevistadas sentiam-se bastante à vontade para tratar de suas queixas e problemas
com a equipe de CdeR.
Leitão et al (2012) perceberam que muitas das mulheres entrevistadas só buscavam os
serviços de saúde quando já não conseguiam mais suportar a situação em que se encontravam
e/ou nem conseguiam mais contornar as dores ou o sofrimento, automedicando-se. Além disso,
na maioria dos casos, quando elas procuravam os serviços de saúde públicos ou privados, não
eram acolhidas de maneira adequada e/ou desejada, o que reverberava direta e negativamente
no cuidado que tinham com a sua própria saúde.
Ainda assim, estas tentam manter em dia seus exames de rotina, fazem uso do
preservativo e procuram se prevenir o máximo que podem, mantendo um cuidado minucioso
com o corpo, uma vez que este é a sua principal ferramenta de trabalho para sobreviver. Todas
as 15 profissionais do sexo participantes do estudo de Leitão et al (2012) alegaram fazer uso de
de alguma droga como estratégia de enfrentamento da realidade cotidiana, pois proporcionava
distração, encorajamento, diminuição momentânea do sofrimento e da dor para encarar a labuta
da noite e, em alguns casos, de toda a madrugada.
Não muito diferente do que acontece com a maioria da sociedade, há uma banalização
dos efeitos produzidos por drogas mais populares, o que acaba se configurando num fator de
risco, pois quando estas mulheres usam determinadas substâncias para minimizar a dor ou
sofrimento momentâneos podem estar provocando reações adversas ao organismo e até
encobrindo, em alguns casos específicos, doenças já em fase avançada.
Alguns comportamentos e/ou atitudes, ainda que soem de modo perigoso, podem ser
considerados ações de redução de danos: utilizar goma de mascar para tentar diminuir a vontade
de fumar um cigarro, ingerir uma bebida alcoólica para esquecer dos problemas por alguns
41
instantes e fazer uso de alguma droga mais forte e/ou em doses maiores somente se estiverem
acompanhadas.
Diante desse contexto, a quem essas mulheres procurariam? O CdeR atuava na direção
contrária da maneira como os demais serviços as tratavam no sentido de lhes ofertar um
atendimento digno de pessoas cidadãs e que possuem direitos. O que poderia ser feito para
sensibilizar àqueles profissionais que ainda dificultavam o acesso e a inserção deste segmento
nos espaços que deveriam ser de cuidado garantido e não de negação de direitos?
Leitão et al (2012, p. 302) enfatizam a necessidade do desenvolvimento de ações
informativas e educativas como estratégias para a mudança de comportamentos em paralelo à
garantia de acesso aos serviços públicos de saúde, com o devido acolhimento e resolutividade
de suas demandas.
Cabe lembrar que a aceitação dos procedimentos ofertados pela rede não quer dizer, de
modo algum, que estes sujeitos serão atendidos em suas demandas, pois elas são complexas e,
quando apresentadas diante das estruturas engessadas dos serviços e profissionais existentes,
estes se pegam em apuros sem saber muito o que e como fazer.
Em outro estudo, de Londero, Ceccim e Bilibio (2014), a população em situação de rua
e aqueles que fazem o uso de álcool, crack e outras drogas são identificados pela sociedade
como os novos desviantes, os descartáveis urbanos, zumbis ou não humanos. Sujeitos de
aspectos polimorfos e que muitas vezes deixam de ser reconhecidos enquanto sujeitos de
direitos e são cada vez mais afastados da sociedade, adotando diversas estratégias de
sobrevivência condicionadas às leis específicas exercidas nas ruas.
Para garantir o atendimento integral, percebe-se a necessidade de uma articulação intra
e intersetorial que, de certa forma, iniciou a partir do desenvolvimento das atividades e da
identificação das demandas que faziam com que os profissionais do CdeR entrassem em
contato, acessassem e se mantivessem em diálogo com diversos serviços e atores envolvidos
neste processo. Considerando narrativas dos profissionais do CdeR, percebe-se, no seu
cotidiano, um comprometimento com os direitos humanos e com o exercício da cidadania.
Esses profissionais encontram na lógica de Redução de Danos um norte para a promoção do
cuidado em saúde junto a população em situação de rua.
No que se refere às articulações realizadas, destacam-se os contatos estabelecidos com
o Serviço de Assistência Especializada (SAE) em DST/AIDS, Centro de Atenção Psicossocial
para usuários de álcool e outras drogas (CAPSad), Albergue Municipal, Complexo de
Regulação de Serviços de Saúde (CORA), entre outros serviços. Jorge e Corradi-Webster
42
(2012) chamam a atenção para a necessidade de efetivação de uma rede intersetorial para que
se consiga garantir e avançar na direção de uma prática de cuidado e atenção integrais à PSR e
às pessoas em situação de vulnerabilidade social.
Londero, Ceccim e Bilibio (2014) problematizam as abordagens prescritivas,
ressaltando que para obter êxito na prática de uma atenção integral junto à população em
situação de rua, os profissionais devem pensar de forma coletiva, corresponsabilizando-os
durante todo o processo, pois a lógica das instituições não necessariamente corresponde e/ou
atende às reais necessidades e demandas das pessoas assistidas; estes orientam-se, portanto,
posicionando-se favoravelmente à uma abordagem participativa. Na perspectiva da abordagem
prescritiva o sujeito assistido é obrigado a aceitar aquilo que o profissional e/ou especialista
está lhe prescrevendo. Na abordagem participativa este sujeito é partícipe ativo de todo o
processo, desde a identificação das demandas até a busca pelas soluções destas.
Desse modo, a postura e o compromisso ético-político destes profissionais implicam o
desenvolvimento de uma clínica de caráter singular, que a partir de conversas no cotidiano dos
atendimentos e acompanhamentos, incentivam a reflexão e estimulam a mudança de
comportamentos e hábitos na vida dos usuários assistidos sem, em nenhum momento, impor o
que precisam e como se deve fazer.
Nessa mesma linha, ética, cidadania, interdisciplinaridade e respeito ao tempo dos
sujeitos são elementos indispensáveis para uma práxis humanizada junto à população em
situação de rua.
O sentido produzido acerca da importância do estabelecimento de um vínculo de
confiança e respeito reflete sentimentos de reconhecimento e valorização entre as
pessoas atendidas e a equipe. Motivar para a mudança e mostrar-se disponível ao
outro, também aparecem construídos como aprendizados que vem contribuindo para
o êxito das ações implementadas (JORGE; CORRADI-WEBSTER, 2012, p. 45).
A partir do trabalho de Jorge e Corradi-Webster (2012) foi possível perceber algumas
dificuldades no processo de implementação do CdeR. A articulação de uma rede intersetorial é
concebida como um dos maiores desafios, de extrema complexidade e de caráter permanente,
que ainda está distante de garantir um atendimento às necessidades das pessoas em situação de
rua de forma integral, mas que é tida como condição indispensável na busca por essa
integralidade.
Há dificuldades na superação dos estigmas e/ou preconceitos sobre a população em
situação de rua e aqueles que usam álcool e outras drogas, o que, na maioria das vezes, acaba
afastando-os, excluindo-os ou dificultando ainda mais o seu acesso aos serviços de saúde.
43
De acordo com Londero, Ceccim e Bilibio (2014), o CdeR traz à tona necessidades
inesperadas de saúde para a rede de cuidados, fazendo assim com que esta reveja, repense e
reorganize os modos estruturados de fazer saúde, de modo a dar conta das necessidades
emergentes da população assistida.
São estranhas as histórias de vida na rua e suas necessidades de saúde também. O CR,
ao acolher, em exercício de alteridade, as pessoas em situação de rua e ao levar tais
casos à rede de cuidados, produz, cotidianamente, estranhamentos na própria rede.
Com o estranhamento, emergem situações observadas e sentidas, para as quais não se
têm respostas prontas e pelas quais somos significativamente arrastados para fora de
nossa zona de conforto do diagnóstico e recomendações ao autocuidado no domicílio.
A rede é tensionada por uma demanda, por ora invisível, de uma população até então
inexistente. O CR mostra uma nova cara, um novo ponto de conexão de rede ou de
redes, recoloca desafios e interroga a construção de que participamos para um SUS
que diga respeito a todos (LONDERO; CECCIM; BILIBIO, 2014, p. 254).
O forte negligenciamento dos direitos das pessoas em situação de rua e/ou que fazem
uso de drogas, assim como o preconceito, reforçam a exclusão social e empecilhos para um
cuidado integral. Diante desse contexto de atuação, constitui-se um grande desafio pensar em
estratégias de incentivo/estímul()o à autonomia, autocuidado e protagonismo das pessoas em
situação de rua e/ou que fazem uso de drogas.
Para Jorge e Corradi-Webster (2012), o CdeR “Fique de Boa” de Maceió se apresenta
como o primeiro serviço do qual se tem conhecimento a trabalhar na lógica de Redução da
Danos no município, propondo acolhimento incondicional das pessoas, para além de suas
doenças e ou problemas aparentes, sendo uma importante estratégia de aproximação e cuidado
às pessoas em situação de rua e/ou que fazem uso de álcool e outras drogas . As autoras (2012)
ainda destacam como uma das grandes dificuldades a forte resistência por parte dos gestores e
profissionais do SUS em aderir a esta lógica em seu cotidiano.
O estudo de Jorge e Corradi-Webster (2012) contribui de forma salutar apara o
fortalecimento e expansão do CdeR e da estratégia de Redução de Danos tanto no âmbito
nacional como local. Isso porque possibilita a visibilização de práticas de cuidado e saúde,
assim como outras estratégias voltadas às pessoas que fazem o uso de drogas, sem exigir delas
a abstinência, sem impor condições e, sobretudo, considerando as suas reais necessidades,
diminuindo a vulnerabilidade e risco aos quais estão expostos no cotidiano.
44
Um aprendizado significante do Consultório de Rua “Fique de Boa!”, em Maceió, tem
sido a superação do medo do contato com esse público e dos estigmas de violência e
incapacidade que lhes é equivocadamente atribuído. Outro aprendizado tem sido o
exercício constante de elaboração e reelaboração de nossas próprias expectativas e de
valorização dos pequenos ganhos, das pequenas alegrias. E de, a cada dia e a cada
instante, realizar novas tentativas, novos recomeços, novos ensaios de cuidado fora
do ambiente tradicional, na rua, num espaço de vida real, contraditoriamente chamado
consultório (JORGE; BRÊDA, 2011, p. 84).
Londero, Ceccim e Bilibio (2014) afirmam que a prática do CdeR promove a atenção e
a inclusão das pessoas em situação de rua, em vulnerabilidades e que usam álcool e outras
drogas à rede de serviços de saúde. No presente estudo, os autores realizam problematizações
a partir das experiências vivenciadas no CdeR “Pintando Saúde”, que teve início em agosto de
2010, em Porto Alegre.
Para isso, utilizaram diários de campo dos profissionais do CdeR para explicitar a
intensidade do tema problematizado, tendo em vista as tensões decorrentes do movimento e do
grande desafio em prol de um cuidado integral junto à população em situação de rua. Cuidado
este que precisa lidar com o inesperado, imprevisível e/ou inusitado.
O CR faz parte das redes de saúde e intersetorial, nas quais insere-se na intenção de
produzir uma terapêutica singular para cada pessoa/coletivo em situação de rua.
Contudo, diante da fragilidade dessas redes, sempre em movimento e a construir-se,
o CR, além de servir como um serviço de atenção aos moradores ou pessoas em
situação de rua, torna-se um importante instrumento de problematização dos modos
de cuidado que atravessam a assistência em saúde. Com sua prática em trânsito,
percorre a rede de saúde e intersetorial, mesclando-se à mesma – não raras vezes, sob
tensão–, buscando articulação para o atendimento daqueles que, até então,
encontravam-se invisíveis nos/aos cenários do SUS (LONDERO; CECCIM;
BILIBIO, 2014, p. 253-254).
Londero, Ceccim, Bilibio (2014) enfatizam o quão tênue e perigosa pode ser a relação
entre os profissionais do serviço e seus usuários. Profissionais que trabalham com lógicas
prescritivas experimentam sentimentos de angústia e sofrimento elevados, pois, diante do
completo desamparo em que se encontra a maioria dos usuários, entendem que precisam
resolver suas demandas o mais rápido possível, prezando por ações objetivas e resolutivas, e
assim acabam passando por cima e/ou ignorando o tempo de cada um destes sujeitos.
No trabalho de Macerata (2013) fez-se uma narrativa da experiência de implantação do
projeto “Saúde em Movimento nas Ruas” (SMR), também conhecido como Estratégia de Saúde
da Família Para População em Situação de Rua (ESF POP RUA), desenvolvido na cidade do
Rio de Janeiro. Foi uma experiência heterogênea e incomum iniciada no ano de 2010 com a
integração da atenção primária, da saúde mental e da redução de danos, que serviu de modelo
para a assunção do Consultório na Rua do Ministério da Saúde e que se consolidou como
45
referência de serviço público no que tange ao cuidado em saúde junto à população em situação
de rua do Rio de Janeiro.
O estudo de Macerata (2013) é contado a partir das lentes do gerente técnico do projeto
SMR, que destaca a relevância dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) dada a aproximação
que têm com a comunidade, o conhecimento do território e do funcionamento da rua. Alguns
destes, inclusive, já atuaram como Educadores Sociais e/ou já estiveram em situação de rua.
De acordo com Macerata (2013, p. 209), as experiências vivenciadas no contexto da rua
revelam a capacidade e a necessidade de comunicação com o território que, por sua vez,
direcionam o caminho da política pública voltadas às pessoas em situação de rua. Assim, as
experiências devem ser cultivadas e/ou sustentadas nos territórios de vida peculiares onde está
e/ou vive esta população. Como dimensão, a rua é o território de vida das pessoas que cuidamos,
muito diferente dos padrões mais comuns em uma cidade. Ela é território de moradia e de vida,
sem ser domiciliar. E, a partir desse território, todo o trabalho é construído (LOPES, 2014).
Para que este trabalho seja desenvolvido é necessária a criação de vínculo com o público
assistido para que seja acompanhado. Esta vinculação tentará escapar de ações pontuais,
devendo focar na emergência de demandas que possam ser atendidas, longitudinalmente e
transversalmente, através dos múltiplos olhares que compõem o serviço e a equipe
(MACERATA, 2013).
Macerata (2013) enfatiza a ideia de hibridez em função da confluência de saberes e/ou
olhares que pensam e/ou se debruçam sobre as demandas da população em situação de rua. Para
ele, a ampliação do acesso dessa população aos serviços de saúde passa, indiscutivelmente, por
uma mudança de postura tanto da sociedade como de toda a rede de saúde, na qual se façam
presentes dispositivos capazes de se conectar e acolher demandas diversas, singulares e
complexas.
Por Redução de Danos devemos entender:
a promoção de saúde a partir da singularidade de cada sujeito e cada território, e a
partir de seus funcionamentos, condições e características; a construção de estratégias
que possibilitem uma ampliação do grau de saúde, da qualidade de vida, a partir da
singularidade de cada sujeito, de cada micro comunidade, de cada momento de seu
processo de vida (MACERATA, 2013, p. 211-212).
Nesse sentido, a Redução de Danos surge como mais um olhar, um conjunto de saberes
que interroga a maneira como as práticas de saúde têm sido desenvolvidas e aponta para a
necessidade de olharmos para outra dimensão da saúde, a dimensão subjetiva de saúde. Sobre
isso, Petuco (2010) vai dizer que a Redução de Danos trata de um novo paradigma, que se
propõe ao diálogo crítico com o que está instituído e possui caráter hegemônico, isto é, admite
46
e legitima diferentes maneiras e compreensões na forma de olhar e conceber os problemas,
neste caso, da população em situação de rua, usuários de álcool, crack e outras drogas e pessoas
em situação de vulnerabilidade social.
A partir do que afirmam Macerata (2013) e Petuco (2010), a Redução de Danos vai além
de uma prática de oferta de insumos. Trata-se de um grande desafio de pensar que caminhos
e/ou possibilidades os serviços públicos ofertarão às pessoas em situação de rua, de modo a
ampliar e qualificar suas vidas, assim como elencar reflexões e novos horizontes.
Macerata (2013, p. 214) fala de uma ética de acolhimento à diferença e de produção de
diferença que se orientem considerando a realidade e o respeito às mais diversas formas de
ser/existir e habitar/estar na cidade. A autora ressalta ainda que, diante das demandas que
emergem no contexto da rua, é imprescindível ter um “Olhar Transversal”, ou seja, ampliado,
que não olha para partes do sujeito, mas que compreende a inseparabilidade entre saúde física
e saúde mental, sua história, trajetórias e contexto.
Macerata (2013) destaca que o SMR também atua sensibilizando os serviços públicos
de saúde para que estes recebam e atendam a população em situação de rua, e aponta aquilo
que, no seu entendimento, pode ser considerado como algum avanço no que tange ao cuidado
e/ou aproximação com este público: essas pessoas aderiram ao tratamento medicamentoso
mesmo estando em situação de rua, participaram das consultas com médicos, psicólogos,
assistentes sociais e dos grupos de musicoterapia, assim como passaram a se inserir, frequentar
e utilizar os serviços de saúde e da rede sociassistencial como um todo.
Um outro aspecto importante que Macerata (2013, p. 217) destaca é a rua como via de
transformação da cidade, pois, apesar de toda a complexidade que a circunda e circunscreve, a
rua se apresenta com extremo potencial de fazer emergir outras linhas de atenção e/ou cuidado
e, sobretudo, para (re)pensar e (re)organizar técnica e politicamente a rede de saúde e demais
serviços existentes das políticas de Estado.
Elencamos estes elementos dentre os tantos que foram trazidos nas referências
selecionadas por se destacarem entre os demais e, sobretudo, por apresentarem princípios,
diretrizes e práticas que se mostram pertinentes ao trabalho no Consultório de/na Rua e/ou junto
à PSR e/ou às pessoas que se encontrem em vulnerabilidade social.
47
6 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA
6.1 Construcionismo Social e Etnografia: caminhos para pesquisar
Esta pesquisa faz uma análise temática de conversas no cotidiano a partir da
produção de Diário de Campo do pesquisador e se sustenta no referencial teórico do
Construcionismo Social e da Etnografia, que passamos a apresentar brevemente.
O Construcionismo não admite uma definição única, finda, indubitável, inquestionável,
pois não tem como preocupação a produção de um conhecimento sistemático, imparcial,
universal, com ênfase na observação, replicação e controle da natureza, experimentação,
fomento de leis gerais e/ou generalizações.
Segundo Íñiguez (2002), o que há são alguns elementos que caracterizam o
Construcionismo em psicologia, mas que estes não são únicos. O Construcionismo Social
questiona as verdades acatadas, instigando reflexões sobre a maneira como nos ensinaram − e
assim ainda acontece − a conceber o mundo, a realidade (mas o que seria essa tal realidade?) e
a nós mesmos.
De acordo com Íñiguez (2002), para o Construcionismo Social é de suma importância
que se problematize saberes, conhecimentos e verdades pressupostos e/ou pré-estabelecidos,
com vistas a compreender a sua origem, como se legitimou, que efeitos produzem, a quem está
beneficiando e a quem está prejudicando; enfim, que relações de poder engendram em
determinado contexto. Os conhecimentos produzidos devem levar em conta a especificidade e
a particularidade sócio-histórico-cultural na qual foram produzidos ou construídos. Portanto,
para se estabelecer a origem, a função e a forma de constituição dos mais variados saberes é
fundamental relacioná-lo às condições econômicas, sociais e culturais de um determinado
tempo e sociedade.
A produção de conhecimento se originaria a partir de processos sociais, sendo resultado
de uma construção coletiva, da interação dialógica, por intermédio da linguagem. O
Construcionismo Social tem como grande desafio complexificar a noção de realidade para além
da natureza linguística, representacionista, idealista, essencialista. Desse modo, esta perspectiva
critica a postura dos idealistas, que concebem a linguagem da ciência como uma linguagem
ideal, pois a considera uma prática social, que se dá no bojo das ações cotidianas.
Segundo Ibañez (2001), o Construcionismo Social não concebe a realidade de um lugar
fora desta, pois quando falamos dela estamos falando de algo que fazemos parte enquanto um
dos seus elementos constitutivos, ou seja, a realidade tem as características que tem por que nós
48
somos como somos. Dessa maneira, a realidade sobre a qual falamos é resultante direta da
maneira como nos relacionamos com os objetos e elementos constitutivos desta, ou seja, não
há realidade anterior a nós mesmos, independente de nós.
Para o Construcionismo Social, em concordância com o que afirma Íñiguez (2002), a
produção de conhecimento se dá no ínterim das ações cotidianas entre os sujeitos, nos encontros
e desencontros do dia a dia, ou seja, na interação social, com destaque para a linguagem
enquanto forma que possibilita este interacionismo. Sendo assim, a dita produção de
conhecimento científico seria uma prática social, como qualquer outra, inseparável da ação
social, situada sócio, histórico e culturalmente.
Na década de 1960, surgiu um movimento chamado por Rorty (1996) de virada
linguística, que visava compreender o mundo a partir da linguagem cotidiana. De forma
contundente, o movimento da virada linguística questionava o descrédito, a desvalorização e o
rebaixamento que a linguagem do cotidiano tinha diante da linguagem da comunidade científica
e tentava igualar o conhecimento e/ou saber cotidiano e popular com a mesma legitimidade
com a qual se apresentava o conhecimento científico.
A virada linguística foi fundamental para a ascensão do Construcionismo Social. Seus
efeitos não só tensionaram e fizeram repensar o modelo de ciência hegemônico produzido até
então, como trouxeram a possibilidade real de desenvolvimento e produção de conhecimento a
partir das práticas sociais do cotidiano. As consequências importantes da virada linguística são:
a conversão das práticas sociais da ciência em mais uma prática social do cotidiano; a
construção de um tipo de conhecimento não representacionista; a dignificação da ação, ou seja,
dar dignidade as coisas que as pessoas fazem no seu cotidiano.
O convite da virada linguística é ver na ação cotidiana o verdadeiro sentido das ações
das pessoas e, portanto a matéria-prima de nosso trabalho de pesquisa. O sujeito
analisado em estudos ou experimentos científicos sempre fica em condições de
inferioridade. A virada linguística é um argumento muito abstrato e epistemológico,
mas que dignifica a ação dos seres sociais em suas vidas cotidianas (IÑIGUEZ, 2002,
p. 160).
É justamente nessa direção que realizamos a pesquisa, partindo de ações e/ou conversas
no cotidiano do CnaR, dialogando, discutindo, pactuando e construindo com os sujeitos
participantes, no caso, as pessoas atendidas pelo serviço.
Para Íñiguez (2002), a Teoria dos Atos de Fala de Austin discute como se fala e que
falar é fazer. Segundo Austin (1998), o ato de expressar uma oração é realizar uma ação, ou
parte dela. Ação esta que, por sua vez, não seria normalmente descrita como consistente em
49
dizer algo. A partir disso, Austin (1998) abre a possibilidade metodológica da análise do
discurso, pois é quando se fala que se está construindo o significado.
Austin (1998) parte da linguagem ordinária, comum, do cotidiano para afirmar que a
ciência não pode falar pelo outro e que a linguagem não re(a)presenta nada, mas produz coisas.
Desse modo, a preocupação não deve se deter ao caráter de verdade ou não das coisas, mas sim
sobre quais os efeitos produzidos a partir de determinados dizeres e/ou saberes.
As ações – e isto é muito importante –, os atos de fala, se vistos como ações, nada
representam. As palavras não representam as ações dos indivíduos, mas são as ações
dos indivíduos. Essa é a consequência mais importante da teoria dos atos de fala. Se
não houvesse essa ideia, hoje não poderíamos falar de análise do discurso, porque
ainda estaríamos encerrados em uma visão representativa da linguagem, na qual vejo
as palavras como o reflexo ou a imagem das ações dos indivíduos (IÑIGUEZ, 2002,
p. 161).
Íñiguez (2002) afirma que outra contribuição da Teoria dos Atos de Fala de Austin é a
reflexão de que a linguagem não é a janela da mente. Do mesmo modo que as palavras não
representam coisas nem ações, elas não representam nem representarão possíveis processos
cognitivos, costumes, jeitos etc. Austin (1998) atenta para uma produção de conhecimento
coletivo, com um outro e não para ou sobre um outro, de modo que este outro participa de forma
ativa. Para isto, urge a necessidade da construção de estratégias de reflexão, interação e
participação mais efetivas.
A pragmática tem como finalidade analisar a linguagem em seus usos, isto é, estuda os
princípios que regulam os usos da linguagem. É um convite a nos concentrar nos realizativos
ou performatividade da fala, da linguagem em uso e em seus sentidos. De acordo com Íñiguez
(2002), as palavras variam de significado a depender do seu uso e, desse modo, não temos como
entender o que acontece no uso das palavras se não as considerarmos no contexto de sua
produção. Somente saberemos do que estamos falando se considerarmos a fala em seu uso.
Portanto, a fala não pode ser jamais somente o respeito à uma norma, um respeito exaustivo,
formal e correto. Ela é e deve ser algo mais. O mesmo autor (2002) afirma que não se pode
pensar em fazer uma análise do discurso sem fazer uso dos princípios da pragmática.
Para Spink (2013), a Etnometodologia busca analisar a racionalidade do senso comum,
ou seja, procura entender como os atores sociais obtêm uma apreensão compartilhada do mundo
social (SPINK, 2013, p. 19). Íñiguez (2002) cita quatro elementos-chave da Etnometodologia,
afirmando serem indispensáveis para a análise do discurso e que são: noções de membro
competente, reflexividade, indexicabilidade e accountability.
50
A ideia de competência não diz respeito somente a estar socializado num grupo, mas
que se deve ter o domínio do aparato necessário para agir de forma coletiva e em interação.
Para isso, é preciso conhecer as regras, os princípios/arranjos organizativos e de funcionamento
da comunidade linguística à qual está inserido, é preciso dominar o idioma falado pela
comunidade. Ao contrário, em caso de não domínio da linguagem comum será impossível ser
competente nele.
Nesse sentido, minha inserção enquanto profissional no contexto do Consultório na Rua,
desde 2011, contribuiu para o desenvolvimento da pesquisa, tendo em vista que a experiência
de trabalho ao longo destes anos me possibilitou conhecer as peculiaridades e dinâmicas de
funcionamento dos "territórios vivos" onde o serviço atua e das pessoas que ele atende. Neste
caso, configura-se um desafio desenvolver uma pesquisa no mesmo ambiente de trabalho, mas
ao mesmo tempo é uma oportunidade de questionar, rever e ressignificar alguns conceitos e/ou
heranças da ciência positivista que ainda se fazem predominantes na academia como, por
exemplo, a noção de neutralidade, objetividade e campo de pesquisa.
O lugar de onde se fala não se configura um problema em si, já que não há pretensões
de construir e/ou produzir conhecimentos absolutos nem de reificar verdades irrefutáveis e/ou
replicáveis. Interessa-nos, ao contrário, partindo duma ética dialógica e de um compromisso
ético-político com as demandas da sociedade, contar/explicitar os pormenores de um processo
de construção que se dá e/ou acontece na relação/interação social num contexto
específico/localizado.
A indexicabilidade se refere a todas as circunstâncias e/ou elementos que circundam
uma palavra, quer dizer, seu contexto, que diz respeito àquilo que permite acessar seus sentidos.
Grosso modo, seria uma espécie de consulta/visita aos nossos arquivos linguísticos. Na mesma
linha, no que tange à rigorosidade na pesquisa social, Woolgar (1988) vai dizer que a
indexicabilidade ou especificidade fala daquilo que é produzido em cada contexto como um
saber diferente sobre determinado fenômeno. Assim, se a situação muda, o seu sentido também
pode ser modificado.
E aqui é importante explicitar e, isso não há como negar, a diferença que faz já estar
inserido e/ou fazer parte de um grupo e/ou situação em contexto específico. É tanto que, como
integrante do CnaR desde meados de 2011, já tinha conhecido e apre(e)ndido parte das
maneiras/formas peculiares de comunicação das pessoas em situação de rua situadas nos
contextos particulares em que estava presente. É interessante ressaltar que, mesmo se tratando
de um espaço comum, a rua, a depender da área em que estejamos, é possível nos depararmos
51
com variações no repertório linguístico utilizado. Assim, fica claro que para compreender o que
se passa, fala e/ou se vivencia num grupo de pessoas em situação de rua é preciso se aproximar,
escutar e apre(e)nder os códigos linguísticos que são predominantes e constituem as interações
e/ou relações sociais no contexto onde estão.
De acordo com Woolgar (1988), a reflexividade diz respeito ao lugar em que nos
encontramos enquanto pesquisadores no momento em que desenvolvemos uma pesquisa. Aqui,
a postura do pesquisador e seu sujeito/objeto de pesquisa são objetos de análise e reflexão
constantes durante todo o processo de pesquisa. Para Íñiguez (2002), a reflexividade seria a
capacidade de poder explicar, dar conta do que está fazendo. Já a accountability é poder dar
conta daquilo que se faz, melhor dizendo, é uma consequência da reflexividade que se
desenvolve a serviço da interação das explicações dos acontecimentos aos quais se está
imbricado.
Para Woolgar (1988), outro aspecto importante é a inconclusividade, na qual o que é
produzido não finaliza nem esgota novas possibilidades de trabalho sobre o tema. É apenas uma
versão momentânea e/ou situacional de determinado contexto, que não tem a pretensão de ser
generalizado e/ou replicado, mas que demarca uma leitura.
Assim, tanto para Íñiguez (2002), como para Austin (1998), a ciência não se dá num
processo linear, mas em movimentos de idas e vindas constantes, nos quais as informações são
produzidas a todo instante, em qualquer lugar e a qualquer momento. Portanto, o interesse e
preocupação da ciência não deveria ser somente com o que foi produzido, mas como se deu
este processo de produção, dando visibilidade às possibilidades, contemplando as trajetórias
percorridas, as dificuldades e/ou desafios enfrentados etc.
Minha participação enquanto pesquisador se deu de forma efetiva, dada a minha
inserção no serviço enquanto profissional, o que, a meu ver, facilitou a aproximação junto aos
sujeitos que participaram da pesquisa. Portanto, a pesquisa aproxima-se da perspectiva
etnográfica (GEERTZ, 2008), já que esta possibilita múltiplas interpretações, leituras e
concepções de realidade, dialogando com o objeto de pesquisa e com a perspectiva teórica
adotada.
Segundo Geertz (2008), em trabalhos etnográficos, o pesquisador precisa adotar uma
postura de estranhamento para com o que se pretende pesquisar, aproximando-se de forma
afetiva e efetiva com intuito de compreender as peculiaridades e nuances destes contextos, e
não fazer inferências somente a partir de si, de seus próprios valores, crenças e conhecimentos
produzidos ao longo de sua jornada enquanto pesquisador e de vida.
52
Dessa forma, as implicações ético-políticas da pesquisa sugerem um compromisso e
responsabilidade social convergentes com as demandas oriundas da sociedade, visto que se
propõe à produção de conhecimento dialógico, coletivo, participativo que proporciona espaços
horizontais de fala e escuta a todos os participantes envolvidos sem distinção de classe, cor e
sexo, independentemente de sua condição e/ou situação atual.
6.2 Construcionismo Social e Psicologia: diálogos possíveis sobre o pesquisar
Longe de ser um movimento exclusivo da Psicologia, pode-se afirmar que o
Construcionismo Social tem tido relativo êxito em suas ações e ao que se propõe, pois tem
conseguido provocar discussões, reflexões e mudanças não somente no modus operandi no
âmbito acadêmico, como na própria sociedade e nas formas de conceber a realidade.
Para Ibañez (2009), as críticas e reflexões propostas pelo Construcionismo Social
ajudam a Psicologia a (re)pensar seu(s) objeto(s) e, posteriormente, pouco a pouco, a abandonar
certas ingenuidades herdadas da modernidade, possibilitando-lhe alcançar certo grau de
maturidade. Para ele (2009), o Construcionismo questiona e/ou desmantela as “ingenuidades
perigosas” que conduziram a psicologia a se constituir enquanto dispositivo autoritário. Vale
pensar: o que de fato nos garante a objetividade preconizada pela racionalidade científica
moderna?
A primeira ingenuidade seria a crença na existência da realidade independente de nosso
modo de acesso à esta. Para ele (2009), esta afirmação não faz sentido, já que a realidade
depende diretamente da maneira como nos referimos à ela, não existindo realidade alguma
independente dos meios que a acessamos. Neste caso, destaca-se o papel central da linguagem,
na constituição e/ou produção daquela (IBANEZ, 2009).
A segunda ingenuidade diz respeito à crença na existência de um modo de acesso
privilegiado sob nosso domínio, graças a objetividade, até a realidade tal como ela é. Ibañez
(2009) afirma que a ingênua adesão ao mito da objetividade é mais um exercício de ventriloquia
no qual pessoas que teriam o direito de falar são suprimidas pela sobreposição da fala de outros,
por sustentarem, se acharem e/ou defenderem uma posição privilegiada, de quem detém mais
conhecimento. Em outras palavras, o que se produz são diversos efeitos que engendram e
constituem relações de poder entre as pessoas.
De acordo com Ibañez (2009), o discurso do psicólogo está marcado pelas convenções
que este aceita e que não constitui mais que uma interpretação da realidade, dentre tantas outras
possíveis. Para o autor (2009), a realidade psicológica é uma construção contingente,
53
dependente de nossas práticas sócio-históricas, na qual o discurso do psicólogo desempenha
um papel fundamental na formação da realidade psicológica, assim como sua postura, opções
ético-políticas que orientam a sua prática.
Segundo Ibañez (2009, p. 239), “los efectos de la ingenua creencia em la objetividad
han constituido a la psicología en un dispositivo autoritario que dice a las personas la verdad
de su ser sin dejar outra salida más que la del acatamiento”. Ainda para Ibañez (2009), o
construcionista social questiona de forma radical a ideologia sobre a qual se sustenta a empresa
científica, que confere à razão científica um status ahistórico, indubitável e que a considera a
mais potente retórica sobre a verdade do e sobre o nosso tempo; ou seja, é instaurado um
combate com veemência aos efeitos de poder oriundos da retórica discursiva da verdade dita
científica. Portanto, é importante produzir psicologia a partir da prática da reflexividade,
descobrindo novas formas de saber/fazer, de modo que estejam em consonância com os
problemas, demandas e necessidades da sociedade, com vistas a possibilitar mudanças e
melhorias na qualidade de vida das pessoas.
6.3 Conversas no Cotidiano
Para Batista, Bernardes e Menegon (2014), basta olharmos um pouco para trás e
viajarmos na história que veremos que a ciência cartesiana, historicamente, foge das conversas.
Para eles (2014), os modelos racionalistas de ciência desconsideram “o prosear” e/ou “as
conversas” enquanto ferramentas metodológicas de investigação científica por acharem que
deixam a desejar no quesito objetividade.
Ao que nos parece, esta postura não é por acaso, mas tem relação direta com os objetivos
e/ou finalidades desta comunidade científica. No entanto, acreditamos que a utilização de
conversas no cotidiano enquanto ferramenta metodológica para pesquisa faz muito sentido, pois
estas são, desde sempre, protagonistas relevantes na e para produção de conhecimento.
Batista, Bernardes e Menegon (2014) argumentam que, desde a nossa entrada na
universidade, os princípios racionalistas cartesianos limitam as possibilidades de uso das
conversas, controlando-as, eliminando-as ou até mesmo negando-as nas relações entre os
participantes da pesquisa e os fenômenos estudados. O que se vê constantemente são tentativas
de conversas aprisionadas a objetos puramente tecnicistas, procedimentais e que restringem a
riqueza e potência oriundas de sua produção e/ou enunciação como, por exemplo, as entrevistas,
questionários, testes, etc.
54
Nesse sentido, pensar o saber e o fazer científico implica pensá-lo e fazê-lo em diversos
lugares, onde as práticas de produção de conhecimento não sejam restritas ao universo
acadêmico, mas, e sobretudo, que ultrapassem os muros da universidade. Assim, a valorização
de outros atores e saberes neste processo de produção é importante. Como já foi dito em alguns
momentos, a prática científica é uma prática social como qualquer outra; logo, práticas da
cotidianidade e informalidade também o são.
Ainda sobre isso, Batista, Bernardes e Menegon (2014) afirmam que “é necessário
valorizar os encontros e reencontros permeados pelas sociabilidades e materialidades
específicas de cada lugar. Em síntese, há de se adotar uma postura dialógica, articulada à ética
e à política, buscando romper com determinadas epistemologias clássicas“ (BATISTA;
BERNARDES; MENEGON, 2014, p. 104).
Batista, Bernardes e Menegon (2014) abordam cinco princípios norteadores para um
bom prosear e/ou conversa em pesquisa. São eles: dialogia; campo-tema; hipertextualidade;
cotidiano; longitudinalidade.
Princípio da dialogia:
O conhecimento produzido não está com o pesquisador nem com os sujeitos
pesquisados, mas surge na relação dialógica, sendo este produzido coletivamente através da
linguagem em uso e outros elementos que constituem as relações cotidianas.
Princípio do campo-tema:
De acordo Peter Spink (2003), o conceito de campo para pesquisa construcionista não
diz respeito a um lugar onde se realizará a pesquisa, portanto ele precisa ser redimensionado.
Nesta perspectiva, o pesquisador vivencia o campo e o tema sobre o qual se pesquisa a todo
instante e por onde quer que vá. O campo é sempre um tema (campo-tema), ou seja, é o nosso
próprio tema de pesquisa, o que nos faz estar em campo a todo o momento.
Desse modo, não faz muito sentido querer registrar as conversas, seja por áudio ou
vídeo, para provar que as mesmas existiram. O relato das conversas deve ser compartilhado a
todo instante entre pesquisador e demais participantes da pesquisa e seus registros ficam por
conta dos diários de campo. A familiarização com o cotidiano do campo-tema é fundamental.
Como fazer isso?
55
Princípio da hipertextualidade:
O foco das conversas é sempre reticulado. As conversas são produzidas a partir de
múltiplas vozes e conexões, em microlugares. Portanto, a pesquisa com conversas no cotidiano
tem como foco a vida comum/habitual, partindo de contextos específicos.
Princípio do Cotidiano:
Batista, Bernardes e Menegon (2014) apresentam alguns desafios em trabalhar com
conversas no cotidiano em pesquisa: 1. aproximar da ciência o dia a dia da pessoa comum; 2.
concentrar-se, manter o foco sobre o que se pretende pesquisar. São os ouvidos atentos aos
discursos sobre o campo-tema investigado que ocorrem em diferentes locais e não
necessariamente em microlugares destinados à pesquisa (BATISTA; BERNARDES;
MENEGON, 2014, p. 112); e 3. dificuldade de apresentação da proposta de pesquisa e do
pesquisador.
Princípio da longitudinalidade:
Diz respeito a estar atento aos diferentes tempos em que as conversas se constituem e/ou
são produzidas. É preciso que o/a pesquisador/a perceba que a longitudinalidade pode indicar
outros sentidos, por exemplo, em que sofrimento e dor estejam conectados ao tempo presente.
Assim, conversas no Consultório na Rua podem exigir mais que compreender a justaposição
das temporalidades, pois todos os momentos podem ser atravessados por eventualidades ou
histórias das mais diversas.
Por fim, os autores enfatizam que a postura do pesquisador em relação às pessoas com
as quais se conversa, de deixar claro quais são as suas intenções, convicções, posicionamentos
pessoais, ético-políticos pode tornar o diálogo mais simples, e isso pode favorecer a conversa.
Partilhamos destes princípios e da relevância das conversas no cotidiano à pesquisa social, não
por acaso apostamos nesse caminho na produção desta pesquisa.
6.4 Conversas Metodológicas
Utilizaremos de conversas no cotidiano para a produção de informações concordando
com o que afirma Menegon (1998) que as conversas são formas privilegiadas de interação
56
social e lócus de significação de conteúdos que circulam pela sociedade. Além disso, Menegon
(2000, p. 51):
por sua vez, situa as conversas como importantes ao estudo da produção de sentidos,
pois como linguagem em uso elas permeiam as mais variadas esferas de interação
social. Dessa forma, o trabalho com conversas no cotidiano implica posicionar as
pessoas participantes como protagonistas na construção do conhecimento.
Ferramenta indispensável ao processo de construção da pesquisa será o uso de diários
de campo, que ultrapassam a ideia de uma escrita para meros registros dos fatos ocorridos e se
mostra como ferramenta de tensionamento da experiência, registros das impressões,
sentimentos, sensações, observações, etc., que, segundo Diehl, Maraschin e Tittoni (2006),
envolvem/englobam três elementos principais: a escrita, o olhar e o percurso.
Para Diehl, Maraschin e Tittoni (2006), a escrita narrativa – e não somente descritiva –
força o pesquisador a se implicar com o campo de experiência, tensionando-a com esse mesmo
movimento. Esta postura permite ao pesquisador revivenciar as situações a partir do que se
escreve, possibilitando diálogos e reflexões futuras sobre as mesmas.
Diehl, Maraschin e Tittoni (2006) ressaltam a necessidade de um olhar diferenciado,
implicado, que concebe a realidade enquanto construção coletiva. Um olhar atento que
percebe/visualiza pequenas ranhuras e defeitos, e que é marcado pelos percursos que fazemos.
Estes, destituídos de neutralidade, nos quais nos posicionamos a partir do lugar em que estamos
e/ou ocupamos e enxergamos aquilo que se pode ver. Além disso, o olhar deve ser capaz de
possibilitar desestabilizações, questionamentos e tensionamentos às formas de organização
instituídas, sugerindo a criação de novas formas de organização dos espaços, sem impor ou
considerar somente a nossa visão de mundo enquanto pesquisador, mas sobretudo considerando
as dos demais sujeitos envolvidos.
Já o percurso deve contemplar em suas trajetórias os deslocamentos e paradas realizadas
durante todo o período que envolveu o trabalho. Percorrer, caminhar, experimentar lugares e
ferramentas distintas é imprescindível, assim como sair do lugar de sujeito suposto e saber o
lugar que muitas vezes ocupamos enquanto pesquisador, acadêmico ou profissional de nível
superior é fundamental (DIEHL; MARASCHIN; TITTONI, 2006).
Para Minayo et al (2011, p. 62), no contexto da pesquisa é possível fazer registros,
diários de campo simultâneos às atividades que acontecem no cotidiano, assim como é
pertinente a gravação de áudio e vídeo caso sejam autorizados pelos sujeitos e/ou grupo
pesquisados. Os recursos tecnológicos de registro de áudio e vídeo podem ser instrumentos
57
muito interessantes para registro, mas nada deve substituir o olhar curioso/atento do
pesquisador às trivialidades do cotidiano das relações sociais estudadas.
Desse modo, o trabalho de pesquisa se constitui como sendo o produto das relações
cotidianas que se estabelecem no curso da pesquisa; fruto das relações entre pesquisador e
sujeitos pesquisados/participantes. Destaca-se a confrontação com aquilo que é estranho ao
pesquisador como motivação/atração para se debruçar sobre o estudo e/ou a produção de
conhecimento.
Neste percurso, Minayo et al (2011, p. 68-69) destacam que na fase de análise e
interpretação das informações construídas é preciso manter um olhar atento e cuidadoso sobre
o material, no caso o diário de campo, que registrará as conversas.
Como recurso de análise para o material produzido, trabalharemos com análise de
categorias a posteriori. As categorias dizem respeito a elementos e/ou aspectos com
características semelhantes e/ou que se relacionam entre si. Podem ser utilizadas em qualquer
tipo de pesquisa qualitativa e têm como finalidade o estabelecimento de classificações, ou seja,
em torno de um conceito, incorporam-se elementos, ideias e/ou expressões (MINAYO, 2011,
p. 70).
Segundo Minayo et al (2011, p. 70), as categorias podem ser elencadas a priori − antes
de iniciar a própria pesquisa e/ou antes da produção de informações − ou a posteriori, após a
construção/produção de informações. Para a autora (2011), os pesquisadores deveriam definir
as categorias antes mesmo do trabalho de campo da pesquisa ser iniciada. Quando definidas a
posteriori, o pesquisador deve pensá-las e classificá-las a partir do que fora produzido no
trabalho de campo, podendo assim fazer comparações e/ou analogias com as categorias
definidas a priori e a posteriori. No caso desta pesquisa, as categorias foram definidas a
posteriori.
Para a análise das informações produzidas realizaremos uma análise por categorias a
posteriori (MINAYO, 2011), em que foram identificados conjuntos de temas relacionadas com
o objeto de estudo.
58
7 INFORMAÇÕES CONSTRUÍDAS: O QUE DÁ PRA FAZER NA RUA?
7.1 Conversas com Usuários do Consultório na Rua de Maceió
A ideia de trabalhar junto e/ou o mais próximo possível com os participantes envolvidos
com esta pesquisa, isto é, pessoas em situação de rua e/ou que se encontrem em vulnerabilidade
social e que eram, de alguma forma, assistidos pelo Consultório na Rua de Maceió, logo nos
trouxe preocupações em relação à sua factibilidade dado o contexto peculiar onde o serviço
acontece. Mas, ao mesmo tempo, havia grande interesse por parte deste pesquisador em
envolvê-los neste pleito, almejando ecos/reverberações que atestassem a existência de cada um,
as singularidades de suas histórias de vida, que contribuíssem de algum modo na luta pela
garantia de fato, de seus direitos e que possibilitassem, minimamente que fosse, alguma
melhoria às suas vidas e, por que não, melhores condições de trabalho ao próprio serviço.
Nesse sentido, a proposta deste capítulo é problematizar como foram constituídas as
conversas no cotidiano de um agente de ação social/redutor de danos/pesquisador e a equipe de
Consultório na Rua com alguns dos sujeitos atendidos pelo serviço. Para registro e produção de
informações foram construídos diários de campo por mim enquanto pesquisador, destacando
que, em alguns casos, contei com a participação direta das pessoas com as quais conversava.
Há alguns anos atrás, o diário de campo era utilizado com frequência pelas equipes de
CnaR como instrumento constitutivo do e para o trabalho. Atualmente, porém, pouquíssimas
pessoas mantêm a construção deste importante recurso em sua prática cotidiana. Estes
acreditam na sua potência para construção, reflexão e melhoria do serviço. Assim, no período
de agosto de 2015 até agosto de 2016, os diários de campo para esta pesquisa foram construídos
em campo, ou seja, nas áreas onde o Consultório na Rua atua, junto das pessoas com as quais
se conversava.
Não houve seleção prévia e/ou programada dos participantes. Durante os atendimentos
as pessoas eram consultadas se gostariam ou não de participar e/ou contribuir com a pesquisa.
A maioria dos participantes, oito dentre os treze, era do sexo masculino, retratando um pouco
da predominância do público masculino em situação de rua. À medida que a conversa se
desenrolava e/ou fluía, eu perguntava e/ou questionava se o que estavam afirmando e/ou
dizendo era aquilo mesmo, com a preocupação de não fazer um registro que não condissesse
com a fala e/ou a palavra daqueles que a estavam enunciando.
Dadas as circunstâncias adversas dos locais em que as conversas aconteciam, nem
sempre era possível finalizar a construção dos diários de campo in loco. Mas, depois de
59
organizado em forma de texto, eu retornava aos lugares onde havia conversado com as pessoas
para compartilhar como o diário havia ficado e saber dos participantes se o que tinha sido dito
era realmente o que estava escrito e estava sendo lido, se desejavam fazer alguma mudança,
modificação ou acréscimo ao mesmo. Somente em duas situações houve pedido para modificar
o que havia sido dito. Na verdade, os participantes quiseram acrescentar outros elementos que
não haviam sido contemplados na conversa anterior, o que só tornou o material ainda mais rico
e potente.
Vale destacar alguns aspectos cruciais neste percurso no que se refere ao duplo lugar
em que me encontrava, o de trabalhador/pesquisador ou pesquisador/trabalhador. O fato de já
ocupar um lugar no serviço e nas vidas das pessoas que mantive contato, ainda que profissional,
assim como elas também ocupavam um lugar na minha vida, pois já tinha uma relação de
aproximação, vínculo e confiança consideráveis com aquelas que aceitaram conversar,
participar e contribuir para o desenvolvimento deste trabalho. Isso me proporcionou uma
atmosfera extremamente favorável ao seu desenvolvimento. Penso que se estivesse em outra
condição, em que não tivesse contato com as pessoas atendidas, talvez enfrentasse certa
dificuldade para conversar sobre determinadas temáticas, por exemplo, de foro íntimo, da
história de vida particular e/ou pessoal de cada um deles, o que não me aconteceu.
O
lugar
híbrido
em
que
estive
(ora
trabalhador/pesquisador,
ora
pesquisador/trabalhador) exigiu conversas e traquejo cuidadosos tanto com os colegas de
trabalho como com os usuários atendidos. Logo no início do percurso da pesquisa, algumas
colegas de trabalho trouxeram inquietações e questionamentos sobre o tipo de pesquisa que
estava sendo feita, colocando-a em xeque e até mesmo duvidando de sua legitimidade,
credibilidade etc. Penso que isso ocorreu talvez por estas estarem ancoradas num modelo de
ciência hegemônico, de uma ciência dura, positivista, que se coloca muitas vezes num lugar de
saber supremo, que exige e segue protocolos rígidos e que lida com situações em laboratórios
e/ou espaços onde seja possível o controle de suas variáveis e/ou participantes e costuma falar
e tomar decisões pelas pessoas.
Como esta não era a fundamentação na qual me baseava para desenvolver a pesquisa,
compartilhei em alguns momentos conceitos caros ao Construcionismo Social e à Etnografia,
como a noção de sujeito/objeto, da realidade, ética dialógica, entre outros, no sentido de
sensibilizá-los, encantá-los e deixar claro de onde estava falando. Houve quem apreciasse a
ideia de trabalhar com e/ou junto dos usuários, na perspectiva que me propunha que era de
integrá-los à pesquisa de uma forma mais efetiva que outra pesquisas já realizadas com a
60
população em situação de rua, nas quais apenas se coletavam dados para analisá-los sem
garantias de um feedback/retorno e/ou benefício algum para os participantes.
Além disso, todas as vezes que surgiam dúvidas e questões, colocava-me à disposição
para quaisquer esclarecimentos e tentava conversar. Digo tentava porque, infelizmente, os
poucos momentos e/ou espaços (reunião de equipe semanal, pré e pós-campo diários)
reservados ao diálogo e à conversa entre os trabalhadores da equipe quase não estavam
acontecendo em função de dificuldades de relacionamento interpessoal entre os próprios, o que
acabava repercutindo diretamente na qualidade do serviço ofertado à população em situação de
rua.
Com o passar do tempo, as conversas, dúvidas e indagações por parte das colegas de
trabalho acerca de minha pesquisa foram desaparecendo, mas confesso que não sei até que
ponto a mesma fora compreendida/assimilada. O fato é que como pesquisador-conversador
segui trabalhando com meu campo-tema, realizando atendimentos, conversando, interagindo,
aprendendo e compartilhando saberes e informações com as pessoas que encontrava nas áreas
em que o serviço atua e, diga-se de passagem, era muito aguardado por muitas destas. Ficava
me perguntando: mas o que é mesmo que este serviço tem e/ou oferta que o faz ser tão esperado?
Já com os usuários, em todos os encontros o que se pôde perceber e sentir foi uma
imensa disponibilidade e desejo de contribuir para o que quer que fosse aquilo que estivesse
fazendo. A partir do momento em que obtive autorização do Comitê de Ética em Pesquisa
(CEP), foi explicitado aos usuários que, a partir de então, não somente estaria ali como
trabalhador do serviço, mas também como pesquisador. E, para a minha surpresa, pois pensei
que poderia haver alguma mudança de tratamento em relação ao contato estabelecido comigo,
não houve problemas.
Em uma das conversas, comecei a explicar que desde então estava vinculado à
Universidade Federal de Alagoas (UFAL), quais seriam as minhas atividades vinculadas à esta
instituição, que havia todo um cuidado de proteção, preservação e/ou sigilo da identidade de
cada um em função das informações que fossem compartilhadas e utilizadas/aproveitadas na
pesquisa (inclusive, a partir da leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE)
e o que era esperado com a pesquisa. Fui surpreendido com a fala e o posicionamento de alguns,
como se pode observar neste trecho:
61
Célia3: que história é essa de não colocar o meu nome no seu trabalho, meu médico4!
Quero que coloque, viu? Quem já viu? Pode colocar o meu nome!
Renaldo5: eu também quero que você coloque o meu nome. Até parece que não lhe
conheço, confio em você (DIÁRIO DE CAMPO, 27/07/2016, p. 03).
Nesta passagem já é possível perceber que existe uma relação de confiança, de vínculo
estabelecido comigo enquanto pessoa e trabalhador do Consultório na Rua. A intensidade da
relação cultivada diariamente, que lida com as pessoas na sua concretude, considerando suas
histórias e trajetórias singulares de vida, é explicitada de forma franca/espontânea, ou seja, sem
tempo para maiores reflexões, o que pode ser indicativo de um discurso sincero, dada a
confiabilidade depositada no profissional/pesquisador de trabalhar com e/ou manter os nomes
próprios deles quando utilizados nesta pesquisa mesmo tendo sido explicitado que isto não era
necessário.
Teriam eles decidido se manifestar dessa forma somente para me agradar e contribuir
com a minha pesquisa? Por alguns instantes, enquanto conversava com eles, questionei-me
bastante sobre isso, mas fui literalmente convencido de que não era disso que se tratava, mas
sim da demonstração do tipo de relação que havia se constituído com o passar dos anos
realizando os atendimentos, conversas, atividades, acompanhamentos e encaminhamentos; do
quanto eles confiavam em mim como profissional que os tratava de forma digna e respeitosa,
prezavam pelo que tinha sido construído e que, talvez por isso, não hesitassem em contribuir
com meu outro trabalho, no caso, esta pesquisa.
É importante frisar que como profissional do CnaR já não era nada fácil lidar com o
turbilhão de sensações e afetações oriundas dos contatos, abordagens, encontros e conversas no
cotidiano do serviço que explicitavam demandas das mais diversas e de alto nível de
complexidade. Isto se acentuava quando havia alguma perda, quando sabíamos que alguma das
pessoas que atendíamos tinha morrido.
3
Célia foi uma das pessoas que decidiu e/ou optou por explicitar seu nome e identidade verdadeiros para a
pesquisa, não se importando em omitir e/ou proteger os mesmos.
4
É comum quando estamos em campo, ou seja, nas áreas onde o Consultório na Rua atua, que alguns usuários nos
chamem pelo nome de categorias, formações e/ou profissões que não correspondam com a que exercemos no
serviço. Vale ressaltar que a medida que o contato é estabelecido com os usuários há uma breve apresentação
dos profissionais da equipe pelos seus nomes e cargo que ocupam, mas é compreensível que isto não seja
lembrado por todos. Interessante lembrar que na maioria das vezes em que os usuários se referem aos
profissionais chamando-os por formações/funções distintas das que possuem e exercem no Consultório na Rua,
sempre os chamam de médico ou de enfermeiro (Por que será?). Trata-se da herança da noção clássica do cuidado
em saúde vinculado a estas duas profissões e ao modelo hospitalocêntrico. Isso não é visto como um problema,
ao contrário, tenta-se partir disto para consolidação do vínculo e tratar das demandas que surgirem.
5
Renaldo também não quis omitir seu nome nem a sua identidade à pesquisa.
62
Lancetti (2015, p. 62) aponta para alguns cuidados que os profissionais precisam
considerar e/ou estar atentos: “a constante mudança de situações, ora repetitivas, ora explosivas,
as diversas crises que os profissionais acolhem, o encontro com histórias de vida terrificantes
ou situações de horror tornadas habituais ou banalizadas, exigem plasticidade psíquica e outro
olhar”.
Pretende-se, a partir dos registros em diários de campo das conversas no cotidiano com
os usuários atendidos pelo Consultório na Rua de Maceió, primeiramente, explicitar/visualizar
um pouco da maneira como estes usuários, considerados parte do que para Souza (2009)
constitui a “ralé brasileira”, falam do contato e/ou aproximação com o próprio Consultório na
Rua e demais serviços de saúde e assistência disponíveis. Em seguida, tentar-se-á dar ênfase
aos efeitos produzidos a partir dos contatos com o CnaR, partindo sempre das próprias
conversas no cotidiano que tive com estas pessoas no período de realização da pesquisa.
De modo a facilitar a visibilização e o seu entendimento criamos um total de quatro
quadros de análise, onde foram explicitadas algumas informações gerais dos participantes da
pesquisa e, posteriormente, foram identificadas temáticas a partir dos conteúdos que emergiram
nos
fragmentos/trechos
das
conversas
registradas
nos
diários
de
campo:
1. Breve caracterização das pessoas que aceitaram participar da pesquisa (APÊNDICE A):
Os quadros (A, B, C e D) foram pensados a fim de situar de forma panorâmica um pouco
da história dos 13 sujeitos/participantes deste trabalho. Nele constamo nome, sexo,
idade e apelido dos participantes, local de origem, se existe contato e/ou alguma
referência familiar, o(s) motivos de se encontrarem em situação de rua, os locais onde
costumam ficar, se fazem uso de álcool, crack e/ou outras drogas e o tempo estimado
em que estão nesta condição;
2. Temáticas identificadas a partir das conversas registradas nos diários de campo
(APÊNDICE B);
A identificação das temáticas foi realizada a partir da análise por categorias a posteriori
(MINAYO, 2011). A partir de várias leituras, atentas e cuidadosas, dos Diários de Campo foram
sendo identificadas as temáticas das conversas. A identificação das temáticas e a sua frequência
de aparição, ou seja, a quantidade de vezes que uma mesma temática apareceu na leitura e
análise dos diários de campo está resumida no Quadro 1, a seguir.
63
Quadro 1 - Temáticas identificadas e freqüência nos Diários de Campo
Temáticas
Frequência
Vínculo
17
Processo de Trabalho
12
Abordagem
10
Cuidado
10
Ida aos serviços
10
Confiança
6
Redução de danos
6
Relação com as drogas
6
Relação com a comunidade
5
Assistência Social
4
Respeito à opinião e/ou decisão do usuário
4
Uso de medicamento
4
Família
3
Autocuidado
1
Autonomia
1
Falta de estrutura
1
Gratidão
1
Integralidade
1
Preconceito/Discriminação
1
Relação com o sexo
1
Fonte: Elaborado pelo autor.
Para a seleção das temáticas a serem analisadas, levamos em consideração aquelas que
mais se relacionavam e/ou se aproximavam do objeto desta pesquisa. Dessa forma, as temáticas
isoladas anteriormente foram agrupadas em quatro conjuntos principais, visando facilitar a
visualização das temáticas para a análise:
1. Vínculo/Cuidado: Acolhimento; Cuidado; Abordagens; Atenção Integral; Escuta
Qualificada; Conversa; Respeito à decisão/opinião do usuário (a); Confiança; Vínculo;
64
Autonomia; Corresponsabilização; Autocuidado; Intersetorialidade; Redução de
Danos; Orientações em Saúde.
2. Acessibilidade aos serviços: Ida ao Hospital; Ida ao CAPS; Ida ao médico; Ida ao
Conselho Tutelar; Ida a UBS (Marcação de Consulta); Uso de Medicamento; Ida ao
Laboratório (realização de exames);
3. Preocupações com os processos de Trabalho: Planejamento; Burocracia; Modelo de
organização, funcionamento e/ou operacionalização das ações da equipe; Educação
Permanente/Formação continuada; Carro/Motorista/Transporte; Falta de estrutura
(insumos diversos, água, material lúdico-educativo).
4. Outros: Relação com as drogas (lícitas ou ilícitas); Preconceito/Discriminação; Relação
com o sexo; Relação com a família; Relação com a comunidade/território;
No tópico seguinte serão apresentadas análises, articulando cada um dos quatro
agrupamentos temáticos com alguns fragmentos dos diários de campo produzidos e,
posteriormente, faremos algumas considerações sobre o que foi discutido e/ou apresentado.
65
8 DISCUSSÃO – ANALISANDO AS INFORMAÇÕES PRODUZIDAS
8.1 Vínculo/Cuidado
[...] Eles me disseram tanta asneira,
disseram só besteira
Feito todo mundo diz.
Eles me disseram que a coleira e um prato de ração
Era tudo o que um cão sempre quis.
Eles me trouxeram a ratoeira com um queijo de primeira
Que me, que me pegou pelo nariz.
Me deram uma gaiola como casa, amarraram minhas asas
E disseram para eu ser feliz.
Mas como eu posso ser feliz num poleiro?
Como eu posso ser feliz sem pular ?
Mas como eu posso ser feliz num viveiro,
Se ninguém pode ser feliz sem voar?[...]
Djavan
Para Campos (2013), vínculo (termo de origem latina) significa aquilo que ata ou liga
as pessoas e possui sempre caminho de mão dupla. Para a produção de vínculo é necessário
movimentos tanto dos profissionais quanto dos usuários. Pelo lado dos profissionais, quando
estes possuem compromissos com a saúde do outro. Pelo lado dos usuários, quando estes
acreditam que a equipe poderá contribuir com sua saúde: “o vínculo começa quando esses dois
movimentos se encontram: uns demandando ajuda, outros se encarregando desses pedidos de
socorro” (CAMPOS, 2013, p. 68-69).
Campos (2013), ainda afirma que a construção de vínculo é um recurso terapêutico.
Segundo o autor, terapêutica seria uma parte fundamental da clínica que se desdobra a pensar
em estratégias e/ou ferramentas para minimizar as dores e/ou prevenir situações de possíveis
danos a pessoas em situação de vulnerabilidade e/ou com sua capacidade normativa reduzida.
Em uma das passagens descritas no Diário de Campo, quando estava junto a equipe de
trabalho realizei uma visita institucional a um usuário que estava numa clínica de internação
involuntária:
66
Pesquisador: E aí, como é que você está se sentindo?
Hércules: Não tô mais suportando ficar aqui, neste lugar. Aqui o que faço é assistir
filmes, jogar video-game (quando deixam), dominó, baralho, de vez em quando um
rachinha de futebol, rezo e ajudo nas atividades da casa. Não era isso só isso que
gostaria de fazer, fico impaciente. To me sentindo muito impaciente e insatisfeito. Já
to aqui nessa casa tem quatro meses, não to agüentando mais fazer as mesmas coisas
todos os dias. Você me entende? Quero e preciso fazer outras coisas e aqui, ficam nos
vigiando o tempo todo, mas ao mesmo tempo parecem não estar nem aí para o que eu
e os outros meninos falamos pra eles. Parece que eles só estão interessados no dinheiro
que recebem por a gente estar aqui, é o que eu acho (DIÁRIO DE CAMPO,
30/08/2016, p. 03-04).
Assim que o avistei, notei o seu semblante cabisbaixo, parecia estar insatisfeito e
querendo falar algo. O monitor da casa ficava quase que a todo instante presenciando e
participando da conversa que a equipe tentava ter com Hércules no momento da visita. Penso
que tal fato, inviabilizava Hércules de falar algo que quisera, gostara e/ou necessitara dizer para
nós, mas não para o monitor da casa.
Percebendo tal situação, convidei-o a caminhar comigo e outra colega de equipe pela
área verde presente no lugar para que pudéssemos conversar um pouco mais à vontade.
Enquanto isso, as outras duas colegas de equipe ficaram distraindo o monitor da casa.
Peripatetismo! Para Lancetti (2014, p. 19) “conversações e pensamentos que ocorrem durante
um passeio, caminhando – peripatetismo – são uma ferramenta para entender uma série de
experiências clínicas realizadas fora do consultório”. Quer dizer, uma clínica que se faz em
settings nada tradicionais, assim como o são os contextos de atuação das equipes de Consultório
na Rua e que se mostram ricos às formas diversas de produção de cuidado.
É importante frisar que Hércules vivia em situação de rua desde os oito anos de idade e
que a equipe passou a ter acesso e/ou acompanhá-lo de alguma forma somente quando já tinha
de treze para catorze anos. Distante de suas referências familiares, Hércules, que nasceu com o
vírus do HIV, se desenvolveu nas ruas da parte alta da cidade de Maceió e era de se admirar a
força, resiliência e capacidade que demonstrava para viver em condições tão adversas e
enfrentar diversas dificuldades.
A oferta de cuidado que a equipe de CnaR apresentava à Hercules era pautada,
sobretudo, no diálogo e no respeito à sua condição. Isso parecia soar estranho para ele, já que
as outras possibilidades que lhe apareceram sempre prezavam pela sua retirada direta das ruas
67
para o único abrigo municipal infanto-juvenil da cidade, do qual fugira diversas vezes por não
suportar ficar tanto tempo “preso”6 em um local cheio de regras.
Assim, a rua para ele era a sua casa, um lugar de abrigo, de liberdade, onde conseguia
voar livre como um pássaro para o lado ou na direção que quisesse em busca da sua felicidade.
Na rua, Hércules construiu parte de sua vida, conheceu pessoas, fez amizades, criou vínculos e
os cultivava da maneira como podia.
No início, a aproximação e as conversas com Hércules não costumavam ser demoradas,
pois quase sempre que o encontrávamos ele estava trabalhando nos semáforos e/ou fazendo uso
de crack. Devido às experiências anteriores com os serviços que tentaram se aproximar dele
não terem sido agradáveis, ele não nos dava muita conversa. Em alguns momentos chegou até
a correr da equipe do CnaR, com medo de que nós fôssemos levá-lo à força a algum lugar.
Visando romper com estes e outros estigmas, heranças de práticas de cuidado e
assistência um tanto controversas, as abordagens do CnaR, em sua grande maioria, atuavam
sob a perspectiva da Redução de Danos, logo, com respeito ao modus vivendi de cada uma das
pessoas das quais o serviço se aproximava.
Para isso procura construir uma aproximação cuidadosa no sentido deadequar as ações
a serem desenvolvidas, priorizando a abordagem a partir doestabelecimento de
vínculos de confiança, na busca de constituir uma interlocuçãosingular com os
usuários. Nesse sentido, a tecnologia essencial do trabalho é construídaa partir da
relação que a equipe mantém com cada indivíduo na rua, privilegiando a
particularidade de cada um. Os profissionais realizam uma escuta sensível sobre a
situação atual e as histórias de vida dos usuários, ajudando-os a refletir e tentar
encontrar caminhos alternativos de acordo com seus desejos (BRASIL, 2010, p. 1314).
Acreditamos que para alcançar uma clínica ampliada de qualidade é necessário buscar
o fortalecimento dos vínculos entre usuários, famílias, comunidade com a equipe e os serviços
de saúde, enfatizando a importância de estarem cada vez mais próximos uns dos outros, em
constante diálogo e que este flua de forma horizontalizada, em que seja possível compartilhar
questões, dúvidas e saberes sobre saúde e outras áreas nas quais tenham interesse de discutir
(CAMPOS, 2013).
O trecho da conversa com Hércules nos mostra, infelizmente, que a depender do serviço
e profissionais, as ofertas de cuidado e/ou tratamento em saúde poderão ser bem diferentes, e
6
A palavra “preso” foi utilizada diversas vezes por Hércules e outras pessoas acompanhadas pelo CnaR quando
queriam se referir ao sentimento de ficar num local com regras muito rígida que as pessoas não tinham o hábito
de seguir e às quais não se adaptavam. Assim, estas não pareciam fazer muito sentido para eles, já que viviam
num contexto bem diferente, com regras muito díspares das que as instituições pelas quais passavam tentavam
lhes impor.
68
até caminharem literalmente na contramão da proposta de cuidado e, em alguns casos, serem
completamente antagônicos.
Todas as vezes que tive a oportunidade de visitá-lo na clínica de internação involuntária
não encontrei nenhum outro profissional de saúde do local, além do monitor da casa, que é um
ex-usuário de crack (a priori, isto não se configurava um problema). Este era sempre muito
atencioso conosco e, é preciso ressaltar, considerando as suas limitações técnicas no que pese
a maneira de lidar com a questão do uso de drogas e as que a própria casa lhe impunha, fazia o
máximo que podia (da sua maneira, ou melhor dizendo, da maneira como as regras da casa
ditavam, claro) para ajudar os meninos que lá estavam internos.
Quando questionado sobre a presença dos profissionais de saúde que trabalhavam na
casa, o monitor dizia que eles estavam na casa todos os dias, no período da manhã. Mas,
segundo relato de Hércules, quando apareciam, era somente uma ou duas vezes na semana e
não demoravam muito. Assim, fica evidente a ausência de um planejamento e/ou projeto
terapêutico singular, construído com a participação efetiva de Hércules e que dispusesse de um
repertório variado de atividades que fizessem sentido para ele e para sua vida.
Entre as regras da casa estavam alguns rituais de cunho religioso e todos os internos
eram obrigados a rezar em momentos específicos, normalmente, antes das refeições. Aquele
que se negasse a participar dos momentos de orações era advertido e/ou punido explicitamente,
podendo até ficar isolado num quarto por um tempo, além de ser obrigado, mais uma vez, a
reconhecer o ato como erro perante o profissional responsável pela casa presente no momento
do ocorrido e diante dos demais internos. Fico a me perguntar, qual a ideia de cuidado e
tratamento em saúde que orienta estas práticas? Ou melhor, isso pode ser considerado cuidado
em saúde? Como lugares como este conseguem autorização para funcionar?
Este tipo de estabelecimento não atende às necessidades daqueles que se propõem a
receber algum tipo de cuidado e/ou tratamento de saúde. Não há espaço para aceitação do
sujeito tal como ele é, ao contrário, ele tem sua singularidade destituída. Nesse sentido,
concordamos com o que afirma Lancetti (2014, p. 72): “não posso chamar isso de processo
terapêutico, porque ele é contra a autonomia, ele não aceita o sujeito como ele é”.
Ao nos confidenciar os acontecimentos dos bastidores do espaço onde estava há mais
de quatro meses, Hércules rearfimava o tipo de vínculo que existia entre nós (ele e alguns
profissionais da equipe de CnaR) e que a franqueza estabelecida desde o início da aproximação,
mostrando-nos disponíveis para escutá-lo e atendê-lo, sem infantilizá-lo e sem fazer falsas
promessas, partindo daquilo que ele mesmo trazia, foi preponderante a consolidação do tipo de
69
relação e do vínculo que se constituiu e, consequentemente, dos efeitos destes a ele e ao estilo
de vida que levava.
Outro trecho do Diário de Campo:
Hércules: se não fossem vocês atrás de mim, me procurando, tentando me ajudar,
tentando conversar comigo, não teria começado o tratamento lá naquele hospital
grande. Também não tinha conseguido ficar tanto tempo sem fumar o Crack. Olhem
como tô agora! Vocês jamais desistiram de mim, mesmo quando eu não queria papo,
não dava atenção e tratava vocês sem nenhuma educação (DIÁRIO DE CAMPO,
30/08/2016, p. 03-04).
Neste trecho fica explícito que, para que o trabalho aconteça, é preciso paciência e
persistência, pois as coisas poderão não acontecer como e quando gostaríamos. E isso não quer
dizer em medida alguma que seja algo ruim, é apenas o indicativo de que ainda há muito para
ser construído e investido na relação com os sujeitos que pretendemos assistir. Ainda que se
escutem muitos “nãos” neste processo, não se deve desistir jamais, nem sob hipótese alguma,
de ofertar ações e/ou orientações de cuidado em saúde in loco, mas é preciso estar atento e
considerar o tempo de cada sujeito. Tal situação nos remete ao que Lancetti (2015, p. 63) aponta
sobre a postura do terapeuta:
Ele, em primeiro lugar, curiosamente busca o corpo do seu interlocutor, se aproxima,
escuta, olha, toca... e uma vez iniciada essa relação se dispõe às mais diferentes
reações: de desconfiança, de amor, de ódio ou busca de uso, de dependência e de
autonomia.
À medida que é feita esta aproximação, embasada numa escuta minuciosa, no respeito
à condição de existência do sujeito com o qual se relaciona, aos poucos é possível e, aqui sem
pressa alguma, conquistar a sua confiança, sem a qual não teríamos como firmar o vínculo
necessário para favorecer abordagens e/ou conversas mais abrangentes não só sobre questões
de saúde, mas de áreas afins, temas diversos de seu interesse, da vida etc.
Em alguns dos momentos em que o estado de saúde de Hércules estava crítico, quando
algumas partes de seu corpo apresentavam feridas visíveis e − somado aos relatos das outras
pessoas em situação de rua, as quais compartilhavam o estado de saúde em que ele se
encontrava −, os profissionais do CnaR intensificaram as buscas e abordagens a ele e, após
várias tentativas sem sucesso, o mesmo aceitou ajuda do CnaR. Cabe ressaltar que ele já não
estava mais conseguindo andar nem ficar de pé e sentia muitas dores por todo o corpo.
Após breve conversa com a equipe, Hércules aceitou ser encaminhado ao SAE do
Hospital Escola Dr. Hélvio Auto, antigo Hospital de Doenças Tropicais (HDT), mas antes de o
acompanharmos, pediu-nos que não o abandonássemos, perguntou se poderia sair quando
quisesse, porque iria sair de lá ão logo estivesse se sentindo melhor para retomar a fazer as suas
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atividades cotidianas. Naquele momento, não havia o que rebater e/ou discutir com Hércules,
pois ele pedia socorro e estas eram as condições dele para ser ajudado.
O que Hércules traz em sua fala e o fato de ter reavaliado e, em alguns momentos, até
diminuído o consumo de crack, experimentado e incorporado novos hábitos ao seu dia a dia,
mesmo estando em condições extremamente adversas para o seu crescimento e
desenvolvimento, tem relação direta com a aproximação e movimento incansável dos
profissionais da equipe de CnaR que, como ele mesmo afirma, jamais desistiram dele.
Confome o encontrávamos nas ruas e o víamos tomando e/ou carregando consigo uma
garrafinha de água, alimentando-se numa das várias barraquinhas de doces e salgados existentes
no local onde costumava ficar, parando para tomar o medicamento para controle da carga viral
do HIV na barraquinha da sua “tia preferida”, percebíamos que algo tinha sido modificado,
pequenas mudanças de hábitos, que outras necessidades e/ou preocupações passaram a existir
e fazer sentido em sua vida em meio a tantas outras que existiam.
E aqui, longe de querer atribuir ao CnaR a responsabilidade pelas mudanças que
Hércules fora fazendo e adquirindo ao longo do tempo, não dava para negar que o trabalho da
equipe de CnaR tinha contribuído para que isso acontecesse. Mas, toda e qualquer mudança de
hábito com objetivo de ampliar e/ou melhorar a sua qualidade de vida, por mais simples que
fosse, só aconteceu porque ele, Hércules, havia se oportunizado, se permitido ser, e foi, o
protagonista da sua história.
Na relação de aproximação, de construção de vínculo e confiança na qual os
profissionais do Consultório na Rua apostam suas ações, é enfatizada a noção de respeito à
opinião e/ou tomada de decisão dos sujeitos, garantindo-lhes lugar de protagonista da sua
história, de participação efetiva em diversos momentos de escolhas cruciais, seja no que toca
ao cuidado em saúde e/ou à sua vida de maneira geral.
Em outro diário de campo, com outro usuário:
(Pesquisador): Mas, queria entender uma coisa, por que você procurou a equipe de
Consultório na Rua e não os outros serviços pelos quais o senhor também já passou?
Cícero: É que eu sei que com vocês eu posso contar. A verdade é que confio em você
e no trabalho da sua equipe mais do que em qualquer outro serviço, mesmo sabendo
das dificuldades e problemas que vocês têm com transporte, materiais e outras coisas.
Mesmo assim, vocês sempre cumprem e honram com a palavra que me dão e com o
que a gente combina, não ficam me prometendo coisas e me enganando, como se
tivessem lidando com uma criança. Graças a vocês também pude entender que preciso
ir em outros serviços para poder continuar o meu tratamento (DIÁRIO DE CAMPO,
30/08/2016, p. 03-04).
Neste dia Cícero caminhou mais ou menos dois quilômetros debaixo de um sol
escaldante, da casa de seu irmão até a UBS à qual a equipe de Consultório na Rua está vinculada
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somente para nos pedir ajuda. Para realizar um movimento deste tipo, sob as condições
descritas, com certeza não devia estar se sentindo nada bem. Somente pela distância que
percorreu penso que poderia ter agravado ainda mais o que sentia e passado mal no caminho.
Ele relatou estar tendo inúmeras dificuldades durante o dia e a noite devido aos diversos
sintomas e/ou crises que tem apresentado em função da relação que possui com o álcool e com
o lugar que este ocupa em sua vida. Vale refletir um pouco: o que faria um sujeito fazer um
percurso deste tamanho, a pé, em busca de ajuda com uma equipe de CnaR?
As conversas que tive com Cícero e sua família sempre foram muito sinceras no sentido
de lhe ofertar somente aquilo que o serviço tivesse condições de cumprir e que contava com a
sua participação/colaboração. Além disso e, tão importante quanto, com o espaço que nos foi
dado, penso que muito por causa da postura adotada pelos profissionais do CnaR, foi possível
discutir com ele e sua família temas de seu interesse, sem infantilizá-lo e reprimi-lo, deixandolhe que falasse livremente sobre si e sobre o que gostaria de fazer e/ou que acontecesse consigo.
O movimento que Cícero fez em busca de ajuda falava do tamanho de sua necessidade,
que naquele momento era bem maior do que a oferta que a equipe de CnaR poderia lhe fazer
de imediato em função da própria estrutura que dispunha. Apresentando fortes crises de
tremores nos membros superiores e inferiores, assim como alguns delírios e alucinações,
buscava minimizar e/ou controlar estes sintomas, o que poderia ser iniciado na própria UBS em
que estávamos a partir de uma consulta com o psiquiatra, mas este não estava trabalhando neste
dia.
Noutro momento, Cícero foi acompanhado e encaminhado à ala de saúde mental de um
hospital geral do estado que fica no município de Rio Largo, a pouco mais de 20 km de Maceió.
Voltou alegando estar se sentindo melhor, mas o fato é que para conseguir estabilizar e/ou
controlar os sintomas dos quais se queixava, e que eram visíveis, precisaria dar continuidade
e/ou investir ainda mais em estratégias de cuidado para consigo.
Apesar de Cícero ter pressa, penso que o vínculo e a relação de confiança construído
com a equipe são trazidos de maneira eloquente em sua fala, assim como os seus efeitos no
cotidiano. Isso porque, ao sair do local onde mora, em busca de ajuda, mesmo sabendo das
limitações do serviço, ele compreende o fato de não podermos ajudá-lo de imediato e, através
da conversa, pensamos e construímos possibilidades de ação de acordo com o que era possível
fazer, dentro das condições atuais do serviço, da equipe e dele próprio.
Como bem dizia Canguilhem (2011), ninguém melhor do que o próprio sujeito para
falar sobre si mesmo e/ou sobre o que está sentido. Em diversas conversas e abordagens a
Cícero e aos usuários em situação de rua e/ou que se encontram em vulnerabilidade social muito
72
se espera dos profissionais, que eles falem o que e como fazer para melhorar a sua condição de
vida. Atenção! Pois este pode ser um momento perigoso caso o profissional ocupe o lugar
daquele que sabe ou do sujeito que supõe saber. Mas, ao mesmo tempo, pode ser uma ótima
oportunidade para fazer intervenções de incentivo e/ou sensibilização à autonomia,
autocuidado, corresponsabilização e protagonismo.
A corresponsabilização dos atores envolvidos na produção do cuidado em saúde é
condição sine qua non para se pensar em desenvolver um Projeto Terapêutico Singular (PTS)
de sucesso e/ou exitoso. Para Antônio Nery Filho (2015, p. 18), o Projeto Terapêutico Singular
é “uma flecha propulsora, mas para ser certeira precisa contar com o conhecimento e a
participação dos usuários. Só pode ser construído com eles.”
Faz-se necessário ressaltar que de dentro do Consultório na Rua, e aqui me remetendo
à rotina dos profissionais, é possível perceber claramente que a construção de vínculo é um
processo demorado, trabalhoso, construído mediante os encontros que vão acontecendo
gradativamente, nos campos e territórios de atuação, de muitas idas e vindas, encontros e
desencontros, apostas, assim como de insucessos e frustrações.
O que Cícero expressa em sua fala e os movimentos que fez em busca de cuidar de si
podem ser considerados efeitos provocados a partir, durante e após o contato/aproximação com
o CnaR. Antes desta aproximação não costumava destinar tempo para fazer coisas diferentes
das que fazia nem tampouco pensar em si e, principalmente, em sua condição de saúde. O
estreitamento com a equipe de CnaR escancarou as possibilidades ofertadas pela RAPS do
município, mostrou-se parceira e o convidou a refletir e (re)organizar suas práticas, dando-lhe
o auxílio que precisasse e que estivesse ao nosso alcance naquele contexto.
Contudo, há que se destacar e enfatizar sobretudo a sua grande participação, força,
persistência, compromisso e abertura aos diálogos e àquilo tudo de novo que se permitiu viver,
construir etc. Bastante introspectivo, agora compreendendo a necessidade de frequentar os
outros serviços, efetivou isso na prática, passando a ir de forma autônoma ao CAPS AD da
cidade por um tempo, mesmo com muito receio da maneira como ia ser tratado, de ser mal
atendido ou algo do tipo, em função de ter tido experiências desagradáveis com alguns serviços
no passado.
Já neste trecho do Diário de Campo, outro usuário, George, vai dizer o seguinte:
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George: Todas as vezes que vocês chegam aqui onde a gente tá sinto muita alegria e
felicidade porque a equipe de vocês se importa, se preocupa de verdade comigo e com
os outros daqui. Quando vocês passam muito tempo sem vim aqui ver a gente, eu e
outros colegas ficamos tristes e sentindo falta da presença de vocês. Das conversas e
atividades também. Agradeço a todos da equipe de vocês por terem me acompanhado
em tantos momentos difíceis no Posto de Saúde, no HGE, CAPS AD, Comunidade
Acolhedora. Sem vocês, não sei nem se teria sido atendido. Obrigado! (DIÁRIO DE
CAMPO, 10/08/2015, p. 03-04).
Na passagem acima, George relata um sentimento de gratidão pela preocupação
demonstrada, ora pelo empenho e dedicação nas atividades que a equipe se propõe a fazer e/ou
realizar junto dele e dos demais atendidos pelo serviço, ora pela relação de vínculo efetivo que
se evidencia e se mostra cada vez mais potente quando não se exige e/ou não há imposição de
condicionantes para que esta aconteça e/ou exista, a exemplo do que é feito em vários serviços
de saúde, assistência social etc.
George é um sujeito sensível e que se emociona facilmente, às vezes bastava a equipe
de CnaR se aproximar dele sem falar uma palavra sequer e ele já começava a chorar. A priori
esta situação nos preocupava porque pensávamos que estava passando mal ou precisando de
algo. Mas, com o passar do tempo e no desenrolar dos atendimentos o choro passava, ele
conseguia se expressar e nos relatava que o choro era de alegria pela presença da equipe de
CnaR. É uma das pessoas do grupo em que fica que mais interage com os profissionais do
CnaR, que gosta de conversar e compartilhar coisas de sua vida, família e filho.
George tinha alguns familiares próximos de onde costumava ficar, mas passava a maior
parte do tempo junto ao grupo em situação de rua no qual parecia estar à vontade e/ou se sentir
em casa. O Grupo do qual fazia parte consumia bastante álcool. Era comum ouvir notícias de
que ele tinha tido crises epilépticas na noite anterior ou pouco tempo antes de chegarmos para
atendê-los. Assim, houve dias em que a equipe o atendia em campo. Ele passava mal na nossa
frente, tinha uma crise e o acompanhávamos ao mini pronto socorro para que pudesse receber
o atendimento e medicação para conter e/ou minimizar o que apresentava.
Algumas crises eram tão fortes que George caía no chão, chegando inclusive a machucar
partes do seu corpo como a cabeça, mãos e braços. Alguns profissionais da equipe de CnaR
faziam-lhe (e a todas as outras pessoas que estivessem por perto) orientações no sentido de que
se algo do tipo parecesse querer retornar a acontecer, ou se de fato acontecesse com ele e/ou os
demais, buscassem ajuda no mini pronto socorro próximo de onde ficam, há menos de cem
metros, no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) ou até mesmo com pessoas
da própria comunidade que estivessem passando pelo local onde estivessem.
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O fato é que George tinha muita dificuldade para pedir ajuda às pessoas com quem
ficava na rua. Pelo fato de já ter buscado atendimento no mini pronto socorro, ter demorado
para ser atendido e, ainda por cima, ter sido mal atendido, decidiu não ir mais sozinho. Este não
era um relato exclusivo dele, mas que se estendia a grande parte das pessoas em situação de rua
e/ou em vulnerabilidade social que a equipe de CnaR atendia e/ou atendeu. Mas, a partir do
momento que conheceu o trabalho da equipe de CnaR, como afirma no seu próprio relato, as
andanças foram muitas, encaminhamentos e acompanhamentos para diversos serviços que já
tinha desistido de frequentar. Os espaços de produção de saúde que deveriam funcionar na
perspectiva de acolhimento incondicional às pessoas em situação de maior vulnerabilidade
social simplesmente operavam numa lógica perversa, dificultando o atendimento pela ausência
de documento e reforçando ainda mais velhos estigmas presentes na nossa sociedade.
No entanto, o contato e as conversas quase que diários com a equipe de CnaR provocou
George a repensar sua postura em relação a não ida aos serviços de saúde e assistência
“disponíveis” na rede . Após alguns atendimentos, ele decidiu ir acompanhado da equipe de
CnaR, que lhe prometera acompanhá-lo durante todo o atendimento, e assim foi feito diversas
vezes. Os profissionais com os quais mais conversava, orientavam-lhe e sensibilizavam-lhe
para que sempre que quisesse e precisasse fosse à UBS, CAPS ou a qualquer outro serviço,
pois não estava pedindo um favor, era um direito que tinha como cidadão.
No entanto, para George, as coisas não eram e não funcionavam tão simples assim. Até
porque o vínculo que tinha era com a equipe de CnaR, que o escutava, conversava, discutia,
orientava, acompanhava e encaminhava, mas infelizmente esse vínculo não se estendia aos
demais serviços (Por quê?). A relação de confiança fora fundamental para discutir
possibilidades de intervenção diante do seu caso e contexto, mas sempre houve uma
preocupação especial em relação à sua autonomia enquanto sujeito, protagonista de sua vida e
do seu cuidado, tendo em vista que se referia muito à equipe de CnaR para qualquer necessidade
que tivesse.
A partir dos relatos de Hércules, Cícero e George destacamos a necessidade de se
considerar os elementos variados que constituem as suas histórias e trajetórias de vida, assim
como a dimensão subjetiva de cada um à construção do vínculo. Desse modo, depreendemos
três questões básicas, além de outras, para a importância do vínculo: autonomia e protagonismo,
corresponsabilização e envolvimento da equipe.
No caso de Hércules, desde a aproximação inicial nas ruas até a criação, consolidação e
manutenção do vínculo com o CnaR e alguns profissionais do serviço, percebeu-se que o grau
de envolvimento se expandiu, possibilitando intervenções e/ou diálogos mais intimistas em
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função da aceitação e respeito da condição momentânea em que se encontrava. Sendo possível,
desde então, não somente sensibilizar a autonomia e protagonismo, como também pactuar e
corresponsabilizá-lo nos momentos de tomadas de decisão referentes à produção de cuidado
em saúde e às outras áreas de sua vida.
Mesmo não estando em situação de rua, Cícero estava imerso num contexto de
vulnerabilidade social que o assolava e do qual se via refém, pois não conseguia parar nem
diminuir a quantidade de álcool que ingeria diariamente, o que lhe provocava diversos sintomas,
medos e angústias. A aproximação e/ou contato com o CnaR teve função catalisadora porque.
através das abordagens e conversas no cotidiano, sensibilizou e estimulou Cícero para questões
de cuidado em saúde que até então pareciam estar adormecidas, negligenciadas e/ou que sequer
tinham importância para o estilo de vida que levava.
O percurso traçado até a construção do vínculo se deu de forma gradativa, respeitou o
seu tempo, movimento, contexto e só foi possível porque contou com a sua participação efetiva
nos encontros quase que diários, nos quais, a todo instante, era chamada a atenção para
necessidade de corresponsabilização das ações e/ou do cuidado em saúde desenvolvido junto à
equipe de CnaR e/ou qualquer outro serviço acessado, seja este de saúde, assistência social etc.,
pois de outro modo seria inviável promover um cuidado integral.
O caso de George chama atenção para o seu envolvimento com a equipe de CnaR, na
qual depositava bastante confiança. Destaca ainda alguns pequenos ganhos obtidos a partir
deste contato, construídos a base de muito cuidado e conversa no cotidiano, e que estes não
aconteceram da noite para o dia. Mas, ao mesmo tempo, aponta para o cuidado que os
profissionais de saúde, assistência etc. devem ter em relação às expectativas que são criadas por
conta do contato estabelecido e das ofertas de cuidado que lhes são feitas, visto que ele possui
um modo de funcionamento singular. Estas singularidades que performam o sujeito devem ser
compreendidas e consideradas não somente porque favorecem à construção do vínculo, mas
porque são a base para pensar em possibilidades de intervenção coerentes e/ou voltadas à sua
realidade/situação atual.
Assim, Cunha (2004) destaca que para a realização de um cuidado clínico eficaz é
preciso levar em conta a subjetividade de cada sujeito. Pois, de outra forma, ele se torna
inviável, assim como o seu Projeto Terapêutico Singular (PTS). Se os profissionais não
considerarem e entenderem as variáveis que possivelmente podem estar produzindo os
problemas de cada usuário (a) e, se ele não se vir e/ou reconhecer no PTS, dificilmente este
avançará e produzirá efeitos que façam sentido à sua vida.
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No nosso modo de ver, o cuidado do qual fala Cunha (2004) trata indubitavelmente
daquilo que constitui parte do trabalho dos profissionais do CnaR, que é baseado numa relação
de confiança, que fortalece nos encontros diários o seu lastro e favorece, a partir do diálogo, a
criação de novas possibilidades de intervenção, cuidado, autocuidado etc. Nesse sentido, o
vínculo não é opção, mas condição para que seja possível não somente pensar, mas desenvolver
e viver um cuidado em saúde entre população em situação de rua e/ou em vulnerabilidade
social, profissionais, comunidade etc.
8.2 Acessibilidade aos Serviços
A minha casa está onde está o meu coração
Ele muda, minha casa não
No campo, em minas, terras gerais ou qualquer lugar
Onde estou, a minha casa está
Porque que eu sou apenas movimento
Sou do mundo, sou do vento
Nômade
Porque quando paro sou ninguém
Não declaro onde ou quem
Nômade
A minha carne é feita de tudo que vai e vem
Tempo, nuvem, aflição também
Encontro e perda ao mesmo tempo, eu não vou parar
Onde estou, a minha casa está
Porque que eu sou apenas movimento
Sou do mundo, sou do vento
Nômade
Porque quando paro sou alguém
Sou do espaço, sou do bem
Nômade
Samuel Rosa e Chico Amaral
Vejamos estes dois trechos de diário de campo:
Célia: os outros serviços não me recebem bem sem a presença de um profissional da
equipe do Consultório na Rua. É como se o que tivessem fazendo fosse um favor,
sabe? Na maioria das vezes que precisei ir, senti que a minha presença incomodou
aqueles profissionais de lá. Já cheguei a procurar a UBS algumas vezes com o meu
Nego (Companheiro), tava com muita dor no corpo e com a cabeça rodando, mas
fiquei passada como falaram comigo. Os profissionais me trataram muito mal,
fazendo caras feias, passando a mão por cima do nariz, falando que tava fedendo e
que ali não era lugar para eu estar nem ser atendida. Teve uma outra vez que uma
profissional me disse que para eu ser atendida teria que tomar um banho antes de
entrar no consultório, pois o médico não me receberia da forma como eu estava. Dá
pra você, filho? Me diga como é que vou para um lugar como este sem um de vocês?
Eles (os profissionais dos serviços) não me respeitam! (DIÁRIO DE CAMPO,
10/08/2015, p. 05).
Pesquisador: Célia já foi acompanhada por diversas vezes à UBS e a outros serviços
de saúde (Instituto Oftalmológico de Alagoas – IOFAL, Centro de Reabilitação Visual
– CERVI, Hospital Geral do Estadoo – HGE, CAPS AD) e assistência social (Casa
de Passagem), assim como também fora conversado e explicitado a importância dela
77
e dos demais usuários acompanhados pelo CnaR se dirigirem aos espaços de cuidado
e assistência integrais com ou sem a presença de um de nós, pois ter acesso e receber
os devidos cuidados não é nenhum favor e sim um direito, mas a mesma relata
bastante dificuldade para se dirigir a estes espaços sem a presença de um dos
integrantes da equipe do CnaR. Porque será? (DIÁRIO DE CAMPO, 10/08/2015, p.
05-06).
Célia reclama do tratamento diferenciado que lhe fora destinado pelos profissionais da
UBS muito próxima de onde costuma ficar, e também de outros serviços que, por muita
necessidade, já tentou acessar quando na ausência de um profissional da equipe de Consultório
na Rua. Infelizmente, situações como esta, em que diversos profissionais de saúde, assistência
e outros segmentos tratam de forma desrespeitosa, preconceituosa pessoas em situação de rua
e/ou em vulnerabilidade ainda são recorrentes.
Ela, assim como outras pessoas em situação de rua, tinha muito receio de acessar e
frequentar as instituições da rede de saúde e assistência do município, muito por conta do
tratamento que lhe fora destinado nas vezes em que tentou utilizá-los. Inclusive deve causar um
pouco de confusão em sua cabeça e na de outros usuários acompanhados pelo CnaR, já que este
também atua tentando sensibilizá-los para que se aproximem, acessem e sejam inseridos na
rede de serviços local.
Outras dificuldades, desta vez trazidas por Célia, dizem respeito ao tempo de espera
para ser atendida tanto nas consultas como na realização de exames. Por mais que as condições
nas quais as pessoas em situação de rua e/ou em vulnerabilidade social estejam lhes configurem
como um público de atendimento prioritário e/ou preferencial, considerando o princípio da
equidade, isto ainda não é aceito e/ou compreendido de forma unânime na realidade dos
serviços públicos de Maceió. Assim, ainda são pouquíssimos os lugares onde se consegue
garantir atendimento equitativo para estas pessoas e, muitas vezes, isto acarreta a desistência
destas se submeterem e/ou aceitarem passar tanto tempo aguardando para passar por qualquer
que seja o atendimento e/ou procedimento.
Vale lembrar que os serviços, ao menos a sua maioria, possuem triagem para
classificação de risco e/ou definição de quem precisa/necessita ser atendido primeiro, mas, ao
que parece, isto pode não estar acontecendo da maneira como deveria, pois não tem sido
possível identificar e/ou perceber práticas equitativas sendo desenvolvidas nestes contextos.
Tal situação escancara a maneira desrespeitosa e inoportuna que alguns profissionais de áreas
diversas, não somente dos serviços de saúde e de assistência, ainda insistem em tratar as pessoas
em situação de rua, assim como as demais pessoas em situação de rua e/ou em vulnerabilidade
social.
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Alguns comentários são desnecessários, principalmente quando vindos de profissionais
de saúde, são difíceis até de serem aceitos compreendidos, por exemplo: “aqui não é lugar para
você ser atendido, seu lugar é na rua” ou ainda “o que você está fazendo aqui? Perdeu alguma
coisa aqui?”. É como se a condição na qual se encontrassem, ao invés de garantir um olhar e
compreensão diferenciados, atuasse de maneira controversa, desfavorecendo-lhes. Mas, ao que
parece, a postura (antiquada, preconceituosa) adotada por alguns profissionais que atuam nos
diversos serviços públicos da cidade, ao invés de acolherem as demandas e/ou queixas trazidas
pela população em situação de rua, procuram por motivos que justifiquem a negação para o seu
atendimento. Cabe pensar: o que os leva a se posicionarem desta forma diante de um público
tão vulnerável? Falta de sensibilidade e/ou de qualificação?
Tais situações acabam reforçando um velho estigma em relação à esta população,
negando-lhes direitos básicos, impondo-lhes condições para receber atendimento e/ou algum
tipo de cuidado e distanciando ainda mais esta dos serviços de saúde, assistência etc. Esta e
outras situações parecidas nos convidam a pensar sobre que ideia/noção de clínica, cuidado,
saúde perpassam o âmbito das instituições e das práticas profissionais atuantes.
Pensando em garantir que Célia e outras pessoas fossem atendidas nos serviços, a equipe
de CnaR procurava se organizar para acompanhá-las aos atendimentos sempre que possível, e
assim, de fato elas eram atendidas. Em algumas ocasiões, nem mesmo a nossa presença as
isentava de ouvir falas carregadas de preconceito, o que gerava um mal-estar entre nós
(profissionais), serviço e usuários, mas que tentava ser contornado e trabalhado à base de
bastante diálogo.
Objetivando minimizar os possíveis constrangimentos em relação à aparência e/ou
aspecto de higiene que pudessem surgir nos serviços por onde a população em situação de rua
fosse passar, falávamo-lhe da possibilidade de usar o banheiro da UBS para tomar banho e
colocar uma roupa limpa antes de ir, por exemplo, à uma consulta médica e/ou realizar algum
exame. Célia e algumas outras pessoas gostaram da ideia, mas pouco utilizavam o banheiro da
UBS, diziam preferir usar o banheiro do mercado público porque era mais acessível e próximo
do local onde ficavam.
Algumas reflexões surgiam a partir disso, pois, ao sensibilizar e/ou estimular os sujeitos
para que fizessem uso do banheiro e se apresentassem de uma forma diferente daquela que
exibem quando estão em situação de rua, não estaria a equipe de CnaR direcionando-os a
reforçar práticas de saúde baseadas em ideias assépticas e/ou higienistas? Neste caso, como
fica a noção de integralidade e de respeito à condição do sujeito?
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Acreditamos que os serviços devem se adaptar às condições e demandas trazidas pelos
sujeitos e não o contrário, considerando que eles existem para atendê-los independente da
maneira como estejam e/ou se apresentam. Algumas reuniões intersetoriais são propostas pelo
CnaR para discutir questões desta ordem e outras afins, mas a participação dos trabalhadores
dos serviços componentes da rede de saúde e socioassistencial ainda é baixa. Com isso, os
serviços, em sua grande maioria, continuam realizando o seu trabalho de maneira
individualizada.
Pensamos que aproximar a população em situação de rua e/ou em vulnerabilidade social
da UBS, seja para realização de atendimentos, consultas médicas, com enfermeiro(a), psicólogo
(a) etc, ou para trocar ideias sobre o seu PTS e/ou simplesmente para tomar um banho, pode ser
considerado um movimento de promoção/exercício de direitos e cidadania. Mas, diante dos
empecilhos constantes enfrentados pela equipe de CnaR e usuários, mudanças urgentes se
fazem necessárias.
Analisemos este outro fragmento de diário de campo:
Pesquisador: como Hércules possui apenas cópia do CPF e cartão SUS, isto em posse
de alguns dos serviços pelos quais ele já passou e/ou ainda é acompanhado, uma das
coisas que pensamos era que deveríamos nos movimentar no sentido de viabilizar a
sua documentação e tentar inseri-lo nos programas de benefícios sociais do Governo
Federal, dada a sua condição de saúde e de vulnerabilidade social (DIÁRIO DE
CAMPO, 14/06/2016, p. 03).
Neste trecho temos uma situação recorrente entre a maioria da população em situação
de rua, que é a ausência de documentação pessoal. Isso acaba sendo um grande obstáculo para
acessar os programas de benefícios sociais do Governo Federal e, inclusive, para passar por
determinados atendimentos/procedimentos no segmento da saúde e da assistência social,
impedindo até que participem de cursos de qualificação e de geração de renda, quando estes
existem e/ou são ofertados.
Hércules não andava em posse de nenhum documento pessoal, e isso não parecia ter
muita relevância para ele. Quando ficou por um tempo na Unidade de Acolhimento
Infantojuvenil gerida pelo município, fizeram-lhe o seu CPF. No entanto, ele não chegou a
usufruir de nenhum benefício por tê-lo feito e o documento ficou na própria instituição. Outro
documento que lhe fora feito, só que desta vez pela equipe de CnaR, foi o seu Cartão Nacional
de Saúde (CNS), o conhecidíssimo “cartão do SUS”, que fora feito para garantir que ele pudesse
utilizar os serviços de saúde quando necessitasse e/ou desejasse.
Sua condição de saúde e de vulnerabilidade social eram bastante críticas, mas isso por
si só parecia não justificar e/ou ser o suficiente para a concessão de algum tipo de auxílio e/ou
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benefício, pois tudo era condicionado à existência de documentos. A questão se resumia a ter
ou não ter um documento. Em caso negativo, parecia que o sujeito não existiria para as políticas
públicas ofertadas pelo governo.
A questão estava posta, ou melhor, imposta: agilizar e/ou confeccionar os documentos
de Hércules, ainda que estes não fizessem muito sentido pra ele naquele momento, pois somente
assim seria possível tentar garantir o seu atendimento e inserção nas políticas públicas
existentes. Caso contrário, legitimar sua existência e necessidades seria muito difícil. A verdade
é que as coisas não mudaram muito depois que os documentos chegaram, pois ele continuou a
andar e viver sem eles, e estes acabaram ficando em posse da equipe de CnaR.
Questão semelhante sucede com Renaldo:
Renaldo: aconteça o que acontecer, vocês não se esquecem da gente! Isso é
maravilhoso! Nos sentimos gente, pessoa, porque vocês nos tratam sem medo e
discriminação. Com vocês por perto sinto alegria e esperança de que as coisas vão
melhorar. Queria ao menos um barraco pra morar junto com a minha véia. Com vocês
nós podemos conversar sobre o que a gente passa e sente e vocês ainda nos orientam
e tentam ajudar… (DIÁRIO DE CAMPO, 27/07/2016, p. 04).
Renaldo compartilha o desejo de ter uma casa, mas pelo fato de estar em posse somente
do Cartão Nacional de Saúde (CNS) e não possuir os documentos pessoais (documento de
identidade, CPF, certidão de nascimento) necessários e exigidos como condição para realização
de seu cadastro no órgão responsável por este tramite, simplesmente fica sem poder usufruir
deste suposto benefício.
O que os serviços poderiam ter feito com Hércules no intervalo de tempo que levou
esperando para tirar o seu documento, e não foi feito, aguardando que este chegasse?
Acreditamos que as políticas públicas que se propõem a trabalhar junto à população em situação
de rua e/ou em situação de vulnerabilidade não pode se pautar na existência de documentos e
registros para desenvolver suas ações e atividades. Isso porque os serviços deixam de
contemplar boa parte deste público, que possui e traz demandas urgentes, como aquelas
relacionadas à própria sobrevivência destes, que ultrapassam a necessidade de portar um
documento que, para muitos deles, pode não fazer sentido algum e não passar de um pedaço de
papel.
A seguir temos outro fragmento de diário de campo:
81
Pesquisador: a equipe falou a Gabriel do CAPS Sadi Feitosa de Carvalho, que fica em
Bebedouro e o orientou a dar uma passada por lá para conhecer o espaço, ver o que
ele achava do ambiente, profissionais e se gostaria de participar das atividades
ofertadas no local. Ele disse que sabia onde ficava o espaço e ficou de pensar se iria
aparecer pó lá (DIÁRIO DE CAMPO, 15/03/2016, p. 05).
Em um atendimento realizado no canteiro central de uma avenida de Maceió, a equipe
de CnaR divulga, compartilha e sensibiliza Gabriel a conhecer o espaço de um dos CAPS da
cidade que ficava próximo do local onde morava. Ele vivia acompanhado de sete cães e cada
um tinha um nome da semana e perambulava por quase toda parte alta da , sempre na companhia
de seus animais. Apresentava baixa visão no olho esquerdo, leve perda auditiva e algumas
manchas na pele com características semelhantes àquelas que se formam após grandes períodos
de exposição ao sol.
Há quem acreditasse que ele precisava de cuidados. Por quê? O que levava as pessoas e
alguns profissionais a sustentarem esta fala? Qual será que era o seu entendimento acerca disto?
Detalhe curioso é que Gabriel usava alguns palitos amarrados por um barbante dentro das
orelhas, de um ouvido a outro. Dizia-nos que era pra poder melhorar a sua audição. A equipe
de CnaR o acompanhava já tinha algum tempo, inclusive, tinha, a pedido dele próprio, o
auxiliado a retirar o seu documento de identidade e feito seu cartão do SUS, mas já não o via
há algumas semanas.
A equipe de CnaR foi contatada pela equipe de Serviço Especializado de Abordagem
Social (SEAS), da SEMAS, perguntando-nos por ele e pedindo que tentássemos abordá-lo e
ajudá-lo. Isso porque, segundo a alegação dos profissionais do SEAS, tentaram abordá-lo e não
teriam conseguido, pois o mesmo se mostrou agressivo e não havia sido nem um pouco
receptivo. A princípio, achei estranho porque ele não costumava ser agressivo, ao menos, não
conosco.
Assim, no mesmo dia em que o CnaR foi acionado, conseguimos encontrá-lo e abordálo. Nesta ocasião, conversamos sobre sua vida, familiares, relação com os cães e também
perguntamos da suposta visita de outra equipe de profissionais, no caso, do SEAS. Segundo
Gabriel, o SEAS o abordou afirmando que ele e seus cães precisariam deixar o local onde
estavam, um semáforo num ponto de grande circulação de uma avenida na cidade.
Ele afirmou que ficou chateado com a fala do SEAS e não entendeu o motivo pelo qual
teria que deixar o lugar onde trabalhava para comprar comida pra ele e seus sete cães, já que
estava por ali há alguns anos. Ao que parece, o SEAS tinha sido acionado por integrantes da
sociedade civil e recebido ordem da gestão do município para retirá-lo e/ou convencê-lo a sair
82
do local, pois estaria denegrindo e/ou incomodando a paisagem do lugar. Gabriel se recusou a
sair e, de fato, os assustou para que o deixassem trabalhar e cuidar de seus cães em paz.
Será que a agressividade explicitada pelos profissionais na tentativa de contato com
Gabriel não fazia sentido, tendo em vista o objetivo da visita que lhe fizeram? De que vale
estabelecer contato e/ou acessar um serviço que não escuta e/ou não se preocupa com as reais
demandas trazidas pelos sujeitos que estão em situação de rua e/ou em vulnerabilidade social?
Outro ponto importante que merece ser destacado é que esta e outras experiências no
contexto local apontam que a existência de serviços públicos de saúde, assistência etc. voltados
a atender a população em situação de rua e em situação de vulnerabilidade não garante em
medida alguma que os serviços ofertados e práticas desenvolvidas serão condizentes com as
necessidades do seu público alvo. Eles podem, como mostra o exemplo citado, ficar a cargo
dos interesses de seus governantes e dos profissionais que compõem as suas equipes e,
inclusive, atuar na contramão dos objetivos para os quais foram criados/pensados.
Com base nos relatos e análises acima, observamos que mesmo o CnaR sendo um
serviço volante e que atua in loco, ou seja, onde a PSR e/ou pessoas em situação de
vulnerabilidade estejam situadas, a depender do lugar no qual o serviço esteja e da demanda
que surge, a produção de cuidado em saúde é deslocada para um outro local, que não a rua, no
caso, um "não lugar" para os sujeitos que se encontram naquela situação. Vários repertórios
indicam que a produção de saúde está sempre em outro lugar que não a própria rua. Por
exemplo, a ida ao Hospital, a UBS, ao CAPS, abrigo municipal, conselho tutelar etc. Aqui,
talvez, indique uma questão a ser melhor compreendida e avançada. A rua também pode ser
espaço de produção de saúde?
8.3 Preocupações com os processos de trabalho
Que os meus ideais sejam tanto mais fortes
quanto maiores forem os desafios
mesmo que precise
transpor obstáculos aparentemente intransponíveis.
Porque metade de mim é feita de sonhos e
a outra metade é de lutas.
Vladimir Maiakóvski
Vejamos, a seguir, o que se apresenta nesta situação:
83
Profissional do CnaR: Célia, você não pode beber de maneira alguma, entendeu? Se
você não se controlar e ficar sem beber, não será possível resolver o seu problema.
Você sabe disso, né?!?!
Célia: (manteve-se em silêncio e a observá-la).
Profissional do CnaR: Célia, venha cá! Deixe eu passar a pomada que a dentista que
lhe atendeu prescreveu para você?!?!
Célia: Não, não quero! Não já lhe disse que já estou passando uma pomada que tinha
comprado ali na farmácia! (DIÁRIO DE CAMPO, 21/07/2016, p. 04).
Nesta situação, sem muito ter conversado com a usuária, uma colega de trabalho tentou
convencê-la de que teria que parar de beber a qualquer custo para poder melhorar de um
ferimento que possuía no lábio inferior da boca e, além disso, tentou passar a pomada que havia
sido prescrita para minimizar o seu problema. No entanto, da maneira como foi realizada, a
abordagem não surtiu o efeito esperado pela colega de trabalho.
Ao contrário, Célia se mostrou chateada com a postura e modo de falar da mesma, o que
poderia vir a comprometer a relação de vínculo que tinha com o CnaR e com os profissionais
do serviço nos quais confiava. Assim, se no ato do encontro, do atendimento, o(a) usuário(o)
não se sentir acolhido(a), desde a sua condição, opinião e decisão, as portas se fecham,
inviabilizam-se as possibilidades de cuidado em parceria e/ou dialogia.
De acordo com Lancetti (2015, p. 63-64), “o terapeuta ou redutor de danos não dá
sermões, olha o corpo, escuta suas expressões, se interessa pela biografia. Aí onde os outros
vêem uma droga ele enxerga uma pessoa.” Para Lancetti (2015), estes profissionais procuram
alcançar o usuário onde e quando eles menos esperam, colocando-se nas linhas de mudança
mesmo que estas pareçam insignificantes, raras e/ou inesperadas.
Lancetti (2015) fala da construção de uma aproximação e de uma relação de confiança,
que se baseia no vínculo e preza pelas singularidades das histórias de vida das pessoas com as
quais se relacionam e/ou atendem. Na situação anterior, a terapêutica centrada exclusivamente
no procedimento colocou a relação de toda a equipe de CnaR com a usuária em xeque. Faltou
escuta.
Para avançar em procedimentos deste tipo, que demandam contato físico, que tratem de
questões particulares e/ou de foro íntimo junto às pessoas em situação de rua e/ou que estão em
condição de vulnerabilidade social é imprescindível considerar os profissionais que possuem
mais proximidade destas pessoas e, inclusive, que estes consigam se comunicar/interagir e/ou
passar as informações necessárias de modo claro e objetivo, a partir dos repertórios que vigoram
no contexto específico onde vivem.
A conversa continua...
84
Célia: Tá vendo aquela profissional ali? (apontando para uma colega de trabalho). Ela
me tratou de forma grosseira, esbravejando, como se eu fosse uma pariceira dela, se
estivesse dando uma ordem para mim, mas ela não pode me obrigar a nada, né?
Pesquisador: Sim, você tem razão.
Célia: Não gostei de jeito nenhum da maneira como ela me tratou, não senti confiança
nela nem no que ela tava me dizendo, prefiro ser atendida por outros (profissionais)
da equipe, como aquela baixinha e aquela moreninha, minhas amigas (Outras duas
colegas de trabalho) e você, meu filho, que é quem sempre escuta o que tenho para
falar sem me dar lição de moral.
Pesquisador: Entendi, Célia. Conversarei com a equipe para que este tipo de situação
não se repita e possamos continuar trabalhando juntos, tá bom?
Célia: Tá certo, meu filho, meu enfermeiro! (DIÁRIO DE CAMPO, 21/07/2016, p.
04)
Neste trecho, Célia relata não ter gostado da abordagem de uma colega de trabalho e tal
situação me fez pensar sobre até onde podemos ir na relação profissional x usuário/a? Quais
os limites desta relação? O que pode/deve e o que não pode/deve ser dito? Quais os efeitos e/ou
riscos de intervenções deste tipo para o cotidiano do trabalho e a relação do
serviço/profissionais com os usuários/as assistidos/as?
Acredito que este tipo de conduta profissional é inadequado ao trabalho em equipe, pois
fere os próprios princípios e diretrizes basilares preconizados à prática cotidiana e, portanto,
não deve fazer parte do âmbito do CnaR. Apesar de tal situação ter sido elucidada a partir do
caso envolvendo Célia, este não foi o único ocorrido. Situações como esta têm sido cada vez
mais frequentes e parece que estão sendo banalizadas pelos demais integrantes da própria
equipe.
Assim, penso que se faz urgente pensar em estratégias que melhorem o diálogo e a
partilha de informações entre os profissionais e que avaliem o rendimento, compromisso e
postura dos profissionais que compõem o serviço permanentemente. Vale lembrar que alguns
integrantes da equipe de CnaR demonstram claramente no cotidiano o seu descompromisso
com o serviço, os demais profissionais e a população atendida; demonstram que estão ali
somente pelo “dinheiro fácil” que lhes chega ao final do mês. Dessa forma, não reconhecem as
suas limitações e/ou fragilidades e, mesmo assim, podendo comprometer o trabalho da equipe
a qualquer momento, continuam a fazer parte do serviço.
Célia ora me chama de enfermeiro, ora me chama de médico mesmo sabendo de minha
formação em psicologia e qual cargo/função (agente de ação social/redutor de danos)
desenvolvo na equipe. Penso que tal fala pode ainda estar associada à ideia de uma produção
de cuidado em saúde a partir da figura destes profissionais, o que pode ser aproveitado durante
as conversas nos atendimentos.
Nesse contexto, cabe pensar sobre qual o impacto das formações em saúde para
realização do cuidado em saúde na prática? E para o cuidado voltado às pessoas em situação de
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rua e/ou que se encontrem em situação de vulnerabilidades social? Em que tem se baseado estas
práticas? Procedimentos técnicos ou tecnologias leves? O fato é que as experiências a partir do
trabalho no CnaR têm evidenciado que as formações em saúde de maneira geral ainda priorizam
a realização de procedimentos técnicos e/ou clássicos e inferiorizam, deslegitimam e/ou não
valorizam práticas de cuidado em saúde que partam do diálogo, de conversas no cotidiano.
Interessa-nos destacar aqui algumas das dificuldades atuais, mas que persistem há algum
tempo, encontradas no cotidiano do Consultório na Rua de Maceió, no que se refere ao
planejamento e desenvolvimento do trabalho em equipe, ou seja, de forma coletiva,
interdisciplinar. Infelizmente, alguns profissionais imprimem grande dificuldade em participar
dos momentos de reunião de equipe e de construir vínculo e/ou diálogos com os usuários
atendidos pelo serviço e dão ênfase à realização dos procedimentos técnicos aprendidos durante
a sua formação, de acordo com as atribuições da sua categoria profissional.
No entanto, este entendimento não atende às necessidades que emergem a partir do
contato com as pessoas atendidas pelo CnaR. É preciso considerar as particularidades que
envolvem o trabalho desenvolvido no cotidiano do CnaR. Diferentemente daquele que é feito
num serviço de urgência e emergência, este deve partir da aproximação e vinculação efetiva
junto ao seu público alvo, além de ter e priorizar um planejamento de ações e intervenções
elaborados em equipe, pensados de forma interdisciplinar/coletiva.
Acreditamos que a opção por parte de alguns profissionais em dar ênfase à realização
de procedimentos técnicos diz respeito também à dificuldade que têm de trabalhar e se
relacionar com pessoas e/ou em equipe, o que é exemplificado nos momentos de reuniões em
que estes não só afirmam não gostar de participar, de falar, como buscam a todo instante
alternativas para justificar a sua ausência nestes espaços.
Diante da experiência vivida no CnaR, a possibilidade de trabalhar em equipe, de forma
interdisciplinar somente fortalece e pontecializa a oferta de cuidado em saúde. Isso não impede
a realização de procedimentos técnicos, ao contrário, preconiza que sejam feitos, se necessários,
de acordo com as demandas apresentadas e não somente para atender à demanda profissional
de produção quantitativa de dados.
Algumas pessoas em situação de rua creditam/atribuem, literalmente, o fato de ainda
estarem vivos ao contato/vínculo com a equipe de Consultório na Rua. Esta aproximação, que
nos possibilita entrar em contato com o universo particular dos usuários(as), permite que
tomemos conhecimento daquilo que gostariam de fazer, de ser etc. Considerando que as
necessidades das pessoas que se encontram nestas condições extrapolam as demandas que
competem ao CnaR, são encontradas algumas dificuldades e/ou desafios para a continuidade
86
do trabalho, seja por parte do CnaR, dos demais serviços constitutivos da Rede de Atenção
Psicossocial (RAPS), dos serviços de assistência social etc.
No entanto, ao desconsiderar a relevância da construção de vínculo, da relação de
confiança construída na base do diálogo/dialogia do cotidiano, da escuta qualificada às
demandas que são trazidas, ainda que não sejam ditas e/ou verbalizadas tão claramente, e
priorizar os atendimentos à realização de procedimentos técnicos, corre-se um grande risco de
transformar o serviço que tem, desde a sua gênese, raízes no trabalho afetivo e/ou na vinculação
de pessoas em mais um serviço técnico que não experimenta o potencial que se evidencia na
troca de afetos e negligencia a subjetividade e/ou sentidos que emergem nos/dos encontros entre
os diversos atores envolvidos neste processo de produção de cuidado.
Analisemos esse outro fragmento:
Célia: Também sinto falta da água que antes vocês distribuíam pra gente, era muito
bom. Daquelas outras atividades que a gente fazia quase toda semana (DIÁRIO DE
CAMPO, 27/07/2016, p. 05).
Faz tempo que Célia é acompanhada pelo serviço. Junto com os profissionais ela pôde
vivenciar momentos distintos no que concerne ao funcionamento e à estrutura do Consultório
na Rua de Maceió. Num passado não muito distante, tínhamos disponível um carro (tipo van)
que comportava todos os profissionais, os materiais de trabalho diário e que dava inclusive para
transportar os usuários no caso de alguma intercorrência e/ou eventualidade que acontecesse
em campo.
Além disso, o serviço conseguia ofertar e realizar com certa regularidade atividades
diversas, apoiadas naquilo que Merhy (2004) classifica como tecnologias leves (acolhimento,
vínculo, corresponsabilização de sujeitos, cogestão) e que são produzidas no ato da relação, ou
seja, a partir do encontro. Estas produziam efeitos e sentidos diversos e foram se tornando a
marca do Consultório na Rua de Maceió, pois as atividades antes desenvolvidas contavam com
um suporte e/ou estrutura que possibilitava e/ou favorecia a integração e participação dos
usuários(as) na rua.
Segundo Célia, a distribuição de água mineral, de suco e lanche acabava sendo um
atrativo maior para que todos quisessem, participassem e aproveitassem ao máximo o momento,
sem ter que se preocupar em sair para pleitear o que iriam comer mais tarde, quando nós
fôssemos embora. Não que o serviço tivesse que pautar todas as ações em atividades que
disponibilizassem este tipo de oferta, até porque este não era o foco, mas era inegável a
diferença que estes recursos faziam à aproximação e produção do vínculo com as pessoas
atendidas. Além, claro, de contribuir para reduzir os danos e/ou ampliar a vida daqueles que
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espontaneamente paravam de usar a sua droga de consumo para participar da atividade e se
confraternizar junto a equipe e demais usuários.
O sucateamento e a falta de estrutura pela qual o serviço vem passando, com a ausência
de carro adequado (e caracterizado com a logo do CnaR) ao serviço, de insumos importantes
como a água, e de atividades lúdicas, educativas, interativas/integrativas, ligadas à arte, música,
teatro, que valorizassem os saberes e cultura locais do cotidiano, tem comprometido a relação
de vínculo e de confiança construída com os usuários (as) acompanhados (as) pelo Consultório
na Rua. É importante salientar que algumas áreas deixaram inclusive de ser
assistidas/frequentadas.
Desse modo, a dinâmica de trabalho do CnaR tem sofrido mudanças drásticas no que se
refere à oferta de cuidado em saúde in loco, pois há um bom tempo já não se consegue ir a
campo com a equipe completa, por exemplo, em função de o carro não comportar todos os
integrantes. Tal situação repercute diretamente no número de atendimentos feitos pela equipe,
principalmente nos locais em que há presença de grande número da população em situação de
rua e/ou em vulnerabilidade social. Isso devido ao fato de que são tantas pessoas para atender
e/ou dar atenção que com o número de profissionais reduzidos, mesmo tentando manejar e
organizar cuidadosamente os atendimentos na rua, torna-se muito difícil conseguir dar conta de
atender a todos no mesmo momento.
Vale lembrar que, mesmo diante de um contexto desfavorável ao desenvolvimento de
suas ações, os profissionais do CnaR recebem inúmeras cobranças da gestão municipal de saúde
relativas à produção de atendimentos (quantitativos, pois a preocupação são com os números)
diários, o que se mostra um total contrassenso, uma vez que o serviço não tem tido o
reconhecimento e/ou respaldo necessários para conseguir dar conta daquilo que lhe compete
fazer.
Pesquisador: desde janeiro/fevereiro de 2013 o serviço tem perdido força e sofrido
um forte sucateamento. Assim, não tem conseguido dar continuidade ao trabalho
iniciado em todas as áreas que eram atendidas e nem em novas áreas que também já
deveriam fazer parte do itinerário de trabalho das equipes (DIÁRIO DE CAMPO,
21/07/2016, p. 01).
Há ainda dificuldades de relacionamento interpessoal entre os próprios profissionais da
equipe de Consultório na Rua, que explicitam o desafio de um grupo de profissionais
multiprofissional/disciplinar trabalhar em equipe interdisciplinar, o que põe em risco a
qualidade do trabalho a ser desenvolvido e ofertado, uma vez que este deve ser pensado,
organizado e executado em equipe e que também pode comprometer o vínculo com os seus
usuários. A dificuldade se acentua quando do surgimento de críticas sobre a postura enquanto
88
profissional no serviço. Alguns integrantes levam-nas para o lado pessoal, não
aceitando/concordando com as mesmas, acreditando que há algum tipo de complô contra si,
chegando inclusive a se afastar daquele(s) que o(s) criticou(ram). A sensação que estes
profissionais passavam e que ficava era de que não se sabia e tampouco havia desejo de mudar
e de aprender a trabalhar em equipe.
Vejamos o que sucede neste trecho de diário de campo:
Pesquisador: Vale lembrar que esta lista foi solicitada pelo Coordenador da Garagem
da Secretaria Municipal de Saúde de Maceió, pois o mesmo precisava ter noção das
rotas que as equipes faziam para justificar a liberação da cota de combustível assim
como o uso, na visão dele, “tão rápido” do combustível que era colocado nos carros.
Por diversas vezes, o trabalho das equipes já foi prejudicado, pois a cota de
combustível liberada era insuficiente para dar conta do trajeto/percurso das duas
equipes (DIÁRIO DE CAMPO, 21/07/2016, p. 01).
Neste trecho, o pesquisador/trabalhador destacou o momento em que o coordenador da
garagem dos carros da Secretaria Municipal de Saúde de Maceió solicitou um documento com
as rotas e/ou percursos que as equipes de CnaR faziam, pois, na visão dele, o gasto de
combustível estava acontecendo de forma muito rápida. Diversas ações e/ou atividades
deixaram de ser feitas por não haver combustível suficiente para a equipe se deslocar e voltar à
UBS em segurança.
Houve inclusive momentos em que faltou combustível no carro enquanto a equipe
estava a caminho de algumas áreas consideradas de difícil acesso e voltando delas à UBS, tendo
a equipe que esperar por ajuda praticamente no meio do nada. Tal fato gerou bastante incômodo
e atrapalha consideravelmente a dinâmica de trabalho e isso se agrava porque a garagem da
SMS não autoriza/libera cota de combustível suficiente para encher o tanque do veículo com o
qual as equipes se deslocam para que pudessem fazer os trajetos de forma sossegada. Para dar
cabo de suas atividades, os profissionais do CnaR teriam que considerar mais este quesito, o
combustível.
Como se isso não bastasse, ainda se tem que lidar com a presença de motoristas
imprudentes e insatisfeitos de estarem dirigindo pra equipe de CnaR, que por diversas vezes
colocaram (e ainda colocam) em risco a integridade física dos profissionais e usuários (as). O
que pode ser observado nos trechos a seguir:
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Pesquisador: como o motorista estava conduzindo o veículo de maneira nada
defensiva, isto fazia com que a viagem fosse ainda mais desconfortável, pois ora o
carro passava em terrenos elevados e/ou em lombadas numa velocidade excessiva,
noutras freava de modo brusco, completamente desnecessário. Tal situação colocava
a nós todos em risco, inclusive a usuária que estávamos transportando. Pensei em
intervir ainda quando estávamos dentro do carro mesmo, mas considerando a presença
de Célia, achei melhor deixarmos para conversar sobre quando retornássemos, pois
temia que ele se alterasse e quisesse arrumar uma confusão e isto não era o que
procurávamos (DIÁRIO DE CAMPO, 18/08/2016, p. 04).
Pesquisador: o motorista aparentava estar daquele jeito, para não-conversa. Mal
respondeu os cumprimentos de boa tarde dos colegas da equipe e tocou a dirigir,
infelizmente, de modo imprudente, o que colocava a todos em perigo, tanto os que
estavam dentro do carro como aqueles que estavam do lado de fora. O tempo ainda
estava meio nublado porque tinha chovido e isto aumentava ainda mais os riscos de
sofrermos/ocasionarmos algum acidente com um veículo sendo guiado daquela forma
(DIÁRIO DE CAMPO, 30/08/2016, p. 04).
Diante disso, o que os profissionais do Consultório na Rua poderiam/podem fazer para
evitar que este tipo de situação aconteça, já que se trata de algo recorrente? De quem se deve
cobrar? Da coordenação do serviço, da coordenação da garagem, da gestão municipal de saúde?
Do próprio motorista? Ele é da equipe? Não é da equipe? Ele é um agente social?
Penso que não é à toa que a temática “preocupações com os processos de trabalho” foi
a segunda que mais apareceu nos trechos dos diários de campo. Ela diz respeito ao momento
de fragilidade, sucateamento e fragmentação pelo qual o Consultório na Rua de Maceió e outros
serviços de saúde e assistência social estão passando e, ao mesmo tempo, convida-nos a refletir,
repensar, rever e reorganizar as nossas práticas e formas de atuação nos contextos aos quais
estamos inseridos, assim como com o que manteremos contato, para poder garantir o exercício
de uma clínica ampliada e compartilhada. Nessa direção, aproxima-se mais, portanto, do que
Campos (2013) chama de clínica degradada do que de clínica ampliada.
Através do trabalho iniciado pela equipe de Consultório na Rua várias demandas vão
emergindo à medida que os(as) usuários(as) as compartilham e/ou são identificadas pelos
profissionais. Assim, faz-se necessário estar em contato/diálogo permanente com os demais
serviços da rede de saúde, assistência, habitação etc. o que acaba revelando as fragilidades e/ou
pontos críticos de cada serviço e dos profissionais que os compõem.
Frente à complexidade das demandas apresentadas pela PSR e pessoas em situação de
vulnerabilidade social, vê-se muitos profissionais em apuros, não dando o braço a torcer e/ou
não reconhecendo suas limitações e insistindo em sugerir desfechos simplistas e/ou
reducionistas para os casos que são compartilhados. Ainda sobre isso, é possível destacar que
há uma enorme preocupação por parte destes profissionais em dar respostas céleres. Aqui não
estamos nos referindo aos usuários, mas principalmente aos seus superiores e/ou gestores, que
lhes cobram resolutibilidade imediata para situações que foram construídas ao longo da história
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da própria sociedade e, devido à dimensão complexa que possuem, mereciam/merecem ser
discutidas sem pressa e com cuidado. Tendo como foco e compromisso responder às demandas
da PSR e pessoas em situação de vulnerabilidade social e não às ordens dos governantes e/ou
gestores locais.
Reuniões intersetoriais são e já foram sugeridas/demandadas pelos profissionais do
Consultório na Rua para discussão de casos e fomento de estratégias para o acompanhamento
dos usuários assistidos. Mas, o que fica claro pra nós, é que ainda pouco se acredita na potência
desse tipo de estratégia, tendo em conta a baixa quantidade de profissionais que comparecem e
participam, o que dificulta a corresponsabilização do cuidado e a execução de ações integradas,
de fato compartilhadas.
8.4 Outros
Ah, se os que não estão aqui soubessem...
Nas ruas, escolas, casas, unidades de saúde
Somos!
Somos gente com vida
Que cuida
Faz arte
Arte que cuida
Arte faz vida
Arteiros na vida!
Ah, se os outros profissionais soubessem...
Saúde?
Política Pública!
Apoio moral?
Apoio real!
Política Pública!
Ah, se os gestores soubessem...
Ah, se todos soubessem o que fazemos no SUS...
A vida seria longa ou breve e seria
Sempre vida, potência e luta.
Érika Rodrigues
O preconceito e o estigma se fazem presentes tanto dentro como também fora das
instituições, e, talvez, o que vivenciamos nestas seja fruto do que já existe há muito em nós,
cristalizado nas mais diversas camadas da sociedade, e que pode ser exemplificado no trecho a
seguir:
91
Bryan: quando vejo vocês, faço questão de parar o que estiver fazendo para conversar
um pouco com vocês. Sabe por quê? Porque vocês me tratam com respeito e olham
pra mim e para os outros daqui da rua como gente, como pessoa humana que somos,
independente da maneira que a gente esteja. Eu me lembro que algumas pessoas
corriam, fugiam e ficavam muito amedrontadas quando me encontravam pela rua, era
como se eu fosse atacá-las, roubá-las ou fazer algum tipo de coisa contras elas. Isso
me deixava muito triste e não conseguia entender o que levava essas pessoas a
pensarem isso de mim, já que nada fazia contra elas. Só fazia olhar pra elas. Será que
por eu estar um pouco sujo, descalço, com cabelo e a barba grande é motivo para eles
me tratarem assim dessa forma? Com medo de mim? E eu sou um bicho para eles
terem medo de mim? Vocês não têm medo de mim! (DIÁRIO DE CAMPO,
21/07/2016, p. 09).
A relação de vínculo estabelecida com alguns profissionais da equipe de Consultório na
Rua contrasta fortemente com o modo como algumas pessoas o tratam quando o encontram
pelas ruas. Enquanto relatava um pouco de sua história, Bryan demonstrava um sentimento de
tristeza e desapontamento com as situações que teve e ainda tem que enfrentar no cotidiano. De
onde vem este preconceito, discriminação e medo avassaladores das pessoas da sociedade em
geral em relação à PSR? Como contornar esta situação e continuar sobrevivendo num contexto
em que as pessoas não olham pra ti como uma pessoa que possui direitos, mas sim como um
ser desviante, um zumbi, como diz Macerata (2013)?
No trecho acima, Bryan se refere com lamento e indignação ao tratamento
preconceituoso destinado a ele e às outras pessoas que se encontram na mesma condição por
parte de algumas pessoas da comunidade no entorno onde vive quando os encontravam pelas
ruas. Indaga-nos, perguntando se o fato de estar na condição de pessoa em situação de rua fazialhe deixar de ser humano. Bom, o fato é que aqui lhe faziam previamente um julgamento moral
simplesmente pela sua aparência e sequer procuravam conhecer e saber o que havia por trás da
aparência daquele que se apresentava diante deles, rejeitando-o de imediato.
Contudo, Bryan fez questão de enfatizar que também há pessoas que o tratam bem e
lembram dele pelo que é, pelo seu nome e seu caráter, o que pode ser visto no trecho a seguir:
Bryan: queria pedir desculpas e agradecer pela conversa. É muito bom ter alguém que
nos escute sem cortar a nossa fala e sem dizer que estou errado em tudo o que digo.
Eu também queria aproveitar para dizer que também sou muito agradecido a algumas
pessoas que me ajudam nestes anos vivendo nas ruas. Como, por exemplo, tem uma
mulher que mora ali perto de um ferro velho que sempre chega junto com alguma
coisa para mim, ela nunca me abandona. Alguns comerciantes donos de lanchonetes,
restaurantes, pizzarias e supermercados da região também sempre colaboram comigo.
Isso faz com que as coisas não sejam tão ruins como poderiam ser, né? (DIÁRIO DE
CAMPO, 21/07/2016, p. 09).
No momento da conversa com os profissionais do CnaR, Bryan agradece pela atenção,
espaço de diálogo e interação com a equipe, ressaltando a sua postura de acolhimento e escuta.
Afinal, é possível ajudar sem escutar? Sem escutar Bryan e a população em situação de rua não
92
os conheceríamos. O trabalho parte desta escuta clínica, da assunção de suas histórias singulares
de vida. Além disso, Bryan se refere à relação que possui com algumas pessoas da comunidade
e comerciantes como sendo parceiros fiéis, que sempre lhe estendem a mão e não lhe negam
ajuda quando precisa de algo. E é justamente através destas pessoas que, muitas vezes, garante
o seu alimento de cada dia, alguma quantia em dinheiro para comprar o que precisa para comer
e sobreviver, faz o uso de um banheiro/chuveiro ou ainda de algum espaço para dormir
protegido da chuva.
A participação de pessoas da comunidade e comerciantes neste contexto nos remete à
noção daquilo que acreditamos ser parte do que constitui uma clínica ampliada, o cuidado
compartilhado, corresponsabilizado, com o apoio de uma rede informal. Nessa perspectiva, esta
rede informal e/ou de apoio é composta justamente pelas pessoas e os dispositivos que existem
na própria comunidade, o que acarreta o envolvimento de diversos atores, a integração e
utilização de práticas, ferramentas e estratégias infindas. Assim, vemos que a relação com a
comunidade ora é tida como como fator estigmatizante e/ou excludente da PSR e/ou das pessoas
em condição de vulnerabilidade social, que não permitem sequer nenhum tipo de aproximação,
ora se apresenta como um ponto de apoio com o qual se pode contar para tentar dar conta de
algumas dentre as diversas necessidades básicas à sobrevivência e/ou manutenção da vida nas
ruas.
Uma das pessoas dessa rede informal é Luana7, ambulante que trabalhava em uma das
áreas em que o Consultório na Rua atua e que, em uma das conversas conosco, fez a seguinte
fala:
Luana: pois é, meus filhos, o negócio aqui tá boca quente, sabe? Os meninos e
meninas que vocês atendem não têm ficado muito por aqui porque, além do terreno
ter sido fechado, tem tido batidas policiais frequentes no local, o que tem feito com
que eles procurem e fiquem em outros lugares, principalmente pelo dia. Quando a
polícia chega aqui, não estão chegando pra conversa, chego ficar assustada com a
brutalidade que eles tratam os meninos e as meninas (referindo-se aqueles que estão
em situação de rua). E quando estão fumando a nóia, então, aí já viu, né? Aí é que eles
chegam com força mesmo! Dão em quem tiver, levam suas coisas e, às vezes, ainda
levam alguns deles. Eu fico com medo deles sumirem, sabe? Fico pensando no que
eles podem fazer com a pessoa que entra no camburão. Ninguém merece ver nem
passar por uma situação dessa, né, minha filha? (DIÁRIO DE CAMPO, 21/07/2016,
p. 06).
Luana possuía vínculo com algumas das pessoas que nós atendemos na região, muitas
delas compram as guloseimas que ela comercializa (isto quando ela não as doa, comovida pela
7
Vale frisar que após o falecimento de seu marido, que era quem tocava o trabalho junto dela, e devido às batidas
policiais recorrentes, a onda crescente de violência e assassinatos na região, ela decidiu ir embora para outro
lugar, onde pudesse trabalhar sem passar por tanta tensão, medo e angústia.
93
situação de alguns deles). Acaba sendo um ponto de apoio para os usuários, pois sabem onde
encontrar um café, água, salgados e doces de qualidade e a preço baixo. Era prudente falar com
Luana quando chegássemos naquela área, pois ela nos passava informações preciosas acerca de
como estava o local, o que tinha acontecido nas últimas horas, dias, semanas, se o ambiente
estava tranquilo para fazer os atendimentos ou não etc. Era, na verdade, um ponto de apoio e
de segurança pra nós também, e que de forma indireta nos ajudava muito a desenvolver o nosso
trabalho.
Foram vários os relatos feitos por Luana e outros ambulantes de situações em que a
polícia militar protagonizava cenas de violência física e psicológica, desmoralização e
humilhação junto às pessoas em situação de rua da região em que trabalhávamos,
principalmente aquelas que faziam e/ou estavam fazendo uso de algum tipo de droga ilícita no
momento em que os policiais chegavam. Perplexa, Luana assistia a tudo bem quietinha do local
onde trabalhava. Acuada, não sabia o que fazer.
Alguns dos usuários(as) com os quais conversávamos também nos confidenciavam
momentos de desespero e de muito medo. Em diversos casos até nos mostravam as marcas de
violência física que eram deixadas nos seus corpos, assim como relatavam as agressões verbais
e/ou psicológicas que lhes faziam. Relataram que pessoas em situação de rua chegaram
simplesmente a sumir e outras a morrer e ninguém fazia nada a respeito, pois, sendo quem são
e vivendo onde estão, completamente excluídos e à margem da sociedade, pouquíssimos são
aqueles que se importariam e/ou sentiriam a sua falta.
Em algumas abordagens tentei, junto a alguns poucos profissionais da equipe,
sensibilizar e/ou estimular aqueles usuários(as) que permaneciam no local onde as cenas de
violência aconteciam, a realizar uma denúncia no Disque 100, da Secretaria Nacional de
Direitos Humanos (SNDH), ressaltando que eles (as) sequer precisariam se identificar. Mesmo
assim, o medo (completamente compreensível) de que lhes acontecesse algo parecido ao que
aconteceu aos seus colegas − devido à exposição constante de estarem em situação de rua e do
envolvimento de alguns com o mundo do tráfico, por necessidade e sobrevivência − fazia com
que recuassem e não realizasssem a denúncia.
Era difícil ouvir os relatos carregados de brutalidade e ficar tranquilo com o que se
ouvia. Assim, a minha intenção como profissional do CnaR era tentar sensibilizá-los a agirem
e/ou enfrentarem esta e outras situações de violência de outra forma, por outros vieses para,
quem sabe, minimizar este tipo de acontecimento frequente nesta região especificamente.
Nesse caso, quem mais poderia ajudá-los? Inconformado com a situação, realizei várias
denúncias, todas elas nominais, ou seja, identificando-me como profissional do serviço no qual
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trabalhava e, em seguida, relatando o motivo do meu contato e/ou ligação. Feito isso, em todas
as ligações os(as) atendentes me garantiam que iriam tomar as providências cabíveis e acionar
os órgãos competentes, cobrando destes medidas para solucionar o problema. Além disso,
passavam-me um número de protocolo para acompanhamento de cada denúncia realizada.
Apesar de ter feito este movimento, os incidentes não pararam e continuaram a acontecer. O
que mais nos caberia/cabe fazer numa situação desta magnitude?
A população em situação de rua e em situação de vulnerabilidade social das áreas em
que o CnaR atua, vive diariamente amedrontada com episódios de humilhações,
constrangimentos, medo e agressões causados por abordagens da polícia militar. No entanto,
mesmo sob fortes ameaças, resistem e não desistem de lutar e habitar o espaço público onde
estão, a rua.
Segundo Lancetti (2015, p. 29) “as campanhas alarmistas fazem parte da guerra às
drogas, produzem o efeito contrário ao supostamente desejado e têm contribuído para expandir
o mercado negro, o mercado branco e o consumo de drogas ilícitas e lícitas.” Seguindo essa
linha, a ideia que é constantemente propagada é a de que vivemos uma epidemia do crack e que
o carro chefe para resolver esta questão é combater o uso do crack e de outras drogas ilícitas,
assim como a quem faz o uso destas, a todo custo.
Assim, é como se o crack e outras drogas fossem um tipo de doença como a peste, que
têm vida própria, provocam males devastadores àqueles que as utilizam e que, por esse motivo,
precisam ser combatidos/enfrentados. Mas seria isso mesmo? O que entra e o que sai de cena?
Qual é o olhar direcionado à droga? Não estaria o Estado tentando suprimir e/ou mascarar os
problemas mais urgentes da sociedade desviando o seu foco para um ser sem vida e inanimado?
Qual é o lugar que o crack e outras drogas ocupam na vida de quem as utiliza? Qual a relação
das pessoas com as drogas que escolhem para fazer uso?
Segundo Bryan, ele já estava em situação de rua há mais de dez anos e já tinha se
acostumado à vida que levava diariamente. Afirmou ter começado a usar crack por
curiosidade, gostou da experiência de prazer que a substância lhe proporcionava,
ainda que muito passageira e, desde então, decidiu adotá-la/inseri-la no seu cotidiano.
Ele reforça que para levantar dinheiro e fazer uso da substância trabalha dignamente
e não mexe em nada que lhe é alheio. Falou também que não gosta de compartilhar o
cachimbo que usa e que prefere usar sozinho, sem estar acompanhado de ninguém
(DIÁRIO DE CAMPO, 21/07/2016, p. 07).
Neste trecho, Bryan compartilha como começou a fazer uso do crack, exaltando a busca
pela sensação de prazer fugaz que a substância lhe causa em meio às adversidades do contexto
no qual está inserido. É interessante ressaltar o lugar que a substância, neste caso, o crack, ocupa
na vida de Bryan e como ele se relaciona com ela. Analogamente, outras pessoas preferem usar
95
álcool, cigarro comum, um comprimido de rivotril, diazepam etc. Há também aqueles que ainda
vão preferir aquelas consideradas ilícitas, como a cocaína, a maconha, o ecstasy etc.
No modelo de sociedade em que estamos, muitas pessoas procuram preencher algumas
de suas lacunas com coisas, objetos, atividades, pessoas e alguns, inclusive, através do uso de
substâncias psicoativas. O que em si ainda se apresenta à vista de muitas pessoas como um
problema e/ou perigo em potencial, pode ser o sopro de vida, resistência e resiliência de alguns
para encarar as perguntas ainda sem respostas e/ou em aberto, assim como os momentos difíceis
e de adversidade da própria vida. Como é o caso de Bryan, em que o uso de drogas como o
crack possui múltiplas funções em sua vida cotidiana. Ele faz uso consciente de crack, de modo
que este não chega a atrapalhar e/ou interferir nas suas atividades cotidianas e está longe de ser
o problema com o qual se incomoda e/ou se preocupa. Ao contrário, em diversos momentos do
dia a dia, usar algumas pedras de crack é o que lhe sustenta frente aos demais problemas e/ou
dificuldades que precisa enfrentar.
O fato de assumir o não compartilhamento do instrumento (cachimbo) que utiliza para
fazer uso do crack denota a sua preocupação e/ou cuidado para consigo mesmo e para com as
outras pessoas com as quais divide diariamente o espaço da rua, no que se refere à
transmissão/contaminação de doenças e/ou infecções virais.Em outras palavras, um gesto de
autocuidado e exemplo de redução de danos relacionado ao não compartilhamento de objetos
de uso pessoal/individual.
No entanto, quando Bryan relata que prefere fazer uso sozinho, sua decisão pode
direcioná-lo para uma situação de risco em caso de passar mal, a depender da quantidade de
droga consumida no momento em que estiver fazendo uso. Conversas desse tipo somente são
possíveis quando há vínculo, relação de confiança e abertura suficiente com usuário(a). De
outro modo a tentativa de conversa/diálogo dificilmente existiria.
Pesquisador: Naquele momento, Bryan disse que não estava sentindo dores, mas que
percebia que quando não se alimentava direito e aumentava o consumo do Crack
sentia fortes dores na região do abdômen, a ponto de não conseguir andar e ter que
ficar um tempo parado, esperando a dor passar para se recuperar. Diante disso,
sugerimos que quando fosse fazer uso não compartilhasse seus objetos, mas tentasse
estar na companhia de pessoas nas quais ele confiava, pois, caso algo lhe acontecesse,
teria como ser socorrido rapidamente. Orientamos que tentasse se alimentar a maior
quantidade de vezes possível ao dia e, principalmente, antes de começar a usar o crack.
A mesma orientação foi feita para o consumo/ingestão de líquidos ao longo do dia,
pois tais estratégias poderiam minimizar os efeitos nocivos causados pelo uso intenso
da substância (DIÁRIO DE CAMPO, 21/07/2016, p. 10).
Ainda sobre a relação com as drogas,
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Célia: “a verdade é que estou com muito medo, meu filho. Tenho sentido muitas dores
aqui (indicando a região abdominal/barriga) quando vou urinar. Tem momentos que
não consigo controlar e faço xixi na roupa, no colchão e em tudo. É uma peleja só,
sabe? O ferimento do meu lábio também tem me atrapalhado e incomodado,
principalmente nas horas que vou tentar comer alguma coisa. Para amenizar a dor do
lábio, assim que me acordo, preciso tomar uma ou mais doses do Corote, senão fica
difícil de aguentar a dor (DIÁRIO DE CAMPO, 21/07/2016, p. 04).
Neste trecho, observa-se que o uso do álcool é feito como alguém que faz uso de um
remédio/medicamento para minimizar as dores que sente momentaneamente, sejam elas de
ordem física e/ou psicológica. Nesse sentido, fazer uso do álcool, crack e/ou outras drogas pode
ser considerado uma forma e/ou recurso de enfrentamento e/ou resistência a situações adversas
com as quais qualquer um de nós pode se deparar nesta vida.
Mesmo não sendo uma unanimidade, vimos que algumas pessoas em situação de rua
podem fazer uso de alguma droga e que a relação que sustentam com esta pode ter múltiplas
funções, como em situações de experiência recreativa, nas quais se busca prazer como
recurso/ferramenta de fuga, enfrentamento e/ou encorajamento frente às adversidades da vida
e até mesmo com finalidade terapêutica. Portanto, faz-se necessário conhecer a relação que
cada pessoa mantém com a substância que utiliza, para assim compreender o lugar que esta
ocupa, a sua função e/ou sentido desta em sua vida.
Analisemos este outro fragmento:
Jussara: a gente que vive na rua tem bastante dificuldade para conseguir dinheiro e
tocar a vida, né? Fazer programa, sair com homens e mulheres mesmo sem conhecer
nenhum deles. É o que dá pra fazer onde costumo ficar aqui na rua. Infelizmente,
ninguém confia em dar um trabalho comum para uma pessoa que usa droga. Me diga,
como vou me virar para sobreviver? Sabe, acredito que peguei o vírus do HIV num
destes programas à noite e que devia estar sob forte efeito de alguma droga quando
isso me aconteceu. Mas, pra mim, não tenho outra opção neste momento para poder
enfrentar a noite e a madrugada saindo e tendo relações com pessoas diferentes. Usar
um baseado ou até mesmo umas pedras de Crack é o remédio “mais barato” que me
ajuda a diminuir as dores que carrego comigo ao longo da vida, diminui também o
meu constrangimento na frente dos meus clientes e ainda me faz ter coragem para
continuar ali, me expondo diariamente para conseguir algum dinheiro para sobreviver
(DIÁRIO DE CAMPO, 30/08/2016, p. 01).
Jussara era uma jovem de 35 anos que estava em situação de rua e que convivia com o
HIV já há algum tempo. Trabalhava com sexo nas ruas da cidade, o que, algumas vezes, a
colocava em situações de risco. Ela acredita ter contraído o vírus do HIV enquanto trabalhava
sob forte efeito de alguma droga. Como ela mesma afirma, usar alguma das drogas disponíveis
às quais tinha fácil acesso era menos custoso e ainda “lhe ajudava” na hora do trabalho. Jussara
foi diagnosticada com HIV através de um teste rápido feito em situação de rua pela equipe de
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CnaR, iniciou o tratamento de controle de sua carga viral e também passou a frequentar o CAPS
AD por um tempo.
Tinha um companheiro chamado Francisco, um senhor com 70 anos de idade, que
esbanjava uma energia e vitalidade admiráveis. Era uma pessoa da comunidade no entorno de
uma das áreas onde costumava ficar, e que demonstrava muito afeto, companheirismo, ternura
e cuidado por ela, como pode ser visto no trecho a seguir:
Francisco: veja, sempre abri as portas de minha casa para Jussara. Fico bastante
preocupado com ela, principalmente quando ela passava dias e mais dias sem dar
nenhum sinal de vida. Nos dias que ela não voltava para casa, eu até saía a procura
dela para ver se a encontrava pelas ruas e nos lugares onde sabia que ela podia estar.
Às vezes, era somente pra saber se ela tava precisando de alguma coisa. Quando
conseguia encontrar com ela, preocupado com a sua situação dela, conversava e
tentava levar ela de volta comigo para casa, mas nem sempre ela concordava e isso
acontecia. Não podia desistir de tentar nem de ao menos falar com ela e demonstrar a
minha preocupação, mas sempre acabava respeitando ela e a sua decisão sem fazer
muita pergunta, sabe? Com certeza, ela deve ter os seus motivos para querer ficar ali,
naquele momento onde estava (DIÁRIO DE CAMPO, 30/08/2016, p. 01).
Francisco lhe dava uma retaguarda e apoio inigualáveis. Quando todas as portas
pareciam estar fechadas para ela, ele a acolhia de forma incondicional, sem exigir muito dela,
respeitando a sua condição, uma verdadeira aula de redução de danos relacionada a pessoas que
fazem uso de crack. Ele era a sua casa/seu abrigo quando ela já não sabia e/ou nem tinha mais
a quem recorrer. Fazia-lhe visitas enquanto estava no CAPS AD e se mostrava sempre
disponível a contribuir e/ou levar qualquer coisa que pedisse e/ou estivesse precisando.
Saber que se tinha alguém como Francisco, com quem poderia contar em qualquer
circustância era algo valioso para uma pessoa na condição em que Jussara se encontrava. Não
era sempre que ela aceitava a sua aproximação e/ou ajuda, mas Francisco sempre respeitou o
seu movimento. Em função do diagnóstico de HIV reagente dela, convidamos Francisco a fazer
uma visita a UBS e realizar testagem rápida para as infecções sexualmente transmissíveis. Na
ocasião, o mesmo compartilhou que mantinha relações com ela desprotegido, sem fazer uso do
preservativo e, em meio à conversa que se desenrolava na UBS, fiz-lhe a seguinte orientação:
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“Pesquisador: o Sr. já ouviu falar das infecções sexualmente transmissíveis, que
normalmente se pega quando temos relação sexual desprotegida com alguém
infectado ou nos colocamos em situações de risco? É sempre bom tentarmos adotar
uma postura preventiva diante de situações de risco, pois nunca se sabe o que pode
nos acontecer, não é? Nestes casos, é de extrema importância o uso do preservativo
masculino ou feminino, este ainda é o método mais eficaz de se prevenir das infecções
sexualmente transmissíveis. E, sempre que notar ou perceber algo de estranho no
funcionamento do corpo, procurar ajuda e informação. Se for o caso, realizar exames
ou testes rápidos, principalmente em caso de ter sido exposto a alguma situação de
risco de contaminação/contágio” (DIÁRIO DE CAMPO, 30/08/2016, p. 02).
Francisco me ouviu atentamente enquanto fazia as orientações e, naquele momento,
decidiu fazer o teste rápido na própria UBS, mesmo alegando não estar sentindo nem
percebendo nada de diferente consigo e/ou seu corpo. Ele fez testagem rápida para HIV, Sífilis,
Hepatite B e C e, para a surpresa de todos os profissionais da equipe de CnaR, o resultado deu
negativo, o que nos trouxe um alívio imediato. Orientei-lhe a continuar se observando e que
não hesitasse em nos contatar e buscar ajuda.
Por fim, vimos também que, na condição de pessoa em situação de rua e/ou em
vulnerabilidade social, a relação com o sexo, mais especificamente o trabalho como profissional
do sexo, pode ser um meio de conseguir dinheiro para sobreviver e se manter neste contexto.
No entanto, a depender do estado em que se esteja, caso tenha feito uso abusivo e/ou em excesso
de alguma droga, pode se elevar os riscos de se contrair uma infecção sexualmente transmissível
e, ainda, expor e comprometer a vida de outras pessoas.
Diante do exposto, como estratégia de prevenção e cuidado, é imprescindível
intensificar as ações de orientações em saúde com foco na importância da adoção de métodos
de sexo seguro. Além disso, disponibilizar Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) com
certa periodicidade in loco, ou seja, na rua, pode ajudar a sensibilizar a PSR e/ou em
vulnerabilidade social a detectarem infecções sem que tenham atingido estágios avançados,
possibilitando orientações e acesso a tratamento especializado a quem necessitar.
99
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como diz o artista plástico, poeta e redutor de danos Isaac Bittencourt: “a rua vicia”.
Segundo Isaac, “é preciso sentir o cheiro da rua” e, uma vez que nos aproximamos dela,
dificilmente conseguimos nos afastar.
A rua que é lugar de passagem é também lugar de encontros, de afetos, de histórias
singulares que durante muito tempo viveram às escondidas, sem a permissão de existir, de
serem visibilizadas e sobretudo valorizadas. Mergulhar nas histórias deste mundo que, como
afirma Macerata (2014), não é um mundo fora do nosso mundo, era o meu desejo e um grande
desafio. Senti-me instigado a me aproximar cada vez mais dele e tentar contribuir de alguma
forma, ainda que muito singela, para que houvesse mudanças efetivas nas formas de lidar e com
as pessoas que o habitam.
Este é o mote de onde parti para realizar esta pesquisa, que teve o objetivo de visibilizar
as falas, opiniões, afetos, sentimentos e questionamentos dos usuários(as) assistidos pelo
Consultório na Rua de Maceió, ou seja, os efeitos produzidos pelo CnaR na população assistida,
a partir de conversas no cotidiano muitas vezes banalizadas e tidas como algo sem valor, mas
que, como afirma Menegon (1998), são formas privilegiadas de interação social.
Partindo do princípio da dialogia (BATISTA, BERNARDES, MENEGON, 2014) a
partir das conversas no cotidiano, outras temáticas surgiram além daquelas pensadas
inicialmente, gerando uma imensa quantidade de material para análise que, em diversos
momentos, me causou a sensação de estar completamente perdido no meio de tantas
experiências e situações vivenciadas e das informações produzidas. Isso, a meu ver, enriqueceu
ainda mais as possibilidades de análise das discussões e do material produzido e que,
provavelmente, num futuro não muito distante, será aprofundado noutra pesquisa.
Estar como trabalhador/pesquisador e/ou pesquisador/trabalhador no contexto de
atuação do CnaR trouxe-me críticas e reflexões variadas que problematizavam a mim mesmo,
à minha postura como profissional, dos demais colegas de trabalho, do funcionamento do
próprio CnaR e demais serviços e que, talvez, tenham até tomado uma proporção demasiada.
Penso que isso se agravou em função dos fortes golpes que o CnaR e as políticas públicas como
um todo vêm sofrendo desde o acontecimento antidemocrático e retrógrado do impecheament
da única presidenta eleita deste país, que culminou no desmonte e total desmantelamento das
políticas públicas em saúde, assistência etc. em atividade no Brasil.
O sentimento de impotência era grande, havia um descompasso muito grande em
relação à própria existência do CnaR, pois esta não garantia que o mesmo estivesse funcionando
100
para atender às finalidades que legitimaram a sua criação e/ou seu surgimento. A proposta do
CnaR parecia ser ousada e/ou avançada demais para o atual momento histórico que vivíamos,
ou seja, sua prática (ou melhor, a sua tentativa de prática) colocava em xeque valores e
princípios hegemônicos, um tanto cristalizados no modelo de sociedade vigente.
As questões que me suscitavam no âmbito das trajetórias do CnaR, o contato com a
população em situação de rua (PSR) e pessoas em vulnerabilidade social propunham debates
que exigiam reflexões aprofundadas acerca do modelo/tipo de sociedade que vivemos e
queremos. Mais que isso, exigia/demandava mudanças um tanto radicais em sua estrutura e
onde fosse possível contemplar as formas de existência dos grupos populacionais que hoje ainda
vivem na marginalidade, excluídos socialmente, tendo seus direitos enquanto cidadãos,
inclusive o direito à vida, negado e/ou ceifado antes do tempo.
Através deste estudo vimos que a construção de vínculo é a base do trabalho do CnaR
de Maceió junto aos usuários, onde o trabalho baseado no acolhimento, respeito às diferenças
e condição do usuário (a), a redução de danos e a criação de vínculo efetivo entre usuários (as),
profissionais e comunidade é indispensável para o cuidado junto à PSR e/ou em vulnerabilidade
social.
Apesar de a PSR ainda estar muito distante de ter os seus direitos garantidos e
respeitados frente à nossa própria organização societal, o CnaR de Maceió possibilitou
aproximação e/ou ampliação consideráveis do acesso à rede de serviços existentes. Entretanto,
este público ainda enfrenta dificuldades e preconceitos para acessá-la de forma espontânea, sem
o acompanhamento de profissionais do CnaR.
Faz-se necessário descobrir formas e/ou estratégias de sensibilização para romper com
práticas profissionais burocratizadas e cristalizadas que impedem a PSR de acessar os serviços
públicos por causa da ausência de documentação pessoal. Tratando-se deste público, esta não
deve ser a preocupação inicial nos atendimentos. Destaca-se aqui a necessidade de, sobretudo,
ouvir o que a PSR e pessoas em condição de vulnerabilidade social têm a dizer para, então,
pensar em intervenções a partir do que for compartilhado e assegurar que estas tenham a sua
opinião, decisão e escolha respeitados, para que possam ser quem são e, inclusive, garantir que
tenham o espaço para exercer autonomia e protagonismo em suas vidas, da maneira como lhes
for mais conveniente e fizer sentido.
A partir de alguns relatos de conversas com os usuários do CnaR vimos que muitos dos
discursos e das práticas de profissionais estão ancorados em uma perspectiva
assistencialista/paternalista, o que acaba limitando as potencialidades de cuidado
101
compartilhado, co-construído e/ou co-gerido. O que denota fragilidades na postura e prática
profissionais, que precisam ser revisitados de modo que a oferta de cuidado em saúde estejam
de acordo as peculiaridades de assistência demandadas pelo contexto local e seu público alvo.
Além disso, é preciso destacar a total falta de estrutura e apoio da gestão de saúde para
o funcionamento das equipes de Consultório na Rua de Maceió, que desde o início de 2013 têm
enfrentado cada vez mais dificuldades para realizar as atividades de rotina, do cotidiano de
trabalho junto ao seu público alvo. A falta de insumos e condições mínimas e/ou adequadas ao
serviço tem comprometido a continuidade de suas ações e fragilizado o vínculo com os usuários
(as), que sentem falta, reclamam e manifestam claramente a sua insatisfação, questionando os
motivos pelos quais não mais se realizam determinadas atividades e nem são distribuídos alguns
insumos.
Infelizmente, diante do cenário de descaso com um serviço tão potente como é o CnaR
de Maceió e com uma população tão estigmatizada e invisibilizada, muitas das pessoas
acompanhadas pelo serviço têm partido antes do tempo. Ora por não conseguir acessar os
serviços dos quais necessitam no momento em que necessitam e por terem seus direitos
fortemente negligenciados, ora por serem brutalmente assassinadas e/ou exterminadas pela
violência relacionada ao mundo do tráfico de drogas, como também por intervenções de agentes
do próprio Estado.
A relação com a comunidade da qual a PSR faz parte e/ou vive no entorno ora se
apresenta como fator de risco, quando reforça o preconceito e o estigma, ora como fator de
proteção, quando a acolhe, construindo laços afetivos, de cuidado e servindo como ponto de
apoio para que esta possa continuar existindo onde estão, sem saírem de forma precipitada dos
lugares onde habitam, como se vê quando executados movimentos higienistas de limpeza
urbana da PSR e pessoas em condição de vulnerabilidade social em determinadas ruas da
cidade. Esta rede informal composta por diversos atores e/ou instituições se mostra como uma
possibilidade muito potente e favorável à produção de cuidado e de agregação de valor às vidas
da PSR, principalmente na ausência de políticas públicas efetivas e/ou também diante do
descaso do próprio poder público/Estado.
A partir de conversas no cotidiano com os participantes desta pesquisa observamos que
a relação com as drogas é multifacetada, ou seja, é concebida de diversas maneiras e, a depender
dentre outros fatores do local onde estejam, a substância a ser utilizada também poderá ser
diferente. No entanto, vale destacar que nem todos em situação de rua e/ou em vulnerabilidade
social faziam uso de drogas, e que a maioria dos que faziam se reportavam a elas como
102
estratégias de enfrentamento dos obstáculos ou adversidades relacionados aos contextos aos
quais estavam inseridos e/ou dos quais faziam parte. E aqui, nestes casos, considerando o que
afirma Lancetti (2014), o uso que faziam mais representava uma ampliação e/ou sopro de vida
que um mal em si e/ou à saúde, ainda que em alguns momentos os colocassem em situações de
ainda mais risco do que aquelas que já viviam diariamente.
Usar grandes quantidades de drogas sozinho e/ou sem pessoas de confiança por perto e,
para alguns, ter que “vender” seu próprio corpo e/ou colocá-lo à disposição de pessoas
desconhecidas para conseguir levantar dinheiro, de fato, aumentavam em muito os riscos à
saúde da PSR e/ou em situação de vulnerabilidade social. Por isso, ações de orientações em
prevenção e promoção em saúde e em redução de danos são imprescindíveis ao cotidiano das
ações do CnaR.
No que concerne às práticas dos profissionais do Consultório na Rua, vê-se um grupo
de profissionais com formações e trajetórias profissionais distintas, que buscam atuar de forma
integrada e/ou em equipe, mas que pouco tem conseguido caminhar nesta direção e nem sempre
conseguem. Acreditamos que isto pode ser fruto, dentre outras questões, do pouco tempo
reservado/destinado à conversa/diálogo e reuniões em equipe, assim como da ausência de
espaços de avaliação profissional, algo que favorece a existência e persistência de problemas
de relacionamento interpessoal constantes e que repercute diretamente na qualidade de
atendimento ofertado à PSR.
Portanto, defendemos que o trabalho deve prezar pelas conversas no cotidiano, baseadas
em práticas dialógicas, cultivando espaços cativos para reuniões de equipe e educação
permanente. Tais medidas, parecem-nos ser estratégias imprescindíveis para organização,
planejamento de ações rotineiras dos profissionais e minimização de problemas, conflitos
interpessoais no trabalho etc.
Compreendemos que ainda é preciso intensificar as conversas/discussões e ações sobre
os direitos da PSR e demais pessoas em situação de vulnerabilidade social em todos os outros
serviços públicos de saúde, assistência social, habitação etc., assim como nos demais segmentos
da sociedade.
Assim, acreditamos que a academia/universidade ou, em outras palavras, a comunidade
científica deve se aproximar cada vez mais das realidades do cotidiano das vidas nas ruas, pois
tem como compromisso e dever produzir conhecimentos que possam ser úteis e/ou melhorar a
vida das pessoas onde quer que elas estejam e/ou vivam, inclusive e, principalmente, as da PSR
e aquelas que estão em situação de maior vulnerabilidade social. Logo, isto pode auxiliar na
103
consolidação e fortalecimento de políticas públicas já existentes, na construção de novas
possibilidades de intervenção, bem como para o reconhecimento e garantia dos seus direitos.
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REFERÊNCIAS
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108
APÊNDICES
109
APÊNDICE A
Quadro A - Caracterização das pessoas atendidas pelos profissionais do CnaR que participaram da pesquisa
Nome
Francisco
Apelido
Tenório
Idade
(anos)
70
Naturalidade
Referências familiares
Já foi casado, teve duas
filhas, as quais moram em
bairros próximos de onde
vive. Não está em situação
de rua, atualmente mora
Bom Conselho sozinho numa área verde
-PE
chamada de Grota da
Alegria. Foi companheiro
de uma usuária atendida
pelo CnaR, mas esta veio a
falecer no final do ano
passado.
Porque está em situação de
rua e/ou vive em
vulnerabilidade?
Local(is) onde
fica
- Manteve relações sexuais
desprotegido com pessoa
contaminada pelo vírus HIV;
- Nível de exposição e risco
altíssimos;
Grota da Alegria
Faz uso de
álcool, crack
e/ou outras
drogas?
Tempo
aproximado em
que está em
situação de rua
e/ou em
vulnerabilidade
10 anos
110
Célia
Maria da
Silva
Cícero
Juvínio da
Silva
Antônio
Mãe Célia
Celinha
Índio
Galego
57
60
63
Maceió-AL
Até o presente momento não
se tem registros e/ou
informações de referências
familiares e/ou pessoais. O
que sabemos é que ela viveu
por alguns anos com um
homem, cujo também vivia
em situação de rua e que
fora assassinado há mais ou
menos dois anos. Além
deste,
teve
outros
companheiros em situação
de rua e atualmente, está
com um deles.
- Busca pela liberdade de ser
quem ela é, do jeito que ela é
e fazer o que quiser e quando
quiser, sem ter que dar
maiores explicações.
- Alega não ter tido outra
oportunidade para viver da
maneira como quer/gostaria.
- A rua lhe proporciona estas
condições, apesar de sua
exposição constante.
Está em situação
de rua, vive/passa
a maior parte do
tempo no entorno
do mercado
público municipal
do Benedito
Bentes 1.
Álcool
Fumo de corda.
20 anos
Joaquim
Gomes – AL
Membro da tribo indígena
Wassu Cocal, natural de
Joaquim Gomes – AL,
mudou-se junto de alguns
familiares para Maceió,
com os quais mora numa
área verde na região do
Benedito Bentes 1.
- Veio a cidade de Maceió em
busca de trabalho, pois em
Joaquim Gomes não estava
conseguindo
arrumar
emprego para trabalhar e
ajudar no sustento da família.
Alto do Cruzeiro
Grota Boa
Esperança
Terminal do
Mocambo
Álcool
14 anos
Maceió-AL
Uma irmã mora próxima da
região onde costuma ficar
em situação de rua. De vez
Vínculos
em quando vai para a casa
fragilizados
dela, onde fica por um
interrompidos;
tempo, mas depois acaba
retornando para o espaço
onde costuma ficar nas ruas.
Mercado público
do Benedito
Bentes
1(Feirinha), Praça
Padre Cícero II
(Praça da
Formiga)
Álcool
Cigarro Comum
15 anos
familiares
e/ou
111
George
Vicente da
Silva
Ricardo
Foguinho
42
Maceió-AL
Foi casado e tem um filho
fruto deste relacionamento,
cujo mora com uma de suas
duas irmãs. Suas irmãs
moram
num
conjunto
habitacional próximo de
costuma ficar, mantém
pouco contato com as
mesmas, sobrinhos e filho.
De vez em quando, vai até
elas saber como estão, mas
não se demora e logo
retorna ao seu ponto fixo.
As vezes, seu cunhado ou
suas irmãs também passam
pelo local onde costuma
ficar para ver como ele está.
Já aconteceu de passar uns
dias na casa de uma de suas
irmãs, mas devido a alguns
desentendimentos
e
discordâncias decidiu voltar
a rua. Segundo alega,
prefere estar entre os
amigos/familiares que fez
na rua, sente-se mais
valorizado e respeitado,
onde passa e divide a maior
parte do seu tempo.
Mercado Público
- Término de relacionamento;
do Benedito
Desentendimentos Bentes (feirinha)
frequentes com os familiares,
ou Praça Padre
no caso, suas irmãs.
Cícero II (Praça da
Formiga)
Álcool
15 anos
112
Gabriel
José
Renaldo
Carvalho
do
Nasciment
o
Cachorrão
Bye Bye
Baiano
Pai
45
58
Maceió-AL
Pais falecidos. Refere-se a
duas irmãs,, não mantém
contato com nenhuma delas,
pois todas as vezes que
entrou em contato com as
mesmas, queriam controlálo e/ou levá-lo para ficar
internado nos Hospitais
Psiquiátricos da cidade.
Vive com alguns cães, com
os quais cultiva uma relação
afetiva bem peculiar.
Costuma ficar em
frente ao semáforo
do prédio da
FUNASA, na
Avenida Durval de
Goes Monteiro,
acompanhado de
vários cães e
trabalhando por
- Ausência, abandono de
entre os carros
familiares.
enquanto o
- Evadiu-se de alguns
semáforo
hospitais psiquiátricos por
permanece
não querer viver preso;
fechado. Habita
uma casa em
cobições precárias,
que estava
fechada, desde
quando o seu dono
havia morrido, na
baixada da ladeira
do bairro Chã de
Jaqueira.
Cigarro Comum
Álcool.
15 anos
Maceió-AL
Possui uma irmã, que mora
próximo de onde costuma
ficar, mas que raramente
aparece para vê-lo. Foi
casado e tem duas filhas,
mas não mantém contato
com nenhuma delas.
Vínculos
familiares
fragilizados e/ou rompidos,
pós-término
de
relacionamento, em função de
chegar do trabalho sempre
muito tarde e às vezes sob o
efeito de álcool.
Está em situação
de rua, vive/passa a
maior parte do
tempo no entorno
do
mercado
público municipal
do
Benedito
Bentes 1.
Álcool
Fumo de corda.
10 anos
113
Vitória
92
Murici-AL
Sabe-se
que
possui
familiares na cidade de
Murici, duas irmãs, mas não
possui contato algum com
elas. Refere-se a alguns
familiares no bairro de
Bebedouro, mas nunca
tivemos contato com os
mesmos.
- Perda de contato com os
familiares, que moram em
Murici, cidade vizinha, mas
que alegam não ter condições
de acolhê-la.
- Abandono familiar;
Há alguns anos,
não
se
sabe
precisar quantos,
habita um terreno
dentro de um
condomínio
fechado no bairro
Santa
Amélia.
Vive
numa
moradia
improvisada
de
apenas
um
cômodo,
sem
banheiro, feita de
lona e papelão.
Divide
o
seu
espaço com alguns
cães, cujos também
possuem
um
espaço semelhante
ao seu para se
proteger da chuva e
demais
intempéries.
Divide tudo o que
vai comer com os
cães, com os quais
mantém
uma
relação afetiva e/ou
de cuidado muito
forte.
35 anos
114
Bryan
Luana
Velhinho
Dona Maria
55
55
Maceió-AL
Palmares-PE
Era casado, mas após
consecutivas
discussões
com sua companheira,
decidiu sair de casa, não
teve apoio de seus demais
familiares e, desde então
vive nas ruas. Tem contato
esporádico com uma irmã,
que mora próximo de onde
fica em situação de rua e
muito raramente com sua
filha que mora em São
Paulo e de vez em quando
aparece para lhe visitar e ter
notícias suas.
- Discussão familiar, fim do
relacionamento com a sua exesposa. Faz uso do espaço da
rua para trabalhar como
catador de reciclados e
também para morar.
Região próxima do
posto da Polícia da
Rodoviária
Federal, no bairro
da
Cidade
Universitária.
Terrenos baldios,
ferros-velho
e
áreas de pequeno
comércio são as
suas
preferidas
para trabalhar.
Dorme
numa
casinha
improvisada
de
papelão e madeira
num terreno baldio
e quando chove
muito, abriga-se
embaixo
das
marquizes e/ou em
algum ferro velho.
Atualmente mora com a
filha adolescente, de 15/16
anos. Seu esposo faleceu
recentemente, vítima de
complicações
cardíacas.
Também mantém contato
com outro filho, cujo está
casado e mora próximo a
sua casa.
- Faz uso do espaço da rua
para trabalhar.
- Possui um carrinho
ambulante com o qual
trabalha e vende doces,
salgados, bebidas e costuma
ficar entre o Ponto de ônibus e
do Ponto de parada de vans
intermunicipais.
- Tem clientes fiéis, entre eles
pessoas em situação de rua
e/ou
que
estão
em
vulnerabilidade.
Próximo ao Posto
da
Polícia
Rodoviária
Federal,
no
Tabuleiro.
Mais
especificamente
entre o ponto de
ônibus e o de vans
e
ônibus
intermunicipais.
Crack
Cigarro Comum
Álcool
20 anos
Cigarro comum
Álcool.
20 anos.
115
Dandara
Jussara
Vozinha
Lua
+- 65
35
União dos
Palmares-AL
Morava sozinha numa
casinha
simples,
mas
própria. De vez em quando
abrigava alguns de seus
netos, mas passava a maior
parte do tempo sozinha.
Uma de suas filhas mora
com alguns de seus netos e
netas na mesma rua que ela
e
mantém
contato
diariamente.
- Tinha uma casinha muito
simples, mas própria. Porém,
passava bastante tempo do dia
na porta de casa (ora junto dos
vizinhos e seus netos, noutras
sozinha), onde há um grande
movimento em função da
circulação de trabalhadores e
dum
pequeno
comércio
existente nas proximidades,
assim como por conta do
tráfico de drogas na região.
Rua/Beco
onde
mora,
nas
proximidades do
posto da Polícia
Rodoviária
Federal,
do
Tabuleiro e dos
pontos de ônibus e
vãs
intermunicipais da
região.
Ex-fumante
15 anos
Belém – PA
Natural de Belém do Pará,
mas assim que nasceu foi
morar em Fortaleza – Ceará,
onde até hoje moram sua
mãe, irmã e seus dois filhos
(um menino e uma menina),
com os quais mantinha
muito pouco contato.
- Fragilização/Rompimento
dos vínculos familiares;
- Começou o tratamento para
controle da carga viral do
HIV, mas interrompeu e
recomeçou várias vezes;
- Exposição de si e outras
pessoas ao vírus HIV por
manter
prática
sexual
desprotegida;
Mercado Público
do
Benedito
Bentes
1
(Feirinha);
Praça Padre Cícero
II
(Praça
da
Formiga)
Grota da Alegria
Álcool
Crack
Cigarro Comum
Maconha
Inalantes
18 anos
116
Hércules
Fonte: Autor
Comanche
18
Maceió-AL
Pais
morreram
ainda
quando tinha entre 07/08
anos de idade. Tem um
irmão, com o qual tem - Perda e abandono
pouco contato. Refere-se a familiares.
uma avó e tio paternos, mas - Maus-tratos
os
mesmos
não
o
reconhecem como membro
da família.
É
possível
encontrá-lo
facilmente na parte
alta da cidade de
Maceió, entre os
bairros da Cidade
Universitária, nas
mediações
do
posto da Polícia
Rodoviária
Federal, Posto de
gasolina Bomba do
Gonzaga e Posto
de
de
gasolina
JQuino, no bairro
do Tabuleiro dos
Martins. Quando
não está por entre
os
carros
e
semáforos na área
citada acima, pode
ser
encontrado
dentro dos ônibus
de
transporte
coletivo, tentando
conseguir algum
trocado
para
sobreviver.
Crack
Inalantes
08 anos
117
Quadro B - Sexo
Sexo
Participantes
Feminino
05
Masculino
08
Total de Usuários/participantes
13
Fonte: Elaborado pelo autor
Quadro C - Faixa Etária
Faixa etária
Participantes
0 a 12 anos
0
13 a 20 anos
1
21 a 36 anos
1
37 a 52 anos
2
53 a 68 anos
7
69 a 84 anos
1
Acima de 85 anos
1
118
Total de usuários
13
Fonte: Elaborado pelo autor
Quadro D - Diários de Campo
Diários de Campo
Quantidade
Produzidos
20
Utilizados
13
Não utilizados
07
Fonte: Autor
0
APÊNDICE B
Quadro E – Conjuntos Temáticos produzidos nos Diários de Campo - para análise
Trechos/Passagens – Diário de Campo
Temática Geral
“Pesquisador: Como o carro havia sido liberado muito tarde na
garagem, uma colega de trabalho foi tentar dar cabo de algumas
demandas na parte baixa da cidade, entre elas, visitar dois usuários
processo de trabalho:
internos no Hospital Geral do Estado – HGE de Alagoas e fazer uma
carro atrasado x campo prejudicado/reorganizado
busca ativa no bairro do Jacintinho. Ao restante da equipe que estava
x trabalho fragmentado.
na UBS (três colegas de trabalho e Eu), coube percorrermos o campo
próximo, no entorno da mesma.” (DIÁRIO DE CAMPO, 10/08/2015,
p. 03).
“George: Todas as vezes que vocês chegam aqui onde a gente ta,
sinto muita alegria e felicidade, porque a equipe de vocês se importa,
se preocupa de verdade comigo e com os outros daqui. Quando vocês
passam muito tempo sem vim aqui ver a gente, eu e outros colegas
george x gratidão x emoção x alegria x felicidade
ficamos tristes e sentindo falta da presença de vocês. Das conversas e
x vínculo x confiança x cuidado x
atividades também. Agradeço a todos da equipe de vocês por terem
reconhecimento da equipe como parceira/ponto
me acompanhado em tantos momentos difíceis no Posto de Saúde, no
de apoio.
HGE, CAPS AD, Comunidade Acolhedora. Sem vocês, não sei nem
se teria sido atendido. Obrigado!” (DIÁRIO DE CAMPO,
10/08/2015, p. 03-04).
Temáticas em
destaque
Conjunto
Temático (para
análise)
Processo de
trabalho
Preocupações
com os processos
de Trabalho
Vínculo
Acessibilidade
aos serviços
Vínculo/Cuidado
Preocupações
com os processos
de Trabalho
1
“Pesquisador: O tempo tinha se fechado por completo, e mesmo com
uma leve garoa, G. estava sem camisa e parecia não sentir frio, estava
com os olhos um pouco irritados e disse-nos que achava que estava
com conjuntivite (estava corretíssimo), pois alguém lhe dissera que
era isso mesmo. Mesmo nós já tendo conversado sobre essa situação
inúmeras outras vezes, quando o encontro no estado em que está
agora, fico a pensar: será que George concebe alguma relação entre a
sua condição de saúde como um todo, o estado dos seus olhos (não só
destes, mas de todo o seu corpo) o seu estilo de vida, a maneira como
faz uso do álcool e, principalmente, ao contexto (insalubre) ao qual
está inserido?” (DIÁRIO DE CAMPO, 10/08/2015, p. 04).
Linguagem x compreensão x ação x cuidado x
george x irritação nos olhos x conjuntivite x
relação/conexão com o contexto onde está;
“Célia já foi acompanhada por diversas vezes a UBS e a outros
serviços de saúde (IOFAL, CERVI, HGE, CAPS AD) e assistência
social (Casa de Passagem), assim como também fora conversado e
explicitado a importância dela e dos demais usuários acompanhados
pelo CnaR, se dirigirem aos espaços de cuidado e assistência integrais
com ou sem a presença de um de nós, pois ter acesso e receber os
devidos cuidados não é nenhum favor, e sim um direito, mas a mesma
imprime bastante dificuldade para se dirigir a estes espaços sem a
presença de um dos integrantes da equipe do CnaR.” (DIÁRIO DE
CAMPO, 10/08/2015, p. 05-06).
Assistência x vínculo x presença de profissional
da equipe x confiança x dependência/condição
para ir ao qualquer atendimento x
empoderamento
Autocuidado
Vínculo/Cuidado
Acesso aos
dispositivos de
saúde
Acessibilidade
aos serviços
Vínculo/Cuidado
Preocupações
com os processos
de Trabalho
2
“Célia: Os outros serviços não me recebem bem sem a presença de
um profissional da equipe do Consultório na Rua. É como se o que
tivessem fazendo, fosse um favor, sabe? Na maioria das vezes que
precisei ir, senti que a minha presença incomodou aqueles
profissionais de lá. Já cheguei a procurar a UBS algumas vezes com o
meu Nego (Companheiro), tava com muita dor no corpo e com a
cabeça rodando, mas fiquei passada como falaram comigo, os
profissionais me trataram muito mal, fazendo caras feias, passando a
mão por cima do nariz, falando que tava fedendo e que ali não era
lugar para eu estar nem ser atendida. Teve uma outra vez, que uma
profissional me disse que para eu ser atendida, teria que tomar um
banho antes de entrar no consultório, pois o médico não me receberia
da forma como eu estava. Dá pra você, filho? Me diga como é que
vou para um lugar como este sem um de vocês? Eles não me
respeitam!” Diário de Campo, 10/08/2015, p. 05).
Negação de direitos
Necessidade x maus tratos
Imposição de condicionantes para receber
atendimento;
Médico x (des)cuidado higienista
Acesso aos
dispositivos de
saúde
Acessibilidade
aos serviços
Vínculo/Cuidado
Preocupações
com os processos
de Trabalho
“Pesquisador: A equipe falou do CAPS Sadi Feitosa de Carvalho, que
fica em Bebedouro e o orientou a dar uma passada por lá, pra
conhecer o espaço, ver o que ele achava do ambiente, profissionais e
se gostaria de participar das atividades ofertadas no local. Gabriel
disse que sabia onde ficava o espaço e ficou de pensar se iria aparecer
pó lá.“((DIÁRIO DE CAMPO, 15/03/2016, p. 05);
Insistência/persistência em oferta de cuidado ou
crença na prática de produção de saúde em
instituições?
Acesso aos
dispositivos de
saúde
Acessibilidade
aos serviços
3
“Pesquisador: Agradecemos imensamente a atenção, paciência e
tempo que Gabriel nos destinou, distribuímos alguns preservativos
masculinos e ficamos de retomar o contato após realizar visita aos
seus familiares e ao seu espaço. A conversa durou quase quarenta
minutos, e em nenhum momento Gabriel nos destratou, pelo
contrário, foi tão solicito que até parou de trabalhar por um bom
tempo para falar conosco.” (DIÁRIO DE CAMPO, 15/03/2016, p.
05);
Escuta qualificada x atenção as demandas
Vínculo
Vínculo/Cuidado
“Pesquisador: Na reunião, expusemos a necessidade de compartilhar
as responsabilidades, ou seja, de corresponsabilizar outros atores na
produção/atenção de cuidado em saúde a Hércules. Tendo em vista as
suas inúmeras necessidades, se os serviços se mantiverem em diálogo
permanente, juntos as chances de atendermos as suas demandas de
maneira integral são bem maiores.” (DIÁRIO DE CAMPO,
14/06/2016, p. 02).
Intersetorialidade
Interdisciplinaridade
Atenção integral
Integralidade
Vínculo/Cuidado
“Pesquisador: Como Hércules possui apenas cópia do CPF e cartão
SUS, isto em posse de alguns dos serviços pelos quais ele já passou
e/ou ainda é acompanhado. Uma das coisas que pensamos, era que
deveríamos nos movimentar no sentido de viabilizar a sua
documentação e tentar inseri-lo nos programas de benefícios sociais
do Governo Federal, dada a sua condição de vulnerabilidade social
extrema e de saúde.”(DIÁRIO DE CAMPO, 14/06/2016, p. 03).
Condição imposta para integrar o sujeito aos
programas de benefícios sociais do governo
federal. Bur(r)ocratização que distancia ainda
mais o sujeito de ter as suas necessidades
emergenciais/gritantes atendidas;
Assistência Social
Preocupações
com os processos
de Trabalho
4
” Pesquisador: Dessa forma, ficou acordado que o CREAS
viabilizaria a Declaração de Situaçao de Vulnerabilidade – DSV, para
dar entrada nos demais documentos pendentes (R.G.:, Carteira de
Identidade e C.P.F.:) de Hércules. Ainda no local contatamos os
Conselhos Tutelares no sentido deles compartilharem informações
acerca da existência ou não do processo judicial e do que tratava o
mesmo. Além disso, também solicitamos um relatório das trajetórias,
acompanhamentos e encaminhamentos de Hércules tanto aos
Conselhos Tutelares como a Clínica de Internação Involuntária
Princesinha. (DIÁRIO DE CAMPO, 14/06/2016, p. 03).
Assistência Social
Vínculo/Cuidado
Preocupações
com os processos
de Trabalho
”Pesquisador: Desde janeiro/fevereiro de 2013, o serviço tem perdido
força e sofrido um forte sucateamento, assim não tem conseguido dar
Descontinuidade/paralisação do trabalho iniciado
continuidade no trabalho iniciado em todas as áreas que eram
em diversas áreas, fragilização/desmantelamento
atendidas e nem em novas áreas que também já deveriam fazer parte
do vínculo iniciado e cultivado no cotidiano.
do itinerário de trabalho das equipes.”(DIÁRIO DE CAMPO,
21/07/2016, p. 01).
Processo de
trabalho
Preocupações
com os processos
de Trabalho
”Pesquisador: Vale lembrar que esta lista foi solicitada pelo
Coordenador da Garagem da Secretaria Municipal de Saúde de
Maceió, pois o mesmo precisava ter noção das rotas que as equipes
faziam para justificar a liberação da cota de combustível assim como
o uso, na visão dele, “tão rápido” do combustível que era colocado
nos carros. Por diversas vezes, o trabalho das equipes já foi
prejudicado, pois a cota de combustível liberada era insuficiente para
dar conta do trajeto/percurso das duas equipes.”(DIÁRIO DE
CAMPO, 21/07/2016, p. 01).
Processo de
trabalho
Preocupações
com os processos
de Trabalho
De braços erguidos, o trabalho pode
avançar/fluir.
Descontinuidade/paralisação do trabalho iniciado
em diversas áreas, fragilização/desmantelamento
do vínculo iniciado e cultivado no cotidiano.
5
“Pesquisador: Após ter tentado marcar uma consulta para Renaldo, na
especialidade Clínico Geral, no balcão de marcação de consultas da
UBS Hamilton Falcão, fui surpreendido pelo atendente, pois o mesmo
afirmou que todas as marcações para Clínico Geral, a partir de então,
somente seriam feitas com a Assistente Administrativa da UBS. Ela
falou que iria marcar a consulta para o usuário que acompanhamos e
que não nos preocupássemos, que sempre que tivéssemos necessidade
ela iria dar prioridade também para o público que atendemos, dada a
condição de vulnerabilidade em que vivem. Mas ressaltou que em
virtude do fechamento para reformas de outras UBS na região no
Benedito Bentes II, houve um aumento assustador no número de
usuários atendidos pela UBS Hamilton Falcão nos últimos meses. Por
isso, essa tentativa de controlar/restringir ao máximo a tentativa de
novas marcações, pois estava pensando em dar prioridade a quem já
é/era acompanhado pela casa.” (DIÁRIO DE CAMPO, 21/07/2016, p.
01-02).
Pessoas em situação de rua como prioridade,
bacana. O que fazer em casos como este, de
aumento significativo da demanda?
Negar/restringir o atendimento a quem
supostamente está necessitando é uma opção
desejável?
Processo de
trabalho
Acessibilidade
aos serviços
“Pesquisador: Em conversas com um profissional da UBS, enquanto
confeccionava um cartão SUS para um usuário e alimentava a
plataforma do e-SUS, o mesmo me confidenciou que a atual diretora
da UBS tem dado folgas além das que os profissionais já têm direito,
mas em troca ela faz alguns pedidos de marcações de consultas e
exames diversos e, até retira medicamentos da farmácia da UBS sem
prescrição médica.” (DIÁRIO DE CAMPO, 21/07/2016, p. 03).
A demanda de quem o serviço está atendendo?
Quem está se beneficiando através do atual
modelo de organização/funcionamento da ubs?
Quais os efeitos deste modus operandi aos
usuários assistidos pela ubs e consultório na rua?
Utilização da posição do cargo de coordenação
dum serviço público para benefício e/ou
obtenção de vantagens individuais/secundários.
Processo de
trabalho
Preocupações
com os processos
de Trabalho
6
“Pesquisador: Neste dia começamos a ida a rua atendendo os usuários Respeito/compreensão a tomada de decisão do
que ficam no entorno da feirinha do mercado público municipal do
usuário, ainda que esta não seja aquela que nós,
Benedito Bentes, pois tínhamos nos comprometido em passar lá e
“profissionais de saúde”, gostaríamos e/ou
disponibilizar o medicamento de Célia, pois a mesma estava com um
deduzimos como a que seria melhor para ele,
ferimento no lábio que a estava incomodando bastante. No entanto,
sem nem sequer tê-lo consultado.o que fazer
Célia não quis tomar o medicamento naquele dia, disse que estava
diante desta situação? Recuar? Insistir? Como se
bebendo álcool, queria se divertir um pouco e no dia seguinte tomaria
efetiva o respeito à decisão da usuária neste
o medicamento.”(DIÁRIO DE CAMPO, 21/07/2016, p. 03).
caso?
Uso do
medicamento
Acessibilidade
aos serviços
“Pesquisador: Célia, você sabia que alguns medicamentos podem
fazer efeito mesmo em pessoas que tenham e/ou estejam ingerindo
álcool?
Célia: E é? Que história é essa, meu filho!?!? A pessoa não pode ter
uma beloura não, por estar misturando o álcool com o remédio?
Pesquisador: Na verdade, até pode, mas não é todo remédio que
misturado com o álcool provoca esta reação. E o remédio que lhe
trouxemos aqui, com certeza não é do que produz este efeito. Neste
caso, o álcool iria diminuir o efeito que o remédio iria fazer sobre
você, somente. Por isso, eu insisti para que tomasse.
Célia: Ah, agora estou sabendo. Mas mesmo assim, hoje prefiro ficar
sem tomar o remédio.
Pesquisador: Tudo bem, Celinha. Desculpe-me pela insistência em
pedir para que tome o remédio, tá? O desejo de ajudar e/ou contribuir
de alguma forma é tanto que as vezes a gente acaba esquecendo de
consultar se a pessoa quer ou não, se concorda ou não. Enfim, me
desculpe,ta?!?!
Célia: Eu entendo você, meu filho! Você só quer o nosso
bem!”(DIÁRIO DE CAMPO, 21/07/2016, p. 03-04).
Uso do
medicamento
Vínculo/Cuidado
Nesta situação, deparamo-nos numa situação
extremamente embaraçosa no sentido de que
compreendemos que a pessoa teria que fazer uso
do medicamento para minimizar/atenuar suas
dores e/ou sofrimento relacionados ao ferimento
em que estava, mas a mesma opta por não fazer
uso naquele momento, mesmo após insistência
do profissional de saúde, pois estava bebendo
álcool. E, por isso, para ela, não poderia misturar
álcool com nenhum tipo de remédio. Assim, o
profissional de saúde precisa
acatar/respeitar/aceitar numa boa a decisão ou
opção do usuário naquele momento, tentando
retomar tal discussão noutro momento, de
preferência e a partir de elementos que lhe sejam
caros e/ou façam sentido pra si.
7
“Profissional: Célia, você não pode beber de maneira alguma,
entendeu? Se você não se controlar e ficar sem beber, não será
possível resolver o seu problema. Você sabe disso, né?!?!
Célia: ( manteve-se em silêncio e a observá-la.)
Profissional: Célia, venha cá! Deixe eu passar a pomada que a
dentista que lhe atendeu prescreveu para você?!?!
Célia: Não, não quero! Não já lhe disse que já estou passando uma
pomada que tinha comprado ali na farmácia?!?!”(DIÁRIO DE
CAMPO, 21/07/2016, p. 04).
Nesta situação, após ter conversado com a
usuária, uma colega de trabalho, técnica de
enfermagem, tentou convencê-la de modo a
assustá-la, por via da pedagogia do terror/susto, a
fazer com que ela passasse a pomada, mas nada
adiantou. Tal situação, poderia ter comprometido
o vínculo da usuária com o serviço e os demais
profissionais do mesmo, uma vez que sua decisão
não estava sendo respeitada/acolhida.
Uso do
medicamento
Abordagem
Vínculo/Cuidado
Preocupações
com os processos
de Trabalho
“Célia: “A verdade é que estou com muito medo, meu filho. Tenho
Nesta passagem, célia se abre, contando-me um
sentido muitas dores aqui (indicando a região abdominal/barriga)
pouco mais sobre o que de fato estava sentido, o
quando vou urinar. Tem momentos que não consigo controlar e faço medo que lhe assolava e as dificuldades que tem
xixi na roupa, no colchão e em tudo. É uma peleja só, sabe? O
enfrentado para lidar com a incontinência
ferimento do meu lábio também tem me atrapalhado e incomodado, urinária, ferimento do lábio inferior da boca e do
principalmente nas horas que vou tentar comer alguma coisa. Para
uso do álcool como possível anestésico, no caso,
amenizar a dor do lábio, assim que me acordo, preciso tomar uma ou
para inibição/diminuição do incômodo do
mais doses do corote, se não fica difícil de aguentar a dor.
ferimento do seu lábio inferior da boca. A
Célia: Tá vendo aquela profissional ali? (apontando para uma colega
usuária relata não ter gostado da abordagemde
de trabalho). Ela me tratou de forma grosseira, esbravejando, como se uma colega de trabalho e tal situação me fez um
Vínculo
eu fosse uma pariceira dela, se estivesse dando uma ordem para mim, convite a pensar sobre até que ponto podemos ir
Abordagem
mas ela não pode me obrigar a nada, né?
na relação pessoa (profissional) x pessoa
Respeito a
Vínculo/Cuidado
Pesquisador: Sim.
(usuário/a)? Quais os limites desta relação? O
opinião/decisão do
Célia: Não gostei de jeito nenhum da maneira como ela me tratou,
que pode/deve e o que não pode/deve ser dito?
sujeito
não senti confiança nela nem no que ela tava me dizendo, prefiro ser Quais os efeitos das intervenções deste tipo para
atendida por outros (profissionais) da equipe, como aquela baixinha
o cotidiano do trabalho e a relação do
ali (apontando para a Terapeuta Ocupacional), a moreninha, minha
serviço/profissionais com os usuários/as
amiga (Assistente Social) e você, meu filho, que é quem sempre
assistidos/as? Vale frisar que a usuária ora me
escuta o que tenho para falar sem me dar lição de moral.
chama de enfermeiro e/ou médico, mesmo
Pesquisador: Entendi, Célia. Conversarei com a equipe, para que este sabendo de minha formação e qual cargo/função
tipo de situação não se repita e possamos continuar trabalhando
desenvolvo na equipe. Penso que tal fala pode
juntos, tá bom?
ainda estar associada a ideia de uma produção de
Célia: Tá certo, meu filho, meu enfermeiro! (DIÁRIO DE CAMPO,
cuidado em saúde a partir da figura destes
21/07/2016, p. 04)
profissionais.
8
“Pesquisador: Célia, mais uma vez, peço desculpas pelo transtorno
causado, conversarei junto a equipe a necessidade de sermos mais
cuidadosos na maneira como nos referimos a você e a cada um dos
que aqui estão. Além disso, faremos o que tiver ao nosso alcance para
que este tipo de situação não se repita. Tá certo? Não queremos nem
iremos fazer nada que não seja da vontade de cada um de vocês aqui.
Tudo bem?
Célia: Ô, Adriano! Veja aqui a “pomada” que comprei ali naquela
farmácia (apontando para a direção onde a farmácia ficava).
Pesquisador: Sim, Célia... Isto é um protetor labial a base de manteiga
de cacau. Venderam-lhe como pomada foi?
Célia: Foi. Disseram que se eu passasse várias vezes ao dia, iria
ajudar a diminuir o ferimento.
Pesquisador: De fato, ajuda na hidratação do seu lábio, mas este
produto não tem a mesma capacidade de ação que a pomada
tem/teria. Se você decidir passar a pomada, ela lhe ajudará mais que o
protetor labial a base de manteiga de cacau. Mas fica a seu critério
passar aquela que você quiser e/ou decidir, tá bom assim?
Célia: Muito obrigada pelos esclarecimentos, viu, Adriano?!?! Por
favor, não me abandone! Não abandone a gente! (referindo-se aos
demais que ali freqüentam e habitam). Eu tô com medo e, para mim,
tomar uma dose desse corote é o que me ajuda a me distrair, ficar um
pouco mais alegre e até esqueço um pouco dos problemas que tenho.
Pesquisador: Célia, pode ficar tranqüila, tá? Estaremos juntos,
independente de qual seja a situação, sempre que você precisar da
equipe, permaneceremos a sua disposição, afinal este é o nosso
trabalho. Caso precise de algum cuidado e em momentos em que não
estejamos por aqui, pede ajuda ao seu companheiro e/ou a algum
colega e vai ali, até o miniprontossocorro ou então nos procura no
Posto de Saúde, ali ao lado do Mini. Tá bom?
Célia: Tá certo. Pode deixar!” Diário de Campo, 21/07/2016, p. 0405)
Cuidado
Uso do
Medicamento
Vínculo
Vínculo/Cuidado
9
“Luana: Pois é, meus filhos, o negócio aqui tá boca quente, sabe? Os
meninos e meninas que vocês atendem não têm ficado muito por aqui,
porque além do terreno ter sido fechado, tem tido batidas policiais
frequentes no local, o que tem feito com que eles procurem e fiquem
em outros lugares, principalmente pelo dia. Quando a polícia chega
aqui, não estão chegando pra conversa, chego ficar assustada com a
brutalidade que eles tratam os meninos e as meninas (referindo-se
aqueles que estão em situação de rua). E quando estão fumando a
nóia, então. Aí, já viu, né? Aí, é que eles chegam com força mesmo!
Dão em quem tiver, levam suas coisas e às vezes ainda levam alguns
deles. Eu fico com medo deles sumirem, sabe? Fico pensando no que
eles podem fazer com a pessoa que entra no camburão. Ninguém
merece ver nem passar por uma situação dessa, né, minha filha?”
(DIÁRIO DE CAMPO, 21/07/2016, p. 06).
Relação com a
comunidade/territó Vínculo/Cuidado
rio
10
“Dandara: Oi, boa tarde! Estava esperando por vocês. Pensava que
não iam mais voltar para me ver.
Pesquisador: Olá, boa tarde! Como vai? Que isso, Dona Dandara! É
claro que retornaríamos, olha nós aqui! É que, como já lhe
explicamos, temos outras pessoas para atender e outros lugares a
percorrer, por isso não conseguimos estar aqui com tanta frequência.
Assistente Social: Boa tarde, Dona Dandara! Está tudo bem?
Dandara: é sempre muito bom quando vocês vêm aqui me ver, porque
eu me sinto muito sozinha, não tem ninguém com quem conversar...
Sabe? E por mais que vocês fiquem pouco tempo comigo, já melhora
um pouco o meu dia. Moro aqui sozinha nessa casa, minha filha mora
ali bem pertinho com meus netos e bisnetos, mas sabe como é, né?
Depois que a pessoa fica velha, parece que ninguém mais quer saber
de história com você.
Pesquisador: Como assim? Poderia nos contar um pouco mais sobre
isso? Somente se a senhora quiser, tá?
Dandara: Passo o dia todo sozinha, minha filha e os meus netos me
deixam muito só. Isto me deixa triste, porque não pensei que fosse
ficar sozinha depois de velha, sabe? Não estou nem tendo fome e a
quantidade que como é cada vez menor, que quando coloco a comida
na boca não sinto sabor algum e isso também é muito ruim.
Assistente Social: Você mesma é quem faz a sua comida?
Dandara: Não, é a minha filha. É ela quem traz ou manda alguma das
minhas netas trazer a minha comida todo dia, mas o horário de
chegada da comida também é um problema, porque não tem hora
certa e a quantidade de comida que chega pra mim é um “tantinho
assim”, sabe? Muito pouca comida. Quando demora chegar, a fome já
tem passado, aí como bem pouquinho.”(DIÁRIO DE CAMPO,
21/07/2016, p. 06-07).
Vínculo
Família
Vínculo/Cuidado
11
Queixas/pedidos .: demandas: quais as
necessidades da pessoa que nos fala? Nesta
passagem, pode-se afirmar que há a explicitação
de que aquilo que é apresentado e relatado como
“Pesquisador: Dandara anda com dificuldade, mas gosta sempre de
queixa, pode não ser o real problema/necessidade
passar a vassoura na porta de sua casa. Perguntada se sentia fraca, ela
da pessoa. Mas sim, produto, efeito de alguma
disse que sim, mas não sabe o porquê. Pensei que poderia ser pelo
outra situação pela qual esteja passando, por
fato de não estar conseguindo se alimentar em horários estabelecidos
exemplo, a solidão e/ou abandono/rejeição
e/ou regulares e por não estar comendo/ingerindo aquilo que seu
familiar.
corpo precisa para funcionar. A assistente Social da equipe e Eu lhe
- Faz-se necesário ressaltar que neste contexto a
perguntamos de que maneira, na opinião dela, poderíamos ajudá-la?
escuta qualificada ganha destaque e se mostra
Dandara, muito cuidadosa, repetiu que só o fato de estarmos ali,
muito potente, pois dá a possibilidade à pessoa
proseando com ela, já era algo que já a ajudava.” (DIÁRIO DE
falar de si para outrens com direito a atenção
CAMPO, 21/07/2016, p. 07).
focal naquele instante. Isto faz com que a pessoa
que está sendo escutada se sinta reconhecida,
viva, útil, em capacidade de interagir,
compartilhar experiências, aprender e ensinar etc.
Vínculo
Vínculo/Cuidado
“Pesquisador: Segundo Bryan, ele já estava em situação de rua há
Que lugares o crack ou qualquer outra substância
mais de dez anos e já tinha se acostumado a vida que levava
que se utiliza ocupa em sua vida?
diariamente. Afirmou ter começado a usar Crack por curiosidade,
Uso por curiosidade x adesão ao cotidiano:
gostou da experiência de prazer que a substância lhe proporcionava,
Relação com as
prazer fulgás
ainda que muito passageira e, desde então, decidiu adotá-la/inseri-la
drogas
Vínculo/Cuidado
Cuidado consigo: não compartilha o seu
no seu cotidiano. Ele reforça que para levantar dinheiro e fazer uso da
Redução de Danos
Outros
cachimbo de uso diário, mas faz uso sozinho,
substância trabalha dignamente e não mexe em nada que lhe é alheio.
Autonomia
sem estar acompanhado de nenhuma outra
Falou também que não gosta de compartilhar o cachimbo que usa e
pessoa. Redução de danos de um lado, mas
que prefere usar sozinho, sem estar acompanhado.” (DIÁRIO DE
perigo de outro.
CAMPO, 21/07/2016, p. 07).
12
“Bryan: É, eu tenho uma irmã que mora aqui pertinho de onde a gente
costuma ficar, mas não gosto muito de ir nem ficar na casa dela,
porque ela não aceita que faça uso do Crack. E também por não
querer incomodar ela, sabe como é, né? Ela fica querendo dar lição de
moral quase a todo instante, a toda hora, não tem quem aguente.
Ainda fica tentando controlar o que faço e o que não faço, fico me
sentindo um passarinho preso numa gaiola, aí pra mim não dá. Para
onde vai a minha liberdade, né? Preciso dela para fazer o que quiser,
quando quiser e como quiser, não é não? Mas eu acho que por estar
na casa dela, ela pensa que devo toda e qualquer explicação pra ela.
Pode até ser, mas não concordo, por isso não fico muito tempo lá nem
quero contato com ela. É, eu também tenho uma filha, mas ela mora
em São Paulo com a mãe, mas de vez em quando ela vem pra Maceió,
me ver. Quando ela vem, fica na casa dessa minha irmã, que é aqui
pertinho. Sinto saudades dela e gosto quando ela vem me visitar, por
mais que a gente fique pouco tempo junto.” (DIÁRIO DE CAMPO,
21/07/2016, p. 08-09).
- Vínculos familiares frágeis/interrompidos.
- Rua é sinônimo de liberdade, de espaço de ir e
vir, de existir tal como se queira/deseje;
- De que adianta estar numa casa e não poder ser
quem você é? Fazer o que sente vontade e
deseja?
- O que falta para o entendimento/compreensão
entre manoel e sua irmã?
- Saudades de sua filha e demonstração de afeto
pela sua filha;
- Penso que a partir do vínculo que se construiu
com a equipe e em especial com alguns
profissionais desta, manoel se sente muito a
vontade para falar de si conosco, sobre suas
trajetórias, caminhadas prazeres e dissabores. Tal
aproximação nos permite tratar de questões
diversas partindo da sua própria fala é possível
provocar/propor discussões diversas sobre o
cuidado em saúde, como também sobre a sua
vida;
Família
Relação com a
Droga
Vínculo/Cuidado
“Bryan: Quando vejo vocês, faço questão de parar o que estiver
fazendo para conversar um pouco com vocês. Sabe porque? Porque
vocês me tratam com respeito e olham pra mim e para os outros daqui
da rua, como gente, como pessoa humana que somos, independente
da maneira que a gente esteja. Eu me lembro que algumas pessoas
corriam, fugiam e ficavam muito amedrontadas quando me
encontravam pela rua, era como se eu fosse atacá-las, roubá-las ou
fazer algum tipo de coisa contras elas. Isto me deixava muito triste e
não conseguia entender o que levava essas pessoas a pensarem isto de
mim, já que nada fazia contra elas. Só fazia olhar pra elas. Será que
por eu estar um pouco sujo, descalço, com cabelo e a barba grande é
motivo para eles me tratarem assim dessa forma? Com medo de mim?
E eu sou um bicho para eles terem medo de mim? Vocês não têm
medo de mim!” (DIÁRIO DE CAMPO, 21/07/2016, p. 09).
- Reconhecimento da equipe de cnar como
pessoas com as quais pode contar;
- Resgate da cidadania, direitos e dignidade
humanos;
- Sentimento de tristeza profunda e
desapontamento com pessoas da sociedade civil
que tiveram e ainda tem atitudes de preconceito
e/ou discriminação para com ele os demais que
se encontram em situação de rua;
- De onde vem este preconceito e/ou medo em
relação as pessoas em situação de rua?
- Como contornar esta situação e continuar
sobrevivendo num contexto onde as pessoas não
Vínculo
Relação com a
Comunidade
Vínculo/Cuidado
Outros
13
olham pra ti como uma pessoa que possui
direito?
“Bryan: Queria pedir desculpas e agradecer pela conversa, é muito
bom ter alguém que nos escute sem cortar a nossa fala e sem dizer
que estou errado em tudo o que digo. Eu também queria aproveitar
- Pessoas da comunidade: uma rede de vínculos
para dizer que também sou muito agradecido a algumas pessoas que
que se formada, pode ampliar a qualidade de vida
me ajudam nestes anos vivendo nas ruas. Como por exemplo, tem
de muitas pessoas em situação de
uma mulher que mora ali perto de um ferro velho, que sempre chega
vulnerabildiade;
junto com alguma coisa para mim, ela nunca me abandona. Alguns
-Sem escutar não há como ajudar. Aliás, escutar
comerciantes de lanchonetes, restaurantes, pizzarias e supermercados
já é ajudar?
da região também sempre colaboram comigo, isto faz com que as
coisas não sejam tão ruins como poderia ser, né?” (DIÁRIO DE
CAMPO, 21/07/2016, p. 09).
“Bryan: Gente, já tive uma vida muito boa e diferente da que estou
levando agora. Tinha um bom emprego, várias casas, carros e até um
barco a motor, mas fui infeliz nas minhas escolhas e decisões e por
isso, não me lamento nem reclamo do atual momento que estou
vivendo. Fui me aproximar de quem não devia, deu no que deu. Mas
sejam honestos e tomem cuidado com as pessoas que se aproximam
de vocês, elas podem ser pessoas muito mal intencionadas, que só
- Cuidar de mim é cuidar do outro;
- Cuidado de manoel para conosco é explicitado
a partir do relato de sua experiência de vida;
- Vínculo, afeto, confiança, querer bem;
Vínculo
Cuidado
Relação com a
Comunidade
Vínculo/Cuidado
Cuidado
Vínculo
Vínculo/Cuidado
14
querem tirar algum tipo de vantagem, se aproveitar e obter algum
lucro em cima de vocês.” (DIÁRIO DE CAMPO, 21/07/2016, p. 09).
“Pesquisador: Naquele momento, Bryan disse que não estava sentindo
dores, mas que percebia que quando não se alimentava direito e
- Conversas sobre rd relacionadas ao uso do
aumentava o consumo do Crack, sentia fortes dores na região do
crack:
abdômen, a ponto de não conseguir andar e ter que ficar um tempo
- Não compartilhar objetos;
parado, esperando a dor passar, para se recuperar. Diante disso,
- Estar acompanhado de alguém de sua
sugerimos que quando fosse fazer uso, não compartilhasse seus
confiança;
objetos, mas tentasse estar na companhia de pessoas nas quais ele
- Alimentar-se e hidratar-se antes, durante e após Redução de Danos
Vínculo/Cuidado
confiava, pois caso algo lhe acontecesse, teria como ser socorrido
o uso, mas principalmente antes de começar a
Cuidado
rapidamente. Orientamos que tentasse se alimentar a maior
fazer uso;
quantidade de vezes possível ao dia e, principalmente antes de
- Conversas deste tipo somente são possíveis
começar a usar o crack. A mesma orientação foi feita para o
quando se há abertura suficiente para tal, de
consumo/ingestão de líquidos ao longo do dia, pois tais estratégias
modo contrário não conseguimos avançar em
poderiam minimizar os efeitos nocivos causados pelo uso intenso da
diálogos nesta direção;
substância.” (DIÁRIO DE CAMPO, 21/07/2016, p. 10).
“Pesquisador: Antes do término da conversa, alguns profissionais da
equipe já tinham ido embora e sem nem sequer termos feito o póscampo, não foi possível compartilhar algumas questões cruciais
relacionadas aos atendimentos no dia de hoje. Um dia cheio de
demandas, situações e questões de saúde, que se mostram cada vez
mais multifacetadas, diversas, plurais. De que forma é possível
atender e/ou responder a estas demandas ou a parte delas? Dialogar,
conversar, partilhar, corresponsabilizar mais do que preciso, é
imprescindível.” (DIÁRIO DE CAMPO, 21/07/2016, p. 11)
- É possível trabalhar em equipe quando não há
espaço de conversa e escuta para tal?
- Quais os efeitos disto para o trabalho junto aos
usuários assistidos?
Processo de
Trabalho
Preocupações
com os processos
de Trabalho
15
“Renaldo: Eu já vi você (Eu) e aquela moreninha (Assistente Social)
ali trabalhando em várias novelas e filmes que passam na televisão.
Foi, eu me lembro bem. Era você e ela mesmo.” (DIÁRIO DE
CAMPO, 27/07/2016, p. 02).
Conversa com renaldo:
- Vânia e eu x artistas de novela e filmes
- Boa deixa para puxar e investir na conversa;
“Célia: Que história é essa de não colocar o meu nome no seu
trabalho, meu médico? Quero que coloque, viu? Quem já viu? Pode
colocar o meu nome!
Renaldo: Eu também quero que você coloque o meu nome. Até
parece que não lhe conheço, confio em você.” (DIÁRIO DE CAMPO,
27/07/2016, p. 03).
“Célia: Porque você decidiu conversar com a gente sobre essa sua
pesquisa, seu trabalho?
Pesquisador: Desde quando comecei a trabalhar no serviço em agosto
de 2011, me vi muito envolvido com o mesmo e com as pessoas com
as quais trabalhava, atendia, me envolvia e me aproximava
diariamente. Esta experiência me possibilitou e ainda me proporciona
um aprendizado muito rico e em diversos aspectos bem peculiares.
Seria uma forma singela de agradecer por tudo o que pude viver,
partilhar e aprender ao longo deste período até o presente momento
junto de você e tantas outras pessoas em situação de rua. Além disso,
acredito que a força do/da trabalho/pesquisa poderia propor/sugerir
melhorias tanto para a população em situação de rua como para o
próprio serviço.” (DIÁRIO DE CAMPO, 27/07/2016, p. 03-04).
Convesa sobre a pesquisa:
- Célia x curiosidade: porque conversar comigo
sobre o seu trabalho?
Abordagem
Vínculo/Cuidado
Vínculo
Confiança
Preocupações
com os processos
de Trabalho
Abordagem
Vínculo/Cuidado
Preocupações
com os processos
de Trabalho
16
“Pesquisador: Como era a vida de vocês antes e depois do contato
com o Consultório na Rua?
Renaldo: Aconteça o que acontecer, vocês não se esquecem da gente!
Isto é maravilhoso! Nos sentimos gente, pessoa, porque vocês nos
tratam sem medo e discriminação. Com vocês por perto, sinto alegria
e esperança de que as coisas vão melhorar. Queria ao menos um
barraco pra morar junto com a minha véia. Com vocês nós podemos
conversar sobre o que a gente passa e sente e vocês ainda nos
orientam e tentam ajudar...
Já Célia falou o seguinte:
Célia: A presença de vocês é maravilhosa! Eu me sinto bem, viva.
Sinto que posso confiar e contar com vocês e, que vocês não vão nos
abandonar. Quero que você coloque o meu nome no seu trabalho
(pesquisa). Pode falar da gente com os nossos nomes, tá bom?”. Você
e as outras meninas me acompanham desde quando estava com meu
ex-companheiro. Se vocês não tivessem aparecido, acho que eu e os
outros já teríamos partido (morrido). O trabalho que vocês fazem
junto da gente é lindo.” (DIÁRIO DE CAMPO, 27/07/2016, p. 04).
“Célia: Sinto muita dificuldade pra esperar pra ser atendida nas
consultas com os médicos e quando a gente vai fazer exames, é que
demora muito e nem sempre tenho paciência pra ficar no lugar,
parada esperando por duas, três e até quatro horas para ser atendida.
Ninguém merece, né? Outra questão que me incomoda é o tratamento
que alguns profissionais nos dão, muitas vezes olham pra mim e para
os outros de uma forma muito diferente de vocês do Consultório na
Rua. É como se eu não fosse uma pessoa que merecesse ser cuidada e
bem tratada, por causa da maneira como estou naquele momento.
Entendeu?Também sinto falta da água que antes vocês distribuíam
pra gente, era muito bom. Daquelas outras atividades que a gente
fazia, quase toda semana.” (DIÁRIO DE CAMPO, 27/07/2016, p.
05).
Pesquisa:
- Conversa com célia e renaldo x como era antes
do contato com o consultório na rua;
- Sentimento de vínculo e confiança no trabalho;
- Só elogios? Onde estão as críticas ao serviço?
Abordagem
Vínculo
Confiança
Gratidão
Acessibilidade
aos serviços
Vínculo/Cuidado
Preocupações
com os processos
de Trabalho
Conversa com célia e renaldo: algumas
dificuldades explícitas;
Ida aos serviços
Preconceito/discri
minação
Falta de estrutura
(Ausência de
insumos como,
água, lanches e
atividades lúdicoeducativas;
Acessibilidade
aos serviços
Vínculo/Cuidado
Preocupações
com os processos
de Trabalho
Outros
17
“Pesquisador: Como é que você veio parar aqui, na rua, Sr. Renaldo?
Renaldo: A história é longa. Sou casado no papel, tenho uma casa
muito boa num bairro aqui próximo, mas deixei ela para a minha exesposa e duas filhas, desde quando decidi sair de casa, porque não
tava mais me entendendo com a patroa, sabe? Estávamos discutindo e
brigando muito, por qualquer coisa. Ela era muito ciumenta, tava
sempre muito desconfiada de mim, ainda que não tivesse fazendo
nada. As vezes quando saía do trabalho, gostava e queria tomar uma
cerveja com os amigos, mas ela não queria que fosse e sempre que
chegava um pouco mais tarde do trabalho, a gente brigava e discutia
muito. Mas, nunca bati nela! Saí de casa, porque não estava
agüentando e também porque pensei nas minhas filhas. Não queria
mais que elas vissem e sofressem por minha causa. Por isso, me
afastei. Sinto muitas saudades delas, as vezes penso em visitá-las, mas
ainda não fui.” (DIÁRIO DE CAMPO, 27/07/2016, p. 06).
“Pesquisador: É do seu interesse ir ao CAPS AD? Se o Sr. quiser,
podemos articular e deixar programado para algum outro dia da
semana que vem, o que acha?
Renaldo: Quando eu quiser ir, aviso pra vocês. Tá certo?
Pesquisador: Peço desculpas pela demora para você ser atendido, mas
naquele momento não tinha como ser diferente. Aproveito para lhe
parabenizar pela paciência e por ter ficado até o final do atendimento.
Vamos adiante aos próximos capítulos!
Renaldo: Sim, vamos.” (DIÁRIO DE CAMPO, 27/07/2016, p. 07).
Atendido: - um pouco de sua história;
- Motivos que o levaram até as ruas;
- Saudades das filhas;
Abordagem
Família
Acessibilidade
aos serviços
Vínculo/Cuidado
Renaldo:
- Ida ao caps ad;
- Parabenização pela paciência;
Adriano
Conversa com renaldo no corredor da ubs
enquanto aguardávamos a sua vez para ser
atendido: - um pouco de sua história;
- Motivos que o levaram até as ruas;
- Saudades das filhas;
Respeito a
decisão/opinião do
Vínculo/Cuidado
sujeito
Cuidado
18
“Célia: Seria bom que eu morresse pra que vocês pudessem cuidar de
outras pessoas, não era meu fio?
Pesquisador: Fiquei chocado com a sua fala, Dona Célia. Me pegou Confesso que fiquei completamente pasmo com a
completamente de surpresa, não esperava que você fosse dizer o que
fala de célia, mas ao mesmo tempo, tentei não
disse com as palavras que disse. Mas saiba que o que gostaríamos
demonstrar o efeito de suas palavras sobre mim.
Abordagem
mesmo era de vê-la bem, cada vez mais viva, cheia de desejos e
Rapidamente, tentei pensar em algo para lhe
Cuidado
coisas a realizar. Se possível compartilhando conosco cada uma de
dizer, onde deixasse claro pra ela que nós
Respeito à
suas conquistas. Veja mulher, nós já estamos “cuidando” de outras
podemos e poderíamos cuidar de outras pessoas opinião/decisão da
pessoas. Não é preciso de maneira alguma, que você nem nenhuma
sem que ela tivesse que morrer. Ao final, resolvi
usuária
outra pessoa morra, para que possamos auxiliar no cuidado de outra,
ser honesto e falei-lhe algumas palavras.
que não seja você. No entanto, se ainda assim, este for o seu desejo,
Desejo de morrer x cuidar de outras pessoas
estaremos com você até o último momento lhe apoiando no que for de
seu interesse. Tá bom?” (DIÁRIO DE CAMPO, 27/07/2016, p. 08).
“Pesquisador: um dos conselheiros tutelares presentes no momento
em que estivemos no Conselho, disse-nos que o Conselho Tutelar
tinha e tem feito o que é de sua competência em relação ao caso de
Hércules, que é encaminhar o adolescente para as instituições
disponíveis no município. Disse ainda que cansou de pegarHércules
na esquina de um posto de gasolina e o levar para a única Unidade de
Acolhimento Infanto-Juvenil – UAIJ custeada pelo município e, em
tantas outras o levou até para sua própria casa, onde deu comida,
banho e roupas. Mas, via que Hércules não queria nada com a vida,
queria mesmo era ficar na rua usando drogas. Esta fala me incomodou
fortemente. Pois, quais possibilidades teria a vida ofertado a
Hércules? Pois, seria somente este o papel do Conselho Tutelar?
Claro que não! Mas infelizmente, esta é a maneira como a grande
maioria dos Conselheiros Tutelares tem atuado.” (DIÁRIO DE
CAMPO, 28/07/2016, p. 04)
Processo de trabalho:
- Conselheiro tutelar: cansado de tentar com
hércules;
- Hércules não quer nada com a vida além de
usar drogas;
Acessibilidade
aos serviços
Vínculo/Cuidado
Processo de
Trabalho
Ida aos serviços
Assistência Social
- Omissão de
Vínculo/Cuidado
socorro/ajuda
Outros
(culpabilização do
garoto pela
situação em que se
encontrava)
19
“Pesquisador: Aconteceu alguma coisa para que você saísse da área,
como saiu, sem deixar rastro nem nenhuma pista pra nós e os demais
colegas em situação de rua com os quais você dividia e passava os
dias e as noites?
George: Não, rapaz. (Risos!) O que aconteceu foi que certo dia tomei
um ônibus com alguns meninos e viemos à praia. Mas quando
chegamos nela, nos perdemos e não nos encontramos mais. (Risos!)
Daí, como já estava por aqui por baixo, decidi ficar um pouco mais,
mudar de ares e ver o que rolava por aqui. (Risos!)
George: To muito feliz em ver vocês, senti muita falta de vocês.
Todos os dias ficava pensando, será que os pessoal da saúde algum
dia vai me encontrar? Quando passava um carro parecido com o que
vocês andavam, eu ficava, espiava para ver se era vocês, mas quando
as pessoas desciam do carro, logo via que não era. Aqui tá sendo bom
pra mim, fiz novas amizades e até tô recebendo ajuda de uma mulher,
que mora num prédio em frente a praia e ao lado da Loja Americana.
A mulher que está me ajudando, não me lembro agora do nome dela,
mas ela me acompanhou no serviço de saúde outro dia quando tava
muito mal e ela ainda tem me ajudado com roupas e levado comida
pra mim todos os dias. Tão vendo aqueles meninos ali no
estacionamento (apontando para dois sujeitos que também tomavam
conta dos carros no local onde estava)? São gente fina, também olham
carros aqui na área. Aqui não tenho problemas com ninguém, fiz até
amizade com o segurança do posto de gasolina, ele deixa eu usar o
banheiro e o espaço do posto para me proteger da chuva. Olhem!
Vejam ali no canto da parede do estacionamento, aqui tenho um
colchão e uma grande quantidade de roupas arrumada em sacolas
grandes e coberta por um papelão de caixa de bicicleta. Eu tenho tudo
o que preciso, to muito satisfeito com a vida que tô levando aqui
embaixo.” (DIÁRIO DE CAMPO, 17/08/2016, p. 03-04).
Encontro/conversa com george:
- Ônibus x praia;
- Saudade da equipe;
- Alegria em nos ver;
- Partilha de sua trajetória na região;
- Novos vínculos e pontos de apoio;
- Vínculo;
- Confiança;
- Afeto;
- Efeito;
- Cuidado;
- Efetividade;
Abordagem
Cuidado
Vínculo
Relação com a
Comunidade
Ida aos serviços
Vínculo/Cuidado
20
“Pesquisador: Como o motorista estava conduzindo o veículo de
maneira nada defensiva, isto fazia com que a viagem fosse ainda mais
desconfortável, pois ora o carro passava em terrenos elevados e/ou em
Processo de trabalho:
lombadas numa velocidade excessiva, noutras freava de modo brusco,
- Perigo a vista!
completamente desnecessário. Tal situação colocava a nós todos em
- O que podemos fazer para evitar que este tipo
risco, inclusive a usuária que estávamos transportando. Pensei em
de situação ocorra?
intervir ainda quando estávamos dentro do carro mesmo, mas
considerando a presença de Célia, achei melhor deixarmos para
Que postura deve ser adotada em situações como
conversar sobre quando retornássemos, pois temia que ele se alterasse
esta?
e quisesse arrumar uma confusão e isto, não era o que procurávamos.
(DIÁRIO DE CAMPO, 18/08/2016, p. 04).
Processo de
trabalho
Preocupações
com os processos
de Trabalho
“Pesquisador: Mas como a relação entre nós profissionais e o
motorista não andava muito boa, questionei/refleti se a situação
passada pelo motorista era verídica ou se, tratava-se de uma forma de
protesto e/ou punição a equipe, tendo em vista que o mesmo estava
extremamente insatisfeito em estar trabalhando conosco e mesmo
assim a coordenação da garagem da Secretaria Municipal de Saúde de
Maceió o mantinha conosco.” (DIÁRIO DE CAMPO, 23/08/2016, p.
01).
Processo de trabalho:
- Motorista insatisfeito em trabalhar conosco ;
- Coordenação de garagem o mantinha conosco;
Processo de
Trabalho
Preocupações
com os processos
de Trabalho
“Pesquisador: Feito isso, retornei a sala onde as demais profissionais
da equipe estavam presentes. Nesta, a apoiadora da equipe (cargo
fictício para a SMS, mas que substituiu o de coordenador(a) de
equipe), estava a debater com outras duas profissionais se era viável
ou não a presença de pessoas de fora (estagiários, graduandos,
mestrandos, doutorandos, residentes etc.) da equipe nos momentos de
reunião semanal. Três colegas de trabalho defendiam que as pessoas
de “fora da equipe” não deviam participar de todos os momentos de
reunião semanal de equipe, pois há coisas que estas não precisariam
saber/tomar conhecimento.” (DIÁRIO DE CAMPO, 23/08/2016, p.
01).
Processo de trabalho:
- O que há de tão especial no momento de
reunião que os estagiários, mestrandos e/ou
doutorandos não podem participar de forma
efetiva?
- De onde vem esta ideia/postura?
- O que pode estar por trás disso?
Processo de
Trabalho
Preocupações
com os processos
de Trabalho
21
“Jussara: A gente que vive na rua tem bastante dificuldade para
conseguir dinheiro e tocar a vida, né? Fazer programa, sair com
homens e mulheres, mesmo sem conhecer nenhum deles, é o que dá
pra fazer onde costumo ficar aqui na rua. Infelizmente, ninguém
confia em dar um trabalho comum para uma pessoa que usa droga.
Jussara:
Me diga, como vou me virar para sobreviver? Sabe, acredito que
Fazer programas;
Relação com o
peguei o vírus do HIV num destes programas a noite e que devia estar
Contaminação por hiv;
sexo
sob forte efeito de alguma droga quando isto me aconteceu. Mas, pra
O que posso fazer na minha condições na rua? (necessidade/sobre Vínculo/Cuidado
mim, não tenho outra opção neste momento para poder enfrentar a
Vínculo e confiança na equipe para poder abrir
vivência)
Outros
noite e a madrugada saindo e tendo relações com pessoas diferentes.
sua intimidade;
Relação com a
Usar um baseado ou até mesmo umas pedras de Crack, é o remédio Drogas x anestésico mais barato para enfrentar os
Droga
“mais barato” que me ajuda a diminuir as dores que carrego comigo
dissabores e desafios da vida;
ao longo da vida, diminui também o meu constrangimento na frente
dos meus clientes e ainda me faz ter coragem para continuar ali, me
expondo diariamente para conseguir algum dinheiro para sobreviver.”
(DIÁRIO DE CAMPO, 30/08/2016, p. 01).
“Francisco: Veja, sempre abri as portas de minha casa para Jussara.
Fico bastante preocupado com ela, principalmente quando ela passava
dias e mais dias sem dar nenhum sinal de vida. Nos dias que ela não
voltava para casa, eu até saía a procura dela para ver se a encontrava
pelas ruas e nos lugares onde sabia que ela podia estar. Às vezes, era
somente pra saber se ela tava precisando de alguma coisa. Quando
conseguia encontrar com ela, preocupado com a sua situação dela,
conversava e tentava levar ela de volta comigo para casa, mas nem
sempre ela concordava e isto acontecia. Não podia desistir de tentar
nem de ao menos falar com ela e demonstrar a minha preocupação.
Mas, sempre acabava respeitando ela e a sua decisão sem fazer muita
pergunta, sabe? Com certeza, ela deve ter os seus motivos para querer
ficar ali, naquele momento onde estava.” (DIÁRIO DE CAMPO,
30/08/2016, p. 01).
Francisco x jussara:
- Cuidado com jussara;
- Busca ativa por conta própria x cenas de uso e
tráfico ;
- Respeito a decisão de jussara;
- Não posso desistir de tentar;
- Aula de rd;
Relação com a
Comunidade
Vínculo
Cuidado
Vínculo/Cuidado
Respeito a
Outros
Decisão/opinião
da usuária
Redução de Danos
22
“Pesquisador:: O Sr. já ouviu falar das infecções sexualmente
transmissíveis, que normalmente se pega quando temos relação sexual
desprotegida com alguém infectado ou nos colocamos em situações
de risco? É sempre bom tentarmos adotar uma postura preventiva
diante de situações de risco, pois nunca se sabe o que pode nos
acontecer, não é? Nestes casos é de extrema importância o uso do
preservativo masculino ou feminino, este ainda é o método mais
eficaz de se prevenir das infecções sexualmente transmissíveis. E
sempre que notar ou perceber algo de estranho no funcionamento do
corpo, procurar ajuda e informação, se for o caso realizar exames ou
testes rápidos, principalmente em caso de ter sido exposto a alguma
situação de risco de contaminação/contágio.” (DIÁRIO DE CAMPO,
30/08/2016, p. 02).
Francisco x filhas:
- orgulho;
- As procura somente em momentos de extrema
necessidade;
- Prevenção contra ist’s: preservativo masculino
e feminino;
Cuidado
Redução de danos
(Orientações em
Saúde)
Acessibilidade
aos serviços
Vínculo/Cuidado
Preocupações
com os processos
de Trabalho
“Pesquisador: Acompanhado algumas vezes pela equipe do CnaR,
Cícero já teve a oportunidade de conhecer os leitos de saúde mental,
destinados a desintoxicação, do Hospital Geral Ibi Gatto Falcão, na
cidade de Rio Largo, onde ficou doze dias acolhido. Também
conheceu o CAPS AD 24 horas Everaldo Moreira, no bairro do Farol,
por onde passou quando recebeu alta do Hospital citado e freqüentou
o espaço de dois a três dias na semana, mas por falta de dinheiro para
custear as passagens de ida e volta, não permaneceu freqüentando o
mesmo. Além disso, ficou por mais de seis meses numa Comunidade
Acolhedora, na Massagueira, em Marechal Deodoro, até ser liberado
e retornar ao seio familiar.” (DIÁRIO DE CAMPO, 30/08/2016, p.
03).
Cícero:
- O que temos para ofertar a cícero dá conta de
resolver o seu problema?
- Vai pra lá e para cá: onde isto vai parar?
- Vínculo, como é possível se criar?
- Continuidade do cuidado x burocracias x falta
de condição finaceira;
Ida aos serviços
(UBS, Hospital,
CAPS ad e
Comunidade
Acolhedora)
Acessibilidade
aos serviços
Vínculo/Cuidado
Preocupações
com os processos
de Trabalho
23
“Cícero: Oi, Adriano! Tava mesmo procurando por você! É que estou
daquele jeito de novo. Lá onde moro não tem jeito, voltei a beber. Em
todo canto que eu vou tem gente bebendo, fica complicado não beber.
Até tava resistindo, quando tava indo pro CAPS AD umas duas ou
três vezes na semana, mas não consegui dinheiro para continuar indo.
Aí, não deu outra, voltei a beber com força. Não to conseguindo nem
dormir direito, porque se fico sem beber um dia, já começo a me
tremer todo, os braços e as pernas ficam de um jeito que quase não
consigo controlar. Pra tomar um copo de água, é um sufoco, de tanta
tremedeira. Pra piorar, fico vendo aqueles vultos pretos, umas
imagens estranhas, uns bichos e, é como se sempre tivesse alguém
atrás de mim, para me pegar. E ainda tem as vozes que ficam falando
nos meus ouvidos, uma chuvinha de estrelas de prata que vejo mesmo
Cícero:
Abordagem
com os olhos abertos e, todo dia tenho tido crises de epilepsia, até cai
- Ida a ubs a procura de ajuda;
(acolhimento/escut
da cama algumas vezes, assustando meu irmão, cunhada e sobrinhos
- Vínculo e confiança no trabalho da equipe;
a qualificada)
Acessibilidade
que estavam dormindo perto de mim. Tô que não me agüento! Vim
- Angustiado com os sintomas apresentados;
Vínculo
aos serviços
andando de lá da casa do meu irmão até aqui. Você pode me ajudar?
- Porque não procurou os outros serviços e
Relação com a
Vínculo/Cuidado
Eu queria ir pra aquele hospital que fica lá em Rio Largo.
procurou o cnar?
droga (álcool)
Preocupações
Pesquisador: Claro que podemos tentar te ajudar, Cícero! Vamos
- O que lhe é ofertado que o faz acreditar que nós
Cuidado
com os processos
tentar tudo o que estiver ao nosso alcance neste momento, ta bem?
podemos lhe ajudar?
(corresponsabiliza
de Trabalho
Tente ficar tranqüilo, enquanto vemos o que conseguimos fazer por
- Intervenções sinceras, com respeito e
ção)
hoje.
compromisso, sem infantilizar o sujeito;
Confiança
Cícero: Eu agradeço muito pelo que vocês já fizeram por mim
tentando me ajudar, escutando os meus problemas, me acompanhando
e me levando em tantos lugares. Não queria ta dando trabalho
novamente pra vocês, fico até com vergonha de estar aqui de novo,
mas não tinha outra escolha. Agüentei até onde pude. De todos os
lugares que fui, gostei mais de ter ficado no Hospital de Rio Largo e
naquela Comunidade de lá da Massagueira, porque as pessoas que
conheci, me ajudaram e me trataram com respeito. Por mim, ficaria
no Hospital até eu me recuperar do meu problema, mas entendo que
lá não é um lugar pra eu poder passar tanto tempo. Só fica lá o tempo
que é preciso para controlar as crises e eu me sentir melhor, né isso?
A experiência da Comunidade também foi boa, porque depois que
24
melhorei, eles me convidaram pra trabalhar como monitor e ajudante
de cozinha na casa, o que para mim foi muito bom, fiquei bem
conhecido e respeitado na casa, pelas comidas que fazia na cozinha.
Mas queria mesmo que vocês me levassem para o Hospital Ibi Gatto,
em Rio Largo, ao menos para eu melhorar das crises de epilepsia que
to tendo e dessa tremedeira braba que to. Olhe pra isso! Veja!
Pesquisador: Cícero, você não está nos dando trabalho. Na verdade,
nós estamos aqui para te ajudar de alguma forma, da maneira como
pudermos e for preferível pra você. Este é o nosso trabalho! Você
pode vir aqui a nossa procura quantas vezes você quiser. Tá bom?
Mas, queria entender uma coisa, porque você procurou a nossa equipe
de Consultório na Rua e não os outros serviços pelos quais o Senhor
também já passou?
Cícero: É que eu sei que com vocês, eu posso contar. A verdade, é
que confio em você, Adriano e no trabalho da sua equipe mais do que
em qualquer outro serviço, mesmo sabendo das dificuldades e
problemas que vocês têm com transporte, materiais e outras coisas.
Mesmo assim, vocêssempre cumprem e honram com a palavra que
me dão e com o que a gente combina, não ficam me prometendo
coisas e me enganando, como se tivessem lidando com uma criança.
Graças a vocês também, pude entender que preciso ir em outros
serviços para poder continuar o meu tratamento.” (DIÁRIO DE
CAMPO, 30/08/2016, p. 03-04).
“Pesquisador: O motorista aparentava estar daquele jeito, para nãoconversa. Mal respondeu os cumprimentos de boa tarde dos colegas
da equipe e tocou a dirigir, infelizmente, de modo imprudente, o que
colocava a todos em perigo, tanto os que estavam dentro como
aqueles que estavam do lado de fora. O tempo ainda estava meio
nublado, porque tinha chovido e isto aumentava ainda mais os riscos
de sofrermos/ocasionarmos algum acidente com um veículo sendo
guiado daquela forma.” (DIÁRIO DE CAMPO, 30/08/2016, p. 04).
Processo de trabalho:
- Motorista imprudente e insatisfeito ao volante;
Processo de
trabalho
Preocupações
com os processos
de Trabalho
25
“Pesquisador: Agora sim, a gente pode conversar com um pouco mais
de liberdade e tranquilidade, né? E aí, como é que você está se
sentindo?
Hércules: Não to mais suportando ficar aqui, neste lugar. Aqui o que
faço é assistir filmes, jogar video-game, dominó, baralho, de vez em
quando um rachinha de futebol, rezo e ajudo nas atividades da casa.
Não era isso só isso que gostaria de fazer, fico impaciente. To me
sentindo muito impaciente e insatisfeito. Já to aqui nessa casa tem
quatro meses, não to agüentando mais fazer as mesmas coisas todos
os dias. Você me entende? Quero e preciso fazer outras coisas e aqui,
ficam nos vigiando o tempo todo, mas ao mesmo tempo parecem não
estar nem aí para o que eu e os outros meninos falamos pra eles.
Parece que eles só estão interessados no dinheiro que recebem por a
gente estar aqui, é o que eu acho.
Pesquisador: Mas o que o faz ter certeza disto?
Hércules: Foi que ouvi o monitor comentando que se não chegasse
logo outros meninos para casa, a casa poderia fechar as portas,
porque sem a dinheiro repassada pela Secretaria de Saúde de Maceió,
não teria como manter a casa funcionando e não ia ter como pagar os
profissionais. Quase nenhuma pessoa de saúde aparece aqui na casa, a
gente passa o dia todo aqui com o monitor e, que por mais que o
monitor queira ajudar a gente, não consegue porque ninguém,
nenhum outro profissional chega junto pra ajudar ele. O monitor diz
que sempre leva as nossas sugestões, solicitações, reclamações e
pedidos pra direção, mas infelizmente nunca fomos atendidos em
nada do que a gente disse.
Pesquisador: Quais profissionais você teve acesso, conversou e/ou foi
atendido aqui na casa?
Hércules: Oxe, foi muito pouco. Só a psicóloga da instituição e uma
enfermeira que aparece somente duas vezes na semana, pela manhã.
Teve uma outramulher que conheci, acho que era uma médica porque
ela que me passou os remédios pra usar todo dia. Aí, eu to tomando,
mas gostaria de parar de tomar, não acho que tão me ajudando em
nada. Sim, outra coisa que queria falar era da comida. Aqui tem
Conversa com valdício:
- Triste/abatido x insatisfação com estada no
local;
- Repetição da comida em todas as refeições;
- Poucas atividades para ocupar o dia;
- Ausência de profissionais de saúde;
- Desejo de sair e fazer outras coisas;
- Reconhecimento da equipe como parceira na
sua jornada até aqui;
- Vínculo x confiança x avanço no cuidado;
- Desejo de ter uma família e uma casa para
morar.
Abordagem
Ida aos serviços
(Clínica de
internação
involuntária e
Hospital)
Processo de
Trabalho
Vínculo
Cuidado
Confiança
Relação com a
droga
Acessibilidade
aos serviços
Vínculo/Cuidado
Preocupações
com os processos
de Trabalho
26
comida pra todo mundo, nunca faltou. Mas é a mesma comida em
todas as refeições, nenhum da gente aqui ta agüentando mais olhar
pra mesma comida. Só que nem todo mundo tem coragem de ir
reclamar e pedir algo diferente do que tão colocando pra gente comer,
a gente fica com medo do que pode acontecer com a gente, né? To me
esforçando e fazendo de tudo para ficar no local, mas que ta ficando
cada vez mais difícil ficar aqui isolado, sem ter muita coisa pra fazer,
vendo as horas passando bem devagarinho. Sei que vocês não podem
vir aqui todos os dias, mas além de vocês, ninguém mais vem aqui me
visitar, isto é muito ruim. Eu Sei que vocês tão fazendo o que podem
para vim aqui me ver, muito obrigado por não me abandonar. Sei que
posso confiar e contar com vocês.
Equipe (Assistente Social e Eu): Não precisa nos agradecer por nada,
Querido. Porque este é o nosso trabalho. Tudo que foi feito até agora
só foi possível por causa do movimento que você fez junto conosco.
Você entendeu? Sem a sua colaboração e participação efetiva nada do
que fizemos teria acontecido. Você é um guerreiro que nos inspira
muito, sabia?
Hércules: Se não fossem vocês atrás de mim, me procurando,
tentando me ajudar, tentando conversar comigo, não teria começado o
tratamento lá naquele hospital grande. Também não tinha conseguido
ficar tanto tempo sem fumar o Crack. Olhem como to agora! Vocês
jamais desistiram de mim, mesmo quando eu não queria papo, não
dava atenção e tratava vocês sem nenhuma educação.
Equipe (Assistente Social e Eu): Estamos mobilizando os outros
serviços para discutir possibilidades de cuidado, para dar
continuidade ao seu tratamento, quando o seu tempo na casa terminar.
Hércules: Queria ser adotado por uma família, morar numa casa com
uma mãe, um pai, irmãos e um cachorro. Queria ter uma casinha, com
uma caminha quente pra dormir, com comida pra comer quando
sentisse fome, com pessoas que pudesse contar, confiar, ter e dar
atenção todo dia.” (DIÁRIO DE CAMPO, 30/08/2016, p. 05-06).
27
“Cícero: Pensei que tinham se esquecido de mim e não viriam mais
hoje. Só que Adriano disse que se não viesse, ligariam pra o meu
irmão ou pra minha cunhada, como não ligaram, aguardei até que
vocês chegassem. Que bom que vocês vieram, não dormi nadinha de
ontem pra hoje, ouvindo umas coisas estranhas e vendo uns bichos
correndo atrás de mim. Quase que saí de casa de madrugada, porque
não queria atrapalhar o sono de ninguém, mas me segurei e esperei
vocês até aqui.” (DIÁRIO DE CAMPO, 31/08/2016, p. 02).
“Cícero: Não sei bem o que seria de mim sem a ajuda de vocês neste
momento. Eu tava com muito medo, porque não sabia e nem entendia
bem o que tava me acontecendo, acontecendo comigo, antes de
conhecer vocês. Depois dos atendimentos e conversas que tivemos e
as orientações feitas pra mim e pra minha família, me sinto mais
confiante e com esperança de melhorar a minha situação.
Principalmente, diminuir ou parar o uso do álcool, que é algo que tem
me atrapalhado e incomodado muito. E, dormir bem, que já faz um
tempinho que não consigo pregar os olhos.” (DIÁRIO DE CAMPO,
31/08/2016, p. 02).
“Cícero: vocês não vão me deixar aqui e vão se esquecer de mim não,
não é? Vocês vão vim aqui para me buscar quando eu tiver de alta?”.
(DIÁRIO DE CAMPO, 31/08/2016, p.02
Compromisso e responsabilidade: equipe x
usuário x trabalho que avança;
Ida aos serviços
(Hospital)
Confiança
(Compromisso)
Acessibilidade
aos serviços
Vínculo/Cuidado
Vínculo
Reconhecimento da equipe como parceira, como Redução de Danos
Acessibilidade
ponto de apoio;
(Orientações em
aos serviços
- Vínculo x confiança x cuidado;
saúde)
Vínculo/Cuidado
Confiança
- Medo de ser esquecido no hospital x
dependência da equipe?
- Medo de ser maltratado?
Vínculo
Acessibilidade
aos serviços
Vínculo/Cuidado
Fonte: Elaborado pelo autor,
Legenda:
1.
Vínculo/Cuidado: - Acolhimento; - Cuidado; - Abordagens; - Atenção Integral; - Escuta Qualificada; - Conversa; Respeito à decisão/opinião do
usuário (a); - Confiança - Vínculo; - Autonomia; - Corresponsabilização; - Autocuidado; - Intersetorialidade;- Redução de Danos; - Orientações em Saúde.
2.
Acessibilidadeaos serviços: - Ida ao Hospital; - Ida ao CAPS; - Ida ao médico; - Ida ao Conselho Tutelar; - Ida a UBS (Marcação de Consulta); – Uso
de Medicamento; - Ida ao Laboratório (realização de exames); - Família; Relação com a Comunidade/Território.
3.
Preocupações com os processos de trabalho: - Planejamento; - Burocracia; - Modelo de organização, funcionamento e/ou operacionalização das
ações da equipe; - Educação Permanente/Formação continuada; - Carro/Motorista/Transporte; Falta de estrutura (insumos diversos, água, material lúdicoeducativo);
4.
Outros: - Relação com as drogas (lícitas ou ilícitas); - Preconceito/Discriminação; - Relação com o sexo; - Relação com o sexo.
