Hélton Walner Souto Santos - Interfaces entre a Psicologia Cultural e a Literatura de cordel: O problema ético e estético da mediação semiótica.
Dissertação - Mestrado - Hélton Walner - 2016.pdf
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS – UFAL
INSTITUTO DE PSICOLOGIA – IP
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
LINHA 3: PROCESSOS COGNITIVOS E MEDIDAS PSICOLÓGICAS
HÉLTON WALNER SOUTO SANTOS
INTERFACES ENTRE A PSICOLOGIA CULTURAL E A LITERATURA DE CORDEL: O
PROBLEMA ÉTICO E ESTÉTICO DA MEDIAÇÃO SEMIÓTICA.
MACEIÓ – AL
2016
0
HÉLTON WALNER SOUTO SANTOS
INTERFACES ENTRE A PSICOLOGIA CULTURAL E A LITERATURA DE CORDEL: O
PROBLEMA ÉTICO E ESTÉTICO DA MEDIAÇÃO SEMIÓTICA.
Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Psicologia da Universidade Federal
de Alagoas – UFAL como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Psicologia.
Orientadora: Prof.ª Dra. Nadja Maria Vieira da
Silva
MACEIÓ – AL
2016
1
Catalogação na fonte
Universidade Federal de Alagoas
Biblioteca Central
Bibliotecária Responsável: Janaina Xisto de Barros Lima
S237i
Santos, Hélton Walner Souto.
Interfaces entre a psicologia cultural e a literatura de cordel: o problema ético e
estético da mediação semiótica / Hélton Walner Souto Santos. – 2016.
68 f.
Orientadora: Nadja Maria Vieira da Silva.
Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Federal de Alagoas.
Instituto de Psicologia. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Maceió, 2016.
Bibliografia: f. 66-68.
1. Psicologia cultural. 2. Semiótica. 3. Cordel. I. Título.
CDU: 316.6: 087.6
2
3
A favor de toda luta pela legitimação política e cultural dos
seguimentos artísticos brasileiros, dedico esta dissertação,
em particular e especial, às cordelistas e aos cordelistas de
Alagoas.
4
Agradeço:
- Ao programa de financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas –
FAPEAL que subsidiou a realização dessa pesquisa e minha estadia na pós-graduação.
- Ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas – UFAL
pela oportunidade de ampliação de minha formação.
- À professora Nadja Vieira que, por meio das reuniões de orientação, muito contribuiu com a
organização de minhas ideias e para o desenvolvimento de minha escrita.
- Ao professor Henrique Simões com quem mantive diálogos importantes durante toda minha
formação acadêmica.
- Ao professor Frederico Costa que, mesmo sendo um encontro recente, despertou em minha
formação o interesse pelas questões políticas das produções acadêmicas.
- A todos os professores e professoras do Instituto de Psicologia da UFAL que fizeram parte
direta e indiretamente da minha formação acadêmica.
- Aos meus pais, Antônio e Marinelma, e tias, Maria e Sebastiana, a quem não só agradeço,
mas dedico todas as letras aqui escritas.
- Aos amigos Juliano Bonfim e Valéria Vanessa que têm feito parte da história de minha
formação acadêmica e humana e a quem tenho direcionado boa parte das minhas angústias
criativas.
- A minha analista, Susane Zanotti, que me ajudou a usar corretamente os sinais de pontuação,
de modo muito especial as reticências e os pontos finais.
- Aos acidentes da minha história sem os quais não teria alcançado a profundidade necessária
para viver.
5
RESUMO
Trata-se de uma pesquisa empírica que apresentou e defendeu argumentos sobre a função de
mediação entre cordelistas e seus cordéis a partir dos processos de criação e apreciação
artística. Para isso, propôs-se uma revisão dos fundamentos da teoria de Vigotski, destacando
os problemas ético e estético da função de mediação presentes em seus escritos. Justifica-se a
realização desse estudo pela necessidade de ampliação do diálogo entre Psicologia e Arte na
construção de explicações sobre o funcionamento psicológico humano. O objetivo central foi
investigar processos emergentes da função de mediação na atividade criadora de cordéis.
Além disso, foram objetivos específicos: 1) caracterizar a função de mediação de acordo com
Vigotski; 2) discutir a concepção de atividade criadora em Vigotski; 3) discutir a função do
signo no processo de criação artística; e 4) discutir a adequação do método utilizado nessa
pesquisa para a análise de processos microgenéticos da função de mediação na arte.
Participaram desse estudo os cordelistas A, B e C residentes no estado de Alagoas. Foram
realizadas três entrevistas semiestruturadas com cada um dos cordelistas. As entrevistas foram
orientadas a partir de duas estratégias metodológicas correspondentes aos processos de
criação e apreciação dos cordéis. O material de análise foram as narrativas dos cordelistas A e
B. A análise das narrativas privilegiou a configuração microgenética de informações
circunscritas a cada estratégia metodológica adotada. Resultou-se desse estudo que a função
de mediação na atividade criadora de cordéis esteve relacionada com a dinâmica de
complementariedade e contraditoriedade entre dimensões configuradas nas narrativas dos
cordelistas. Assumiu-se, por fim, que a revisão dos problemas ético e estético da função de
mediação favoreceu interpretações sobre o funcionamento psicológico a partir da dinâmica
das relações sociais.
Palavras-chave: Função de mediação; Criação e apreciação artística; Funcionamento
psicológico; Microanálise.
6
ABSTRACT
This empirical research argues about the mediation function between cordelistas and their
cordéis considering the processes of creation and artistic appreciation. In the review of
Vygotsky's theory was characterized the ethical and aesthetic problems of the mediation
function present in his writings. The central objective was to investigate emerging processes
of mediation function in creative activity of cordéis. The secondary objectives included: 1) to
characterize the mediation function according to Vigotski; 2) to discuss the conception of
creative activity in Vigotski; 3) to discuss the function of the sign in the process of artistic
creation; and 4) to discuss the adequacy of the method used in this study for the analysis of
microgenetic processes of the mediation function in the art. Three cordelistas (A, B and C)
residents of Alagoas state participated in that research. Three semistructured interviews were
realized with each one of the cordelistas. The interviews were oriented from two
methodological strategies correspondents to the processes of creation and appreciation of the
cordéis. The material of analysis were the narratives of cordelistas A and B. The analysis of
the narratives privileged the microgenetic configuration of information limited to each
methodological strategy adopted. Resulted from this study that the mediation function on the
creative activity of cordéis was related with the dynamic of complementarity and
contradictoriness between dimensions configured on the cordelistas narratives. It was argued,
lastly, that the revision of the ethical and aesthetic problems of mediation favored
interpretations about the psychological functioning from the dynamic of social relations.
Key words: Mediation function; Artistic creation and artistic appreciation; Psychological
functioning; Microanalysis.
7
LISTA DE FIGURAS
Pag.
Figura 1 – The Methodology Cycle.....................................................................
38
8
LISTA DE TABELAS
Pag.
Tabela 1 – Cordelista A, encontro 2....................................................................
47
Tabela 2 – Cordelista B, encontro 2....................................................................
48
Tabela 3 – Cordelista A, encontro 3....................................................................
50
Tabela 4 – Cordelista B, encontro 3....................................................................
51
9
SIGLAS
UFAL – Universidade Federal de Alagoas
CEP – Comitê de Ética em Pesquisa
TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
10
LISTA DE GRÁFICOS
Pag.
Gráfico 1 – Dinâmica das dimensões: cordelista A, encontro 2.......................
54
Gráfico 2 – Dinâmica das dimensões: cordelista B, encontro 2........................
56
Gráfico 3 – Dinâmica das dimensões: cordelista A, encontro 3.......................
59
Gráfico 4 – Dinâmica das dimensões: cordelista B, encontro 3........................
61
11
SUMÁRIO
1.
INTRODUÇÃO..............................................................................................................
2.
FUNDAMENTOS
PARA
UMA
PSICOLOGIA
12
CULTURAL:
FUNCIONAMENTO PSICOLÓGICO, SIGNO E LINGUAGEM..........................
15
2.1
Argumentos no campo da filogenia e seu fundamento ético......................................
18
2.2
Argumentos ontogenéticos e o problema da internalização.......................................
21
2.3
Argumentos sobre a linguagem e a função da palavra...............................................
23
3.
FUNDAMENTOS
ESTÉTICOS
DA
FUNÇÃO
DE
MEDIAÇÃO
E
DIMENSÕES SEMIÓTICAS DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA.....................................
27
3.1
Relação, reação e a Psicologia da arte..........................................................................
29
3.2
Extensões da semiogênese à criação artística..............................................................
32
3.2.1
Simultaneidade de opostos...............................................................................................
33
3.2.2
Dimensionalidade e ritmo................................................................................................
34
4.
METODOLOGIA..........................................................................................................
37
4.1
Introdução ao Ciclo metodológico................................................................................
37
4.2
Caracterização do estudo..............................................................................................
38
4.3
Objetivos.........................................................................................................................
39
4.3.1
Objetivo geral...................................................................................................................
39
4.3.2
Objetivos específicos.......................................................................................................
39
4.4
Participantes e locais de realização das entrevistas....................................................
39
12
4.5
Procedimentos para construção das narrativas..........................................................
40
4.6
Procedimentos para análise das narrativas.................................................................
44
5.
RESULTADOS E DISCUSSÃO...................................................................................
52
5.1
Dinâmica de complementariedade e contraditoriedade entre dimensões................
52
6.
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................
64
REFERÊNCIAS.........................................................................................................................
66
13
1. INTRODUÇÃO
O presente estudo parte do reconhecimento de duas necessidades fundamentais para a
Psicologia Cultural com a qual se vincula: revisitar os textos de Vigotski1 e reconsiderar suas
bases epistemológicas e metodológicas a partir de novos parâmetros (1) e propor
direcionamentos metodológicos a partir desses novos parâmetros (2). Comprometendo-se,
inicialmente, com a complexa tarefa de produzir interpretações acerca das teses desse autor,
sem que para isso se incline a buscar forçosamente referências externas aos seus textos,
propôs-se uma análise minuciosa no interior de seus escritos na tentativa de formular novas
interpretações que possam fundamentar os objetivos do presente estudo.
Como resultado dessa iniciativa, destacaram-se duas ideias centrais: a) a interpretação
ética da filogenia humana e b) as ideias de reação e relação subjacentes à experiência humana
com as obras de arte.
No que se refere à análise do conhecimento acerca do desenvolvimento filogenético, o
princípio de interpretação ética serviu como referência fundamental para a construção de
revisões críticas aos argumentos levantados por Vigotski para fundamentar uma psicologia
social alternativa ao subjetivismo e ao experimentalismo clássico de sua época. Através
dessas revisões apontaram-se entraves epistemológicos para a psicologia social de Vigotski,
uma vez que seu principal argumento acerca do desenvolvimento filogenético – a criação de
ferramentas para o trabalho sobre o mundo; logo, para a adaptação cultural dos indivíduos ao
ambiente – pressupõe o ofuscamento de uma alteridade que, se supõe, deveria ser centro de
sua teoria. No entanto, assumindo os processos de artificialização e mediatização da
adaptação filogenética humana por meio de ferramentas (culturais), a dimensão da alteridade
foi colocada em segundo plano, suprimida pela função de mediação dessas ferramentas. Logo,
toda possível relação que se estabeleça entre os indivíduos seria resultado dos processos de
mediação por signos; as relações foram consideradas produto desses processos; não sua
gênese.
Não obstante, essa proposição tem implicações lógicas para o desenvolvimento da
teoria de Vigotski nos diferentes níveis ontológico, metodológico e ético. Considerando-se
1
A escrita do nome do pesquisador soviético Lev Vigotski se encontra aqui grafado de duas formas distintas. A
primeira [VIGOTSKI] diz respeito às versões em português de suas obras, traduzidas e publicadas no Brasil. A
segunda [VYGOTSKI] corresponde às versões em castelhano, traduzidas e publicadas em Madrid. Considerando
que esse estudo foi produzido em vinculação com a língua portuguesa, optou-se pelo uso da primeira grafia do
nome desse pesquisador. Resguardou-se a segunda grafia, entretanto, nos casos de citação formal das obras em
castelhano. Não se considerou para a escolha dessa grafia aspectos conceituais e/ou políticos envolvidos na
tradução de sua obra.
12
essa observação, o objetivo do primeiro capítulo dessa dissertação foi, portanto, dissertar
sobre e avaliar criticamente essas implicações. Em síntese, destinou-se o primeiro capítulo
para uma discussão acerca de fundamentos para o estudo do funcionamento psicológico como
formas de modalização das relações entre indivíduos e objetos. A expectativa é o
desenvolvimento de uma proposta conceptual e metodológica alternativa a partir do conceito
de relação.
Por outro lado, as ideias de relação e reação como fundamento para as interpretações
acerca da experiência humana com a obra de arte, no livro a Psicologia da arte de Vigotski
permitiram, de modo geral, conceber especificidades das relações entre indivíduos e objetos.
Considerando-se essa segunda observação, reservou-se o segundo capítulo para uma
abordagem do funcionamento psicológico a partir da especificidade das relações entre
indivíduos e objetos. Nessa perspectiva, os processos de criação artística e de reação estética
foram revisados e reapresentados a partir da ideia de que a mediatização entre indivíduo, obra
de arte e objeto estético configuram as bases epistemológicas para a tese de uma psicologia
(social) da arte em Vigotski.
Introduziu-se ainda nessa discussão a função das emoções desempenhada na
manutenção da vida e na equilibração entre organismos e ambiente. Ainda, as emoções foram
apontadas no texto vigotskiano – consideraram-se, para isso, suas aproximações com a
filosofia de Spinoza – como potencialidades para a ação dos indivíduos no mundo. Por fim,
em decorrência das discussões sobre as ideias de relação e reação na interpretação de suas
teses sobre arte, abriu-se espaço para conceber diferentes dimensões das relações entre os
indivíduos e as obras de arte. Assim, configurou-se o cenário discursivo do segundo capítulo.
Apresentou-se, resumidamente, o ambiente conceptual do presente trabalho, a partir
dos primeiro e segundo capítulos. Através daqueles que se seguem expõem-se o percurso
metodológico de uma pesquisa realizada com o objetivo de investigar processos emergentes
da função de mediação na atividade criadora de cordéis. Tratou-se de um estudo exploratório
de três casos envolvendo a produção de literatura de cordel. Três cordelistas, cadastrados na
Secretaria de Cultura do Estado de Alagoas, foram participantes voluntários dessa pesquisa.
Esses participantes foram entrevistados e suas narrativas foram videografadas constituindo-se
no material empírico analisado nesta pesquisa.
Na condução da análise dos dados, buscou-se caracterizar, a partir dos fundamentos
discutidos nos capítulos teóricos, os processos de mediatização das relações dos cordelistas
com seus cordéis por meio dos objetos estéticos. Entendeu-se, nesse cenário, que a
configuração relacional entre diferentes dimensões dessa mediatização foi construída na
13
medida em que o pesquisador participou ativamente desse processo por meio das intervenções
durante a conversa com os cordelistas. Assim, as interpretações acerca dos processos
semióticos na atividade criadora de cordéis pressupunham, como fundamento, as relações
entre o pesquisador e os cordelistas.
Por fim, na proposição de interlocuções entre a Psicologia Cultural e a literatura de
cordel assumiu-se a responsabilidade de trazer para o campo científico da psicologia os signos
necessários a uma revisão de seus fundamentos. A primeira implicação disso decorre na
concepção do Ser social que a arte permite desenvolver; portanto, uma implicação ética.
Trazer a dimensão da criatividade, ou do ato criativo do Ser social, é abrir espaço para outras
possibilidades de existência e de construção da realidade. A criatividade, que não se limita aos
fatores biológicos e ambientais, mas antes os supera e os transforma, constitui ainda um
desafio em aberto para a psicologia. Nesse sentido, a literatura de cordel corrobora com esse
desafio na medida em que propõe refletir sobre a especificidade de um grupo social que tem
no cordel não só a possibilidade de realização estética, mas de existência.
14
2. FUNDAMENTOS PARA UMA PSICOLOGIA CULTURAL: FUNCIONAMENTO
PSICOLÓGICO, SIGNO E LINGUAGEM.
“Los aliados de ayer en la guerra común contra el subjetivismo y el empirismo se
convertirán posiblemente mañana en nuestros enemigos en la lucha por la
afirmación de los fundamentos de base de la psicología social del hombre social,
por liberar a la psicología del cautiverio biológico y por devolverle el significado de
ciencia independiente, y dejar de ser uno de los capítulos de la psicología
comparada. En otras palabras, en cuanto pasemos a construir la psicología como
ciencia del comportamiento del hombre social y no del mamífero superior, se
perfilará claramente la línea de discrepancia con nuestro aliado de ayer”
(VYGOTSKI, 1997e, p.61, grifo adicionado).
Esse capítulo surgiu de um constante diálogo e de tensionamentos com os textos do
pesquisador soviético Lev Vigotski, principalmente, e com os projetos psicológicos que se
iniciaram a partir deles. Esses diálogos foram marcados por algumas limitações de caráter
literário e político. Inicialmente, a escassez de traduções diretas dos textos originais em russo
para o português distanciou consideravelmente os leitores de outras nacionalidades que não
estavam aptos à leitura das publicações originais. Dessa forma, os hiatos, aparentemente
deixados durante seus textos, conduziram interpretações errôneas e tendenciosas. Por outro
lado, uma forte censura política sofrida por seus escritos durante sua tradução e
internacionalização contribuiu ainda mais para leituras grosseiras de seus fundamentos, como
já apontoaram os pesquisadores Italo Cericato e Zoia Prestes (2012). Como alternativa,
buscou-se apoio na versão castelhana, publicada inicialmente em russo pela Editorial
Pedagógica de Moscou e traduzida em seis tomos por José María Bravo, Lydia Kuper e Julio
Guillermo Blank.
A opção que se fez aqui, pelo uso de uma versão alternativa dos textos de Vigotski,
marcou também uma posição diferente de leitura e interpretação de seus fundamentos. Essa
posição foi caracterizada pela tentativa de construir diálogos entre os diferentes textos e suas
diferentes ideias. Buscou-se nesses diálogos a significação das teses centrais do autor e suas
correlações com os diferentes argumentos e conceitos desenvolvidos ao longo das suas
publicações. Esse modo de fomentar discussões no interior da própria obra de Vigotski foi
resultado de um processo de mediatização entre pesquisador, texto e autor.
Partiu-se da apropriação conceitual de sua tese central – “construir la psicología como
ciencia del comportamiento del hombre social” (VYGOTSKI, 1997e, p.62) – e desafiou-se a
encontrar fronteiras epistemológicas para essa tese. Os resultados detalhados desse desafio
15
compõem as discussões desenvolvidas nos dois capítulos teóricos (Capítulos 1 e 2) dessa
dissertação.
Na busca por essas fronteiras epistemológicas foi necessário desconstruir duas
impressões teóricas comuns nas mesas de discussão sobre a obra desse autor. A primeira
impressão que surge quando se toma os textos de Vigotski em sua ordem cronológica de
publicação é a de um abandono ou mudança de pressupostos e fundamentos. Essa impressão
se deve principalmente aos textos que inauguraram seu trabalho autoral, compilados e
publicados no Brasil sob o título de Psicologia da arte. Primeiro porque a ideia de função de
mediação – principal argumento que dá suporte a sua tese central – não aparece explícita
nesses escritos. Segundo porque não é uma temática que acompanha explicitamente suas
publicações posteriores. Insiste-se nas variações do verbo explicitar ao se referir a essa
primeira impressão, pois, a leitura desenvolvida nessa pesquisa permitiu afirmar o contrário.
Tanto as discussões sobre os fundamentos da arte estão dissolvidas nas publicações
subsequentes, quanto um “projeto” para a ideia de função de mediação já estaria sendo
desenhado na Psicologia da arte (essa discussão é tema do segundo capítulo dessa
dissertação).
A segunda impressão que poderia ter conduzido essa análise ao erro se refere ao fato
de Vigotski ter interrompido sua carreira de pesquisador mais cedo do que outros tantos
pesquisadores e pensadores conhecidos. Sua morte precoce, diriam alguns, seria causa
suficiente para gerar uma interrupção abrupta no desenvolvimento teórico de seu pensamento.
Isso justificaria, portanto, o surgimento de diferentes escolas de leitura e apropriação de seus
conceitos. Mesmo não discordando por completo dessa afirmação, é preciso reler essa
interrupção a partir de outros parâmetros. Os textos sobre linguagem são os que mais sofreram
com essa pausa. Entretanto, como será discutido, o fundamento central de sua teoria já se
encontrava consideravelmente desenvolvido e robusto. Em todo caso, que a extensão de sua
vida teria conduzido novos direcionamentos na pesquisa em psicologia, não se discordam.
Quando se fala de diferentes modos de ler e se apropriar dos fundamentos de Vigotski,
parece ser um encaminhamento da Ciência à formação de escolas de pensamento. Isso não é
diferente na Psicologia. Alguns nomes são criados na tentativa de legitimar suas formas de
interpretação acerca dos textos desse autor e de seus companheiros pesquisadores. Psicologia
sócio histórica, Psicologia histórico cultural, Psicologia marxista etc. são alguns dos nomes
compartilhados entre os autores e pesquisadores pós Vigotski.
Não podendo ser diferente, a discussão desenvolvida a partir da presente pesquisa
aproxima-se de uma das escolas de pensamento vigotskiano que tem ganhado espaço
16
especialmente a partir das publicações de Valsiner (2014a; 2007; 2012). Nomeada como
Psicologia cultural, trata-se de uma possibilidade de leitura e interpretação dos textos de
Vigotski a partir de concepções como signo e linguagem e delas depreender suas implicações
ontológicas, epistemológicas, metodológicas e éticas. Por esse motivo, juntam-se a esses
pesquisadores, na tentativa de construir fundamentos para uma Psicologia cultural, essas
discussões sobre funcionamento psicológico, signo e linguagem.
Para cumprir com esse objetivo, no texto a seguir expõe-se e discutem-se os principais
argumentos utilizados por Vigotski para dar suporte a sua tese de construir uma psicologia
social (do comportamento social). Além disso, os pontos levantados durante esse capítulo
servem como referência para nortear o olhar para o material empírico investigado na presente
pesquisa.
Ao realizar uma análise do desenvolvimento científico da Psicologia de sua época,
Vigotski (1997c; 1997d; 1997f) identificou duas grandes matrizes de produção do
conhecimento, separadas, particularmente, por suas metodologias. De um lado estava o que
ele chamou de teorias subjetivistas ou idealistas. Fundamentadas por métodos como a
introspecção buscavam a independência da psicologia em relação aos modelos biológicos e
físicos da ciência. Este empreendimento, em sua análise, não ofereceu soluções efetivas para
uma série de problemas fundamentais para o desenvolvimento científico da psicologia,
principalmente no que diz respeito ao psiquismo propriamente humano. Em sua opinião, “esta
psicología [subjetiva] era impotente para responder a las principales cuestiones que toda
ciencia debe plantearse” (VYGOTSKI, 1997g, p.29). Por outro lado, a proposta de uma
psicologia objetiva ou empírica também se demonstrou questionável ao reduzir o psiquismo
humano ao nível biológico do comportamento. Apoiada nos métodos das ciências biológicas e
exatas, a psicologia do comportamento proposta por Pavlov e analisada por Vigotski dispunha
de um modelo fisiológico muito simples de explicação (S–R) que não alcançava a verdadeira
complexidade do psiquismo humano. Dessa forma, Vigotski concluiu que ambas as direções
que a psicologia poderia tomar estariam fadadas ao insucesso e uma alternativa deveria surgir
desse conflito.
Com a proposta de romper com o subjetivismo e com qualquer forma de idealização
do fenômeno psíquico, desconectando-o de suas bases materialistas e, ainda, rompendo com o
behaviorismo de Pavlov e seus argumentos sobre reflexologia, Vigotski apresentou seu
projeto de uma psicologia do comportamento social. Esse projeto e seu alcance
epistemológico foi o material de análise desse capítulo.
17
2.1 Argumentos no campo da filogenia e seu fundamento ético
Um dos primeiros argumentos lançados por Vigotski em defesa de uma psicologia
social, ou seja, que apontou a origem social do comportamento humano, revelou o campo da
filogenia na discussão do funcionamento psicológico humano. Na análise do desenvolvimento
da espécie humana, os seus argumentos no campo da filogenia pareceram caminhar a partir de
duas referências importantes: 1) os processos de artificialização da adaptação dos indivíduos
ao ambiente; e, em decorrência disso, 2) os processos de emancipação dos indivíduos em
relação às contingências ambientais. A partir dessas duas referências ele desenvolveu sua
argumentação destacando a origem social do comportamento humano e, assim, as bases para
uma psicologia social que não respondia mais aos modelos biológicos e idealistas de ciência.
Como a maioria dos filogeneticistas de sua época, Vigotski aceitou as afirmações de
Darwin acerca dos processos evolutivos da espécie – gerados pelo princípio da seleção natural
– e desenvolveu uma interpretação marxista para esse princípio. Dessa forma, fundamentado
na noção de trabalho, ancorou explicações sobre a produção e uso de ferramentas na
interpretação da seleção natural de Darwin.
No entanto, o que seria um processo comum e independente dos indivíduos, tornou-se,
na visão de Vigotski (1995a), um processo ativo e construtor dos indivíduos em relação às
condições ambientais de adaptação e evolução. Ele destacou a ação concreta dos indivíduos
em relação ao ambiente onde habitam, produzindo ferramentas de sobrevivência e ação
propiciando a organização coletiva.
Enfatizando a ação transformadora dos indivíduos, Vigotski (1997a) chamou a atenção
para a artificialização dos processos adaptativos e evolutivos da espécie humana. A história da
evolução humana demonstrou que, no processo adaptativo, esta espécie não necessitou
modificar estruturalmente seu corpo físico, como o fizeram as demais espécies. A adaptação
se deu por meio da criação de instrumentos de sobrevivência, reguladores das relações dos
indivíduos com o ambiente ao seu redor. Ou seja, artificializou-se a adaptação em detrimento
dos instrumentos criados e utilizados pelos indivíduos humanos. Essa afirmação pode ser lida
em Vigotski como se segue abaixo.
“En el proceso del desarrollo histórico, el hombre social modifica los modos y
procedimientos de su conducta, transforma sus inclinaciones naturales y funciones,
elabora y crea nuevas formas de comportamiento específicamente culturales”
(VYGOTSKI, 1995a, p.34, grifo adicionado).
18
“En el comportamiento del hombre surgen una serie de dispositivos artificiales
dirigidos al dominio de los propios procesos psíquicos” (VYGOTSKI, 1997a, p.65,
grifo adicionado).
“Los instrumentos psicológicos son creaciones artificiales; estructuralmente son
dispositivos sociales y no orgánicos o individuales; están dirigidos al dominio de los
procesos propios o ajenos, lo mismo que la técnica lo está al dominio de los
procesos de la naturaleza” (VYGOTSKI, 1997a, p.39, grifo adicionado).
“Para la investigación psicológica, la peculiaridad específica no sólo radica en la
ulterior complicación y desarrollo, en el perfeccionamiento cuantitativo y cualitativo
de los grandes hemisferios, sino, ante todo, en la naturaleza social del hombre y en
su nuevo – en comparación con los animales – modo de adaptación. La diferencia
esencial entre la conducta del hombre y la conducta del animal no sólo consiste en
que el cerebro humano está muy por encima del cerebro del perro y que la actividad
nerviosa superior ‘distingue tan asombrosamente al hombre de entre los animales’,
sino, ante todo, en el hecho de que es el cerebro de un ser social y que las leyes de
la actividad nerviosa superior del hombre se manifiestan y actúan en la personalidad
humana” (VYGOTSKI, 1995a, p.84, grifo adicionado).
A afirmação que esses trechos sustentam tem implicações para o argumento que
Vigotski construiu no campo da filogenia. Se sua proposta foi definir uma psicologia social
onde o humano, na sua origem, fosse considerado agente de transformação do mundo e de si
mesmo, portanto, indivíduos em permanente relação, fazer referência ao processo evolutivo
por meio da artificialização adaptativa – uma vez que os dispositivos criados não são
conquistas naturais, mas alcançadas por meio do trabalho – foi o que permitiu ao autor
considerar a dimensão filogenética das relações sociais ou, as bases filogenéticas do
comportamento social dos indivíduos.
Considerando uma ordem lógica dos grifos acima, percebeu-se que o argumento de
Vigotski seguiu uma análise histórica da criação de novas formas de comportamento; pode-se
dizer do comportamento propriamente social, onde sua principal característica foi o emprego
de instrumentos (ou dispositivos) orientados para o domínio de suas próprias funções e como
causa das relações entre os indivíduos. Por fim, ele explicou que o funcionamento psíquico
sofreu influência dessas novas formas de comportamento reorganizando-se a partir de novas
conexões. Desse modo, o comportamento social dos indivíduos surgiu a partir dessa
artificialização do processo adaptativo; ou seja, surgiu como resultado das ações mediatizadas
dos humanos em seu ambiente.
A principal implicação dessa afirmação foi que os indivíduos deixaram de depender
das contingências ambientais imediatas que o cercam. Se no primeiro momento o humano
artificializou seu processo de adaptação por meio da criação de instrumentos e com isso
19
modificou sua própria forma de comportamento, posteriormente, suas ações se tornaram
planejadas e organizadas na ausência de um funcionamento do tipo “tentativa e erro”. A
mediatização das ações com o mundo e com os outros da mesma espécie, na arquitetônica de
Vigotski, forneceram as bases para o verdadeiro salto evolutivo dos humanos, como se pode
compreender nas suas palavras:
“El empleo de los signos, a nuestro entender, debe incluirse también en la actividad
mediadora, ya que el hombre influye sobre la conducta a través de los signos, o
dicho de otro modo, estímulos, permitiendo que actúen de acuerdo con su naturaleza
psicológica. Tanto en un caso, como en el otro, la función mediadora pasa a primer
plano” (VYGOTSKI, 1995d, p.94, grifo adicionado).
Com o aparecimento da função mediadora, também surgiu outra forma para nomear os
instrumentos, inicialmente responsáveis pela adaptação ao trabalho manual dos humanos. O
conceito de signo e, por conseguinte, de função de mediação, adquiriu, a partir daqui,
centralidade nas explicações de Vigotski. Dessa forma, observou-se que a artificialização,
evidenciada pela produção de ferramentas, e a mediação, que surgiu a partir do emprego dos
signos na evolução humana, configuraram as bases do seu argumento inicial para a psicologia
do comportamento social.
No entanto, assumir esse argumento como verdadeiro, sem uma análise crítica de suas
decorrências lógicas, pode levar a sérios problemas epistemológicos em seu projeto científico.
Esses problemas podem ser circunscritos em: 1) relação todo/partes; 2) relação causa/efeito; e
3) derivações teóricas.
Como primeiro problema epistemológico relacionado com o projeto científico de
Vigotski, retoma-se a clássica relação conflituosa entre o todo e suas partes, que se apoia
fortemente na teoria dos conjuntos e não em referências éticas. Considera-se que não é
possível aceitar-se que uma definição de social para Vigotski seja derivada de ações
individuais (partes) sem que isso contradiga seu projeto de psicologia social (todo).
Se o objetivo inicial foi buscar alternativa às tendências biologicistas e subjetivistas de
psicologia, Vigotski pareceu cair numa armadilha epistemológica ao manter o status
individualista da psicologia. Defende-se, na presente pesquisa, que os fundamentos para uma
consideração definitiva da ética, no sentido de incluir a dimensão do outro já no nível
filogenético como aspecto constituinte da espécie humana, deveria ser o principal objetivo da
psicologia social desenvolvida por Vigotski. Para além de uma compreensão das
possibilidades da conduta humana, seja ela mediada ou produtora de ferramentas orientada
para o trabalho, as discussões que deveriam ganhar espaço sobre o título de psicologia social
20
deveriam referenciar as relações entre os indivíduos e suas possibilidades de efetivação como
fenômeno primeiro e independente da análise individual. Acredita-se que é no todo das
relações mantidas entre os indivíduos que se encontram as origens filogenéticas do
comportamento social. Supõe-se que essa outra possibilidade de interpretação acerca da
função da filogenia no comportamento social dos seres humanos implica em mudanças na
concepção de funcionamento psicológico.
A virada epistemológica que se propõe com essa interpretação, ao estabelecer na base
da filogenia as relações entre os indivíduos como fenômeno independente e objeto de análise
da psicologia social, traduz um rompimento definitivo com as relações de causalidade, mesmo
que uma causalidade ingênua, dispersas no interior dos escritos de Vigotski (o segundo
problema epistemológico no seu projeto científico). A principal causalidade que deve ser
desconstruída em sua raiz é a de que o funcionamento psicológico é resultado das relações
sociais, ou como é mais comum em seus textos, da criação e uso de ferramentas (ou signos)
na conduta humana. O inverso também é inválido. Não será mais possível considerar o
funcionamento psicológico como coisa diferente das próprias relações sociais.
Ao fundamentar uma interpretação ética do funcionamento psicológico, é necessário
considerar a dinâmica de oposições entre as alteridades em relação. Assim, será essa dinâmica
de oposições que constitui o que se nomeia funcionamento psicológico. Dito dessa forma, não
é possível considerá-lo, o funcionamento psicológico, além ou aquém das suas próprias
relações constitutivas. Nessa perspectiva, funcionamento psicológico é, portanto, as formas
pelas quais os indivíduos se relacionam com outros indivíduos e com os objetos do mundo.
2.2 Argumentos ontogenéticos e o problema da internalização
O terceiro problema epistemológico no projeto científico Vigotski, decorrente do
impasse estabelecido entre o anúncio da psicologia social e seu argumento no campo da
filogenia é o reflexo dessa incongruência em seus argumentos ontogenéticos e em sua
concepção de linguagem. Não obstante, os argumentos utilizados por ele para fundamentar a
evolução ontogenética humana não se distanciaram dos argumentos no campo da filogenia;
antes, se tratam de sua extensão. Na filogenia, os processos de artificialização adaptativa e
mediatização das relações humanas com seu ambiente imediato configuraram-se como bases
para a evolução da espécie. Na ontogenia, portanto, o processo se repetiu. O mesmo
funcionamento mediatizado pelas ferramentas entre indivíduos e ambiente passou a constituir
o funcionamento psicológico dos indivíduos. Desse modo, a história da ontogenia humana é a
história da passagem de um modelo de funcionamento externo e social para o nível individual
21
e psicológico (VYGOTSKI, 1995b). Para assegurar a validade de seu argumento, Vigotski foi
obrigado a assumir o conceito de internalização em seu projeto científico. No recorte textual
apresentado abaixo ficou mais clara a composição de sua ideia acerca da internalização.
“Cabe decir, en general, que las relaciones entre las funciones psíquicas superiores
fueron en tiempos relaciones reales entre los hombres. Me relaciono conmigo mismo
como la gente se relaciona conmigo. Al igual que el pensamiento verbal equivale a
transferir el lenguaje al interior del individuo, al igual que la reflexión es la
internalización de la discusión (...)” (VYGOTSKI, 1995a, p.234).
O problema surgiu, entretanto, no momento em que ele não conseguiu encontrar uma
solução efetiva para explicar como um processo motor, de ação e trabalho sobre o mundo,
convertia-se em funcionamento abstrato ou evento psicológico individualizado. Assim, ele
contentou-se por sustentar a internalização e se manteve repetindo essa afirmação sem
conduzi-la a uma análise crítica, mais radical. Sua melhor resposta foi a identificação das
ferramentas de trabalho (externo) com os signos (interno), como se pode observar nas suas
palavras:
“(...) llamamos el estadio del 'crecimiento hacia dentro' porque lo caracteriza ante todo
el que la operación externa se convierte en interna, a causa de lo cual experimenta
profundos cambios. (...) que utiliza relaciones internas en forma de signos interiores”
(VYGOTSKI, 2001d, p.154).
Se adotar a ideia de internalização no projeto de uma psicologia social já foi
suficientemente questionável, esta adoção traz ainda consigo a manutenção de outros
problemas epistemológicos da psicologia. O primeiro deles é a dicotomização entre interno e
externo. Uma vez que o externo é identificado com o campo das relações – e por
consequência com o campo das relações sociais –, qual seria a especificidade desse outro
campo nomeado como interno? As neurociências têm demonstrado que a única possibilidade
psicológica interna são as conexões sinápticas e as reações neuronais do cérebro. Sugere-se
que esse é mais um hiato deixado por Vigotski em seu projeto. Por esse motivo, mesmo seu
argumento no campo da ontogenia, dificultou ainda mais o caminho para uma psicologia das
relações sociais.
É preciso montar a interpretação ética do funcionamento psicológico, onde o campo
das relações entre os indivíduos fundamente a possibilidade de se falar de um psiquismo. Não
se trata mais de um psiquismo que se define a partir de uma dinâmica de dentro/fora,
tampouco de um psiquismo que se distingue das relações sociais como produto ou produtor.
Considerar o funcionamento psicológico enquanto possibilidades de relação entre diferentes
22
quer dizer, no nível ontogenético em que se discute agora, que essas relações (e, portanto, o
próprio funcionamento) são passíveis de modalizações. Ou seja, é possível conceber
diferentes dimensões dessas relações sociais sem que para isso se exclua a alteridade do
processo, nem se reafirme a dicotomia interno/externo na psicologia. O próprio Vigotski
forneceu pistas necessárias para essa interpretação quando argumentou sobre as mudanças
sofridas nas relações entre funções e na própria mudança da função dos instrumentos ao se
tornarem signos no desenvolvimento humano.
“La idea principal (extraordinariamente sencilla) consiste en que durante el proceso
de desarrollo del comportamiento, especialmente en el proceso de su desarrollo
histórico, lo que cambia no son tanto las funciones, tal como habíamos considerado
anteriormente (ése era nuestro error), ni su estructura, ni su pauta de desarrollo, sino
que lo que cambia y se modifica son precisamente las relaciones, es decir, el nexo
de las funciones entre sí, de manera que surgen nuevos agrupamientos desconocidos
en el nivel anterior” (VYGOTSKI, 1997a, p.72, grifo adicionado).
“De nuestros trabajos se desprende que el signo modifica las relaciones
interfuncionales” (VYGOTSKI, 1997b, p.121, grifo adicionado).
O fato de Vigotski se manter interessado pelas condutas individuais e pelos fenômenos
que ocorrem internamente aos indivíduos; ou, ainda, pela passagem de uma dimensão externa
para uma interna levou-o a apontar essas transformações no campo restrito da psicologia
individual. Ler seus textos a partir de outro parâmetro, como é o caso da interpretação ética
defendida nesta pesquisa, permite a abertura para novas opiniões acerca dos processos
ontogenéticos no funcionamento psicológico humano. Esse novo direcionamento não se
solicita qualquer tipo de internalização ou de manutenção de dicotomias interno/externo. Os
signos ganham verdadeiro destaque nessa fase de análise, bem como ele mesmo apontou. No
entanto, os signos precisam ser considerados no interior das relações sociais, não no interior
dos indivíduos. Desse modo, é necessário considerar do que se trata o interior das relações
sociais para não incorrer no mesmo erro. A partir daqui o argumento sobre a relevância da
linguagem nas explicações sobre o funcionamento psicológico se torna importante.
2.3 Argumentos sobre a linguagem e a função da palavra
O argumento sobre a relevância da linguagem para o desenvolvimento humano nos
trabalhos de Vigotski parte da análise acerca da impossibilidade dos seres humanos
estabelecerem relações diretas com o mundo. Os processos de mediatização nas dimensões da
filogênese e ontogênese são revisados e reapresentados em suas explicações sobre essa
relevância da linguagem. Como ele definiu, “la comunicación directa entre conciencias es
23
imposible tanto física como psicológicamente” (VYGOTSKI, 2001c, p.342). Vigotski
remeteu-se a observação em que fisicamente os órgãos envolvidos na comunicação não
compartilham do modelo S–R sem que para isso haja um “meio” de comunicação. Por outro
lado, toda comunicação pressupõe processos de compreensão e capacidade de resposta, seja
ela verbal ou não. Desse modo, tornou-se cada vez mais imprescindível um modelo de
funcionamento mediado em suas explicações.
Não diferente, assim como as ferramentas e os signos, a linguagem também foi
explicada a partir de sua função mediadora entre os indivíduos. Se toda comunicação entre
humanos estava marcada pela impossibilidade de contatos diretos, a função de mediação foi
sua melhor resposta para o problema. Assim, para ele, a linguagem compartilhou a mesma
estrutura funcional dos demais processos psíquicos.
“(...) todas las funciones psíquicas superiores [incluso a linguagem] comparten el
rasgo de ser procesos mediados, es decir, incluyen en su estructura, como elemento
central e indispensable, el empleo del signo como medio esencial de dirección y
control del propio proceso” (VYGOTSKI, 2001c, p.125).
O que, portanto, demarcou a especificidade da linguagem nesse cenário foi a natureza
de seu signo. Para Vigotski, a palavra é o signo linguístico do pensamento, sem o qual não
haveria possibilidade de pensar (VYGOTSKI, 2001d). Desse modo, todo o desenvolvimento
teórico do autor caminhou marcado pela tentativa de caracterizar as estruturas de mediação da
palavra (VYGOTSKI, 1995c) e para definir sua importância para as demais funções
psíquicas. As citações abaixo demonstram não só essas tentativas do autor. Através delas
destacam-se as decorrências de suas afirmações, como foi realizado ao longo desse capítulo.
“El pensamiento no sólo está mediado externamente por los signos, internamente
está mediado por los significados. (...) Sólo se alcanza a través de un camino
indirecto, mediado. Ese camino consiste en la mediación interna del pensamiento,
primero por los significados y luego por las palabras” (VYGOTSKI, 2001d, p.202203, grifo adicionado).
“El pensamiento nunca equivale al significado directo de las palabras. El significado
media el pensamiento en su camino hacia la expresión verbal, es decir, el camino
del pensamiento a la palabra es un camino indirecto y mediado internamente”
(VYGOTSKI, 2001c, p.342).
“La palabra forma parte de la estructura del objeto, como sus restantes elementos y
a la par que ellos se convierte para el niño durante algún tiempo en una propiedad
del objeto, junto a sus restantes propiedades” (VYGOTSKI, 2001b, p.114).
24
“La palabra siempre se refiere no a un objeto aislado cualquiera, sino a todo un grupo
o toda una clase de objetos. Debido a ello, en cada palabra subyace una
generalización. Desde el punto de vista psicológico, el significado de la palabra es
ante todo una generalización. Como es fácil de ver, la generalización es un acto
verbal extraordinario del pensamiento que refleja la realidad de forma radicalmente
distinta a como la reflejan las sensaciones y percepciones inmediatas” (VYGOTSKI,
2001a, p.20, grifo adicionado).
Mesmo propondo avanços no que se refere ao seu projeto de uma psicologia social,
introduzindo a função de mediação da palavra no interior do funcionamento psicológico,
Vigotski ainda manteve as discussões sobre linguagem num cenário que se poderia chamar,
despretensiosamente, cognitivista. É preciso deixar claro que o problema não se encontra nas
perspectivas cognitivistas de ciência. A dimensão de crise, que o projeto psicológico de
Vigotski se inscreveu a partir do momento em que duas tendências epistemológicas
antagônicas, ganharam espaço em seu texto. Se de um lado a psicologia social solicitou de
dele uma saída aos modelos experimentalistas e subjetivistas – ambos com tendências
individualizantes do fenômeno psicológico –, por outro, seus esforços para construir
argumentos de valor cognitivo o empurraram de volta ao individualismo questionado.
Isso se refletiu também em seu argumento sobre a função da linguagem para o
desenvolvimento humano. A insistente presença de um dualismo externo/interno na
configuração do signo-palavra (VYGOTSKI, 2001c), a questionável afirmação de uma
internalização das funções da linguagem (VYGOTSKI, 2001d) e seu foco na verbalização
como caminho de expressão do pensamento (VYGOTSKI, 2001d), além da localização
espacial das possibilidades de mediação no dualismo externo/interno (VYGOTSKI, 2001b),
todas essas proposições decorreram de uma interpretação que negligenciou a dimensão
relacional em detrimento da cognição individual humana, que se iniciou na análise da
filogenia e se reproduziu ao longo dos demais argumentos.
Uma solução para esse conflito pode ser buscada em meio ao próprio texto do referido
autor. O recorte textual apresentado abaixo fornece as bases para conduzir outras
interpretações que considerem as relações como ponto de partida e como campo indissociável
ao funcionamento psicológico.
“La transmisión racional, intencional, de la experiencia y el pensamiento a los
demás requiere un sistema mediatizador, y el prototipo de éste es el lenguaje
humano nacido de la necesidad de intercomunicación durante el trabajo. (…) Se
considera en primer lugar, que el medio de comunicación es el signo (la palabra o
sonido); que a través de sucesos simultáneos un sonido puede asociarse con el
contenido de alguna experiencia, y servir entonces para transmitir el mismo
contenido a otros seres humanos” (VYGOTSKI, 2001a, p.26-27, grifo adicionado).
25
Note-se que os grifos acima compõem a gênese de uma explicação onde o
funcionamento psicológico deixou as dependências do indivíduo, tornando-se um fenômeno
do campo das relações. Não se tratou de um funcionamento que pertenceu unicamente ao
nível individual. O indivíduo foi apenas uma das dimensões desse funcionamento. Sua
compreensão total só pode ser alcançada se levado em consideração o conjunto do que o
compõe: indivíduos e linguagem (emergência de signos).
Recorrendo ao texto citado acima, encontrou-se uma inversão na ordem da filogênese
apresentada pelo autor. Aqui, a produção de ferramentas é defendida como emergente da
necessidade de intercomunicação. Ou seja, filogeneticamente não são as ferramentas que
forneceram as bases para o salto evolutivo humano, mas a necessidade e manutenção de
relações com outros indivíduos da mesma espécie; a busca pela melhor forma de transmitir o
conteúdo de suas experiências.
Agora sim, num cenário que privilegia as relações entre os indivíduos, os signos
apontam para a possibilidade de efetivação das transmissões dos conteúdos da experiência
individual, de modo especial, por meio da palavra. A linguagem, portanto, tornou-se as
próprias relações, o próprio funcionamento de trocas simbólicas.
Por fim, a palavra (ou signo linguístico) adquiriu a possibilidade de uma nova função,
que não a de vincular dimensões internas e externas aos indivíduos. A palavra deve ser
compreendida como a configuração dialética entre conteúdo e forma. Os conteúdos da
experiência colocados em intercâmbio nas relações são transformados e adquirem significado
na medida em que lhes são impressas formas específicas de transmissão. Por sua vez, essa
dinâmica intercambial desenha o cenário das relações sociais e o objeto de investigação da
psicologia do comportamento social proposicionada por Vigotski.
26
3. FUNDAMENTOS ESTÉTICOS DA FUNÇÃO DE MEDIAÇÃO E DIMENSÕES
SEMIÓTICAS DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA
“Assim, o conceito de reação nos ajuda a deslocar o comportamento humano para a
longa série de movimentos biológicos de adaptação de todos os organismos,
inferiores e superiores, colocá-lo em relação com as bases da vida orgânica na
Terra, abrir perspectivas ilimitadas para o estudo de sua evolução e examiná-lo no
mais amplo aspecto biológico” (VIGOTSKI, 2010, p.19, grifo adicionado).
“A arte exige resposta, motiva certos atos e atitudes (...)” (VIGOTSKI, 1999, p.318,
grifo adicionado).
“(...) a verdadeira natureza da arte sempre implica algo que transforma, que supera o
sentimento comum, e aquele mesmo medo, aquela mesma dor, aquela mesma
inquietação, quando suscitadas pela arte, implicam o algo a mais acima daquilo que
nelas está contido. E este algo supera esses sentimentos, elimina esses sentimentos,
transforma a sua água em vinho, e assim se realiza a mais importante missão da arte”
(VIGOTSKI, 1999, p.307, grifo adicionado).
As discussões desenvolvidas nesse capítulo estão fundadas na proposição de que a
Psicologia da arte, iniciada em Vigotski, constitui um campo autêntico de interpretações
acerca das relações humanas. Sua especificidade, porém, destaca-se a partir da análise atenta
aos processos de constituição dos objetos estéticos e de sua função para a manutenção da
vida. Desse modo, os argumentos sobre os objetos estéticos apresentados por ele no início de
seus trabalhos acadêmicos compõem referências fundamentais para uma revisão de sua
própria teoria. Para isso, é preciso que se retome, mesmo que em resumo, a interpretação ética
defendida no capítulo anterior e, a partir dela, possa-se sugerir outros direcionamentos no
estudo dos microprocessos do funcionamento psicológico implicados com a proposta de uma
psicologia social delineada por Vigotski.
No capítulo anterior, buscou-se defender uma revisão dos fundamentos de Vigotski, a
partir de aproximações teóricas com a ideia de relação. Entendeu-se, para tanto, que as
relações entre os indivíduos, seja no nível ôntico ou filogênico, constituem as bases genéticas,
no sentido de gênese ou origem, de todo comportamento humano, implicando na própria
definição de funcionamento psicológico. Discutiu-se também que os argumentos utilizados
pelo autor na fundamentação de uma psicologia social apresentam pontos contraditórios com
sua proposta. Como alternativa a esses conflitos internos à sua teoria, defendeu-se que as
funções atribuídas aos instrumentos e signos, em especial ao signo-palavra, tratam-se antes
das possibilidades de modalização dessas relações e não de processos de internalização das
estruturas sociais. Com modalizações das relações quer-se dizer as diferentes possibilidades
de organização dos intercâmbios sociais entre os indivíduos. Nesse sentido, seria possível
27
caracterizar diferentes dimensões dessas relações sem que para isso fosse preciso recorrer ao
artifício da internalização. Essas dimensões, por sua vez, descreveriam exclusivamente os
processos entre os indivíduos e o mundo, ao contrário de descrever etapas do funcionamento
de internalização os signos mentais.
Ao abrir espaço para essa possibilidade de interpretação, onde as relações humanas
configuram um campo potencial de produção de conhecimento e de desenvolvimento
científico, pretende-se, com esse capítulo, ampliar o alcance epistemológico da ideia de
relação na teoria de Vigotski, ao mesmo tempo em que se propõe a reapresentar, a partir desse
novo parâmetro, seus argumentos sobre estética no contexto da experiência humana com a
arte.
Para que as discussões fossem conduzidas da mesma forma como no capítulo anterior,
ou seja, partindo de uma leitura atenta do texto do autor e da construção de interpretações
comprometidas com seus escritos, fez-se o uso unicamente de duas compilações de seus
textos publicados em português sob o título de Psicologia da arte e Psicologia pedagógica,
que foram traduções de Paulo Bezerra. Foi lamentável que a possibilidade de leitura
alternativa a esses textos tenham sido extremamente limitadas. Diferente das publicações
utilizadas no capítulo anterior, os textos que agruparam as discussões sobre arte e estética em
Vigotski possuem apenas uma publicação em português datada de 1999 e alguns textos
isolados na publicação de 2010 sobre pedagogia. A versão castelhana do tomo VI das Obras
escogidas de Vygotski, que compõem suas teses sobre estética, não foram localizadas
virtualmente ou no formato impresso para consulta, mesmo com o grande esforço de busca
por parte deste pesquisador e autor do presente trabalho. A possibilidade mais próxima foi
recorrer ao texto original publicado em russo. Vale pontuar a facilidade em seu acesso por
vias virtuais, diferente das versões traduzidas. No entanto, a incapacidade deste pesquisador
para ler a língua russa e a ausência de leitores que o pudessem auxiliar impediram seu uso.
Por esse motivo, são reconhecíveis os limites epistemológicos das afirmações apresentadas
nesse capítulo e abre-se espaço para possíveis correções e revisões.
Para introduzir os argumentos sobre estética de Vigotski relacionados com sua
psicologia (social) da arte foi necessário considerar um ponto de partida, sua célula originária.
O conceito de reação estética apareceu nesse cenário como referência central para as análises
empreendidas sobre o seu projeto de psicologia da arte. Sendo a reação o mais básico dos
comportamentos humanos (VIGOTSKI, 2010), nela já está contida a dimensão de alteridade,
causa do estranhamento e da resposta reativa; um tipo especial e primário de relação se
28
estabelece entre os indivíduos e os objetos aos quais esses indivíduos reagem. Dessa forma,
em toda reação está presente concomitantemente uma espécie de relação.
É preciso considerar na concepção estética de arte desse autor uma relação que se
estabelece não somente entre indivíduos da mesma espécie, ou mesmo entre indivíduos, mas
também uma relação especial entre indivíduos e objetos. Somente assim pode-se ser
defendida uma concepção de criação ou apreciação artística, quando um indivíduo pode estar
envolvido em uma relação modalizada com obras de arte. Nesse sentido, reação e relação
constituem referência epistemológica importantes para as discussões sobre estética no projeto
vigotskiano. Desse modo, os argumentos sobre o caráter estético da experiência humana com
as obras de arte, de acordo com Vigotski, foram apresentados e discutidos.
3.1 Relação, reação e a Psicologia da arte
A divulgação de uma psicologia da arte no interior do projeto de uma psicologia social
em Vigotski deve ser interpretada como um esforço reflexivo acerca de especificidades no
comportamento humano relacionado às obras artísticas; uma preocupação marcada pela
necessidade de desenvolver contribuições da psicologia para a análise do caráter estético da
experiência humana sem adotar inteiramente os pressupostos formalistas e de uma estética
subjetivista (VIGOTSKI, 1999). A pretensão de Vigotski, como ele mesmo assumiu, não foi
apresentar um ponto final à questão da arte, mas abrir possibilidades de edificação de uma
psicologia objetiva da arte, como se observa nas suas palavras:
“Quisemos tão somente desenvolver a originalidade da visão psicológica da arte e
fixar a ideia central, os métodos de sua elaboração e o conteúdo do problema. Se na
confluência dessas três ideias surgir uma psicologia objetiva da arte, este livro será o
germe de onde ela medrará” (VIGOTSKI, 1999, p.3).
Partindo desses objetivos, Vigotski pretendeu esclarecer sobre o teor psicológico da
experiência estética. No entanto, ele não analisou as funções criativas do artista; tampouco
dos sentimentos do espectador. Não se trata da análise de instâncias individuais do fenômeno
artístico, mas do comportamento estético, fruto de uma relação com as obras. De acordo com
ele, seu método “parte da análise da arte para chegar à síntese psicológica” (Vigotski, 1999,
p.3). A justificativa para essa escolha metodológica está em sua afirmação de que “tudo
consiste em que a arte sistematiza um campo inteiramente específico do psiquismo do homem
social – precisamente o campo do seu sentimento” (VIGOTSKI, 1999, p.12, grifo
29
adicionado). Como consequência dessa afirmação, o comportamento estético ganhou nova
caracterização, referenciada no campo dos sentimentos.
Todavia, devem-se tomar cuidado quando se remetem aos termos sentimentos ou
emoções presentes nos textos de Vigotski, pois, dessa forma, entra-se num campo pouco
discutido e pouco esclarecido de sua teoria. Este campo não foi objeto central de discussão
nesse capítulo; apesar de se reconhecer sua importância e solicitude. No entanto, apontou-se
para algumas possibilidades de interpretação, de modo especial no que se refere à função
desempenhada por esses termos em seus textos sobre arte. A referência à afeição humana na
Psicologia da arte de Vigotski se deveu, inicialmente, ao seu envolvimento com a filosofia de
Spinoza. A principal implicação desse envolvimento foi, sobretudo, que as discussões sobre
as emoções – ou afetos como escreve Spinoza na Ética (2010) – foram destituídas do plano
subjetivo da existência humana e apresentadas como potência para a ação. Essas reflexões de
Spinoza construídas num plano objetivo do comportamento humano chamam a atenção de
Vigotski e lhe permitiu revisar as suas teorias sobre emoção, que resultaram no livro
publicado e traduzido para o espanhol por Judith Viaplana com o título Teoría de las
emociones, Estudio histórico-psicológico. Dessa forma, a presença dos termos sentimentos e
emoções nos textos de Vigotski sobre arte deslocam a ideia de comportamento estético para
um campo totalmente novo: o campo das reações, ou da potência para a reação.
Para uma aproximação maior com a forma na qual o autor considerou ser uma reação,
seu funcionamento específico e sua relação com o comportamento/emoção estético,
apresentam-se abaixo alguns recortes textuais que servirão como auxílio para discussões nesse
presente capítulo.
“A reação é a forma inicial e básica de todo comportamento. As formas mais
simples dessa reação são os movimentos oriundos de algo e os movimentos no
sentido de algo (...). Toda reação (...) sempre compreenderá forçosamente três
momentos básicos. (...) a percepção do estímulo, sua elaboração e ação responsiva
(...)” (VIGOTSKI, 2010, p.16).
“Essa atividade é o que constitui o dinamismo estético básico que, por natureza, é
um dinamismo do organismo que reage a um estímulo externo” (VIGOTSKI, 2010,
p.334).
“Nesse sentido podemos dizer perfeitamente que a emoção estética se baseia em um
modelo absolutamente preciso de reação comum, que pressupõe necessariamente a
existência de três momentos: uma estimulação, uma elaboração e uma resposta”
(VIGOTSKI, 2010a, p.333).
30
A principal questão de interesse para esse capítulo foi a dimensão relacional que as
reações adquirem para Vigotski. Ao definir reação como movimentos que tem origem em
algo que não está no próprio indivíduo e que possuem sentido e direção, abre-se a
possibilidade de se conceber as reações como relações entre indivíduos e objetos, mesmo que
em nível potencial. Por meio dessa leitura, foi possível afirmar que a dinâmica que vincula
indivíduos e ambiente foi tanto produto de reações aos objetos desse ambiente como
produtora de relações totalmente novas com esses objetos. Isso também ficou explicitado na
condução das análises desenvolvidas nos capítulos posteriores.
Portanto, a reação estética, conceito fundamental na teoria da arte de Vigotski, pôde
ser caracterizada também como forma específica de relação com os objetos artísticos. Esse
tipo de relação específica com objetos artísticos serve de exemplo sobre o que se chamou
anteriormente de modalizações das relações. Uma vez que os objetos com os quais os
indivíduos mantém relação mudam ocorre também transformações na organização dessas
relações. Assim, elas são modalizadas em outras relações: de relações opositivas para reações
catárticas, de reações apreciativas para relações criadoras etc.
Nessa perspectiva, a partir das ideias de relação e reação, pode-se sustentar que, no
contexto da experiência humana com a arte reside uma ação de reciprocidade, pois “a reação
deve ser entendida como certa relação recíproca entre o organismo e o meio que o rodeia”
(VIGOTSKI, 2010, p.15). Observa-se, portanto, que esta posição contrasta com interpretações
onde privilegiam os estados passivos da apreciação artística e recusa igualmente a
sobreposição do trabalho de criação artística em se supondo uma autonomia das obras. Com a
proposição de que a reação estética é uma possibilidade de modalização das relações humanas
com objetos específicos da arte, isto é, com objetos estéticos, pretenderam-se discutir, agora
com maior precisão, os argumentos de Vigotski sobre a experiência estética humana e
aproximar-se ainda mais dos fundamentos de sua psicologia da arte.
Inicialmente, foi necessário ponderar uma distinção estabelecida por ele entre objeto
estético e obra de arte. A não identificação desses dois conceitos no projeto psicológico desse
autor foi fundamental para as discussões nesse capítulo. Aqui residiu a melhor aproximação
com uma definição de atividade criadora, ou criação artística, e, por conseguinte, sua
compreensão sobre Arte. Para ele, na medida em que a obra de arte dizia respeito ao estímulo,
ao objeto oferecido pelo ambiente para a produção das reações estéticas, os objetos estéticos
estavam numa dimensão distinta. É nessa dimensão, portanto, que
31
“(...) se desenvolve uma atividade construtiva sumamente complexa, que é realizada
pelo ouvinte ou o espectador e consiste em que viva com as impressões externas
apresentadas, o próprio receptor constrói e cria o objeto estético para o qual já se
voltam todas as suas posteriores reações” (VIGOTSKI, 2010, p.333, grifo
adicionado).
Observou-se, então, que três aspectos constituem o funcionamento das reações
estéticas: indivíduo, obra de arte e objeto estético. Considerou-se ainda que o trabalho
criativo, não só do autor, mas de qualquer indivíduo que esteja em situação de relação com as
obras de arte, diz respeito ao processo de produção desses objetos estéticos, sem os quais a
mediatização das reações ao objeto artístico não poderia ocorrer. Assim, os objetos estéticos
surgem como signos necessários para a organização da mediatização entre indivíduo e obra de
arte, fundamentais para a dinâmica de superação da antítese entre conteúdo e forma.
Destaca-se que a introdução da função de mediação no cenário da Psicologia da arte é
uma discussão nova, ausente inclusive ao texto de Vigotski. Nesse sentido, a suposição de que
os objetos estéticos configuram os processos de mediatização das relações humanas com as
obras de arte abre espaço para se pensar também em dimensionalidades dessas relações, uma
vez que a função de mediação envolve processos de generalização na troca dos significados
com as alteridades (VIGOTSKI, 2010). Para auxiliar na compreensão do que se está
chamando dimensionalidades das relações com as obras de arte, foram discutidas algumas
decorrências dessa hipótese assumida, vinculada com a necessidade de se delimitar nos textos
de Vigotski uma semiogênese estética.
3.2 Extensões da semiogênese à criação artística
A introdução da hipótese de uma semiogênese relacionada aos processos de criação
artística nos textos de Vigotski foi fundamentada nas suas ideias acerca da função da arte
como função básica para a manutenção da vida humana (VIGOTSKI, 1999; 2010). De acordo
com ele, toda obra de arte surge, antes, relacionada a uma necessidade de vida (VIGOTSKI,
1999), promove processos de equilibração entre organismo e ambiente (VIGOTSKI, 1999),
favorece a expansão e descarga das energias psíquicas emocionais que de outra forma não
encontrariam vazão (VIGOTSKI, 1999). Essas assertivas resumem as funções vitais
atribuídas por Vigotski à arte.
A proposição em que o princípio da semiogênese permite vincular as ideias de reação
e relação à função de mediação entre os indivíduos e as obras de arte, sustentada nesse
capítulo, foi referenciada nessas assertivas. Não só isso, aceitar o potencial epistemológico da
semiogênese no campo das artes pressupõem assumir a emergência de dimensionalidades na
32
atividade criadora. Ou seja, não somente a criação artística é um processo mediatizado por
signos específicos da arte (objetos estéticos) como também apresenta diferentes dimensões
correlacionadas entre si durante o processo de produção e apreciação das obras. Essa
discussão será melhor desenvolvida a partir dos resultados apresentados no capítulo seguinte.
Nesse sentido, sugere-se que a concepção de um trabalho criativo em Vigotski deve
ser analisada a partir desses dois parâmetros: a) Processos de mediatização entre indivíduos e
objetos e b) correlações entre diferentes dimensões do processo de criação e apreciação
artística. Para isso, defendeu-se anteriormente que os objetos estéticos, emergentes nas
relações entre indivíduos e obras de arte, são os signos responsáveis pelos processos de
mediatização. Seguem abaixo esclarecimentos acerca das diferentes dimensões identificadas
nos textos de Vigotski e como elas se relacionam entre si, além de apresentar ao final sua
importância para a compreensão geral de sua psicologia (social) da arte.
3.2.1 Simultaneidade de opostos
A primeira configuração dimensional que chama atenção nos argumentos de Vigotski
é a vinculação entre os materiais reais da criação artística e o trabalho de formalização desses
materiais por meio de processos próprios à fantasia. O trabalho criativo do artista, segundo
Vigotski (VIGOTSKI, 1999) pode ser compreendido por meio de processos complexos de
elaboração e transformação da realidade na produção de novos sentidos para a vida. Assim ele
descreve esse trabalho:
“Como o pintor que, ao pintar uma árvore absolutamente não descreve, e nem pode
descrever cada folha separadamente, mas produz ora a impressão geral e sumária em
mancha, ora algumas folhas separadas, do mesmo modo o escritor, ao escolher os
traços de que necessita nos acontecimentos, elabora intensamente e reconstrói a
matéria vital” (VIGOTSKI, 1999, p.197, grifo adicionado).
Nessa perspectiva, o trabalho artístico não se traduz por meio de processos de simples
descrição da realidade, mas de produção e transformação dessa realidade. A obra de arte, fruto
dessa transformação, traz consigo as marcas de uma realidade totalmente nova,
potencialmente capaz de mobilizar reações complexas ao seu receptor. Dessa forma, “a
realidade sempre aparece na arte tão transfigurada e modificada que não há como transferir
diretamente o sentido dos fenômenos da arte para os fenômenos da vida”, declarou Vigotski
(2010, p.330). Nesse cenário, as tensões geradas pela dinâmica de transformação dos
conteúdos da realidade pela fantasia foram base para que Vigotski oferecesse uma fórmula
geral de análise de toda reação estética. A catarse, a superação desse conflito por meio da
33
autocombustão psíquica (VIGOTSKI, 1999; 2010), converteu-se na única possibilidade de
existência da arte. As duas citações a seguir resumem, com precisão, as correlações
estabelecidas por ele acerca desse processo.
“(...) ao tecido de relações perfeitamente reais e cotidianas, entrelaça-se algum
motivo irreal, que começamos a interpretar também como motivo real em termos
absolutamente psicológicos, e a luta entre esses dois motivos incompatíveis é o que
produz a contradição, que deve necessariamente ser resolvida na catarse e sem a
qual não existe arte” (VIGOTSKI, 1999, p.298, grifo adicionado).
“E aquele aspecto formal de que o autor reveste esse material não se destina a
desvelar as propriedades contidas no próprio material, (...) mas justamente ao
contrário: destina-se a superar essas propriedades, a fazer o horrendo falar a
linguagem do leve alento, o sedimento da vida em um ressoar sem-fim como o vento
frio da primavera” (VIGOTSKI, 1999, p.199, grifo adicionado).
Da incompatibilidade entre os conteúdos da realidade e fantasia, do real e irreal,
produz-se a contradição, o princípio da antítese artística (VIGOTSKI, 1999). Entretanto, a
arte se realiza somente quando há uma superação dessa contradição própria ao objeto estético;
ou como se encontrou no texto de Vigotski, “o artista sempre destrói o seu conteúdo pela
forma” (1999, p.271). Nessa superação encontrou-se a função da catarse e, por conseguinte,
da função vital da arte para a humanidade. Essa foi a fórmula que Vigotski propôs na sua
Psicologia da arte. Dessa forma, o caráter semiogênico desse processo está relacionado com a
possibilidade de superação e transformação das contingências imediatas da realidade na obra
por meio da criação de signos totalmente novos, os objetos estéticos, responsáveis por
orientar a experiência humana com as obras artísticas. No entanto, falta ainda esclarecer de
que modo esses processos, que correlacionam realidade e fantasia, dizem respeito à
proposição de dimensionalidades das relações entre indivíduos e objetos na criação e
apreciação das obras de arte.
3.2.2 Dimensionalidade e ritmo
Outra possibilidade de identificação da configuração opositiva entre conteúdo e forma
é através das concepções apresentadas por Vigotski acerca do ritmo e sua função na reação
estética. De modo geral, o ritmo foi tratado na Psicologia da arte como o elemento mais
próximo dos fatores biológicos da criação artística (VIGOTSKI, 1999). No entanto, foi
necessário se discutir as atribuições do termo biológico no texto desse autor, em especial
quando se tratou da arte. Teve-se o cuidado para não produzir com isso um reducionismo
biológico da criação artística, ponto rejeitado por Vigotski.
34
Assim como o uso do termo genético apareceu associado à concepção de origem dos
fenômenos, o termo biológico pareceu corresponder aos sentidos da vida humana; a vida
definida a partir de seus fatores ambientais, orgânicos e relacionais ou psicológicos. Portanto,
ao propor uma aproximação com os aspectos biológicos do ritmo, Vigotski se referiu ao
campo da vida prática dos indivíduos, compreendendo sua potência para a ação. Desse modo,
ritmo e emoção compartilham semelhanças fundamentais, como foi possível acompanhar no
texto do autor quando desenvolveu sua análise sobre as obras de Búnin.
“Vemos, deste modo, que o ritmo em si, como um dos elementos formais, é capaz de
suscitar as emoções que representa. (...) Seu ritmo [o da obra de Búnin] suscita o
efeito diametralmente oposto àquele suscitado pelo objeto de seu conto”
(VIGOTSKI, 1999, p.271, grifo adicionado).
Duas propriedades referentes ao ritmo devem ser destacadas nessa consideração de
Vigotski. A primeira diz respeito ao fato de que, no seu texto, o ritmo foi um elemento formal
da criação artística. Desse modo, o ritmo compôs um dos elementos necessários à antítese
estrutural (conteúdo/forma) das obras de arte. A segunda propriedade referiu-se ao campo das
emoções suscitadas na superação dessa antítese estrutural. Portanto, o ritmo também se tornou
um elemento da catarse artística. Logo, o ritmo desempenhou um duplo papel e nele mesmo já
se encontraram configuradas diferentes aspectos da dimensionalidade das reações estéticas.
Para deixar um pouco mais clara essa interpretação, resgatou-se em Vigotski que “o
ritmo é uma forma primária de organização do trabalho e da luta” (2010, p.334). Nessa
afirmação, o ritmo pareceu compartilhar algumas semelhanças estruturais com as reações, tal
como foi definida inicialmente (ver VIGOTSKI, 2010, p.16). Tanto as reações como o ritmo
são atividades orientadas para algo externo a eles próprios, sejam os objetos, no caso das
reações, ou na formalização do conteúdo, no caso do ritmo. Nessa orientação para aspectos
externos a ele próprio está a base para o argumento de que o ritmo desempenha,
especificamente, as funções de modalização e dimensionalidade na medida em que prepara o
campo das reações e determina primariamente as possibilidades de relação com os objetos
estéticos.
Mesmo desempenhando a função de modalizar diferentes dimensões das reações
estéticas, o ritmo parece dar outra direção para essas dimensões. Por exemplo, o tempo
configurado pelo ritmo trata-se, como declarou Vigotski (1999), de um tempo adiado. Assim
como as dimensões espaciais organizadas pelo ritmo sofrem igual inversão e tornam-se
35
sempre a conexão entre campos constitutivamente distintos: realidade e fantasia, cotidiano e
expectativas não realizadas. Os recortes textuais abaixo auxiliam a pensar essas questões.
“A arte é antes uma organização do nosso comportamento visando ao futuro, uma
orientação para o futuro, uma exigência que talvez nunca venha a concretizar-se,
mas que nos leva a aspirar acima da nossa vida o que está por trás dela”
(VIGOTSKI, 1999, p.320, adicionado).
“Por isto a arte pode ser denominada reação predominantemente adiada, porque
entre a sua execução e o seu efeito sempre existe um intervalo demorado”
(VIGOTSKI, 1999, p.320, adicionado).
Uma vez que Vigotski atribuiu essas funções à arte de modo geral, sabe-se, entretanto,
que seu argumento estético permitiu estabelecer o ritmo como o principal signo desses
processos. A centralidade do ritmo em suas análises acerca das obras de autores clássicos de
sua época demarcou claramente sua importância para pensar uma psicologia da arte que
priorizasse as especificidades das relações mantidas entre os indivíduos e as obras de arte.
Por fim, ressalta-se ainda a necessidade de maior aprofundamento desses conceitos e
ampliação desses argumentos. As dificuldades de acesso aos textos sobre arte de Vigotski
impedem que os pesquisadores abordem com mais propriedade esse campo de discussão.
Espera-se, a partir desse estudo, que os pesquisadores das diferentes áreas busquem maior
aproximação dos textos de Vigotski afim de neles mesmos conceberem os fundamentos para
uma psicologia (social) da arte.
36
4. METODOLOGIA
Sustentam-se no presente estudo duas teses centrais por meio de argumentos teóricos
desenvolvidos a partir dos textos de Lev Vigotski. Na primeira tese defende-se que a função
de mediação apresentada pelo autor configura, sobretudo, aspectos éticos. Justifica-se com
essa declaração que a função de mediação corresponde ao funcionamento das relações entre
indivíduos com suas alteridades. Com esta posição são contraditas nesse estudo aquelas
explicações que apelam para uma cisão arbitrária entre dimensões internas e externas do
processo de mediação. Além disso, reconhece-se nesse estudo, que as explicações acerca do
funcionamento psicológico não podem partir de um abstracionismo forçado, no qual o
funcionamento das alteridades em relação se perde de vista. Desse modo, sustentar essa tese é
contribuir para uma revisão das explicações acerca do funcionamento psicológico, relevando
seu caráter ético. A segunda tese, por sua vez, defende que a função de mediação está
vinculada aos aspectos estéticos das relações entre indivíduos e objetos. Decorre dessa tese
que as relações entre indivíduos e objetos, em particular as obras de arte, tem sua origem em
reações esteticamente orientadas com o mundo.
Tendo em vista que os argumentos teóricos que dão sustentação a essas teses foram
discutidos nos capítulos anteriores, propõe-se com o desenho metodológico dessa pesquisa
ancorar nesses argumentos teóricos análises desenvolvidas a partir de material empírico,
constituído através de entrevistas realizadas com cordelistas. A expectativa com essa
ancoragem é fundamentar, também empiricamente, as teses aqui defendidas.
4.1 Introdução ao Ciclo Metodológico
O Ciclo Metodológico foi um construto teórico apresentado por Valsiner & Branco
(1997) e Valsiner (2012; 2014b) e através do qual os autores descreveram processos e
elementos envolvidos na produção de conhecimento através da pesquisa. Com essa descrição,
os autores favorecem as críticas aos modelos tradicionais de ciência, em especial aos que
postulam neutralidade e fronteiras rígidas entre os dados empíricos, adquiridos pela
experiência, e os conceitos teoricamente desenvolvidos e organizados (ver Figura 1). Com
essas características, o Ciclo Metodológico se configura como um instrumento com
considerável potencial para a fundamentação de pesquisas que se propõem alternativa a esses
modelos tradicionais.
37
Figura 1 – The Methodology Cycle (VALSINER, 2012; 2014b)
Ao que tangencia os interesses da presente pesquisa, o Ciclo Metodológico ofereceu
duas contribuições relevantes. A primeira foi que, ao se referenciar este ciclo, se reforçou a
posição que se assumiu aqui, de considerar-se o caráter dialético da produção de
conhecimento. Isto é, no desenho metodológico desta pesquisa privilegiou-se a negociação de
diferentes elementos, aparentemente opostos, como, por exemplo, conceitos teóricos e
intuições do pesquisador. No entanto, a constante relação entre esses elementos foi o que
permitiu a construção de material relevante para a análise. A segunda contribuição foi que, a
partir do Ciclo Metodológico foi possível assumir que a produção de conhecimento está
relacionada com interpretações circunscritas ao domínio das situações específicas analisadas.
Isso significa valorizar as teorizações produzidas em contextos específicos, pois estas
teorizações adquirem sentido somente na medida em que correspondem às situações de
diálogo entre pesquisador e participante. Assim, assumiram-se as orientações apontadas no
Ciclo Metodológico para caracterizar, fundamentar e explicar os processos abordados nessa
pesquisa.
4.2 Caracterização do estudo
Considerando os fundamentos do Ciclo Metodológico, propôs-se para essa pesquisa
um estudo transversal de três casos. Por estudo transversal de casos, entendeu-se o
cruzamento de situações específicas (FLICK, 2004). A partir desse cruzamento, procurou-se
38
responder a seguinte pergunta de pesquisa: como se organiza a função de mediação em
situações de criação artística?
4.3 Objetivos
4.3.1 Objetivo geral
Investigar processos emergentes da função de mediação na atividade criadora de cordéis.
4.3.2 Objetivos específicos
- Caracterizar a função de mediação de acordo com Vigotski.
- Discutir a concepção de atividade criadora a partir de Vigotski.
- Discutir a função do signo no processo de criação artística.
- Discutir a adequação do método utilizado na presente pesquisa para a análise de processos
microgenéticos da função de mediação na arte.
4.4 Participantes e locais de realização das entrevistas
Fizeram parte dessa pesquisa três cordelistas do estado de Alagoas, identificados
como: cordelista A, cordelista B e cordelista C. Por cordelistas considerou-se os indivíduos
que produzem literatura de cordel, seja escrita ou oral. No entanto, foram selecionados para
essa pesquisa apenas os cordelistas que produziram literatura de cordel na forma escrita. A
seleção dos cordelistas para essa pesquisa foi por meio do banco de cadastro da Secretaria de
Cultura do estado de Alagoas. Os cordelistas selecionados foram assim caracterizados:
- Cordelista A: homem; 76 anos; residente em Alagoas; entrou em contato com a
literatura de cordel ainda na infância, por meio de sua família e dos repentistas de sua cidade;
escreve cordéis há mais de 40 anos; possui um acervo de mais de 90 cordéis escritos; apesar
dos temas variados, concentra sua produção sobre educação, política e a vida do povo da roça.
- Cordelista B: homem; 37 anos; residente no interior de Alagoas; teve seus primeiros
contatos com a literatura de cordel ainda na infância, por meio de sua família e da feira perto
de sua casa; escreve cordéis há mais de 15 anos; escreve seus cordéis com a finalidade de
alfabetizar e ensinar conteúdos acadêmicos às diferentes idades, além de produzir para feiras e
exposição em escolas e eventos; seus cordéis circulam temas como educação, política,
religião e a vida do povo de sua cidade.
- Cordelista C: mulher; 64 anos; residente em Alagoas; teve influência da literatura de
cordel através de sua mãe e de seus vizinhos que se reuniam para recitar as literaturas que
39
compravam nas feiras populares; escreveu seu primeiro cordel aos 20 anos; possui acervo
variado que narra temas sobre política, religião, educação e humor.
Durante os procedimentos de construção das narrativas e análise (ver item 5.5 e 5.6),
observou-se certa dificuldade no direcionamento das entrevistas com a cordelista C, para os
objetivos estabelecidos nesse estudo. Desse modo, optou-se por centralizar as interpretações
aqui desenvolvidas apenas nas narrativas dos cordelistas A e B. Entretanto, as entrevistas
realizadas com a cordelista C mantém-se seguramente arquivadas, na forma como determinou
o Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE) assinado.
As entrevistas com os cordelistas foram realizadas em ambientes previamente
definidos e acordados entre eles e o pesquisador. Esses ambientes foram assim definidos: para
o cordelista A, instalações da biblioteca pública municipal; para o cordelista B, instalações do
curso de Educação Física da Universidade Federal de Alagoas e instalações do Sindicado dos
trabalhadores de seu município; para a cordelista C, sua residência.
4.5 Procedimentos para construção das narrativas
A investigação da função de mediação na criação artística, objeto de estudo dessa
pesquisa, foi realizada a partir de narrativas. Para tanto, definiram-se narrativas enquanto
negociações de significados na relação entre alteridades (BRUNER, 1990). Desse modo, as
narrativas compreenderam os processos de significação dos cordéis negociados entre os
cordelistas participantes dessa investigação e o pesquisador. Para a construção dessas
narrativas, adotaram-se duas estratégias metodológicas, com o intuito de diversificar
situações, possibilitando a emergência de um material empírico enriquecido e com potencial
para a investigação da função de mediação. Considerou-se que a adoção de diferentes
estratégias na condução das narrativas, favoreceria ao surgimento de variabilidades na
organização da função de mediação e assim, situações distintas para análise.
A primeira estratégia foi preparada de modo que os cordelistas pudessem falar sobre
aspectos específicos da criação do seu cordel selecionado (ver abaixo a descrição detalhada
desse procedimento). A partir dessa estratégia, esperou-se caracterizar a função de mediação
circunscrita ao processo de criação do cordel. Ao se colocar o cordelista para falar da criação
de sua própria obra buscaram-se explicações distintas daquelas oferecidas por Vigotski, em
seu livro Psicologia da arte, visto que ele desenvolveu analises sobre as obras de arte e sobre a
criação artística, no entanto, sem considerar a perspectiva do autor da obra analisada. Dessa
forma, ele pôde conduzir suas interpretações apenas do lugar de apreciador que ele mesmo
40
ocupou. Destaca-se, então, como especificidade da presente investigação, uma análise da
função de mediação no âmbito da criação artística, considerando-se inclusive, a perspectiva
do autor da obra. Ao adotar-se essa estratégia metodológica nessa pesquisa, esperou-se
caracterizar e distinguir a organização da função de mediação na criação artística como sendo
diferente da organização da função de mediação no processo de apreciação.
A segunda estratégia adotada induziu-se aos cordelistas participantes dessa pesquisa a
serem apreciadores de seus próprios cordéis (ver abaixo detalhamento desse procedimento).
Utilizando-se do recurso da videografia da recitação dos cordéis selecionados no primeiro
encontro, o pesquisador proporcionou aos cordelistas A, B e C uma situação onde eles
assistiram a eles mesmos recitando seus cordéis. Com isso, esperou-se além de observar uma
organização da função de mediação diferente da primeira situação, explicitar o que de fato
variou entre uma situação e outra.
Para a aplicação dessas estratégias metodológicas, foram organizados três encontros
com cada cordelistas. Nos encontros realizados, optou-se pelas entrevistas semiestruturadas
por se considerar a possibilidade tanto de conduzir uma conversa em torno de perguntas
gerativas (FLICK, 2004) como de abrir espaço para a emergência de perguntas circunscritas
às situações específicas das entrevistas. As perguntas gerativas, com seu potencial para
adequar cada encontro ao seu objetivo definido, serviram como principal instrumento no
desenvolvimento das estratégias metodológicas adotadas. Como já foi mencionado, os
encontros foram realizados em locais (ver item 5.4) e dias diferentes. A periodização das
entrevistas seguiu-se dessa forma: com o cordelista A, as entrevistas foram realizadas
semanalmente; com o cordelista B, as entrevistas foram realizadas a cada quatro dias; com a
cordelista C, as entrevistas foram realizadas a cada dois dias. A definição desses intervalos
entre cada encontro foi estabelecida a partir da disponibilidade de cada cordelista e do
pesquisador.
Sistematicamente, os processos de construção das narrativas seguiram as seguintes
etapas: 1) O pesquisador buscou junto à Secretaria de Cultura do estado de Alagoas uma lista
com os nomes e contatos dos cordelistas ainda em atuação. A opção pela busca da lista na
Secretaria foi a melhor forma de identificação dos cordelistas no estado; 2) O pesquisador
entrou em contato com três dos cordelistas disponíveis na lista e apresentou brevemente os
motivos da pesquisa. A escolha de apenas três cordelistas deveu-se aos procedimentos de
análise adotados nesta pesquisa, que dispensou números elevados de participantes. Vale
destacar ainda que muitos dos contatos disponíveis na lista não atuavam mais no estado ou
não respondiam mais nos números telefônicos disponíveis. Essas ocorrências restringiram
41
ainda mais o número possível de participantes; 3) O pesquisador agendou o primeiro encontro
nos locais sugeridos pelos cordelistas (ver item 4.4) e de comum acordo. Inicialmente,
nenhum dos cordelistas manifestou insatisfação em participar da pesquisa; 4) Os encontros
foram organizados como descritos a seguir:
1º encontro: No primeiro encontro com os cordelistas, o pesquisador apresentou-lhes
integralmente a proposta da pesquisa, esclarecendo-lhes todas as suas dúvidas. Após
concordância, caracterizado a participação voluntária, o pesquisador solicitou-lhes a
assinatura do TCLE. Também fez parte desse primeiro encontro uma conversa livre
com os cordelistas com a finalidade de aproximar o pesquisador do contexto de
atuação dos participantes. Nessa conversa foram pontuados aspectos como: Primeiros
contatos com o cordel, tempo de atuação enquanto cordelista, interesse pela literatura
de cordel, quantidade de obras escritas etc. A partir dessa conversa, o pesquisador
solicitou que os cordelistas escolhessem apenas um de seus cordéis para ser recitado.
Essa recitação foi registrada em vídeo. Os cordéis selecionados foram: cordelista A, A
mulher feia; cordelista B, A gata que pariu cachorro; e cordelista C, A diferença dos
ricos para os pobres. Destaca-se que, para a condução das análises dessa pesquisa,
fizeram parte os cordéis selecionados pelos cordelistas A e B, como justificado acima
(ver item 5.4). A escolha de apenas um cordel constituiu uma estratégia metodológica
através da qual se procurou limitar o recorte do material sobre o qual se investigaria a
função de mediação, objeto de estudo dessa pesquisa. Esse limite foi necessário,
considerando-se a vasta publicação de obras dos cordelistas participantes. Por sua vez,
a videografia da recitação dos cordéis também serviu como estratégia fundamental
para que se pudesse fazer com que os participantes experimentassem a situação de
apreciadores do próprio trabalho no terceiro encontro. De modo geral, a organização
metodológica desse primeiro encontro foi elaborada de modo a construir materiais e
estratégias relevantes para os encontros seguintes.
2º encontro: O segundo encontro foi organizado de modo a refletir os processos de
escrita do cordel selecionado pelos cordelistas e recitado no encontro anterior. Para
isso, preservou-se o formato de entrevistas semiestruturadas a partir de perguntas
geradoras. Tendo-se em vista a conversa inicial realizada com os cordelistas no
primeiro encontro e a recitação dos cordéis selecionados, elaborou-se a seguinte
pergunta geradora: Como foi o processo de escrita desse cordel? Pretendeu-se com
42
essa pergunta despertar um processo de reflexão dos cordelistas sobre o percurso de
criação do cordel selecionado por eles. Para tanto, definiu-se criação como o processo
de formalização do material na obra (ver discussão do Capítulo 2). Nesse sentido, os
aspectos que se destacaram nas narrativas dos cordelistas durante esse encontro foram
caracterizados a partir dessa definição geral e corresponderam a: origem dos
personagens; relação entre o cordelista e a estória narrada no cordel; origem dos
conteúdos apresentados nos cordéis; estratégia utilizada pelos cordelistas para escrever
seus conteúdos na forma específica da literatura de cordel etc. Através da pergunta
geradora e da reflexão fomentada pelo pesquisador também foi possível que os
cordelistas descrevessem, ao seu modo, suas concepções acerca do que é a atividade
de criação de cordéis e de sua importância. De modo geral, esse encontro estimulou
uma situação favorável em que os cordelistas atualizaram (tornaram presente) e
imergiram na produção escrita do cordel selecionado e, assim, possibilitaram ao
pesquisador caracterizar uma organização própria da função de mediação em resposta
ao questionamento apresentado. Esse encontro também foi registrado em vídeo.
3º encontro: O terceiro encontro com os cordelistas iniciou-se com o pesquisador
apresentando-lhes o vídeo da recitação dos cordéis selecionados, realizada por eles
primeiro encontro. Essa estratégia metodológica foi empregada de modo que o
pesquisador induziu aos cordelistas a uma situação em que eles fossem apreciadores
de seus próprios cordéis; de sua própria obra. Para isso, definiu-se apreciação como o
processo que vincula apreciador e obra por meio de reações que visam superar o
conflito inerente à formalização dos conteúdos na obra (ver discussão do Capítulo 2).
Se no segundo encontro os cordelistas foram conduzidos a refletir sobre a produção
escrita dos cordéis selecionados, nesse encontro o pesquisador possibilitou aos
cordelistas refletirem sobre suas impressões acerca de seu próprio trabalho. Para isso,
o encontro foi organizado a partir da seguinte pergunta geradora: Como está sendo
para você se ver recitando seu próprio cordel? Esperou-se com essa pergunta que os
cordelistas falassem da experiência singular de estarem se vendo recitando seus
cordéis. Surgiram a partir dessa pergunta geradora conteúdos como: identificação de
possíveis melhorias no cordel, sejam no texto ou na forma de recitação; introdução de
novos processos na explicação do processo de criação dos cordéis, como por exemplo,
a dinâmica entre o cérebro, alma, escrita etc. Dessa forma, foi possível caracterizar a
função de mediação a partir da organização das impressões que os cordelistas
43
atribuíam ao cordel recitado, ao mesmo tempo em que tentaram superar essas
impressões imediatas. Esse encontro também foi registrado em vídeo.
A partir das estratégias metodológicas adotadas nessa pesquisa para a construção de
narrativas, obtiveram-se como material para análise: 2 narrativas do cordelista A,
correspondentes aos encontros 2 e 3; e 2 narrativas do cordelista B, também correspondentes
aos encontros 2 e 3. Lembrando-se que as narrativas da cordelista C não foram utilizadas
nessa análise pelos motivos já expostos (ver item 4.4).
4.6 Procedimentos para análise das narrativas
As quatro narrativas analisadas nesse estudo corresponderam aos encontros 2 e 3 com
os cordelistas A e B (ver item 4.5). Investiu-se na análise das narrativas como material
potencial para o estudo da função de mediação por se entender que as narrativas são processos
de negociação de significação no tempo (BRUNER, 1990). Desse modo, a função de
mediação compreendeu o funcionamento dessas negociações, onde se configuraram
dimensões espaço-temporais propícias à significação dos objetos no mundo. Se as narrativas
são processos de organização e significação das experiências no mundo, esses processos são
mediados pelas relações com o outro. Portanto, a importância em se adotar as narrativas nesse
estudo está na possibilidade de investigação da função de mediação através da dinâmica de
alteridades.
Observando as duas estratégias metodológicas adotadas na construção das narrativas,
os procedimentos de análise empreendidos por esse estudo também foram divididos da
seguinte forma:
- Análise das narrativas relacionadas ao encontro 2:
Os processos de análise desenvolvidos aqui são referentes ao segundo encontro,
quando os cordelistas A e B foram levados a refletir sobre o processo de criação da escrita de
seus cordéis selecionados. Para isso, seguiram-se as etapas descritas abaixo:
1. Após a realização dos encontros com os cordelistas, o pesquisador catalogou os vídeos
de acordo com o encontro realizado e com o cordelista entrevistado. Essa catalogação
foi importante para identificação dos vídeos com as etapas prescritas da pesquisa.
Tendo-se os vídeos identificados, o pesquisador assistiu, integralmente e
atentivamente, aos vídeos correspondentes ao segundo encontro, realizado com os
44
cordelistas A e B. Esse primeiro contato com os vídeos serviu para que o pesquisador
se aproximasse com mais propriedade dos conteúdos das entrevistas. Nessa
aproximação, o pesquisador observou que algumas perguntas feitas fomentavam
maiores esforços dos cordelistas para respondê-las. Esses momentos, registrados nos
vídeos, foram marcados pelo pesquisador. Considerando as discussões teóricas e
metodológicas desse estudo, nessas situações, onde se indicavam intensidade de
esforço na tentativa de respostas dos cordelistas e, onde se observou haver
concentração de informações relevantes para a explicação do problema investigado,
foram caracterizadas como tensões.
2. A partir dos registros dessas situações de tensão, o pesquisador retomou os vídeos e as
transcreveu integralmente. As transcrições privilegiaram os aspectos verbais do vídeo.
As transcrições das situações de tensão serviram como estratégia para sua
identificação e caracterização a partir dos elementos verbais envolvidos.
3. O pesquisador realizou uma leitura atenciosa das transcrições buscando estabelecer
relações entre as explicações dadas pelos cordelistas e a pergunta gerativa do segundo
encontro. Dessa forma, o pesquisador iniciou um processo de atribuição de sentidos
para as narrativas dos cordelistas acerca do processo criativo dos cordéis selecionados
por eles.
4. Percebeu-se, então, que as explicações dos cordelistas circunscritas às situações de
tensão transcritas refletiam o confronto entre diferentes categorias espaciais,
temporais, relacionadas ao conteúdo dos cordéis. Por exemplo, as categorias espaciais
de longe e perto expressas na fala do cordelista A quando diz: “você vê como o
cérebro vai longe, você tá aqui, mas pensa no seu pai que tá em São Paulo” (ver
Tabela 1). Essas situações foram possibilitadas uma vez que os cordelistas foram
colocados frente a questões sobre a atividade de criação dos cordéis selecionados
difíceis de ser explicadas.
5. Dessa forma, interpretou-se que os cordelistas fundamentavam sua atividade de
criação dos cordéis a partir da exposição e explicação de como essas categorias
opostas configuravam situações de tensão potencialmente superáveis.
6. Considerando essa interpretação, foi realizado um levantamento de todas as categorias
negociadas pelos cordelistas em suas narrativas. Durante o levantamento dessas
categorias, optou-se por nomeá-las como dimensões. Para tanto, entendeu-se que
dimensões se referem à dinâmica entre os diferentes elementos em oposição nas
narrativas dos cordelistas.
45
7. Também se percebeu a partir desse levantamento que essas dimensões poderiam ser
classificadas quanto ao tipo de relação estabelecida entre elas. Desse modo, a
dinâmica dos elementos em cada dimensão foi classificada como: a) dinâmica de
contraditoriedade e
b) dinâmica de
complementariedade.
A dinâmica de
contraditoriedade refere-se às relações de exclusão ou sobreposição de elementos
durante a negociação de um significado. Por exemplo, quando o cordelista A explicou
que a poesia matuta era uma linguagem independente do português gramatical,
chamado por ele de português correto (ver Tabela 1), ele estava descrevendo uma
dinâmica de exclusão entre aspectos, uma vez que “em português correto, quem
escreve, não tem rima” (ver Tabela 1). Por outro lado, a dinâmica de
complementariedade
se
trata
da
dinâmica
de
coexistência
de
elementos
complementares nas narrativas dos cordelistas. Por exemplo, quando o cordelista B
declarou que “a rima e a facilidade para que as pessoas compreendam tal fato, tal
acontecimento” (ver Tabela 2) se encontram na literatura de cordel, ele estava
descrevendo uma dinâmica onde, rima e facilidade para que as pessoas
compreendam, se complementavam e coexistem na obra do cordel.
8. Para organizar as informações obtidas até aqui, o pesquisador construiu duas tabelas (1
e 2), correspondentes a cada cordelistas, A e B respectivamente. Nessas tabelas
indicam-se a marcação temporal da ocorrência das situações de tensão no vídeo, a
nomeação das dimensões, a classificação das dimensões quanto a sua dinâmica de
contraditoriedade e complementariedade e o recorte da transcrição correspondente à
situação de tensão específica destacada.
9. A elaboração de tabelas para a organização e visualização das informações construídas
a partir das narrativas dos cordelistas serviu como instrumento potencial de análise
para se alcançar os resultados desse estudo. Também foram úteis para a construção
dos gráficos 1 e 2 apresentados durante as discussões dos resultados das análises
conduzidas nesta pesquisa.
46
Complementariedade
P: No caso desse cordel, o que o senhor quis com ele, qual o objetivo
de escrever sobre essa brincadeira entre o senhor e sua esposa?
A: É! Essa brincadeira, de mangação, de brincadeira e mangação com
as pessoas já vem de muitos anos. Você chega em uma feira, veja
bem, você só acha graça, só acha graça, quando dois violeiros estão
se maltratando. Enquanto eles tão cantando sério, você tá sério. Você
não ri. Mas quando um diz que o outro é sem vergonho, que o outro é
ladrão, você acha graça. O outro vai dizer que ladrão é ele. Então
começa aquele humor. Você começa a achar graça, só quando os dois
se maltratam.
Contraditoriedade
Português correto - Poesia matuta X Homem da roça
29’13’’
Longe + Perto X Escrita
22’20’’
TRANSCRIÇÃO2
P: Como é escrever um cordel? O que tem de diferente do cordel pra
outras literaturas? O que é específico do cordel?
A: O português correto não dá a métrica da poesia matuta, do matuto
do sertão. A métrica do cordel é porque o cordel é do sertão. Então, é
a linguagem matuta. Então quem for escrever um cordel, se pertender
colocar o português correto ele nunca vai... ele vai escrever, mas vai
ler como um jornal. E cordel não é feito pra ler como jornal. Cordel é
feito pra ler cantando, rimando, chorando; de qualquer jeito, quando
ele tá na rima certa mesmo, ela tá na métrica; ele é feito pra isso. Não
é feito de maneira nenhuma pra se ler assim como se tá lendo um
livro em português correto. Em português correto, quem escreve, não
tem rima. Então quando passa pra fazer a poesia ele sai fora da
métrica. A poesia matuta é uma e a poesia... tem outras poesia que
não pega, é no português correto, não pega a métrica do cordel. Mas a
poesia matuta se torna a poesia mais bonita que existiu e que existe
porque ela chama a essência do homem da roça, ela chama o natural,
ela chama... a pessoa sente as coisa que a pessoa tá sentindo lá e
sente. Ele fala com o coração o que tá passando.
Complementariedade
Humor + Sarcasmo X Ritmo
10’01’’
TIPO
A: (...) então, coisa que eu escrevi em cima da realidade, mas tem
muita coisa que a gente tem que criar. Então é justamente aonde cria e
vem o real, mas que vem com... em cima da poesia. E a poesia mais...
é a poesia matuta.
Complementariedade
5’33’’
X Poesia matuta
DIMENSÃO
Realidade + Fantasia
TEMPO
A: O cérebro da pessoa, ele vê o que você quer. Se você quer a coisa,
ele lhe guia. A vista dos olhos dá vantagem, mas o cérebro vê pelos
olhos e pela (?), vê o que ele quer. Se você pensa tá aqui, você vê
como o cérebro vai longe, você tá aqui, mas pensa no seu pai que tá
em São Paulo. O cérebro vai lá sem você vê. Vai e volta aqui. Vai pro
estrangeiro, vai pra onde você queira, ele vai rápido. Bem assim é
quando você tem o objetivo de escrever. Então o seu cérebro vê o que
você quer.
Tabela 1 – Cordelista A, encontro 2.
2
Alguns símbolos foram utilizados nas transcrições verbais das narrativas dos cordelistas A e B apresentadas nas
tabelas 1, 2, 3 e 4. Para facilitar a compreensão e leitura das transcrições, leia-se com os seguintes símbolos: (...)
= indica a existência de fala não transcrita; (?) = indica partes da videografia inaudíveis; ... = indica interrupção
momentânea no fluxo de fala dos cordelistas.
47
TRANSCRIÇÃO
15’00’’
Rima + Facilidade X
Fatos
Complementariedade
P: Por que escrever essa história em cordel? O que tem o cordel que
te chama a atenção?
B: A rima. A rima e a facilidade para que as pessoas compreendam
tal fato, tal acontecimento. Porque, por exemplo, se eu fosse
escrever essa história como um fato jornalístico, um texto, eu iria
usar palavras de pouco acessibilidade da sociedade. (...)
16’21’’
Compreensão X Meu
Complementariedade
B: (...) Eu posso ter acesso a outras palavras, a palavras bonitas, a
palavras interessantes, mas o meu povo, o nosso povo, ele não tá
capacitado, assim, pra entender tais palavras. A gente quando entra
no mundo universitário fica ali assim amedrontado com algumas
palavras. Imagine a pessoa que não chegou ainda à universidade, ou
talvez nem chegue. Até por interesse ou por condições.
Complementariedade
P: E a leitura do cordel, o que ela tem de diferente das outras
literaturas?
B: Como eu já citei, pra mim, o que ela tem de diferente é esta
facilidade de se entender. É a facilidade dela estar dentro do nosso
cérebro, na parte, claro, correspondente ao entendimento, e a fala,
porque quando você lê, você fala, você reproduz aquilo ali com
mais facilidade; você assimila a história da gata; você assimila a
vinda do papa Francisco que eu escrevi; O vereador e o
maloqueiro, O amante, entre outros; de uma forma engraçada você
assimila.
26’38’’
povo
TIPO
Dentro + Fora X Histórias
DIMENSÃO
Palavra +
TEMPO
Tabela 2 – Cordelista B, encontro 2.
- Análise das narrativas relacionadas ao encontro 3:
Os processos de análise apresentados aqui descrevem as situações quando os
cordelistas refletiram sobre a apreciação da recitação dos seus cordéis selecionados. Quanto
aos procedimentos de análise, eles também foram realizados de acordo com as estratégias
metodológicas adotadas para essa investigação. De modo geral, os procedimentos para análise
das narrativas referentes ao terceiro encontro com os cordelistas A e B preservaram o roteiro
anteriormente descrito. Nesse sentido, as etapas na análise foram retomadas em seus aspectos
gerais e foram acrescidos os aspectos apropriados às especificidades da situação atual:
1. No percurso entre assistir aos vídeos e marcar as situações potenciais para explicação
do problema de investigação, relacionadas com o terceiro encontro, o pesquisador foi
orientado por uma questão distinta da anterior. Aqui o pesquisador buscou nos vídeos
situações que melhor caracterizassem o processo de apreciação da recitação dos
48
cordéis. Para isso, dialogando com os fundamentos teóricos e metodológicos dessa
pesquisa, ele identificou nos vídeos as situações de tensão que se relacionavam ao fato
de os cordelistas terem apreciado a própria recitação de seus cordéis.
2. Para realizar a transcrição das situações de tensão identificadas na narrativa dos
cordelistas relacionada ao terceiro encontro, o pesquisador também privilegiou os
aspectos verbais. No entanto, movimentos gestuais dos cordelistas durante as
entrevistas serviram como apoio para identificação das situações de tensão. Por
exemplo, foram considerados o intenso movimento dos braços e das mãos na ausência
de verbalização ou os gestos que acompanhavam a fala, tocando na cabeça quando
eles pronunciavam a palavra cérebro, ou dentro, ou alma etc. Optou-se por não
transcrever os aspectos não verbais do vídeo por se assumi, como interesse dessa
investigação, a configuração de oposições entre processos revelados, especificamente,
na fala dos cordelistas. Desse modo, as situações de tensão analisadas tanto no
segundo encontro quanto no terceiro foram tensões entre processos verbais.
3. Partindo-se da leitura atenciosa das transcrições e da caracterização das situações de
tensão marcadas nas narrativas dos cordelistas A e B durante esse encontro, percebeuse algumas variações nas suas narrativas, que as diferencias daquelas do segundo
encontro, os quais promoveram novos direcionamentos em suas falas. Agora, as
narrativas construídas a partir da apreciação da própria recitação dos seus cordéis
sinalizaram a tentativa de superar os conflitos já identificados no encontro anterior.
Desse modo, observou-se uma ampliação dos processos presentes as dimensões nesse
encontro. Ilustra-se essa observação com um trecho da fala do cordelista A: “Então
são coisas que vem, é preciso que o cérebro raciocine, tenha o raciocínio rápido,
tenha o raciocínio de aguentar ele chegar aqui (...)” (ver Tabela 3). Interpretou-se,
que o referido cordelista, ao descrever o percurso entre as dimensões espaciais
dentro/fora e, ao agregar à sua descrição, no exemplo específico, explicações sobre o
cérebro, raciocínio e aqui, ele estava buscando formas para superar a tensão gerada
anteriormente. Acredita-se que isso aconteceu pelo fato dos cordelistas terem sido
induzidos à situação de apreciação de suas obras, inicialmente, e questionados pelo
pesquisador sobre sua experiência de apreciação.
4. Considerando essas observações, também foi realizado um levantamento das
dimensões presentes nas narrativas dos cordelistas A e B. Para a organização e
apresentação das dimensões marcadas, fez-se a preferência por continuar utilizando o
mesmo formato das tabelas anteriores. Dessa forma, também nas tabelas 3 e 4,
49
destacaram-se a marcação temporal da ocorrência das situações de tensão no vídeo, a
nomeação das dimensões, a classificação das dimensões quanto a sua dinâmica de
contraditoriedade e complementariedade e o recorte da transcrição correspondente à
situação de tensão especificamente considerada.
5. Assim, as tabelas 3 e 4, construídas durante a análise das narrativas referentes ao
terceiro encontro, também serviram como ferramenta importante na discussão dos
resultados dessa pesquisa e foram base para a construção dos gráficos 3 e 4.
Contraditoriedade
17’56’’
Autor + Ator +
Imitador
Contraditoriedade
22’20’’
Fora – Escrita
Contraditoriedade
Complementariedade
Papel
TIPO
Dentro – Cabeça x
9’50’’
Dentro – Cérebro x Fora –
2’30’’
DIMENSÃO
Raciocínio + Criatividade
TEMPO
TRANSCRIÇÃO
P: O que o senhor quis dizer com “ter uma mente pra escrever”?
A: A poesia, o livro não pode mandar ninguém escrever. Tem que
sair de dentro, de dentro do cérebro pra caneta, pro papel. É! Com a
maior rapidez, porque se não for com rapidez daqui [aponta para a
cabeça] pra o papel, ele esquece. Ele próprio esquece. Porque eu
mesmo já esqueci de tantas as coisas... de lembrar, assim, dentro do
ônibus, lembrar de um negócio e procurar um papel pra escrever e
com 5 minuto ir embora aquilo, e não achar mais de jeito nenhum.
Eu acho outra coisa parecido, mas não achar mesmo como você fez
naquela hora. Então são coisas que vem, é preciso que o cérebro
raciocine, tenha o raciocínio rápido, tenha o raciocínio de aguentar
ele chegar aqui [aponta para a mesa].
P: Esses temas que o senhor escolhe têm a ver com a inspiração?
A: Tem. Tem a ver pelo seguinte: cada coisa, cada momento que
você vê que pode escrever sobre aquilo aí você vê outras coisas em
redor dele, daquilo, do objetivo, que é o complemento. Então você
vê que um tal, um fulano de tal morava na cidade fulana de tal, e
dali você vai ter que ter o raciocínio fazer com que aquele cara saia
dali, faça bagunça na cidade dele mas saia, e da cidade que ele tiver
pode ir pra outro canto e vai criando. Aí se chama a rapidez com a
criatividade. Aí ele tem que ser também criativo. Se não for
criativo, ele não chega a lugar nenhum. Ele para logo.
P: Quando o senhor fala que o homem da roça é o próprio
personagem...
A: Quando o personagem imita, porque o homem da roça, ele não
imita mais. Ele é o próprio, ele é o próprio ator. Mas aquele que
escreve a história dele é o mais difícil porque vai imitar o ator. É o
penetra que vai imitar o ator. O ator é aquele que tá na roça, o
matuto. (...) Eu não sou o homem da roça. Eu to dando um recado
de um homem da roça. E o homem da roça é que tá conversando
com o doutor. Ele tá dizendo a situação dele lá na roça.
P: O senhor falou que o homem da roça é o ator e quem escreve
está imitando...
A: Aí é onde tá a coisa. Ele tinha a poesia dentro da cabeça, mas
não colocava pra fora porque não sabia escrever. E a poesia não se
pode mandar outra pessoa escrever. A mente vai distribuindo e quer
que vá logo escrevendo. Muitas coisas ele sabia de co e não tinha a
convicção de que aquilo era poesia. Ele mesmo nem sabia o que ele
fazia, se era poesia.
Tabela 3 – Cordelista A, encontro 3.
50
TRANSCRIÇÃO
Contraditoriedade
Imaginário – Dentro x Real – Fora
18’13’’
TIPO
P: Como é que você me explica esse sair naturalmente?
B: A coisa vai acontecendo ao natural. Vai acontecendo como nós
estamos conversando aqui, como nosso primeiro contato pelo
telefone e daí na minha cabeça começou aquela viagem de, poxa, o
P, da psicologia, o cordel, e ta aí o resultado, né, a gente já veio pra
o campo real. Nós estávamos só no campo imaginário e hoje
estamos no campo real. Isso, sim, é a naturalidade surgindo. Você
pega um grão de feijão. Você põe ele lá na terra e vai regando e ele
tá lá esperando ser germinado. E quando germina, ele sai para o
encontro com o ar, o encontro com o sol, o encontro com a lua.
Então, sair de forma natural pra mim é isso: é sair de dentro pra que
todos possam ter o prazer de compartilhar. Então isso é o natural.
Contraditoriedade
07’08’’
Caneta
DIMENSÃO
Cérebro – Alma x Palavra – Escrita –
TEMPO
P: Tem alguma coisa nesse escrever que é diferente pra criar do que
digitar?
B: Eu acho que sim. Pra mim a escrita é a palavra da alma. Embora,
hoje ela possa tá – como eu poderia dizer – modernizada. A escrita
hoje, a alma se informatizou. Então, assim, a escrita pra mim é a
fala da alma. Eu vejo minha alma ali naquelas letras escrita pelo
meu punho, pela caneta que está em meu punho. Tá entendendo?
Porque a alma tá pensando. Ela tá saindo ali na ponta daquela
caneta. É uma conexão; o teu cérebro mandando um comando lá
pro teu braço e aquela coisa toda. (...) Aqui a gente tem uma caneta
[segura a caneta em uma das mãos], aqui houve uma conexão, tu já
tá pensando, parece que ela tá mandando sinal aqui pra dentro,
empurrando a tinta e as palavras tão saindo aqui [toca na ponta da
caneta]. Então, pra mim, é a fala da alma. É a escrita.
Tabela 4 – Cordelista B, encontro 3.
51
5. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os procedimentos para a análise das narrativas, descritos no item anterior, foram
traçados em resposta ao objetivo central dessa pesquisa que foi investigar as formas de
organização da função de mediação em situação de atividade criadora de cordéis. Desse
modo, as tabelas construídas durante essa análise sistematizaram as informações necessárias à
discussão das respostas ao problema proposto. A partir da análise empreendida aqui, resultouse que a organização da função de mediação na atividade criadora de cordéis esteve
relacionada com a dinâmica de complementariedade e contraditoriedade entre dimensões
configuradas nas narrativas dos cordelistas.
A apresentação e discussões desses resultados foram direcionadas de modo a
responder as questões que levaram as distinções metodológicas conduzidas nos dois
encontros: refletir a mediação no processo de criação e refletir a mediação no processo de
apreciação artística. Nessa perspectiva, foram utilizados os gráficos 1, 2, 3 e 4 (elaborados a
partir das tabelas 1, 2, 3 e 4) como recurso para organização e síntese das informações
derivadas dessa investigação.
5.1 Dinâmica de complementariedade e contraditoriedade entre dimensões
O principal resultado dessa investigação diz respeito à organização da função de
mediação circunscrita às situações de criação e apreciação dos cordéis realizadas no segundo
e terceiro encontro. Por meio da análise desenvolvida, interpretou-se que a dinâmica de
complementariedade e de contraditoriedade configurada nos componentes das dimensões
presentes nas narrativas dos cordelistas A e B nas duas situações caracterizou-se como
modalidades da função de mediação. Por modalidades, entenderam-se as diferentes
possibilidades com as quais os cordelistas relacionaram aspectos conflitivos de suas narrativas
para significar suas experiências, seja de criação ou apreciação dos cordéis. Entretanto,
defendeu-se que essas modalidades desempenharam diferentes funções nos diferentes
encontros realizados com os cordelistas.
Para mais esclarecimentos sobre o que se tem discutido até agora, foram apresentadas,
como ilustração, situações selecionadas das narrativas dos cordelistas A e B. Esperou-se com
essa ilustração a aproximação das discussões tecidas no campo teórico com as interpretações
derivadas das análises do material empírico. Nessa perspectiva, apresenta-se abaixo uma
apreciação e interpretação dos exemplos selecionados (apresentados nas tabelas).
52
Situação 1: O pesquisador induziu os cordelistas A e B a resgatarem os processos de criação
dos seus cordéis recitados.
A situação 1 se refere às narrativas construídas no segundo encontro com os dois
cordelistas (A e B). Na análise dessas narrativas (ver Tabela 1 e 2), configuraram-se algumas
dimensões correspondentes a relação entre esses cordelistas e a experiência de recriar, durante
a entrevista com o pesquisador, os processos de escrita dos cordéis recitados no primeiro
encontro. Na medida em que os cordelistas iniciaram esse movimento de refletir sobre a
escrita de seus cordéis, observou-se a configuração de algumas modalidades específicas dessa
dinâmica entre dimensões. Assim, identificou-se a dinâmica de complementariedade e
contraditoriedade como as principais modalidades identificadas nas narrativas. Ainda, essas
modalidades na dinâmica entre dimensões refletiram o modo como cada um dos cordelista
conduziram as explicações sobre os processos de composição das antíteses conteúdo/forma
próprias a atividade criadora dos cordéis recitados. Os gráficos 1, 2, 3, e 4, adicionados
abaixo, exemplificam a organização e o funcionamento dessa dinâmica no caso de cada
cordelista.
Antes de expor os casos selecionados, é importante introduzir os componentes dos
gráficos e como eles foram interpretados. Os gráficos foram elaborados a partir das tabelas já
descriminadas acima (ver Tabelas 1, 2, 3 e 4) e, por essa razão, correspondem a todas as
dimensões presentes nelas. Cada dimensão foi apresentada em formato retangular com a
indicação
do
processo
em
seu
interior.
A
dinâmica
de
contraditoriedade
e
complementariedade foi representada nos gráficos da seguinte forma: para a dinâmica de
complementariedade,
utilizaram-se
retângulos
preenchidos;
para
a
dinâmica
de
contraditoriedade, utilizaram-se retângulos não preenchidos.
53
Humor + Sarcasmo
X Ritmo
Português correto Poesia matuta X
Homem da roça
Longe + Perto X
Escrita
Realidade +
Fantasia X Poesia
matuta
Gráfico 1 – Dinâmica das dimensões: cordelista A, encontro 2.
No gráfico 1 indicam-se os processos que compõem as dimensões do cordelista A no
encontro 2 e dizem respeito aos processos envolvidos na atividade de criação dos cordéis.
Com o apoio da transcrição de sua narrativa (ver Tabela 1) foi possível interpretar que a
dinâmica de contraditoriedade entre português correto e poesia matuta emergiu dentro do
conflito relativo a experiência do cordelista com as diferentes formas de linguagem
envolvidas na criação do cordel. Para o cordelista A, o português correto não alcança a rima
própria dos cordéis (ver Tabela 1). Nesse sentido, tanto os tipos de linguagem definidas pelo
cordelista A (o português correto e a linguagem matuta) quanto a distinção entre os tipos de
rimas (a rima do cordel e outras rimas) correspondem a aspectos formais da criação do cordel.
No entanto, a configuração da antítese conteúdo/forma nesse caso específico se explicita
quando considerada junto com a narrativa desse cordelista (ver Tabela 1). Em sua fala, o
cordelista A explica que a métrica do cordel é porque o cordel é do sertão e completa
dizendo que a poesia matuta é a mais bonita que existiu e que existe porque ela chama a
essência do homem da roça. Desse modo, ele aponta para a expressão de um conteúdo
exclusivo de um povo, de uma cultura específica: a essência do homem da roça. Esse
conteúdo que, segundo o cordelista A, apenas pode ser expresso pela poesia matuta entra em
54
conflito com os elementos formais da escrita dessa poesia. Por esse motivo, o cordelista é
induzido a buscar a melhor forma possível para a expressão da essência do homem da roça.
Ao contrastar os tipos de linguagem e de rima com a cultura do povo do sertão representada
pelo personagem homem da roça, o cordelista A descreve a intrínseca tensão presente no
processo de formalização desse conteúdo do cordel. Dessa forma, a dinâmica de
contraditoriedade entre as dimensões português correto e poesia matuta reflete uma das
modalidades de organização e apresentação da função de mediação da narrativa desse
cordelista que corresponde ao processo de produção das antíteses conteúdo/forma no cordel
recitado.
Por outro lado, a dinâmica de complementariedade presente na narrativa do cordelista
A também foi configurada como processos da composição das antíteses conteúdo/forma
estrategicamente fomentadas no segundo encontro. Observando o Gráfico 1, sinalizou-se a
dinâmica de complementariedade entre as dimensões humor e sarcasmo como uma das
modalidades de relação do cordelista A com seu cordel. Segundo ele, o cordel atinge seu
objetivo por meio do humor, das coisas que fazem achar graça (ver Tabela 1). Ao mesmo
tempo em que é característica do seu cordel o tom humorístico, o sarcasmo verbal é o meio de
atingir a graça do cordel. Como ele mesmo explica, o humor só aparece quando um diz que o
outro é sem vergonho, que o outro é ladrão (...) quando os dois se maltratam (ver Tabela 1).
Mesmo que humor e sarcasmo também constituam aspectos formais da criação do cordel,
nesse caso específico o cordelista A submete essa relação de coexistência desses diferentes
aspectos aos sentimentos que ele, como autor, quer despertar em seu público. Acompanhando
sua fala (ver Tabela 1), percebeu-se grande proximidade dessa dimensão humor/sarcasmo
com as discussões sobre ritmo desenvolvidas no capítulo 2. Quando o cordelista diz que
enquanto eles tão cantando sério, você tá sério e que você começa a achar graça, só quando
os dois se maltratam recobra-se a função biológica do ritmo discutida por Vigotski (1999).
Dessa forma, interpretou-se que a dinâmica de complementariedade entre as dimensões
humor/sarcasmo do cordelista A contrastam com os conteúdos das sensações que ele quer
despertar em seu público. Uma vez que humor e sarcasmo descrevem aspectos formais tanto
da produção escrita como oral dos cordéis, são atribuídas a esses aspectos a função de suscitar
emoções e/ou sensações no ouvinte/leitor. Assim, a oposição entre humor e sarcasmo dita o
ritmo que o cordelista deseja para a relação do público com seu cordel.
Diferente do cordelista A, a dinâmica das dimensões na narrativa do cordelista B
tenderam exclusivamente para a modalidade de complementariedade (ver Gráfico 2). Com
isso, percebeu-se inicialmente que a coexistência de diferentes aspectos da formalização do
55
conteúdo de seus cordéis estava relacionada com seu modo particular de conceber sua função
enquanto artista. Como é possível ler na Tabela 2, o cordelista B sugere uma preocupação
com a acessibilidade das informações de seus cordéis, transpondo-os de uma linguagem de
difícil acessibilidade para seu público em textos de palavras fáceis. Como ele descreve, eu
posso ter acesso a outras palavras, a palavras bonitas, a palavras interessantes, mas o meu
povo, o nosso povo, ele não tá capacitado, assim, pra entender tais palavras. A partir dessa
fala do cordelista B e do material integral de suas entrevistas, percebeu-se que ele concebe sua
atividade de criação de cordéis como forma de tornar fatos e informações acessíveis ao seu
público, a quem ele chama de meu povo. Dessa forma, a predominância da dinâmica de
complementariedade entre as dimensões de sua narrativa reflete seu esforço em compor seus
cordéis de modo que diferentes elementos contrastantes possam coexistir em suas obras.
Rima +
Facilidade X
Fatos
Palavra +
Compreensão
X Meu povo
Dentro + Fora
X Histórias
Gráfico 2 – Dinâmica das dimensões: cordelista B, encontro 2.
Para tornar essa explicação ainda mais clara, observe que para o cordelista A
português correto e poesia matuta compunham oposição excludente no processo criativo. Por
outro lado, para o cordelista B, dimensões semelhantes a essas, como é o caso de palavra e
compreensão, compõem oposições coexistentes em seus cordéis. Isso se deve ao fato de que
para o cordelista B sua escrita tem a função de facilitar a compreensão de diferentes fatos e
histórias por parte do seu povo, e não exclusivamente a retratação da essência do homem da
roça, como definiu o cordelista A. Para o cordelista B conviver com os diferentes usos da
linguagem nos diferentes espaços que ele transita, seja no ambiente universitário ou não, faz
com que sua escrita também transite entre o português correto e a linguagem matuta sem que
para isso se configurem dimensões excludentes. Em suas palavras, o que ela [a literatura de
56
cordel] tem de diferente é esta facilidade de se entender e, dessa forma, quando você lê, você
fala, você reproduz aquilo ali com mais facilidade.
Considerando os dois casos discutidos até aqui, argumentou-se que a releitura
empregada sobre a função de mediação a partir de seus aspectos éticos e estéticos permitiu
defender que a organização das dinâmicas entre dimensões tal como tem sido definida partem
do campo de relações entre pesquisador, cordelista e cordel. Desse modo, a presença do
pesquisador na construção das narrativas dos cordelistas implica inclusive no modo como se
conceberam as dimensões nesse estudo. Definir dimensões como tensões entre aspectos nas
narrativas dos cordelistas quer dizer, sobretudo, que essas narrativas se referem às
negociações de significados entre pesquisador e cordelista. Assim, as tensões identificadas
durante a análise empreendida aqui são tentativas de respostas dos cordelistas aos
questionamentos do pesquisador durante as entrevistas. Em decorrência disso, as modalidades
identificadas na dinâmica entre as dimensões são diferentes formas desses cordelistas
organizarem os elementos de sua fala endereçada ao pesquisador. As dinâmicas de
complementariedade e contraditoriedade, principais modalidades discutidas nesse estudo,
descrevem os processos pelos quais cada cordelista em relação com o pesquisador explicou
sua atividade criadora de cordéis. Por exemplo, quando o cordelista B inclui o pesquisador em
sua explicação sobre a dinâmica de suas dimensões (ver Tabela 4) dizendo: vai acontecendo
como nós estamos conversando aqui, como nosso primeiro contato pelo telefone e daí na
minha cabeça começou aquela viagem. Poxa! O P, da psicologia, o cordel, e tá aí o
resultado, né, a gente já veio pra o campo real. Adotando essa situação como exemplo, onde
se explicita a participação do pesquisador na configuração das tensões na narrativa do
cordelista B, defendeu-se que a função de mediação não pode ser interpretada estritamente
por aspectos cognitivistas ou pela dinâmica de internalização definida por Vigotski, mas, ao
contrário, como o funcionamento das relações sociais, no caso desse estudo, entre o
pesquisador e os cordelistas. Entendida dessa forma, a função de mediação organizada no
contexto do segundo encontro, quando o pesquisador induziu os cordelistas a retomarem o
processo de criação de seus cordéis, foi caracterizada como a composição das oposições
excludentes e coexistentes no processo de formalização dos conteúdos em cordel. Essas
oposições foram situadas em dimensões como português correto e poesia matuta (dinâmica
de contraditoriedade do cordelista A) e palavra e compreensão (dinâmica de
complementariedade do cordelista B).
57
Situação 2: O pesquisador induziu os cordelistas A e B ao processo de apreciação dos
cordéis recitados.
A segunda situação analisada se referiu às narrativas do terceiro encontro realizado
com os cordelistas A e B. Nesses encontros, o pesquisador propiciou, através de estratégias
metodológicas descritas anteriormente (ver item 4.5), um contexto no qual esses cordelistas
foram induzidos a refletir sobre suas impressões ao se assistirem recitando seus cordéis
selecionados no primeiro encontro. Em outras palavras, os cordelistas foram induzidos a uma
situação em que experimentaram o que Vigotski (1999) definiu como reação estética.
A partir da análise das narrativas derivadas desse contexto metodológico, interpretouse que na dinâmica entre dimensões tanto de complementariedade quanto de contraditoriedade
foram configuradas modalidades das reações estéticas dos cordelistas A e B. Nos capítulos
anteriores desse estudo, discutiu-se em Vigotski (1999) que as reações estéticas são os
processos de superação das antíteses entre conteúdo e forma das obras de arte. Discutiu-se
também que para a superação dessas antíteses os indivíduos se apoiam na produção de objetos
estéticos responsáveis pela organização das emoções contrastantes de sua experiência de
apreciação. Por fim, ponderou-se ainda que a produção desses objetos estéticos descreve
processos de emergência de novos elementos ainda não considerados na forma final das obras
de arte apreciadas. Dessa maneira, modalidades das reações estéticas foram definidas a partir
da análise dessa situação 2 como a emergência dos objetos estéticos na superação das
antíteses conteúdo/forma. Isso pode ser evidenciado nas narrativas dos cordelistas A e B
através da identificação de novas dimensões em suas explicações. Por exemplo, na Tabela 4 o
cordelista B diz: eu vejo minha alma ali naquelas letras escrita pelo meu punho, pela caneta
que está em meu punho. Nesse momento o cordelista B coloca em oposição de
complementariedade alma, letra e caneta. Aqui está a tensão inicial de sua explicação
configurada ao redor da antítese entre essas diferentes dimensões de sua narrativa. Em
resposta ao questionamento do pesquisador, esse cordelista é solicitado a construir
significados para essas dimensões. Para isso, abre-se espaço para a emergência de novas
dimensões que consigam superar o conflito inicial. Como solução, ele conclui dizendo: então,
pra mim, [a escrita] é a fala da alma. Ao finalizar sua explicação com essa frase de caráter
conclusivo, o cordelista B sugere ter encontrado na dimensão escrita uma alternativa para a
superação do conflito iniciado pela oposição entre as dimensões alma, letra e caneta.
Alinhando-se à discussão apresentada na Situação 1, os exemplos e interpretações
desenvolvidas nesta situação 2 objetivaram explicações sobre os processos deflagrados pelos
cordelistas para superação das tensões entre conteúdo/forma. Nessa direção, destacaram-se as
58
mudanças ocorridas, consideradas como introdução desses novos processos, para mostrar
como essa introdução esteve relacionada com a reorganização da função de mediação nesse
contexto metodológico da apreciação da recitação.
O Gráfico 3 refere-se as narrativas derivadas do terceiro encontro com o cordelista A.
A partir desse gráfico e das narrativas desse cordelista, observou-se uma mudança na
qualidade da função de mediação relacionada com a dinâmica entre dimensões. Se na situação
1 as modalidades na dinâmica entre dimensões desempenharam a função de explicitação das
antíteses conteúdo/forma da criação dos cordéis, na situação 2 as modalidades de
contraditoriedade e complementariedade desempenharam a função de organizar nas narrativas
desses cordelistas processos de superação das tensões nas dimensões. Por exemplo, a presença
de dimensões análogas entre as duas situações analisadas, como é o caso de longe + perto X
escrita (ver Gráfico 1) e dentro + cabeça X fora + escrita (ver Gráfico 3) nas narrativas do
cordelista A, corresponde a processos distintos da função de mediação.
Dentro +
Cérebro X
Fora + Papel
Dentro +
Cabeça X Fora
+ Escrita
Raciocínio +
Criatividade
Autor - Ator X
Imitador
Gráfico 3 – Dinâmica das dimensões: cordelista A, encontro 3.
No primeiro caso, a dimensão longe + perto X escrita desempenha a função de
responder ao pesquisador como esse cordelista organizou as antíteses entre conteúdo e forma
em seu cordel. Assim, a dinâmica de complementariedade entre as dimensões longe, perto e
escrita descreve essas oposições, mas não apresenta indícios de superação ou sobreposição
entre elas. Por outro lado, a dimensão dentro + cabeça X fora + escrita corresponde ao
esforço do cordelista A em responder ao pesquisador o que significa, para ele, essa oposição
59
entre dentro e fora da atividade criadora. Observe-se que mesmo compartilhando aspectos
semelhantes entre as dimensões, como é o caso da palavra escrita presente em ambas as
situações, a modalidade da dinâmica entre essas dimensões muda de complementariedade
para contraditoriedade. Desse modo, interpretou-se que a predominância de modalidades do
tipo contraditoriedade na situação 2 diz respeito aos processos de superação ou sobreposição
entre as dimensões defendidas até aqui.
Para explicitar esse processo de superação das oposições geradas pela antítese
conteúdo/forma do cordel, observe como o cordelista A descreve a relação entre autoria e
imitação nos cordéis (ver Tabela 3): aí é onde tá a coisa. Ele tinha a poesia dentro da cabeça,
mas não colocava pra fora porque não sabia escrever. E a poesia não se pode mandar outra
pessoa escrever. A mente vai distribuindo e quer que vá logo escrevendo. Por meio da análise
desse recorte da narrativa do cordelista A, é possível identificar esse movimento de superação
ou sobreposição entre as dimensões na medida em que ele sistematiza um percurso de
externalização do cordel através de processos que vão desde a existência da poesia dentro do
cérebro do autor até sua passagem para fora do cérebro por meio da escrita. Esse movimento
não pode ser observado na situação 1, já que nessa situação sua narrativa apenas descreve a
configuração das tensões entre as dimensões. Por exemplo, quando o cordelista diz (ver
Tabela 1): o cérebro vai lá sem você vê. Vai e volta aqui. E completa (ver Tabela 1): bem
assim é quando você tem o objetivo de escrever. Então o seu cérebro vê o que você quer.
Dessa forma, ele organiza de modo complementar os aspectos distintos de sua narrativa em
torno da escrita, mas não descreve o movimento de sobreposição ou contraditoriedade
presente na situação 2 analisada.
Considerou-se a partir da análise das narrativas do cordelista A, apoiadas pelo Gráfico
3 e pela Tabela 3, que no contexto metodológico da apreciação da recitação do cordel, a
organização da função de mediação, representada aqui através da dinâmica entre diferentes
dimensões, revelou um detalhamento do processo de significação dos cordelistas. Esse
detalhamento foi interpretado como o funcionamento de microprocessos da função de
mediação. Considerou-se ainda que a presença desses microprocessos caracterizaram
mudanças significativas na forma de mediação empreendida pelos cordelistas no momento da
apreciação da recitação do cordel, o que favoreceu à visualização de transformações
microgenéticas (superação e sobreposição) entre as dimensões.
Por fim, com a análise da dinâmica entre as dimensões das narrativas do cordelista B
referentes ao terceiro encontro com o pesquisador (ver Gráfico 4), discutiu-se de que modo as
transformações microgenéticas na função de mediação, caracterizadas como os processos de
60
superação das tensões ou sobreposição entre as dimensões, relacionam-se com a ideia
defendida no capítulo 2 sobre reação estética. Segundo Vigotski (1999), as reações estéticas
intrínsecas ao processo de apreciação das obras de arte são situações de intenso conflito entre
conteúdo e forma necessárias à transformação dialética dessas antíteses na obra. Destaca-se
ainda que as reações estéticas, segundo o autor (VIGOTSKI, 1999), são experimentadas como
autocombustão emocional ou como adiamento da ação. Assim, a reação estética apenas se
realiza quando a linguagem verbal falha em sua função de significar a experiência dos
indivíduos com as obras de artes; é sempre uma reação que precede o uso de palavras. Dessa
forma, não se pretendeu fazer uma transposição direta dessas discussões conceituais para o
material empírico analisado. Isso se deve ao fato de que não foi objetivo desse estudo uma
análise minuciosa da reação estética dos cordelistas, apesar de entender sua importância para
a concepção estética da função de mediação. Por outro lado, não se considerou no
planejamento metodológico desse estudo a elaboração de situações propícias para a análise
das reações estéticas, uma vez que se privilegiou as reações verbais dos cordelistas frente aos
questionamentos do pesquisador. Por esse motivo, a aproximação entre função de mediação e
reação estética estabelecida aqui diz respeito às configurações de reações verbais dos
cordelistas no momento em que eles buscaram formas de superação das tensões presentes em
suas narrativas. Em outras palavras, argumentou-se que o caráter estético da função de
mediação corresponde ao funcionamento das reações, como a forma mais básica de
comportamento humano (VIGOTSKI, 2010), orientadas pelos signos estéticos, já discutidos
no capítulo anterior.
Imaginário Dentro X Real Fora
Cérebro - Alma
X Palavra Escrita - Caneta
Gráfico 4 – Dinâmica das dimensões: cordelista B, encontro 3.
61
Considerando o material analisado nesse estudo, defendeu-se que os processos
microgenéticos da dinâmica entre dimensões constituem-se a partir das reações esteticamente
orientadas dos cordelistas com a recitação de seus cordéis. Acompanham essas discussões o
material analisado no Gráfico 4, no qual estão figuradas as dimensões do cordelista B
relacionadas à situação em que o pesquisador o induziu a apreciar a recitação de seu cordel.
Por meio da leitura desse gráfico e apoiando-se nas transcrições da Tabela 4, observou-se,
primeiramente, que tanto a dimensão imaginário – dentro X real – fora quanto a dimensão
cérebro – alma X palavra – escrita – caneta desempenham funções semelhantes na superação
das antíteses conteúdo/forma de seu cordel. A dinâmica de contraditoriedade dessas
dimensões respondem ao esforço do cordelista B em explicar como, em sua atividade
criadora, ocorre o percurso entre sair de dentro pra que todos possam ter o prazer de
compartilhar [sua obra] (ver Tabela 4). Já nesse momento da fala desse cordelista foi possível
observar os microprocessos de transformação de uma dimensão em outra. A sistematização do
percurso entre sair de dentro até o encontro com seu público se relaciona com os diferentes
elementos que esse cordelista usa para evidenciar esse processo. As semelhanças também
aparecem associadas aos termos empregados por ele na composição de suas dimensões. Por
exemplo, a oposição configurada entre as unidades imaginário – dentro e real – fora
desempenharam a mesma função de contraditoriedade que as unidades cérebro – alma e
palavra – escrita – caneta. A partir dessa observação, interpretou-se que o funcionamento das
reações verbais desse cordelista durante sua experiência de apreciação da recitação de seu
cordel foi expresso por meio da reconstrução dos microprocessos de transformação entre as
diferentes dimensões em sua narrativa. Como ele explica (ver Tabela 4): porque a alma tá
pensando. Ela tá saindo ali na ponta daquela caneta. É uma conexão; o teu cérebro
mandando um comando lá pro teu braço e aquela coisa toda. Através da leitura dessa fala do
cordelista B, exemplificou-se essa dinâmica de transformação entre as dimensões alma –
pensamento, pensamento – caneta e cérebro – braço. Desse modo, cada uma dessas unidades
de transformação microgenética corrobora com as interpretações desenvolvidas por esse
estudo sobre a dinâmica de contraditoriedade e complementariedade entre dimensões para
explicar a função de mediação através de seus aspectos éticos e estéticos.
Em síntese, os resultados discutidos nesse estudo correspondem às formas de
organização da função de mediação em atividades de criação e apreciação de cordéis.
Inicialmente, definiu-se função de mediação a partir de seu aspecto ético, ou seja, como os
processos de mediatização das relações entre indivíduos (cordelista e pesquisador) e objetos
(literatura de cordel). Por outro lado, vinculou-se essa definição com as discussões
62
desenvolvidas por Vigotski sobre a psicologia da arte destacando os aspectos estéticos da
função de mediação. Dessa forma, as interpretações tecidas a partir do material empírico
desse estudo opuseram-se às concepções que vinculam mediação e processo de internalização.
Por meio da análise das narrativas dos cordelistas A e B, produzidas a partir de dois
contextos metodológicos distintos (criação e apreciação de cordéis), concebeu-se que os
processos de mediatização das relações entre os cordelistas, o pesquisador e os cordéis
estavam configurados através de núcleos de tensão nas narrativas nomeadas nesse estudo
como dimensões. A partir da microanálise desses núcleos de tensão, perceberam-se duas
modalidades distintas na dinâmica de organização dos elementos em oposição nas dimensões:
1) dinâmica de contraditoriedade e 2) dinâmica de complementariedade.
O funcionamento da dinâmica de complementariedade esteve relacionado com a
situação em que o pesquisador induziu os cordelistas a reproduzirem os processos de criação
de seus cordéis recitados. Para isso, o processo de criação foi definido, em Vigotski (1999),
como a composição das antíteses conteúdo/forma nas obras de arte. Considerando as
narrativas aqui analisadas, observou-se que as dimensões de complementariedade, compostas
por elementos como a rima e os tipos de linguagem em oposição à essência do homem da roça
e do povo que não tem acesso à escolarização, evidenciaram o modo como cada um dos
cordelistas A e B formalizaram o conteúdo de seus cordéis.
Por outro lado, o funcionamento da dinâmica de contraditoriedade esteve relacionado
com a situação em que o pesquisador induziu os cordelistas A e B a apreciarem a recitação de
seus cordéis. Para isso, aproximou-se da concepção de reação estética defendida por Vigotski
(1999) como o funcionamento de superação das antíteses conteúdo/forma nas obras de arte.
Por meio da análise das narrativas produzidas nesse contexto específico de apreciação dos
cordéis, defendeu-se que a dinâmica de contraditoriedade caracterizou os processos de
sobreposição entre as dimensões. Essas sobreposições foram argumentadas como
microprocessos de superação das tensões presentes nas narrativas desses cordelistas. Como
exemplo desses movimentos de sobreposição entre dimensões, destacou-se a dinâmica de
contraditoriedade entre dentro + cabeça X fora + escrita (cordelista A) e cérebro - alma X
palavra - escrita – caneta (cordelista B).
Por fim, argumentou-se que a proposição de aspectos éticos e estéticos da função de
mediação contribuem para o desenvolvimento de pesquisas no campo das interfaces entre
Psicologia e Arte que favoreçam interpretações sobre o funcionamento psicológico a partir da
dinâmica das relações sociais.
63
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo buscou investigar os processos emergentes da função de mediação
em atividades criadoras de cordéis. Justificou-se a realização desse estudo pela necessidade de
desenvolver explicações sobre a função de mediação relacionada à experiência humana com a
arte. Desse modo, argumentou-se que uma investigação acerca da função de mediação
circunscrita ao campo das relações humanas não pode se abster de reflexões éticas.
Considerou-se, ainda, que os aspectos estéticos da função de mediação também não podem
ser ignorados quando se considera o funcionamento dessas relações no cenário da criação e
apreciação artística. Esses argumentos foram traçados, inicialmente, a partir da leitura crítica
dos textos do pesquisador soviético Lev Vigotski e desenvolvidos, posteriormente, através do
material empírico analisado nesse estudo.
Os primeiros argumentos defendidos nas discussões teóricas dessa pesquisa partiram
do reconhecimento de dois problemas fundamentais na definição de Vigotski sobre a função
de mediação. O primeiro problema, nomeado como problema ético, referiu-se ao uso
conceitual da função de mediação para explicar os processos de internalização. Fazendo isso,
Vigotski contradiz seu projeto de uma psicologia social, que deveria privilegiar as relações
humanas e não a individualização humana. O segundo problema, nomeado como problema
estético, esteve relacionado com a necessidade de aproximar conceitualmente os fundamentos
da psicologia da arte de Vigotski e as discussões sobre função de mediação. Dessa forma,
argumentou-se que os processos de mediatização das relações entre indivíduos e obras de arte
estão organizados a partir de reações esteticamente orientadas com o mundo.
Partindo dessa revisão das ideias de Vigotski, construiu-se argumentos através do
material empírico analisado nesse estudo sobre os modos de organização da função de
mediação em situações específicas de criação e apreciação de cordéis. As estratégias
metodológicas utilizadas nessa pesquisa proporcionaram aos cordelistas recriarem os
processos de formalização dos conteúdos dos seus cordéis e construírem alternativas para a
superação das tensões configuradas em suas narrativas por meio das antíteses conteúdo/forma.
O desenho metodológico desse estudo privilegiou configurações da função de mediação
considerando a dinâmica da relação entre pesquisador, cordelistas e cordéis.
As estratégias para fomentar os processos de criação do cordel e da apreciação da
própria obra foram consideradas estímulos à diversificação da organização e funcionamento
da mediação no contexto da experiência humana com a arte. A partir delas, as concepções de
criação e apreciação artística foram aliadas aos aspectos da função de mediação ainda não
64
discutidos por Vigotski, como, por exemplo, os processos específicos de formalização dos
conteúdos na obra, entendidos aqui como criação artística. Isso foi possível nesse estudo por
se terem cordelistas (autores) falando sobre esses processos. Nesse sentido, o material
analisado aqui difere do material analisado por Vigotski. Na Psicologia da arte, Vigotski
(1999) adota a obras de arte como instrumento e objeto de análise. Como material de análise
desse estudo, entretanto, obtiveram-se as narrativas dos cordelistas configuradas nas duas
situações de criação e apreciação dos cordéis recitados.
Com os resultados dessa investigação, argumentou-se que a função de mediação na
atividade criadora de cordéis esteve relacionada com a dinâmica de complementariedade e
contraditoriedade entre dimensões configuradas nas narrativas dos cordelistas. Esse
argumento se tornou potencial na defesa da tese de que o funcionamento psicológico diz
respeito à dinâmica de funcionamento das relações mediadas entre indivíduos. Assim,
consideraram-se enfraquecidas as explicações que defendem os processos de internalização
individual como constitutivo do funcionamento psicológico humano.
Em todo caso, os argumentos defendidos teórica e empiricamente a partir desse estudo
apontam para o desafio da Psicologia em superar ideias que dificultam seu desenvolvimento
científico e que apenas se mantém em uso por seu valor de tradição, como é o caso da
internalização criticada aqui. Por outro lado, a proposta de discussão desenvolvida nesse
trabalho convida a Psicologia a dialogar com outros campos de conhecimento, em especial o
campo das Artes. Portanto, as interfaces entre Psicologia e Arte pretendidas aqui fornecem
contribuições importantes na revisão das concepções de humano e funcionamento
psicológico.
Por fim, acredita-se que as discussões desenvolvidas com esse estudo não esgotam o
campo de investigação sobre o fenômeno da função de mediação em situações de criação e
apreciação artística. Ao contrário, espera-se que futuras pesquisas possam se inclinar ao
estudo dos aspectos éticos e estéticos da função de mediação a fim de construir novas
interpretações e direcionamentos para o desenvolvimento científico da Psicologia.
65
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