Processo de transexualização: uma análise inter e intrageracional de histórias de vida

Discente: Alexsander Lima da Silva / Orientadora: Profª. Drª. Adélia Augusta Souto de Oliveira

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS, COMUNICAÇÃO E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM PSICOLOGIA

ALEXSANDER LIMA DA SILVA

PROCESSO DE TRANSEXUALIZAÇÃO: UMA ANÁLISE INTER E
INTRAGERACIONAL DE HISTÓRIAS DE VIDA

Maceió
2013

1

ALEXSANDER LIMA DA SILVA

PROCESSO DE TRANSEXUALIZAÇÃO: UMA ANÁLISE INTER E
INTRAGERACIONAL DE HISTÓRIAS DE VIDA

Dissertação de Alexsander Lima da Silva apresentada
junto ao Programa de Pós Graduação em Psicologia da
Universidade Federal de Alagoas, como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre em Psicologia.
Orientadora: Profa. Dra. Adélia Augusta Souto de Oliveira

Maceió
2013

2

Catalogação na fonte
Universidade Federal de Alagoas
Biblioteca Central
Divisão de Tratamento Técnico
Bibliotecária Responsável: Fabiana Camargo dos Santos
S586p

Silva, Alexsander Lima da.
Processo de transexualização : uma análise inter e intrageracional de histórias de
vida / Alexsander Lima da Silva. –2013.
122 f.
Orientadora: Adélia Augusta Souto de Oliveira.
Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Federal de Alagoas. Instituto de
Ciências Humanas, Comunicação e Artes. Departamento de Psicologia. Maceió, 2013.
Bibliografia: f. 104-109.
Apêndices: f. 113-122.
Anexos: f. 110-112.
1. Transexualização. 2. História de vida. 3. Psicologia sócio-histórica.
4. Intergeracionalidade. 5. Intrageracionalidade. I. Título.
CDU: 159.923.2

3

4

AGRADECIMENTOS
A dissertação em questão não poderia ser concretizada, senão pela relação entre diversos
componentes que foram importantes durante o seu processo de produção. Teorias,
metodologias, histórias de vida, orientações, sugestões, críticas e/ou apoio de pessoas que
fizeram parte desse trabalho. Agradeço:

- À minha orientadora Profª Drª Adélia Augusta Souto de Oliveira, por confiar no meu
trabalho e nas minhas ideias. Sempre presente com ética, disciplina, comprometimento e
responsabilidade contribuiu no desenvolvimento da pesquisa, com orientações significativas.

- Aos Professores Drª Heliane de Almeida Lins Leitão (PPG-Psicologia/UFAL) e Dr. Pedro
Paulo Bicalho (UFRJ) pelas contribuições a este trabalho no Seminário Avançado.

- Ao Prof Dr Marco Aurélio Máximo Prado pelo aceite ao convite para participar da banca de
avaliação dessa dissertação.
- Aos professores do Programa de Pós Graduação em Psicologia – UFAL por serem uma
fonte inesgotável de conhecimento e informação, especialmente aos que sempre estimularam
e acreditaram na minha capacidade: Dr. Marcos Ribeiro Mesquita, Dra. Heliane de Almeida
Lins Leitão e Dra. Simone Maria Hunning.

- Ao Profº Dr Pedro Francisco Guedes do Nascimento, pela grata oportunidade de discutir
gênero e sexualidade em suas aulas no Programa de Pós Graduação em Sociologia – UFAL.
- À Profª Msc Maria Augusta Costa dos Santos (UFAL – Pólo Palmeira dos Índios) pelo
incentivo e apoio desde a época da graduação, quando foi minha orientadora do trabalho de
conclusão de curso.

-À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas - FAPEAL pela concessão de bolsa
durante os dois anos de mestrado;

- Aos meus colegas do mestrado: Alcimar Enéas Rocha Trancoso, Analinne Maia, Dayse
Santos Costa, Juliana Falcão Barbosa, Jussara Ramos da Silva, Kyssia Marcelle Calheiros

5

Santos, Luciano Bairros da Silva, Mariana Yezzi de Araujo, Patricia Vieira de Souza Toia,
Raquel de Lima Santos, Renata Guerda de Araújo Santos, Wanderson Vilton Nunes da Silva,
Zaíra Rafaela Lyra Mendonça. Por diversos momentos dividimos angústias, alegrias,
comemorações, dificuldades e conquistas desde a seleção para a entrada no corpo discente do
PPG Psicologia até o momento de conclusão das dissertações.

- Ao colega de orientação Alcimar Enéas Rocha Trancoso pelas inúmeras e agradáveis
conversas, pelos debates acerca da teoria Sócio-Histórica, pelo apoio e caronas para a UFAL.

- Aos funcionários da coordenação da graduação e pós-graduação em Psicologia: Andréa,
Marcio, Iris e Rosinha pela recepção e atendimento.

- À minha mãe, Maria Glaciene Lima da Silva, e à minha tia e madrinha, Maria José Araújo
Lima, duas personalidades femininas sempre presentes em minha vida. Ambas me ajudaram
com seus conselhos, ensinamentos e suporte financeiro. Ao meu pai, Bartolomeu Arestides da
Silva, pela paciência. Aos meus primos, João Victor Lima Firmino e Emmanuelle Lima
Ferreira Passos, pelas sugestões e palavras de apoio.

- Aos amigos Ariana Cavalcante, Glaucia Gonzaga, Daniela Menezes, Rômulo Facó, Júlio
César Alves, Sandro Soares, Eduardo Santos, Rafaela Fávaro, Solange Guastaferro, Anísio
Cordeiro, Roseane Farias, Alexsandro Cavalcante e Maricelly Costa pelo apoio e sugestões
durante esses dois anos de mestrado.

- À amiga e, também pesquisadora, Anne Rafaele Telmira pelos textos, conversas e
indicações acerca da temática transexual.

- E finalmente, mas não menos importante, as/os transexuais, participantes dessa pesquisa, por
proporcionarem o privilégio de conhecer e contar suas histórias de vida.

6

Algo que ninguém quer que eu queira
“Quero algo que ninguém quer que eu queira,
Que o mundo me proíbe terminantemente de querer,
Que as pessoas se envergonham de mim porque eu quero
e se afastam, horrorizadas,
quando descobrem que eu ando querendo
Quero algo que não é perigoso,
nem nocivo,
nem ilegal
em nenhum aspecto,
mas que ainda assim
as tradições repudiam,
a moral condena,
os costumes desaprovam
e a sociedade, doente como está,
classifica de doença
Quero algo que não diz respeito a ninguém, além de mim mesma
que não tem nada a ver como mais ninguém, exceto comigo
mas que parece ser da conta de todo mundo,
que parece incomodar e chocar a todos,
que pela reação que demonstram
é como se eu lhes estraçalhasse as entranhas,
furasse seus olhos,
sugasse seu sangue,
alucinasse seu espírito
evocando neles todos os tipos de ódios e paixões,
e todas as mais terríveis emoções
que um ser humano pode sentir ou ser vítima.
Quero algo que me livra de uma tristeza profunda
e de uma dor insuportável
que me traz uma alegria imensa,
uma felicidade aconchegante e plena
mas que ainda assim não entendem nem aceitam.
E se eu lhes dissesse que tenho um câncer terminal?
Um tumor que não tem tratamento?
Minha vida com os dias contados…
Será que me dariam sua caridade hipócrita?
Que fariam fila diante da minha cama,
me obrigando a contar e recontar a eles o meu drama,
milhões de vezes
Eu lhes causaria pena, em vez de repulsa
e lhes traria lágrimas, em vez de raiva,
e todos me abraçariam e me beijariam e me consolariam
e diriam da falta, imensa, que eu já lhes faço.
Quero algo que para eles é injustificável,
incabível e indesejável,
um absurdo inadmissível,
absolutamente horrível,
para a qual não existe compreensão, nem aceitação,
nem perdão.
Algo que é como dirigir na contra mão,
na hora do rush.”
(Letícia Lanz, poetisa transexual)

7

RESUMO

Dissertação que objetiva compreender o processo de transexualização, identificando a
produção histórica de seus significados e a experiência vivida de seus sentidos. Utiliza o
referencial teórico e metodológico qualitativo da Psicologia Sócio-histórica. Para tanto,
realiza um percurso histórico sobre os termos utilizados para descrever o fenômeno, buscando
sua significação e manutenção histórica; uma produção de seis histórias de vida geracionais, a
partir de entrevistas narrativas presenciais e on-line a fim de identificar os sentidos e rupturas
experienciados neste processo de significação. Participaram seis sujeitos representativos três transexuais masculinos e três transexuais femininos, sendo dois representantes de cada
geração – mais nova, do meio e mais velha. Realiza uma análise de conteúdo das
informações, do tipo inter e intrageracional. As narrativas permitiram contar as histórias de
vida de Bridget, Joana, Gisele, Sansão, Zé e Artur, identificando as seguintes categorias
temáticas: brincadeiras de criança, autoidentificação, aparência de menino e de menina,
transformações corporais, mudança de prenome, definição de papéis do outro na relação,
família e participação política. Os resultados evidenciam que os aspectos fossilizados no
processo de significação: as lembranças de brincadeiras de crianças foram marcadas como o
momento de início do período de questionamentos sobre si mesmos/as; autoidentificação com
denominações de homossexual seguida de transexual; mudança do prenome como importante
fator de afirmação autoidentitária e repressão familiar. A transformação corporal, a aparência
e a definição do papel do outro na relação parece atender aos padrões heteronormativos, sendo
um elemento importante no processo de significação, embora convivam dois importantes
sentidos que indicam ruptura nesse processo: a transexualidade como reivindicação identitária
sem a necessidade de transgenitalização e de comportamentos padronizados e a multiplicidade
de experiências sexuais. Outros indícios de ruptura nesse processo são os sentidos
experienciados e narrados: aceitação por parte dos familiares na representante da geração
mais nova e vivência sexual de múltiplas formas no representante da geração mais nova;
aceitação de si mesma da representante da geração mais nova como mulher, desde sempre.
Esta é considerada e se considera mulher com “erro na genitália”. E a aceitação de si mesmo
do representante da geração mais nova como transexual bissexual, que pode experimentar
uma diversidade de relações sexuais. A participação política se apresenta como uma
importante atividade desenvolvida por três dos representantes, dois transexuais - geração do
meio e mais nova - e, uma transexual - geração do meio - indicando ser necessária na defesa
de direitos, ao mesmo tempo em que evidencia o conflito entre "dar visibilidade e exigir
direitos" e "ter anonimato e fugir do preconceito". Preconceito que se sedimenta com os
aspectos fossilizados de termos e concepções psiquiátricas, mantidas historicamente. Estudos
psicossociais, no entanto, evidenciam a identidade como algo em movimento, co-produzida
no contexto sócio-histórico. O processo de transexualização se apresenta de forma unânime
nas narrativas: transformar-se para ser aceita/o socialmente e evitar o sofrimento gerado por
um corpo que não se habita.

Palavras-chave: Transexualização. História
Intergeracionalidade. Intrageracionalidade.

de

Vida.

Psicologia

Sócio-histórica.

8

ABSTRACT
Dissertation which aims to understand the process of transexuality, identifying the historical
production of its meanings and experience of its senses. Theory and qualitative methodology
of Socio-historical Psychology are utilized. Thus, the historical path of the terms which
describe the phenomenon is followed, as its historical significance and maintenance is sought;
a production of six generational life stories, both in person and online narrative interviews
aiming to identify the meanings and ruptures experienced in this process of signification. Six
representative subjects participated - three transsexual men and three transexual women, two
representatives of each generation: young, middle and older. An analysis of the information
content, inter and intragerational is performed. The narratives allowed telling the life stories
of Bridget, Joan, Gisele, Sansão, Zé and Artur, identifying the following thematic categories:
children's games, self-identification, appearance boy and girl, body changes, change of first
name, definition of roles of others in the relationship, family and political participation. The
results show the following fossilized aspects in the process of signification: the memories of
children's games were marked as the moment of beginning of self questioning; selfidentification with names followed by homosexual transsexual, the first name change as an
important factor self identity repression of affirmation and family. The body transformation,
the appearance and the definition of the role of others in relationships appears to meet
heteronormative standards, being an important element in the process of signification,
although two important meanings that indicate disruption in this process coexist: transexuality
as an identity claim without the need for reassignment and standardized behaviors or number
of sexual experiences. The following experienced and narrated meanings are also signs of a
rupture in this process: acceptance by the family representative of a younger generation and
experiences of multiple forms of sexual representative of a younger generation; selfacceptance, by a younger generation representative as a woman, since always. This subject
considers herself and is considered by others a woman to whom an “error in the genitalia”
occurred. The younger generation representative, on the other hand, accepts himself as a
bisexual transsexual, which may lead to the experience of a multitude of sexual relationships.
Political participation is presented as an important activity performed by three representatives,
two transsexuals – middle generation and younger - and a transsexual - middle generation –
indicated as necessary in advocacy, while highlighting the conflict between "allowing
visibility and demanding rights" and "being in anonymity and escaping prejudice." Prejudice
that sediments with fossilized aspects of psychiatric terms and concepts, maintained
historically. Psychosocial studies, however, reveal the identity as something in motion, coproduced in the socio-historical context. The process of transexuality presents itself
unanimous in narratives: become to be accepted / socially and avoid the suffering caused by a
body that does not dwell.

Keywords: Transexuality. Life History. Psychology Socio-historical. Intergenerational.
Intragenerational.

9

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

DSM IV

Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders IV

HTP

Hourse, Tree, Person

LGBT

Lesbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais

MMPI

Minnesota Multiphasic Personality Inventory

OMS

Organização Mundial de Saúde

TCLE

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

10

SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 10
2

A

PRODUÇÃO

DO

CONCEITO

DE

TRANSEXUALIZAÇÃO

E

SUA

SIGNIFICAÇÃO .................................................................................................................... 14
2.1 A nomenclatura científica da transexualidade .............................................................. 14
2.2 As conceituações de transexualização ............................................................................. 18
2.3 A transexualização e o conceito de identidade ............................................................... 22
3 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS ................................................ 27
3.1 A constituição sócio-histórica em Vigotski ..................................................................... 27
3.2 O processo de significação ............................................................................................... 29
3.3 A metodologia utilizada ................................................................................................... 34
3.4 O percurso de pesquisa .................................................................................................... 39
3.4.1 Participantes ................................................................................................................. 42
4 HISTÓRIAS DE VIDA ....................................................................................................... 44
4.1 Gisele .................................................................................................................................. 44
4.2 Joana .................................................................................................................................. 47
4.3 Bridget ............................................................................................................................... 51
4.4 Arthur ................................................................................................................................ 53
4.5 Zé ........................................................................................................................................ 58
4.6 Sansão ................................................................................................................................ 62
5 OS SENTIDOS E SIGNIFICADOS DE TRANSEXUALIZAÇÃO ............................... 66
5.1 Intergeracionalidade e o processo de transexualização feminina ................................ 66
5.2 Intergeracionalidade e o processo de transexualização masculina .............................. 75
5.3 A intrageracionalidade na geração mais nova ............................................................... 82
5.4 A intrageracionalidade na geração do meio ................................................................... 87
5.5 A intrageracionalidade na geração mais velha .............................................................. 92
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 98
REFERENCIAS ................................................................................................................... 104
APÊNDICES ......................................................................................................................... 110
ANEXOS ............................................................................................................................... 120

10

1 INTRODUÇÃO

O objeto de estudo da presente pesquisa é o processo de transexualização. Para
abordá-lo, optou-se pela investigação qualitativa a partir da perspectiva de sujeitos
representativos e teoricamente circunscrita, aos sentidos e significados deste fenômeno.
Essa temática vem sendo discutida e o conceito de transexualidade, parece encontrar
consenso em grande parte da literatura estudada (BENTO, 2006; BARBOSA, 2010; BRUNS;
PINTO, 2003; CARVALHO, 2011; CECCARELLI, 2008; GRAZIOTTIN; VERDE, 1997;
TEIXEIRA, 2009; ZAMBRANO, 2003). A pessoa transexual é aquela que se identifica com o
gênero oposto ao que lhe foi atribuído pela sociedade; considera que seu corpo não é coerente
com seu psiquismo; busca um corpo coerente com sua identidade, por meio da
transexualização e relaciona-se à reivindicação identitária e não à orientação sexual.
O termo “processo de transexualização”, adotado nessa pesquisa, consiste no percurso
do autorreconhecimento enquanto transexual e na produção da identidade transexual a partir
de experiências pessoais. O sufixo ação permite a ideia de movimento e processo, ampliando
a noção para além da cirurgia de modelação corporal ou de transgenitalização.
O processo transexualizador, por sua vez, incide no uso de roupas femininas
(transexuais femininas) e masculinas (transexuais masculinos), na utilização de hormônios
para surgimento ou diminuição dos seios e/ou pelos corporais - dependendo da escolha do
solicitante -, na utilização de próteses de silicone e na cirurgia de transgenitalização.
Configura-se ainda, como uma regra para o outro reconhecer uma pessoa como transexual
através de seu corpo e imagem. As instituições e programas de saúde, que trabalham com esse
público, solicitam que tenha sido iniciado o processo transexualizador para que os candidatos
possam participar da cirurgia de transgenitalização (ARÁN, 2006, ARÁN; MURTA, 2009).
Por se tratar de intervenção cirúrgica com alteração visual, envolve fatores psíquicos,
sendo aconselhável o acompanhamento de uma equipe interdisciplinar de profissionais da
saúde e ciências sociais (ARAÚJO, 2010; BENTO, 2006). A transgenitalização apenas
ocorre, mediante a aprovação dessa equipe. Muitos transexuais reclamam dessa dependência.
No entanto, há casos de pessoas que realizaram a transgenitalização, arrependeram-se e

11

tentaram o suicídio ou a mutilação para retornar à forma anterior (GRAZIOTTIN; VERDE,
1997).
A transexualização tem adquirido relevância e notoriedade, merecendo assim,
esclarecimentos e estudos que evidenciem as nuances da complexidade deste fenômeno
(BENTO, 2006; GRAZIOTTIN; VERDE, 1997). Outro ponto a ser salientado é que além dos
transexuais, há outros indivíduos que desafiam os binarismos de gênero através de seus
corpos e imagens, como os travestis1, cross-dresser2 e drag queens3, evidenciando, assim, sua
pluralidade. Além disso, há vários questionamentos acerca de quem deve ou não fazer parte
do grupo daqueles que reivindicam uma “identidade de gênero.” Os cross-dresser e drag
queens/ drag kings, por exemplo, são considerados expressões da moda ou da arte por Barlow
e Durand (2008).
Podemos observar, ainda, que o diagnóstico proveniente do DSM IV (Diagnostic and
Statistical Manual of Mental Disorders IV4) apresenta a ideia de que os transexuais são
pessoas com comportamentos desviantes de identidade. Esse tipo de diagnóstico contesta a
noção de identidade como experiência descritiva do sujeito, através das suas interações sociais
com o meio. Contradiz, ainda, identidade como algo em movimento, produzida pelo próprio
sujeito, transformador da sua realidade. Ao dizer que os transexuais e travestis apresentam
comportamentos desviantes da identidade, surge o questionamento: como desviar uma
identidade que é produzida pelo próprio sujeito? Reside aí a controvérsia entre identidade e o
diagnóstico psiquiátrico.
Em nossos estudos anteriores sobre o universo transexual no cinema (SILVA, 2008) e
nas produções literárias (SILVA, 2011) vimos que a transexualidade corresponde a um
significado social construído em cada época das obras cinematográficas e literárias analisadas.
As personagens transexuais retratadas nos filmes e livros são construções sociais, históricas e
culturais baseadas no momento histórico ao qual estavam inseridas. Esses estudos
evidenciaram a pequena produção na Psicologia brasileira acerca do fenômeno transexual.

1

Indivíduo que consegue transitar entre os dois gêneros, aceita o sexo anatômico, porém se veste com roupas do
gênero oposto ao seu, está mais associada a uma expressão de gênero do que identificação.
2
Homens que se travestem de mulher, ou vice-versa, em situações sexuais ou específicas como grupos de
encontros.
3
Indivíduos que apresentam características consideradas femininas, inclusive travestindo-se, apenas em
performances caricatas de comédia ou shows de dublagem. Não assumem o papel de gênero feminino no
cotidiano.
4
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais IV

12

Nesse trabalho, algumas inquietações acerca da temática nortearam a presente
pesquisa: quais os significados e sentidos que envolvem o processo de transexualização?
Quais são os elementos de permanência e de ruptura que estão presentes neste processo?
Quais foram as classificações e os termos utilizados para descrever esse universo? Como se
dá o processo de formação de autoidentidade? Quais são as ideias compartilhadas e
resignificadas nesse processo? Qual é a relação entre a identidade e a transexualização? A
modelação corporal é uma forma de expressar a identidade? Essa mesma transformação
corporal atende a si e/ou ao outro? A identidade se modifica junto às mudanças
socioculturais? Qual a implicação do uso de entrevistas narrativas para a produção de história
de vida como método de pesquisa? Quais são as nuances acerca do processo de
transexualização na comparação entre representantes inter e intrageracionais?
Na tentativa de responder a estas questões, utilizamos o referencial teórico da
Psicologia Sócio-Histórica, em especial os postulados de Vigotski (1993, 2004, 2007), cujo
eixo de análise das significações e de sentido considera o homem como um sujeito social,
cultural e histórico, transformador – e transformado – na sua relação com o meio. Nessa
interação, o homem torna-se sujeito, modificando a sua realidade e resignificando-a
(MOLON, 2003; PINO, 2005). Nesse caso, de acordo com Vigotski (1993), o sujeito ao
inserir-se no meio material e a partir da sua relação com o mesmo, irá produzir sentido e
significado, construindo novos conhecimentos, produtos da soma entre as suas experiências
consolidadas e o novo, resignificando e edificando novos sentidos. Trata-se de aporte teórico
de suma importância na análise do significado e dos sentidos, na identidade e sua relação com
a transexualidade por permitir uma análise de microestruturas sem desconsiderar as
significações no nível da cultura.
As reflexões teóricas, epistemológicas e metodológicas encaminham a uma concepção
processual de sujeito. O processo de produção da subjetividade é produzido a partir de sua
interação com o ambiente social, pois interiorizamos informações da cultura, codificamos
com o que já possuímos e conferimos sentido e significado (PINO, 2005; ZANELLA et al,
2007). Tais reflexões nos orientam para estudos dos processos culturais e históricos do
fenômeno transexual, da relação entre o sujeito e a sua autoidentificação transexual e de
procedimentos que evidenciem a processualidade de nosso objeto de investigação, por meio
da produção de histórias de vida intergeracional com sujeitos transexuais.

13

Desse modo, este estudo objetiva compreender o processo de transexualização. Para
tanto, especificamente pretende-se identificar a produção histórica de seus significados e a
experiência vivida de seus sentidos.
O presente projeto de dissertação apresenta no segundo capítulo, o universo histórico e
conceitual da transexualidade. O terceiro capítulo discute os pressupostos teóricos e
metodológicos. O quarto capítulo conta as histórias de vida dos seis sujeitos representativos,
as transexuais Gisele, Joana e Bridget e os transexuais Arthur, Zé e Sansão. O quinto capítulo
analisa por meio de comparação intergeracional e intrageracional as categorias temáticas
provenientes das histórias de vida: brincadeira de criança, autoidentificação, aparência de
menino / menina, transformações corporais, família e participação política. Por fim, algumas
considerações acerca das contribuições teóricas e metodológicas; do processo de
transexualização e da necessidade de reflexão da prática psicossocial.

14

2 A PRODUÇÃO
SIGNIFICAÇÃO

DO

CONCEITO

DE

TRANSEXUALIZAÇÃO

E

SUA

O fenômeno transexual envolve uma série de polêmicas e controvérsias acerca do seu
campo conceitual e da sua nomenclatura patologizante encontrada nos manuais de transtornos
mentais.
O presente capítulo busca problematizar as seguintes questões: como ocorre a
produção científica acerca da transexualização? Qual é o contexto histórico na construção
desta conceituação? Quais são os componentes do universo transexual? Qual é a contribuição
da reflexão sobre identidade para a discussão da transexualidade?

2.1 A nomenclatura científica da transexualidade

O universo da transexualização permite reflexão e significação desde que sua
conceituação foi produzida, na Grécia Antiga estando relacionada à religiosidade enquanto
função societária; personalidade políticas renascentistas na França; artistas nos anos 40 e 50
de

cabarés;

mulheres

guerreiras;

intersexos;

anomalias

do

corpo;

cirurgia

de

transgenitalização; passando por ideias atinentes à transexualidade como uma psicose e
disforia de gênero em grande parte do século XX e, atualmente, sobre ganhos referentes à
legalização da mudança do prenome em documentos civis (BRUNS; PINTO, 2003)
O termo transexualidade passou a ser produzido graças ao caso de Christine Jorgensen
(nascido George Jorgensen) 5. Esta foi a primeira transexual a fazer a Redesignação Cirúrgica
do Sexo por meio da vaginoplastia, que consistia na transformação do pênis em vagina,
aproveitando-se a pele, o escroto e o corpo cavernoso do primeiro para a construção da
segunda. Além disso, foi o primeiro caso noticiado pela mídia, que obteve atenção da
sociedade em geral e não apenas científica (BRUNS; PINTO, 2003; SILVA, 2008).

5

Ex-militar que realizou a cirurgia de transgenitalização de homem para mulher.

15

Entretanto, antes de Christine Jorgensen, existiram dois casos de transexualização no
século XX, que foram os de Roberta Cowell - o aviador Robert Cowell - e Lili Elbe - o pintor
Einar Wegner -, na Alemanha e Dinamarca, respectivamente (BENTO, 2006; CECCARELLI,
2008; SILVA, 2008). Entretanto, nesses casos utilizou-se o método antigo que consistia na
retirada do pênis e dos testículos e não tiveram o mesmo poder midiático que o de Christine.
Nessa mesma época, muitos indivíduos que se autointitulavam transexuais, e viviam
reclusos em cabarés fazendo shows performáticos ou se prostituindo, procuravam pela
modelação do corpo, através do uso de hormônios para diminuição (transexuais femininas) ou
aumento (transexuais masculinos) de pelos corporais, ou surgimento (transexuais femininas) e
desaparecimento (transexuais masculinos) das mamas. Era uma forma de expressar o
pertencimento ao gênero identificado, transformando o seu nome e o seu corpo. Iniciava-se,
aí, o termo “transexuais verdadeiros” ou “benjaminianos” criado por Benjamim6
(GRAZIOTTIN; VERDE, 1997) para designar, e, ao mesmo tempo, estigmatizar a pessoa
transexual.
O transexual “verdadeiro benjaminiano” consiste no indivíduo que nega seu corpo e
sexo anatômico (BENTO, 2009; GRAZIOTTIN; VERDE, 1997). Esse termo, a nosso ver,
não reflete o fenômeno transexual do ponto de vista de seu processo. Se considerarmos a
transexualidade apenas como intervenção “curativa” ou ligada apenas à genitália, estaremos
negligenciando questões como gênero e identidade. Seria o mesmo que afirmar que a genitália
é um entrave à reivindicação identitária do sujeito, sendo a cirurgia a única solução.
Por outro lado, devemos considerar o contexto em que o termo foi criado por
Benjamim, ou seja, nos anos 50 em que o fenômeno transexual chamava a atenção da
comunidade científica, dos meios de comunicação e da sociedade em geral. É, portanto, um
marco histórico em estudos relativos ao universo transexual.
Nesse momento histórico, o número de pessoas que procurava a transgenitalização era
enorme, forçando os grupos religiosos a fazerem acordos com as instituições de Saúde da
época, temendo uma possível transexualização “em massa”. Com isso, muitos médicos, em
parceria com a Igreja Católica, criaram o “teste do homem íntegro” com diversas perguntas
acerca do corpo, gênero, etc. O teste, na verdade, era uma forma de despistar os candidatos,
6

Médico que nos anos 50, além de estudar o fenômeno transexual, realizou diversas cirurgias de
transgenitalização em seus pacientes transexuais.

16

alegando que eram pessoas íntegras e não poderiam se submeter à cirurgia (BENTO, 2006;
GRAZIOTTIN; VERDE, 1997; SILVA, 2008).
Cresceram, então, o número de cirurgias de redesignação do sexo clandestinas. Vários
transformistas, travestis e jovens transexuais procuravam médicos e clìnicas não conveniadas
para submeterem-se a tratamentos hormonais e intervenções cirúrgicas, e em alguns casos
retiravam a genitália em suas próprias residências (BRUNS; PINTO, 2003; CECCARELLI,
2008; SILVA, 2008).
A psicanálise e a psiquiatria da época viam a transexualidade e a travestilidade como
uma psicose, psicopatia sexual ou disforia sexual. O preconceito leva a internação em
manicômios - com tratamento a base de eletroconvulsoterapia - ou a submissão a
permanecerem renegados a guetos gays, geralmente cabarés, exercendo a prostituição
(BENTO, 2006; CECARELLI, 2008; SILVA, 2008).
Ainda nos anos 50, a transexualidade e a travestilidade começaram a ser abordadas no
universo cinematográfico com os filmes Glen ou Glenda (1953) e Quanto mais quente melhor
(1959). Enquanto que o primeiro apresenta a história de um travesti fetichista e uma
transexual, o segundo é uma comédia desprentesiosa sobre dois homens que se vestem de
mulher para fugir de uma dívida.
Nos anos 60, começam os primeiros movimentos liderados por mulheres que visavam
à igualdade entre os sexos, além do surgimento da moda andrógina (BENTO, 2006). Podemos
observar em revistas e álbuns musicais sessentistas que os cortes de cabelo e as vestes tiveram
como influência a androginia, tendo como seus maiores representantes a modelo Twiggy e o
cantor David Bowie. Inclusive, este último aparece vestido com roupas femininas na capa do
disco7 “The Man Who Sold The World” (O homem que vendeu o mundo8).
Nos anos 70, movimentos feministas criticam os transexuais e travestis, em especial às
transexuais femininas. Uma de suas maiores críticas, a escritora Janice Raymond (BENTO,
2006; NICHOLSON, 2000), alegava que a transexualidade era uma estratégia dos homens de
retornar ao poder, transformando-se em mulher e reconquistando a sua soberania. Este
argumento pode ser facilmente questionado, visto que a transexual abandona qualquer
resquicio do universo masculino.
7
8

Acervo discográfico do pesquisador.
Tradução nossa.

17

Outra crítica pontuada por alguns movimentos feministas é que as mulheres
transexuais reproduzem o “estereótipo de gênero feminino da mulher submissa”. Ao
afirmarem que desejam ser mulheres, para formar família e se casarem, terminam por desfazer
toda a luta das mulheres contra esse tipo de condição (CHILAND, 2008). Podemos
considerar, neste caso, a associação com uma condição de aceitabilidade social, já que é um
padrão respeitado e aceito pela sociedade em geral.
Nos mesmos anos 70, mais especificamente em 1977, a transexualidade entrou no
DSM III (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders III9) como Disforia de
Gênero. No entanto, somente em 1994, foi substituída, agora no DSM IV (Diagnostic and
Statistical Manual of Mental Disorders IV10), como Transtorno de Identidade de Gênero
(BENTO, 2006; GRAZIOTTIN; VERDE, 1997; SILVA, 2008).
Nas décadas seguintes (80, 90 e 2000), o movimento dos transexuais e travestis ganha
notoriedade graças às diversas personalidades que apareciam em filmes, televisão ou revistas.
Divine, comediante travesti norte-americana, Roberta Close, modelo transexual brasileira, Ru
Paul, drag queen norte-americana, Bibiana Fernandéz, atriz transexual espanhola, Alexis
Arquette, atriz transexual norte-americana, Letícia Lanz, poetisa transexual brasileira, Rose
Venkatesan, transexual apresentadora de televisão indiana, Nany People, repórter transexual
brasileira, Kim Petras, cantora transexual alemã, João Nery, escritor transexual brasileiro,
Lana Wachowski, diretora de cinema norte-americana, e Buck Angel, ator pornô transexual
norte-americano, são alguns nomes de transexuais, travestis e drag queens / kings que
ganharam notoriedade e espaço nos meios midiáticos.
Ainda nos anos 80, 90 e 2000, houve uma maior contribuição cinematográfica,
literária e televisiva a esse fenômeno. Os maiores representantes são os filmes “A lei do
Desejo” (1987), de Pedro Almodovar, “Traídos pelo Desejo” (1993), de Neil Jordan,
“Priscilla, a Rainha do Deserto” (1994), de Stephan Elliot, “Minha vida cor de Rosa”
(1997), de Alan Berliner, “Meninos não Choram” (1999), de Kimberly Pierce, “Madame
Satã” (2002), de Karim Ainouz, “Transamérica” (2006), de Duncan Tucker, o conto Triunfo
dos Pelos, de Aretusa Von, a novela “As filhas da Mãe” (2001), de Silvio de Abreu, entre
outros.

9

Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais III
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais IV

10

18

Na produção científica, temos estudos (ANACLETO; MAIA, 2009) acerca da
transexualização infantil e da aprovação dos pais para hormonização. Os casos mais famosos
são de Tammy Lobel - nascido Thomas Lobel - que iniciou o processo de transexualização
aos oito anos e da cantora Kim Petras, que deu início à mudança visual e corporal aos 10
anos, realizando a transgenitalização aos 16 anos.
Estas alterações corporais implicam em transformações no âmbito da “identidade de
gênero”, através dos questionamentos – e permanências - aos termos binários – masculino e
feminino – como formas únicas de gênero.

2.2 As conceituações de transexualização

Na atualidade, apesar de estas discussões atingirem vários setores sociais, ou seja,
acadêmicos, midiáticos, jurídicos e cotidianos não somente acadêmico-científicos ou de
grupos organizados, as definições e questões relacionadas ao universo transexual são pouco
conhecidas (SILVA, 2008).
Para a sociedade em geral, transexuais, travestis, cross-dresser e drag queens/kings
são todos homens (ou mulheres) homossexuais que vestem roupas e apresentam trejeitos
típicos do “papel social de gênero” feminino - ou masculino - correspondente à sua cultura
(BENTO, 2006; SILVA, 2008). Todavia, as nuances deste processo são inúmeras.
Em relação ao conceito de transexualidade destaca-se o procedimento transexualizador
de homem para mulher, ou vice-versa, havendo um conflito entre o corpo, o gênero
identificado e a identidade. Este conceito possibilita um avanço em relação ao sufixo ismo
também utilizado, pois este denota algo patológico e que estigmatiza. Por outro lado, essa
nomenclatura favorece a gratuidade da cirurgia de transgenitalização, vista como uma
correção à “doença”. O “transexualismo” enquanto algo patológico está presente no DSM
IV11 que o enquadra em Transtorno de Identidade de Gênero (ASSOCIAÇÃO AMERICANA
DE PSIQUIATRIA, 2002).

11

Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais IV

19

Alguns fatores devem ser levados em consideração, para uma pessoa ser considerada
transexual. Para isto, esta não deve apresentar sintomas indicativos de esquizofrenia,
síndrome de Klinefelter12 e intersexualidade. Somando-se ao fato de que as ideações alusivas
à transexualidade devem durar no mínimo dois anos, pois em alguns casos, o indivíduo pode
afirmar ser transexual, mas a sua afirmação ser produto de um sintoma de surto psicótico ou
de um pensamento efêmero, resultando em arrependimentos futuros se iniciado o processo
transexualizador (ELIAS, 2010; OLIVEIRA, 2010; OMS13, 1993).
À utilização de denominações no universo transexual se adicionam aspectos
relacionados ao diagnóstico de um indivíduo que recorre à Redesignação Cirúrgica do Sexo ou transgenitalização - e as informações que se tem sobre essa problemática. O discurso do
sujeito não se configura como o único acesso para esse tipo de intervenção cirúrgica, sendo
necessária a aprovação de uma equipe multi e interdisciplinar composta por um psiquiatra,
psicólogo, assistente social, endocrinologista e o cirurgião (ARÁN; MURTA; LIONÇO;
2009, BENTO, 2006; ELIAS, 2010). A tarefa desses profissionais é avaliar, através de
acompanhamentos pré-operatórios que incluem visitas domiciliares, psicoterapias, histórico
social de saúde, e identificar a condição para a submissão à cirurgia de mudança de sexo.
Esse tipo de acompanhamento se caracteriza pelo tratamento de psicoterapia com um
psicoterapeuta conveniado ao programa, de visitas dos assistentes sociais e de tratamentos
hormonais. É necessario ainda passar por mais três testes: o da “vida cotidiana”, no qual terá
que vestir-se diariamente com roupas referentes ao gênero identificado; os psicológicos como
HTP (Hourse, Tree, Person)14, MMPI (Minnesota Multiphasic Personality Inventory)15,
Haven16 e Rorschach17; e exames de rotina para investigar o seu estado de saúde para
submeter-se a uma cirurgia (PERES, 2001; SILVA, 2008).
A importância desses acompanhamentos com profissionais da saúde está relacionada a
casos de transexuais que, após a cirurgia, se arrependem da decisão tomada e se automutilam,
tentando voltar à forma pré-operatória. Chegam, às vezes, a cometer suicídio, pois não
conseguem visualizar seu corpo pós transgenitalização, e não mais se sentir pertencente ao
12

Síndrome relacionada aos cromossomos sexuais, apresentando um cromossomo X excedente. Os principais
sintomas são seios evidentes, testículos pequenos e esterilidade.
13
Organização Mundial de Saúde
14
Teste de grafismo aplicado em avaliações psicológicas.
15
Questionário cuja função é analisar traços de personalidade e atitudes em relação a algum fenômeno.
16
Consiste em um conjunto de escalas que avaliam a inteligência geral.
17
Consiste em uma prova psicológica projetiva, fazendo com que o sujeito apresente respostas baseadas em sua
interpretação referente a dez desenhos com manchas de tintas.

20

gênero que supostamente haviam se identificado (CARVALHO, 2011; GREGERSEN, 1983;
SILVA, 2011). Mediante os pontos elencados, é de suma importância que a pessoa seja
ouvida, informada e atendida por profissionais capacitados sobre o processo transexualizador.
Este processo inclui ainda o uso de roupas e trejeitos característicos do “papel de
gênero” identificado, modelagem do corpo através do uso de hormônios para surgimento ou
diminuição dos seios e/ou pelos corporais, dependendo da escolha do/a solicitante. A genitália
para as transexuais femininas e os seios para os transexuais masculinos são as partes do corpo
negadas e alvo de intervenção cirúrgica, sendo estas cirurgias uma saída para aliviar seu
sofrimento, distanciar-se do papel social de gênero não identificado e obter aceitação social
(BENTO, 2006; BRUNS; PINTO, 2003; ZAMBRANO, 2003).
Existem casos de transexuais que não desejam esperar o tratamento hormonal e a
liberação da transgenitalização, recorrendo à automutilação, castrando-se, retirando a genitália
- transexual feminina - ou os seios - transexual masculino -, em procedimentos cirúrgicos
amadores e clandestinos. Há, ainda, transexuais e travestis que para permanecerem os mais
femininos possíveis, realizam cirurgias faciais ou implantação de silicones industriais, sem
aparato técnico, com cirurgiões desconhecidos, porém mais acessíveis financeiramente
(PERES, 2001, SILVA, 2008).
Além da cirurgia de transgenitalização e do processo transexualizador, os pedidos de
alteração nos documentos de identidade são recorrentes no universo transexual. Esta foi
possível com a Lei N° 9.708, de 18 de novembro de 1998 que permite a adequação do
prenome pela pessoa transexual (VIEIRA, 2000).
Na travestilidade, não há a reivindicação de uma única identidade feminina ou
masculina ou ainda, de pertencer a apenas um gênero, mas de exercer os dois papéis
performativos socialmente. O corpo dos/as travestis nada mais é que a expressão de suas
identidades e não uma adequação ao binarismo homem e mulher (BUTLER, 2010;
BARBOSA, 2010). Não há a negação da genitália, entretanto essa não é uma característica
única, visto que há transexuais que convivem com seus sexos anatômicos, não fazem cirurgia
e assumem uma identidade transexual.
Os indivíduos intitulados cross-dresser, antes conhecidos como travestis fetichistas
(VIEIRA, 1977), são aqueles se travestem de mulher, ou vice-versa, em situações sexuais ou

21

específicas como grupos de encontros. Já as drag queens - ou kings - são aqueles que
apresentam características consideradas femininas - ou masculinas -, inclusive travestindo-se,
apenas em performances caricatas de comédia ou shows de dublagem. Não assumem uma
identidade feminina - ou masculina - no cotidiano. Em ambos os casos não há reivindicação
identitária ou modelação do corpo como os transexuais e travestis.
Nenhum desses quatro componentes pode ser definido, exclusivamente, como de
pessoas homossexuais. Há casos de transexuais, travestis, cross-dresser e drag queens/kings
que são heterossexuais. Ou seja, não é algo relacionado, exclusivamente, à orientação sexual,
estão envolvidas questões da identidade - transexual e travesti -, do fetiche - cross-dresser - ou
profissional/ artística - drag queen/king. Assim afirma Silva (2008, p.24):
Essa questão quanto à sexualidade e aos relacionamentos transexuais é um pouco
complicada, pois depende do indivíduo e das suas particularidades. Há casos de
homens que recorrem à transgenitalização com o intuito de virarem mulheres
lésbicas ou de moças que optam pela transgenitalização tornando-se bissexuais
ativos para mulheres e passivos para homens.

Em estudos de Bento (2006; 2009), algumas transexuais afirmavam não transitarem
entre os dois gêneros - masculino e feminino - pois sempre foram “mulheres”, cuja anatomia
encontra-se em desacordo com seu psiquismo. A busca é pela identidade negada desde o seu
nascimento, atribuindo à cirurgia de transgenitalização o “passaporte” para a “correção” do
elemento estranho que se encontra em seu corpo.
O Código Penal e o Código de Ética de Medicina ainda consideram a Redesignação
Cirúrgica do Sexo como uma lesão corporal gravíssima, sendo assim, reprovada. Destarte, só
não é desaprovada em casos de intervenções cirúrgicas em indivíduos intersexos, pois se
acredita que é uma “anomalia” que deve ser reparada. Entretanto, desde 14 de abril 1982, foi
assinada a Lei nº 164 na Itália, seguida por outros países, inclusive o Brasil, que legitima e
autoriza a transgenitalização (GRAZIOTTIN; VERDE, 1997). No Brasil, a mesma pode ser
feita gratuitamente através do Sistema Único de Saúde (SUS).
As escolhas possíveis encaminham assim, ao questionamento das normatizações de
gênero, de corpo e de identidade. A transexualização questiona a ideia de corpo naturalizado
que deve ser o mesmo do nascimento até a morte, através das suas transformações corporais.
Apresenta, ainda, a ideia de que a identidade é produto da relação interdependente entre social
e individual e encontra-se sempre em produção e movimento.

22

Nesse sentido, podemos problematizar o conceito de identidade e de sua produção.

2.3 A transexualização e o conceito de identidade

O processo de transexualização implica um questionamento de identidade. Este
conceito está vinculado ao contexto histórico e sofre transformações e metamorfoses (LANE,
2007; CIAMPA, 2005; 2007), graças ao compartilhamento de experiências sociais.
O homem apreende do contexto em que está inserido, seja histórico, social ou cultural,
adicionando-se ao que já possui, onde é resignificado e se vai produzindo o seu “eu”. Desse
modo, destacamos a importância de aspectos como a memória e a história de vida do sujeito,
pois, de certa forma, são importantes para a edificação da sua identidade. Por outro lado, a
ideia de identidade como algo pré-estabelecido deve ser problematizado, visto que esta não é
algo imutável, sem cair, no entanto, na relativização do conceito.
A identidade, do ponto de vista psicossocial, pode ser dividida - apesar de se
complementarem - em “nós” e “eu”, pois, ao falarmos de homem como produtor e produto do
meio, não descartamos seus aspectos individuais. O “nós” estaria relacionado às diversas
experiências sociais no percurso histórico que atendam aos diferentes papéis sociais que
exercemos e aos seus regulamentos. Esta é a identidade social. O “eu” seria referente ao que o
sujeito entende e percebe sobre a sua existência a partir das diversas circunstâncias em sua
história de vida, ou seja, a identidade pessoal (CIAMPA, 2007; PAIVA, 2007).
Outros autores (CROCHÍK, 1997) afirmam que a própria cultura institui esses “papéis
sociais da identidade social” correlativos à realidade na qual o indivíduo deve adequar-se.
Sendo assim, os membros de um determinado grupo devem se “reduzir” ao papel que melhor
lhes convêm para serem aceitos na sua comunidade, às vezes, abdicando de suas
peculiaridades, estando categorizados em um papel pré-estabelecido cultural e socialmente da
história interior de seu grupo.
Sawaia (2008, p.124) insere aspecto político em sua definição ao afirmar que:
Identidade é conceito político ligado ao processo de inserção social em sociedades
complexas, hierarquizadas e excludentes, bem como ao processo de inserção social
nas relações internacionais. O clamor pela identidade quer para negá-la, reforçá-la

23

ou construí-la, é parte do confronto de poder na dialética da inclusão/exclusão e sua
construção ocorre pela negação dos direitos e pela afirmação de privilégios. Ela
exclui e inclui parcelas da população dos direitos de cidadania, sem prejuízo à
ordem e harmonia social.

Os autores destacam em suas definições sobre identidade uma atribuição e produção
para a manutenção das relações de poder (CROCKÍK, 1997; SAWAIA, 2008). Seria uma
forma de dizer que a função da identidade é conferir aos indivíduos as suas posições na
sociedade e conservação de seus valores e hierarquias. Já Pino (2005) destaca os aspectos
simbólico e de significação, enquanto que Facchini (2005) enfatiza o caráter de produção
coletiva das identidades, sob o viés da antropologia e dos movimentos sociais.
Este aspecto social da identidade evidencia a atenção a alguns preceitos para que
possamos viver em harmonia com o mesmo. Apreendemos o que o meio nos apresenta e
contribuímos na formação deste. Primeiro vem o que nos é atribuído através dos papéis que
estão relacionados ao gênero, nacionalidade, hereditariedade, e aqueles que são adquiridos
que estão relacionados aos estudos, profissões, religiões – sendo estas, às vezes, atribuídas –
etc.
Podemos considerar ainda as identidades coletivas dos Movimentos Sociais
(FACCHINI, 2005). Estes são comunidades cujos membros compartilham os mesmos
objetivos e características. Nesse caso, a identidade de um grupo, movimento, comunidade
não é algo conferido pelos próprios membros, autodenominado, mas produzido através de
suas relações psicossociais.
Contraria-se assim a ideia de identidade associada apenas à repetição (ARGENTIERI,
2009; CECCARELLI, 2008). Vemos sob uma perspectiva da identidade como resignificadora
e mutável. Somos autores e personagens da história que forma a nossa identidade; fazemos
em nosso percurso de vida o mesmo que o roteirista: cria, apaga e reconstroem os
personagens de seu roteiro para um filme (CIAMPA, 2007). A diferença é que o roteiro de um
filme tem um ponto de partida e uma finalização, ao contrário da história de um indivíduo.
A história do indivíduo permite a experiência de contradições, ideologias, conflitos
que vão se estruturando e se modificando (CIAMPA, 2005, 2007). Nesse sentido, considerase que não existe apenas uma identidade, mas várias, o que torna o ser humano fragmentado,
experiencial, em movimento, vez que o mesmo não representa o que ele realmente é, mas o
que pode vir a ser (CIAMPA, 2005).

24

Se considerarmos que a transexualidade também se insere no processo identificatório,
ou seja, em movimento, podemos afirmar que temos uma experiência de identidade atribuída
pela sociedade através da nomeação do nosso corpo (prenome, gênero, etc) em confronto com
a identidade que é experienciada e expressada. Ao travestir-se, adotar um novo prenome e
transformar o corpo, o/a transexual apresenta o que afirma ser e não apenas um desejo
(CHILLAND, 2008). O corporal e o visual são formas de expressão da identidade, sendo
assim, atrelados à última.
Podemos considerar que os transexuais apresentam uma identidade com metamorfose
visual – modelação corporal e no registro civil - a que se submetem (BARBOSA, 2010;
TEIXEIRA, 2009). Podemos afirmar, ainda, que a transexualidade vai além da expressão de
gênero e de uma identidade, sendo uma forma de reafirmação de suas identidades.
Poderíamos, ainda, defender que seriam dois nascimentos, o “atribuído forçadamente” e o
apresentado em consonância com o que sente.
Tomemos como exemplo o caso fictício18 de uma transexual feminina, intitulada
Josefa. Ao nascer fora batizada como João por seus pais, mas com o passar do tempo,
observava que usar roupas ou participar de brincadeiras correspondentes ao “papel social de
gênero masculino” não era o que a satisfazia, muito menos aquele nome que lhe fora
atribuído. Na adolescência, busca vestir-se com roupas que correspondam ao papel social
identificado e adota outro prenome. Na maioridade, muda o registro civil e já com o corpo
modelado, faz a transgenitalização. Hoje em dia, vive com uma moça, por quem se
apaixonou, chamada Marta. João, Maria; Homem, Transexual, Mulher Lésbica. Parece até
uma forma de tentarmos enquadrar esse indivíduo, entretanto é uma forma de mostrar a
pluralidade que envolve a transexualidade e a sua relação com a identidade.
Em algumas entrevistas com transexuais, Bento (2006; 2009) observou que alguns de
seus informantes negavam a sua história anterior ao processo transexualizador. De fato, isso
contraria ao que explicitamos em relação aos “dois nascimentos”. Nesse caso, consideramos
ser o mesmo que negar o percurso histórico e social da identidade desses indivíduos.
A cirurgia de transgenitalização e a alteração no registro civil, para a pessoa
transexual, é a oportunidade de conter um corpo sexuado, e um prenome coerente a este
corpo, aceito socialmente (BENTO, 2006; BUTLER, 2010). A nosso ver, não adianta apenas
18

Adaptação de nossa autoria a partir de relatos de transexuais entrevistadas por Bento (2006).

25

referir que deseja pertencer ao gênero identificado, mas reafirmar que já faz parte do mesmo,
comprovando através do seu corpo modelado e da adoção de um prenome, ambos condizentes
ao seu querer.
Ao solicitarem a intervenção cirúrgica e adotarem o papel social correspondente ao
gênero identificado, muitos transexuais terminam por tentar corresponder às normas
correlativas aos “papeis sociais de gênero”. Há transexuais femininas que almejam casar,
constituir família, reproduzindo trejeitos e ações típicas e estereotipadas de uma mulher
considerada “decente e de bom caráter” (ALMEIDA, 1999).
Podemos observar, a partir do exemplo acima, que a identidade dessas transexuais
acarreta, enquanto processo cultural e histórico, questionamentos ou reproduções dos papéis
desempenhados que sustentam e mantêm os valores do grupo ao qual pertencem. Nesse caso,
poderiamos dizer que essas transexuais femininas apresentam a sua identidade social?
Poderiamos considerar que sim, mesmo que reproduzindo um papel social, há a produção
relacional de suas identidades. O papel que o individuo desempenha, vai ser o que “ele é”
para o grupo, sendo uma forma de tentar localizar-se nos sistemas de papéis (PAIVA, 2007;
LANE, 2007).
E ao falarmos de papéis sociais e da identidade, há alguns subtermos nesses segmentos
que são identidade nacional, sexual, de gênero, etc (PAIVA, 2007, CHILLAND, 2008). Esses
termos, em especial os dois últimos, ainda se encontram em constante construção, apesar da
manutenção, nas teorias desses conceitos ligados a normas estabelecidas pela sociedade de
comportamentos específicos ao que seria masculino ou feminino – gênero – ou homem e
mulher – sexual – e, ainda, orientação sexual (BUTLER, 2010). Poderiam ser exemplificados
como modo de vestir-se, características corporais e trejeitos - no caso da identidade de gênero
– e, na orientação sexual – identidade sexual. Nessa perspectiva, a autora critica o uso desses
termos como “ideais normativos”, quando somente o termo identidade poderia englobar a
experiência descritiva da pessoa. O que o indivíduo experiencia é o que ele é ou virá a ser, por
isso não é algo normativo, mas construído e em transformação.
Ao enfatizarmos a discussão da temática via identidade não significa estarmos
“negligenciando” aspectos como gênero e corpo. Consideramos que não há negligência em
relação a essas duas categorias, pois as mesmas estão atreladas à identidade. Consideramos a
transformação corporal e a relação com o corpo por parte dos transexuais como uma

26

expressão – e impedimento no caso do corpo negado – da identidade. O mesmo para a
categoria gênero, antes vista apenas como tradução cultural do sexo, quando envolve outras
questões tais como a autoidentificação (BUTLER, 2010; LAQUEUR, 2001).
Em síntese, considera-se que a produção conceitual é histórica e cultural, promove o
convívio com termos diversos – travestilidade, intersexualidade, artísticos (drag queens e
kings) e cross-dresser–; a relação entre transexualidade e produção identitária nos permite
questionar a ideia de que a transexualidade está associada à homossexualidade. Por último, o
direito ao registro civil, permite questionar à crença de pertencimento ao gênero identificado e
a pluralidade que envolve suas sexualidades - há transexuais homossexuais, bissexuais e
heterossexuais -. Podemos assim problematizar o fenômeno transexual e estabelecer
vinculação aos aspectos de autoidentificação e reivindicação identitária do que
exclusivamente a uma orientação sexual.
Esta compreensão se apoia no pressuposto teórico da Psicologia Sócio-Histórica de
Vigotski, especialmente nas categorias conceituais: sentido e significado, as quais subsidiarão
a análise das informações e serão apresentadas a seguir.

27

3 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS

Como ocorrem as experiências humanas? Como se dá o processo de produção de
sentido e significado? Qual é o papel da linguagem e dos signos no processo de significação
humana? Quais são os instrumentos e as criações humanas? Como se dá o processo de
identificação e de formação de subjetividade? Quais podem ser os procedimentos
metodológicos adotados para se conhecer a história da transexualização humana? A narração
da história de vida possibilita a produção de sentidos e significados acerca da
transexualização? Estas são as questões que discutimos a seguir.

3.1 A constituição sócio-histórica em Vigotski

A escolha da Psicologia Sócio-Histórica de Vigotski como proposta teórica e
metodológica se dá especialmente pelas categorias de sentido e significado, visto sua
contribuição à compreensão do processo de significação estar fundada na relação entre sujeito
e o contexto sociocultural (MOLON, 2003).
Em uma retomada histórica podemos indicar que, no início do século XX, a Psicologia
passava por uma fase de descrédito e era alvo de várias críticas perpetradas - em relação a sua
metodologia e objeto de estudo - pelas ciências naturais. Não obstante, na própria Psicologia
havia grupos de teóricos que questionavam essa dependência metodológica com as ciências
naturais, tão reducionistas e mecanicistas e as várias dicotomias nos estudos psicológicos
(MOLON, 2003; PINO, 2005; SILVA, 2008).
Vigotski era um dos “questionadores” a esse tipo de Psicologia, cujo método
originário nas ciências naturais, não conseguia estudar os fenômenos psicossociais em seu
ambiente natural e seus fatores históricos e culturais (PINO, 2005). Sua crítica se voltava
também às dicotomias entre subjetivo e objetivo, natural e biológico, normal e anormal,
consciente e inconsciente; a Psicologia como uma ciência elitista e com linguagem médica
que se preocupava em categorizar os indivíduos em normais ou anormais, e que
desconsiderava a influência dos estímulos sociais no comportamento (VIGOTSKI, 2004).

28

Mediante aos pontos elencados, Vigotski passa a pensar em uma Psicologia que estude
a relação dialética e histórica entre o homem e o social. Junto a Leontiev e Luria, torna-se um
representante da Psicologia Russa, apresentando uma forte referência– e não uma reprodução
da teoria – do pensamento do materialismo histórico e dialético marxista, qual seja, o ser
humano sofre influência – e influencia - o meio, produzindo, assim, a sua consciência (PINO,
2005). Ou como afirma Molon (2003, p.28):
A teoria sócio – histórica elaborada por Vygotsky se aproxima tendencialmente da
psicologia social e se afasta de modo considerável da psicologia russa, uma vez que
o conhecimento filosófico de Vygotsky lhe permitiu realizar uma psicologia
fundamentada no marxismo, não - reducionista e não - mecanicista.

É importante salientarmos que, Vigotski não se referia à ideia de uma teoria que
vislumbrasse um homem formado e dependente passivamente do meio social, mas de alguém
que para ser reconhecido como ser humano, precisaria ter uma relação com esse meio e, por
conseguinte, com a cultura. A partir das experiências sociais, do uso da linguagem, da
comunicação é que o homem transforma a natureza, constitui cultura e é constituído por ela.
Assim, estudar fenômenos humanos implica abarcar sua totalidade, considerando seus
aspectos históricos, sociais e culturais (VIGOTSKI, 2004).
Segundo Lucci (2006), a base da teoria vigotskiana é de que o homem é um ser
histórico e em movimento, transformador da realidade que o cerca e resignificador da
natureza, que por sua vez, é sua “qualidade biológica”. Nesse contato, a natureza não é
desestruturada, mas ganha novos elementos, sem perder a sua condição, por meio do
simbólico. Este seria o agir no meio, que já está “dado” e iremos dar uma existência a ele, o
qual chamou de signos19, que por ventura, são mediadores das nossas relações interpessoais.
Nesse sentido, entender a realidade e seus fenômenos enquanto um processo demanda
compreender e explicar o seu percurso, incluindo as suas relações, contradições e
constituições (VIGOTSKI, 2007). Desse modo, evita-se o perigo da normatização na ciência.
Em acordo com o exposto, o fenômeno psíquico só pode ser compreendido inserido na
cultura, no social, na história, ou seja, fenômeno em processo, evitando sua fossilização
(VIGOTSKI, 1993; 2007). Cultura esta plena de significados compartilhados na qual os
sentidos serão experienciados na relação com o outro, permitindo um nascer cultural (PINO,
2005; VIGOTSKI, 1993).
19

Abordaremos a função dos signos e o processo de significação mais adiante.

29

3.2 O processo de significação

A transexualização nos parece ser um fenômeno que, sintetiza a relação entre o
biológico e o cultural. Os componentes de transformação biológica são dispositivos de
inserção cultural e social, ao mesmo tempo em que, representações da cultura demarcam as
mudanças culturais e de comportamento sexual e identitário.
A contribuição da leitura de Vigotski em sua teoria sociogenética, que considera tanto
os fatores biológicos quanto os sociais, de suma importância para se compreender o
comportamento humano e a formação da subjetividade (LUCCI, 2006). Contudo, o cerne
dessa teoria está localizado nas origens da constituição biológico - cultural do humano, na
infância.
Como vimos anteriormente, Vigotski (2007) apontou que consciência humana é fruto
das experiências com o meio e interiorização da cultura. Todavia, a questão biológica e
genética também faz parte dessa produção. A criança ao nascer herda a sua natureza biológica
passada pela sua espécie, mas isso não significa que a sua existência dependa somente dessa
herança genética. Só a partir do desenvolvimento cultural que a criança vai produzindo a sua
existência e tornando-se um ser humano (PINO, 2005).
Percebemos, então, que não há uma separação entre o biológico e o social. O primeiro
é o nosso organismo, as nossas funções nervosas, os nossos reflexos, o nosso corpo, que é
ativo e interage com o meio, de modo mais dependente em seu início. Mediante as
experiências que a criança tem, associadas às suas funções biológicas, se transformam em
funções psicológicas superiores. Nesse caso, a estrutura biológica seria um processo
embrionário, enquanto que o nascimento cultural seria em nível superior, ou seja:
As funções psicológicas superiores, apesar de terem sua origem na vida
sociocultural do homem, só são possíveis porque existem atividades cerebrais. Ou
seja, essas funções não têm sua origem no cérebro, mas não existem sem ele, pois se
utilizam das funções elementares que, em última instância, estão ligadas aos
processos cerebrais (LUCCI, 2006, p. 07)

Esse processo de desenvolvimento psicológico da criança é caracterizado por quatro
momentos: a gênese da espécie, conhecida como filogênese; em seguida, a sociogênese e
desta para a ontogênese; a última parte seria a microgênese (PINO, 2005). Podemos observar
que, o nascimento cultural da criança e todo o seu processo envolvem experiências sociais que

30

produzem novos conhecimentos. As funções cerebrais fazem parte do processo junto às
superiores, sendo as primeiras superadas por estas últimas. No entanto, o biológico continuará
existindo, de maneira superada e em constante transformação.
Todo esse percurso é histórico e cultural, pois inserido neste percurso se encontra a
evolução da espécie. A cada trajeto evolutivo, o cérebro humano é moldado, seria o momento,
citado anteriormente, da filogênese. O cérebro do Homem de Neandertal não é o mesmo do
Homo Sapiens, pois cada um foi constituindo mediante a sua interação com o meio, associada
à sua espécie. Há uma adaptação, a partir das interações sociais, ao ambiente, visto que de
uma espécie evolutiva para a outra, há mudanças culturais e físicas (PINO, 2005).
Essas mudanças físicas, e no modo de vida, dão origem à sociedade a qual faz parte
esse homem. Este é o segundo momento denominado de sociogênese (LUCCI, 2006; PINO,
2005). Pelo fato do homem ser produtor – e produto – do meio, já que é uma relação mútua,
seu mundo exterior vai se constituindo e, o que antes era de uma forma, é superado a partir
dessa estrutura anterior.
Ao ter contato com o social, o homem interioriza todas as informações que o mundo
exterior oferece. As transformações culturais, os modos de vida, as regras da sociedade são
absorvidos e a sua identidade se constituindo. Este momento seria o da ontogênese (PINO,
2005), que seria a origem do homem, produto dessa interação entre o social e o organismo
biológico, visto que há a edificação das suas atividades mentais e da sua identidade, enquanto
componente daquele meio.
Por último, temos a microgênese, ou seja, a partir da produção de sentidos e
significados gerados nessa interação, tornando esse ser humano único (LUCCI, 2006). Este
interioriza as informações sociais e culturais, as codifica com as experiências anteriores e
atribui sentido às mesmas. Podemos notar, então, que é todo um processo dialético. Não
emerge inexplicavelmente ou é “dado”, mas edificado.
O bebê ao nascer, além de receber um nome e uma função dentro da sua estrutura
familiar, é alimentado e recebe todo o cuidado. Chora ao sentir fome, não porque aprendeu,
mas porque faz parte da sua espécie. Assim, saberá que sempre que chorar terá o alimento ou
uma necessidade atendida. Nesse caso, está experimentando o ambiente que o cerca. Alguns

31

anos depois nomeará os objetos, por aprendizagem, e refletirá sobre estes, se constituindo e
sendo constituída nessa interelação.
Pino (2005) pontua que em seus estudos, Vigotski afirmava que o ser humano é o
único animal que pode construir a sua realidade e refletir sobre a mesma. Seu cérebro não
serviria apenas para atender aos reflexos do meio, ou seja, a adaptação não seria por repetição,
sem a ponderação sobre algo. Desse modo, o homem apresentaria algo além e estariam
apresentadas as funções psicológicas superiores. Por meio destas, a criança agiria sobre o
objeto e construiria a realidade, ao tempo em que está se constituindo. Não é um acesso
direto, mas processual e simbólico (LUCCI, 2006; VIGOTSKI, 1993).
Desse modo, unicamente o nascimento biológico não explicita à complexidade que
envolve o ser humano. Esse “primeiro” nascimento já estaria no homem, pois atende à sua
espécie, aos seus instintos. Entretanto, não é o suficiente para facilitar a inter-relação e contato
com o meio e a cultura. Por isso a necessidade de um segundo nascimento, que seria o cultural
(PINO, 2005).
O nascimento cultural se caracteriza pelo desenvolvimento das funções psicológicas
superiores, sendo estas mediadas pela linguagem e pelos signos. Por isso, apresenta um
caráter simbólico e o outro é imprescindível neste processo, pois é por meio da aprendizagem
e do contato com o outro que acontece a interiorização (LUCCI, 2006). O Outro na figura de
nossos pais – e de seus antepassados – é que nos dá acesso à cultura, através também da
imagem, por meio de nossas percepções sensoriais e motoras é que acessamos o mundo real e
o mundo imaginário, agindo sobre a cultura (PINO, 2005). O Outro significa alguma ação
nossa, nos devolve na forma de imagem20 - mundo real - e codificamos, somando com o que
já conhecemos - construindo nosso mundo imaginário – e restituindo ao ambiente, com novas
informações.
A criança ao nascer apresenta uma carga genética que é carregada de aspectos
culturais da sua espécie, por isso o caráter interdependente entre o biológico e o cultural. Com
isso, não podemos afirmar que ambos são análogos, mas intercambiáveis. A natureza já está
em seu lugar. É na relação com a cultura que o homem irá modificar e trazer novos
conhecimentos e significados para a mesma, constituindo as funções psicológicas superiores.
20

Quando nos referimos à imagem, não é no sentido de “ver algo com os olhos”, mas a tudo aquilo que nos dá
acesso ao mundo exterior.

32

No entanto, para que isso ocorra necessitam das funções embrionárias que são advindas do
biológico.
Essa humanização do homem sobrevém através do social, do contato com a
comunidade e da apropriação da cultura. Mas a edificação da cultura e, por conseguinte, a
humanização da espécie será por meio do trabalho em conjunto do homem e da sociedade
(PINO, 2005). A história de vida de um indivíduo só acontece por meio da história da sua
comunidade e espécie, por meio do processo de significação.
O significado é constituído por generalizações e conceitos advindos da inter-relação
entre a linguagem e o pensamento (OLIVEIRA, 1992; MOLON, 2003). Este último agrupa as
ideias captadas do meio externo e as reinterpreta, criando uma opinião ou conceituação. O
sentido, por sua vez, seria a atribuição a esse significado de um objeto de uma experiência
afetiva. Todos os significados e sentidos são atribuídos através da linguagem, e está constitui
subjetividade. Importante ressaltar que a relação entre pensamento e linguagem só ocorre
devido ao pensamento verbal que, por sua vez, só ocorre mediante o significado de uma
palavra, como afirma Molon (2003, p.106) o pensamento se realiza na palavra e esta ganha
significado pelo pensamento.
Portanto, o significado é social, geral, compartilhado por todos, apresenta uma
estrutura que vai passando geracionalmente, possibilitando que haja a comunicação entre os
homens. E através deste contato com o outro, que o seu comportamento vai sendo produzido,
desenvolvendo o processo de formação da consciência humana. Já o sentido por ser algo
micro-estrutural, apresenta uma atribuição carregada por experiências afetivas - somadas ao
que o sujeito já possui - à sua realidade objetiva e aplicadas a depender do contexto.
Molon (2003, p.11) destaca a importância desse contato com o outro no processo de
significação e formação da consciência:
O sujeito é constituído pelas significações culturais, porém a significação é a própria
ação, ela não existe em si, mas a partir do momento em que os sujeitos entram em
relação e passam a significar, ou seja, só existe significação quando significa para o
sujeito, e o sujeito penetra no mundo das significações quando é reconhecido pelo
outro.

Por sua vez, Vigotski (1993) ressalta que o sentido é diferente para cada pessoa, pois
depende das experiências vividas, da sua subjetividade, da sua carga histórica de vida. Outro
fator que deve ser levado em consideração - na questão do sentido - são os aspectos históricos.

33

A história de cada indivíduo está em movimento junto às mudanças socioculturais do seu
meio externo. Por isso, a importância de se estudar quais os sentidos e o significado que os
(as) transexuais experienciam em relação à transexualização. Esta, por sua vez, não estando
vinculada somente à mudança do sexo.
Discorrendo, ainda, sobre sentido, é interessante notarmos que este não é algo
exclusivamente individual, que emergiu no indivíduo e como consequência, atribuído ao
significado. O sentido, mesmo sendo produto daquele, tem um caráter dinâmico a partir das
diversas inter-relações sócio-históricas nos mais diferentes contextos da vida de alguém. Não
devemos confundir o seu caráter pessoal, com algo estritamente individual.
É importante lembrar que além do sentido, o significado de uma palavra também
apresenta o significado propriamente dito (OLIVEIRA, 1992; VIGOTSKI, 2007). Este
configura a conceituação dada a uma palavra na forma geral, construída a partir da relação
entre esse objeto e os homens, sendo compartilhada por todos. Parece haver uma leve
semelhança com o significado, entretanto este é produto de ordem reflexiva na relação com os
outros, enquanto que àquele, é conceito que ali se encontra de forma generalizada.
O signo é produto da reflexão do homem sobre um objeto, acontecendo através da
junção entre o significado e o significante. Este último é a configuração corporal do signo
(VIGOTSKI, 1993). Podemos notar que há todo um processo que se inicia a partir de algo que
já existe (sinal), confirmando o caráter do materialismo dialético na teoria vigotskiana. Nesse
caso, há uma relação em movimento entre signo, significado e o sentido.
Essas reflexões auxiliam neste debate quando associamos a transexualidade à
“mudança de sexo”, pois é um significado compartilhado por todos. Podemos compreender a
partir da leitura semiótica, sob a perspectiva de Vigotski (PINO, 2005), que a figura de uma
personagem transexual em um seriado televisivo seria um significante - a configuração
corporal do signo - e a nomenclatura dada ela seria o seu significado, sendo a soma desses
dois, o signo.
A personagem, descrita acima, apenas se tornaria signo a partir da reflexão que o
referente tem sobre ela. O referente é o indivíduo que recebe a informação do meio e reflete
sobre o mesmo. Já os sentidos atribuídos a essa transexual dependeriam do contexto em que
estivesse essa figura. Algumas semanas, dias, meses ou anos, esse mesmo indivíduo poderia

34

ainda manter a mesma opinião ou revê-la, conferindo novos sentidos. Ou seja, é uma relação
em constante movimento.
Não obstante, não queremos dizer que apenas o sentido tem um caráter inconstante. O
significado, mesmo sendo macro, da palavra, não é algo totalmente estático. Em algumas
culturas, o significado de uma mesma palavra é diferente de um local para outro. Deste modo,
a importância de se analisar as determinações da gênese cultural de alguém. Vale lembrar,
ainda, que o significado não é uma associação entre a palavra e o objeto, mas uma reflexão da
relação entre o pensamento e a linguagem (BARROS et al, 2009).
As considerações teóricas a respeito da concepção acerca do nascimento biológico e
cultural do homem e os processos de significação, tendo como referência a teoria de Vigotski;
da observação de que a subjetividade só pode ser entendida na relação com a objetividade nos
levam a explicitar alguns norteadores da metodologia adotada neste estudo.

3.3 A metodologia utilizada

Na realização de uma investigação faz-se necessário o pesquisador ponderar qual
metodologia deve ser escolhida. Tecer reflexões acerca da adequação do uso do método e da
seleção dos instrumentos utilizados para a busca de informações. Descreve-se, assim, as
concepções acerca da pesquisa qualitativa, os procedimentos metodológicos, os critérios de
seleção dos sujeitos representativos, a entrevista narrativa presencial e on-line, a composição
das Histórias de vida, análise de conteúdo comparativa inter e intrageracional.
A presente pesquisa é qualitativa, evidencia o ponto de vista dos sujeitos e a sua
diversidade (CHIZZOTTI, 2000; TURATO, 2008) e apresenta as ponderações do pesquisador
como forma de construção e produção de conhecimento, como destaca Flick (2009, p.25):
[...] Os métodos qualitativos consideram a comunicação do pesquisador em campo
como parte explícita da produção de conhecimento, em vez de simplesmente encarála como uma variável a interferir no processo. A subjetividade do pesquisador, bem
como daqueles que estão sendo estudados, tornam-se parte do processo de pesquisa.
As reflexões dos pesquisadores sobre suas próprias atitudes e observações em
campo, suas impressões, irritações, sentimentos, etc., tornam-se dados em si mesmo,
constituindo parte da interpretação [...].

35

Nesse caso, ao nos referirmos à investigação qualitativa com seres humanos, não
podemos afirmar que seja algo meramente técnico, pré-definido em instruções, mas sim,
pautado na asseveração da singularidade de cada pessoa e, justamente por isso aberta ao
imprevisto, ao novo, pois o homem é um ser em movimento. Cada sujeito possui uma
experiência de vida que deve ser posta em análise (VIGOTSKI, 2004).
Coerente com esta perspectiva, a escolha do método busca conhecimentos, teorias e
conceitos vinculados à problemática estudada (FLICK, 2009). Estes, por sua vez, pretendem
explicar, interpretar ou apresentar um conjugado de acontecimentos - ou fenômenos - através
de sua investigação. Esta sistematização repercute em quem participa do estudo empírico e
em quem lê os seus resultados, gerando assim, reflexões no pesquisador, no participante e no
leitor, com cada um atribuindo sentidos a essa experiência (MINAYO, 2002; NEVES, 1996).
Nessa direção, entendemos que o pesquisador deve estudar e preparar estratégias,
sendo aconselhável, a realização de uma observação in loco exploratória, negociações
antecipadas, de modo claro e objetivo, com os sujeitos participantes da investigação
(CHIZZOTTI, 2000; TURATO, 2005).
Os estudos na Psicologia podem promover uma reflexão a partir da expressão de
sentimentos, por exemplo. Essa ação do pesquisador na relação com os participantes devem
considerar os aspectos éticos implicados nela bem como refletir sobre as propostas da
Bioética21 (CALVETTI; FIGHEIRA; MULLER, 2008; COZBY, 2009; FLICK, 2009;
JORGE; LUDWIG; MÜLLER; REDIVO, 2007; MONTEIRO, 2007).
Nesse sentido, o método qualitativo de investigação e seus pressupostos subsidiaram a
busca e compreensão do fenômeno da transexualidade. A opção metodológica privilegia a
produção de histórias de vida com recorte inter e intrageracional, visto que vislumbra a
possibilidade de evidenciar o fenômeno em seu movimento histórico (VIGOTSKI, 2004;
ZANELLA et al, 2007).
Esse movimento da totalidade se faz representar em unidades que poderão ser
analisadas pelo pesquisador, ou seja, compreender os movimentos históricos, sociais e
culturais do sujeito, as condições que possibilitaram esse movimento e as suas experiências.
Desse modo, em nosso estudo, as entrevistas narrativas e produção de histórias de vida, a
21

No Anexo A e B cópia da Carta de Aprovação do Comitê de Ética e do Parecer do Comitê de Ética.

36

partir de um recorte inter e intrageracional, podem propiciar a análise sócio-histórica da
transexualidade.
Esta pesquisa busca com a produção da História de Vida identificar o significado e
sentidos experienciados pelos participantes em seu processo de transexualização.
O recorte intergeracional busca a identificação das permanências e mudanças no ciclo
da vida de cada geração, bem como as diferenças e semelhanças entre elas (OLIVEIRA;
RODRIGUES; LEVI, 2010). A intergeracionalidade pode ser vista como um percurso de
transmissão de ideologias, normas, lendas e tradições de uma comunidade, que passa de uma
geração a outra. Podem ser transmitidos no grupo familiar como também, com outros
membros mais antigos do grupo ao qual pertencemos para a geração atual. O recorte
intrageracional permite identificar as nuances de gênero de uma mesma geração.
Desse modo, a identidade grupal e subjetividade de cada membro vão sendo
construídas (LISBOA; FÉRES- CARNEIRO; JABLONSKI, 2007). Essa transmissão cultural
pode ser inconsciente ou consciente. Enquanto estes autores destacam a herança
intergeracional, Brandão, Smith, Sperb e Parente (2010) e Delgado (2010) destacam que a
intergeracionalidade é uma relação entre gerações e não somente o legado de uma para outra.
Este legado pode ser transmitido por meio das narrativas e da história oral.
Neste processo, as relações intersubjetivas são o alicerce para a edificação de suas
identidades coletivas e individuais. Soma-se a isso, o fato de que há a contribuição para a
edificação da história local da sua comunidade e, ainda, a composição da sua própria história
(OLIVEIRA, 2007).
Esses processos da identidade coletiva e individual são conaturais aos sujeitos, pois
são herdados através da história. Entretanto, só através da experiência e do vivido que se são
edificados e constituídos (DELGADO, 2010). Percebemos, então, que a intergeracionalidade
envolve três aspectos em seu processo: a memória, a dinâmica das relações intersubjetivas e a
história. Seja na narrativa ou no ouvir, a produção da cultura de uma comunidade é
organizada.
Desse modo, as histórias de vida representantes de cada geração podem evidenciar
aspectos do fenômeno em estudo. Para tanto, a opção pelas narrativas produtoras de histórias
de vida (CIAMPA, 2005) como forma de possibilitar ao entrevistado um contato com a sua

37

realidade e memória, diferente das técnicas narrativas de biografia e de depoimento (FLICK,
2009; HUMEREZ, 1998), ou seja:
O indivíduo, como ser social, ao narrar sua história estará interpretando o meio que
o cerca e seu lugar no mundo. Apresentará comportamentos, valores, ideologias,
atribuirá significados aos fatos, às situações, aos acontecimentos, às próprias ações,
às de seu grupo e de sua comunidade. Como esses aspectos são vivenciados,
transformam-se em memória, imaginação, projeto vital, enfim em sua identidade,
representativa de seu grupo social (HUMEREZ, 1998, p. 35)

O sujeito no momento em que narra e tem contato com a sua história, vai
reconstruindo e reinterpretando a sua experiência vivida (OLIVEIRA; RODRIGUES; LEVI,
2010). A partir da memória, essa construção vai sendo iniciada, e novos significados e
sentidos podem ser produzidos e reproduzidos. Podemos considerar como um recurso que
apresenta diversos olhares sobre uma realidade histórica e social de um determinado
fenômeno (CIAMPA, 2005). A sequência da vida dos entrevistados é fundamental para a
compreensão do funcionamento interior do seu grupo, pois cada indivíduo representa uma
unicidade, que por sua vez, é uma peça formadora dessa coletividade. Permitem acesso aos
dados de extrema riqueza, captando nuances, características e experiências referentes ao
grupo do qual o sujeito faz parte (CIAMPA, 2005). Cada mente humana é um microcosmo da
sociedade, sendo assim, os aspectos individuais de alguém podem ser resgatados da sua
cultura e de sua história de vida, expressando e evidenciando a realidade sócio-histórica do
seu grupo social (VIGOTSKI, 2004).
O pesquisador ao gravar a narração da história do participante privilegiado, estará
registrando o percurso histórico e social daquele grupo o qual se interessou em investigar. Ao
escrever sobre a sua pesquisa, publicar para o conhecimento do meio acadêmico e retornar aos
pesquisados, estará contribuindo para a não mortalidade da sua investigação e,
concomitantemente, da memória do público, ou local, estudado (DELGADO, 2010). Significa
resgatar

as

reminiscências

que

constituem

a

sua

cultura

e

resignificá-las,

se

autorreconhecendo como parte da sua história e de sua comunidade (OZÓRIO, 2007).
Nas entrevistas narrativas que são importantes para a produção de histórias de vida, o
sujeito irá relatar, através de uma pergunta geradora de narrativa (FLICK, 2009), toda a sua
história, desde o seu nascimento até o momento da entrevista. Narrar algo na presença de
outro – entrevistador – torna-se um compartilhamento de conhecimentos entre narrador e
receptor (OZÓRIO, 2007). O entrevistado tem contato com a sua história a cada encontro,
dando novos sentidos e significados aos acontecimentos pertencentes à mesma, e o

38

entrevistador tem acesso a conteúdos pertencentes à historicidade de um determinado grupo
social.
A entrevista narrativa on-line configura-se como uma ramificação da entrevista
presencial (FLICK, 2009). É utilizada em casos em que o entrevistador e sujeito morem longe
e não tenham como se encontrar ou quando o entrevistado não se sente à vontade em uma
entrevista presencial. Os pontos positivos referem-se ao não deslocamento de ambos e a
fluidez da conversa, visto que algumas pessoas sentem-se melhor utilizando ferramentas
como msn, skype, facebook etc.
Torna-se relevante lembrarmos que nem toda história, de uma determinada
comunidade, é oral (DELGADO, 2010). A história se dá por meio de acontecimentos, sejam
orais ou não, pois está relacionada à dinamicidade desses eventos. O homem através da
relação dialética com a natureza e com o outro, produz o seu percurso sócio-histórico,
podendo ser na forma de conservação ou de transformação dessas produções.
Alguns cuidados devem nortear o pesquisador nas entrevistas narrativas, e, por
conseguinte, na produção de histórias de vida. O primeiro problema estaria relacionado às
imposições do pesquisador durante a narração, através dos valores próprios do investigador,
sejam de natureza teórica ou ideológica (DEBERT, 2004). A nosso ver, o pesquisador
deixaria de observar o fenômeno como ele é, para analisá-lo a partir da sua visão, no intuito
de adequá-lo a aquilo que acredita. O olhar na pesquisa termina sendo direcionado às crenças
teóricas, metodológicas ou ideológicas do investigador, atendendo às suas necessidades,
contrariando o princípio maior de uma investigação: o bem comum.
Outro problema estaria relacionado à forma como o entrevistador pode proporcionar
subsídios ao entrevistado de levá-lo a ver outras dimensões e a pensar de maneira mais
criativa a problemática que, através deles, nos propomos a analise (DEBERT, 2004, p. 142).
Nesse caso, envolveria a forma como o investigador conduz a entrevista, se de forma
mecânica ou de uma forma que instigue o narrador a falar e expressar as suas experiências.
O terceiro problema refere-se à fuga do assunto por parte do entrevistado. Por ser a
história de vida, um instrumento narrativo que consente uma maior “liberdade” ao narrador,
torna-se imprescindível, uma maior atenção do profissional que conduz a entrevista. Devendo

39

o entrevistador, de forma sutil, retornar ao ponto em que o sujeito parou, sem prejudicar os
objetivos e a sua narração (FLICK, 2009).
Compete lembrarmos que as entrevistas narrativas e a produção da história de vida não
acontecem em um único encontro, pois é necessário que sejam marcados outros encontros
com o entrevistado, com o intuito de verificar pontos ou fragmentos não detalhados na
entrevista anterior, além de possibilitar que o participante por meio de cada narração possa
expressar sentimentos e rememore episódios importantes da sua vida (FLICK, 2009).
Os recursos provenientes da memória auxiliam na construção, na atribuição de
significados e de sentidos dessa elaboração mnemônica. Este lembrar e verbalizar único sobre
uma dada realidade histórica e social do fenômeno de interesse do pesquisador expressa,
como citado anteriormente, o funcionamento coletivo no interior do grupo social estudado
(OLIVEIRA; RODRIGUES; LEVI, 2010; VIGOTSKI, 2004).

3.4 O percurso de pesquisa

Inicialmente, realizamos um estudo da literatura brasileira acerca da transexualidade
nos sites de revistas acadêmico-científicas brasileiras dos últimos dez anos, na área de
conhecimento das Ciência Humanas, entre os meses de abril a julho de 2011. O período de
abrangência foi de 1990 a 2011 com os descritores: “transexualização”, “transexualidade”
associados à “diversidade sexual”, “gênero”, “corpo” e “identidade”. A escolha para leitura e
estudo se deu pela presença no título, resumo e palavras-chave “transexualidade”, “processo
transexualizador”. O resultado deste estudo subsidiou a compreensão histórica de produção de
conceito e já apresentada anteriormente, no Capítulo 2.
Durante o período de fase exploratória da pesquisa, realizou-se busca on-line em sites
de relacionamento social como orkut, facebook e badoo, bate-papos – ou chat – da uol, ig e
bol – universo on line, internet grátis e Brasil on line, respectivamente - ou de grupos
organizados, servindo como uma fonte de informação complementar ao estudo, já que a
internet pode ser considerada uma relevante ferramenta de investigação (FLICK, 2009).

40

A investigação na internet consistiu uma tentativa de contato com os sujeitos, visto
que muitos transexuais, travestis e cross-dresser utilizam esse tipo de ferramenta virtual.
Entretanto, não conseguimos resultados satisfatórios, pois nos sites de relacionamentos e batepapos, muitos transexuais negaram-se a manter contato conosco, alegando ser o universo
virtual repleto de mentiras e chacotas, ainda que, informados acerca da pesquisa. Apenas dois
entrevistados foram encontrados via internet.
As buscas por transexuais masculinos foi mais complicada. Contrariamente, das 04
transexuais femininas que foram contactadas, apenas 01 negou-se a participar. Percebemos
ainda que estão em maior evidencia em movimentos organizados e redes sociais. No caso dos
transexuais masculinos, foram convidados 08 sujeitos de diferentes idades e locais, sendo que
apenas 03 aceitaram participar da pesquisa. Aqueles que não se interessaram em fazer parte
do estudo alegaram os seguintes motivos: preferir o anonimato e não querer contato com a
Psicologia.
O instrumento principal utilizado foram entrevistas narrativas, através da pergunta
geradora de narração (FLICK, 2009), que focaliza a relação dos participantes com sua
autoidentidade transexual:
- Gostaria que você me contasse a história da sua vida. O interessante seria você
começar pelo seu nascimento, infância, até o dia de hoje, e então, passar a contar
todas as coisas que aconteceram, uma após a outra, envolvendo a descoberta do seu
corpo, da sua sexualidade, o início do uso de roupas pertencentes ao gênero o qual
você se identificava, a sua modificação corporal. Você pode levar o tempo que for
preciso para isso, podendo dar detalhes, pois tudo o que for dito é importante para a
pesquisa e me interessa.

Este procedimento permite, ao final da narração, questões esclarecedoras da narrativa
que poderão ser realizadas pelo entrevistador (HUMEREZ, 1998).
Após o convite e obtenção do aceite por meio da assinatura do TCLE (Apêndice E),
agendamos as entrevistas, respeitando a disponibilidade dos participantes. Estas foram
gravadas em áudio do tipo MP4, e transcritas para posterior análise (Apêndice A). Exceto
duas entrevistas que não foram gravadas, uma a pedido da entrevistada e a outra por ter sido
on-line. As entrevistas foram realizadas individualmente. Vale salientar que o número de
encontros foi definido até que o participante inicie a repetição de informações.
O período da coleta dos dados, por meio das entrevistas narrativas, foi de setembro de
2011 a julho de 2012. O resultado da composição das Histórias de Vida encontra-se no

41

Capítulo 4. O eixo narrativo busca apresentá-las desde a infância até o momento da entrevista
(Apêndice B).
Em seguida, efetuamos a análise de conteúdo (Apêndice C) comparativa entre os
grupos intergeracionais e intrageracionais, buscando identificar os sentidos experienciados
pelos/as sujeitos representativos. Esse procedimento resultou na identificação das seguintes
categorias temáticas: brincadeiras de criança, autoidentificação, aparência de menina/menino,
transformações corporais, mudança no prenome, definição de papéis do outro na relação,
família e participação política.
Em nossa pesquisa, a classificação intergeracional - na escolha dos sujeitos - se deu
através da idade cronológica, com a suposição de que quanto mais velho, maior será o tempo
de experiência de sua transexualização. O recorte intrageracional permitiu identificar as
nuances de gênero de uma mesma geração. Investigamos quais as permanências e rupturas do
processo de transexualização entre transexuais masculinos e transexuais femininas. Não
poderíamos realizar, também, uma análise intrageracional através da idade cronológica, pois
há inconsistência entre os representantes de cada geração.
Por fim, vale salientar que, utilizamos de diário de campo (Apêndice D), a fim de
contextualizar a pesquisa, cotejar informações e registrar reflexões do pesquisador durante o
processo da investigação.

3.4.1 Participantes

Participaram desta investigação 06 Transexuais, sendo 03 masculinos e 03 e
femininos, com idade entre dezoito (18) a sessenta e um (61) anos, sendo dois representantes
de cada grupo geracional. Critério de inclusão na amostra é a autoidentificação enquanto
transexual,

transformação

do

corpo

e

utilização

de

vestimentas

conforme

esta

autoidentificação, independente da realização da cirurgia de transgenitalização.
Os sujeitos privilegiados, seus nomes fictícios utilizados para suas histórias de vida e
os procedimentos na busca de informações com cada um deles:

42



Gisele – Transexual feminina, modelo fotográfica, residente em uma capital do

Nordeste, 18 anos. Escolheu esse nome para sua história de vida por se identificar com a
modelo Gisele Bundchen. Entrevista narrativa presencial e gravada. Foram dois encontros
com a entrevistada.


Joana – Transexual feminina, universitária, residente em uma capital do

Nordeste, 30 anos. Não informou o motivo da escolha do pseudônimo para sua história.
Entrevista narrativa presencial e gravada. Foram dois encontros com a entrevistada.


Bridget – Transexual feminina, microempresária, residente em um interior do

Sudeste, 48 anos. Escolheu esse nome fictício por ser fã da atriz Bridget Bardot. Entrevista
narrativa presencial, mas não gravada por pedido da entrevistada. Foram anotadas as falas de
sua narração e algumas delas foram sugeridas por Bridget por ocasião da leitura posterior de
sua história de vida. Foi um encontro presencial para a entrevista e mais 03 por e-mail.


Arthur – Transexual masculino, militante, residente em uma capital do

Nordeste, 22 anos. Escolheu esse nome fictício porque era o mesmo de um personagem que
criou na infância. Entrevista narrativa presencial e gravada. Foram dois encontros com o
entrevistado.


Zé – Transexual masculino, funcionário público, residente no interior do

Nordeste, 48 anos. O pseudônimo escolhido é uma alusão à invisibilidade dos transexuais
masculinos. Entrevista narrativa on-line via msn. Foram 04 encontros com o entrevistado.


Sansão – Transexual masculino, funcionário público, residente em uma capital

do Nordeste, 61 anos. O nome escolhido para sua história de vida é uma alusão ao
personagem bíblico. Entrevista narrativa presencial e gravada. Foram três encontros com o
entrevistado.
As entrevistas narrativas foram transcritas (Apêndice A) e subsidiaram a composição
das histórias de vida (Apêndice B). Estas foram apresentadas aos participantes que poderiam
modificá-las. Assim conhecemos seis pessoas e as apresentamos como personagens no
capítulo 4.
Após essa apresentação, as histórias de vida foram submetidas à análise de conteúdo,
sempre cotejadas com as transcrições das entrevistas narrativas e com as anotações de diário
de campo do pesquisador (BARDIN, 2009, FLICK, 2009; MINAYO, 2002). Esta análise
buscou o estudo das frases, palavras e características mais recorrentes, dentro do texto
narrado, porque evidenciam elementos importantes da história do sujeito e de seu grupo

43

social, devendo ser categorizados (CAREGNATO; MUTTI, 2006; CHIZZOTTI, 2000;
FLICK, 2009).
O uso de categorias fundamentou-se em modelos teóricos e que foi utilizado antes da
pesquisa in loco e durante análise dos dados empíricos. Entretanto, podem ser modificadas, ou
não, a depender do que foi obtido na investigação prática (FLICK, 2009). Seguimos esta
proposta em que utilizamos três técnicas: síntese de análise de conteúdo, análise explicativa
de conteúdo e estruturadora de conteúdo. A primeira consiste em extinguir trechos menos
relevantes ou com significados idênticos e reduzir paráfrases análogas. A segunda técnica
incide em esclarecer fragmentos prolixos, dúbios e conflitantes. A última está relacionada à
tipificação e escalonação dos dados (FLICK, 2009).
Desse modo, pudemos acompanhar o fenômeno em processo e compreender a
construção da transexualidade, sua historicidade e suas nuances, envolvendo identidade e
sofrimento psíquico. Pudemos ainda, conhecer as Histórias de Vida dos (as) transexuais
privilegiados (as), as quais recontamos a seguir.

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4 HISTÓRIAS DE VIDA
Nesse capítulo, apresentaremos as histórias de vida de Gisele, Joana e Bridget
(representantes das transexuais femininas das gerações mais nova, do meio e mais velha) e de
Arthur, Zé e Sansão (representantes dos transexuais masculinos das gerações mais nova, do
meio e mais velha).

4.1 Gisele
“O meu pai, mãe, avó, sempre chamam de Gisele. Minhas amigas também me
chamam de Gisele. Eu também não me tiro como homem, não tenho mentalidade
masculina, malícia masculina, é... é isso, eu nasci para ser mulher, mas com um
erro.”

Gisele é a representante da geração mais nova, tem dezoito anos, nasceu em uma
cidade do Sudeste e é modelo fotográfico e de passarela. Mora com os familiares em uma
cidade do Nordeste. Está noiva de um rapaz e diz ser vista e aceita como mulher pela família e
pela comunidade aonde vive.
Relembra que na infância era tratada como menina, pelos familiares e colegas da
mesma idade. Preferia ter contatos com brincadeiras e brinquedos considerados específicos
para meninas. Expõe que sempre se viu como uma menina. “A diferença entre eu e uma
menina, é porque ela tem uma vagina e eu não tenho.”
“Sempre ganhei boneca, brinquedo de menina... meu pai ainda trouxe, uma vez, um
carrinho... eu quebrei e disse que queria boneca e não brinquedo de menino. Sempre
brinquei de boneca e ganhava boneca.”

Relata que usava roupas masculinas, mas seus cabelos eram longos e tinha
comportamento feminino, sendo considerada como uma garota pelas pessoas. Recorda que era
obrigada a se vestir como menino durante a infância porque ainda não apresentava seios, mas
que sempre as pessoas a consideravam menina. “Sempre diziam: ei, parece uma menina, de
cabelão e tudo.”
Aos doze anos veio com familiares morar no Nordeste. Durante essa época, começou a
adaptar as roupas masculinas, deixando-as mais femininas. “Eu dava nó na blusa pra ficar
curtinha, que nem mulher.” Diz não ter sofrido em sua nova cidade.

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“Eu achava que aqui por ser Nordeste, o povo não fosse informado como no Sudeste
e fosse sofrer um preconceito maior, só que não sofri. Eu notei que tem menos
preconceito que lá, lá no Sudeste tem muita homofobia, mas eu nunca sofri. Eu sou
mais acolhida aqui, a sociedade daqui... sabe quando você tá na barriga da mãe?
Pronto, foi assim que me senti aqui, acolhida.”

Relata que, na adolescência, seu pai não aceitava o fato de Gisele vestir-se e
identificar-se como uma mulher. Segundo Gisele, seu pai achava que a mesma tinha
“problemas mentais” e aos catorze anos foi levada a um psiquiatra.
“Bem, ele pensava que eu era doida, mas o psiquiatra disse que eu não tinha
problema mental nenhum, que eu apenas pensava como menina, tinha cabeça
feminina. Depois que o psiquiatra falou isso para ele, ele caiu em si e começou a me
ver como menina totalmente.”

Narra que não teve problemas, na adolescência, relacionados a preconceito ou
estranhamento das pessoas na escola e no bairro aonde reside. Recorda que ao sair com
amigas travestis, foi abordada por um grupo de rapazes que queriam agredir suas colegas.
Alega que um dos rapazes solicitou aos amigos que não “batessem na morena”, que era
Gisele. “Aí eu perguntei por que eles não iam bater em mim e ele disse que não era para
mexer. E as meninas também são bonitas, mas sabe... foi Deus que me protegeu, até hoje ele
me protege.”
Recorda que nunca usou hormônios ou outro tipo de medicamento para ficar feminina,
que seu corpo é feminino desde a puberdade.
“Na adolescência teve, claro, o problema da puberdade, como chamam... a minha
cintura é de mulher, nunca fiz cirurgia para deixá-la assim, corpo todo natural, todo
de mulher, nunca usei hormônio, essas coisas... Adolescência inteira como mulher.
Não nasce barba em mim. Ás vezes aparece um cabelinho, mas eu tiro com pinça,
nada demais. Nada de barba cheia.”

Na adolescência é chamada pelos familiares e amigos pelo prenome feminino. Na
escola, solicita que seu nome na lista de chamada seja com o nome social feminino. Gisele
conta que sua avó, às vezes, a chama pelo prenome masculino, sendo corrigida por sua mãe.
“Minha avó não aceita pela descendência europeia e tradicional, diz que na cidade dela
homem tem que ser macho, mas na rua ela me chama de Gisele.”
Seis meses antes de completar quinze anos, Gisele vai morar com a avó no exterior,
mas não se acostuma com o tempo e clima do local, preferindo voltar ao Brasil. Aos quinze
anos retorna a sua cidade natal, se envolve com um rapaz e passam a morar juntos. Recorda

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que nessa época, começa a pesquisar sobre transexualidade e travestilidade, alegando que
queria entender esse universo.
“Eu gosto muito de ler, adoro ler, na minha casa tem muito livro, gosto muito de ler
sobre transexual e travesti, não descarto falar sobre isso. Eu comecei a pesquisar
mesmo, quando comecei a ter um raciocínio, com meus 15 anos que comecei a
procurar, porque antes você pensa como criança, não liga para saber sobre isso.”

Gisele conta que aos dezesseis anos inicia sua carreira de modelo, posando seminua
para o calendário de uma loja de artigos femininos. Nessa mesma época, participa de
concursos de beleza femininos. Já participei antes do Miss local, Miss Brasil. Só nunca
participei de Miss Gay, sempre participei de concurso “homem e mulher.”

Devido às

participações nos concursos de Miss e às viagens de um Estado para o outro, perdeu dois anos
letivos no colégio, precisando recuperar em seguida e terminar o ensino médio.
Relembra que aos dezessete anos retorna ao Nordeste, iniciando seu curso técnico de
Moda. Por problemas relacionados à falta de tempo, devido aos concursos de beleza e ao
trabalho de modelo, resolve trancar o curso com poucos meses para seu término. Nessa
mesma época, conhece um rapaz que se torna seu noivo. “Com meu noivo não sou ativa,
sempre como mulher, a genitália eu não uso.”
Aos dezoito anos, Gisele pensa em realizar a cirurgia de transgenitalização, mas fora
da cidade e por meio de serviço particular, pois não acredita que o Estado tenha profissionais
capacitados para esse procedimento cirúrgico. Afirma, ainda, que uma conhecida realizou a
transgenitalização no exterior, em clínica particular, e obteve resultados satisfatórios.
“Não quero fazer pelo SUS, quero fazer particular, menos aqui, não tenho muita
confiança do pessoal daqui, não daria meu corpo, não iria me expor aos profissionais
daqui. Tive um acidente e fui mal atendida pelos profissionais daqui, em um
hospital. Se por uma besteira, o atendimento foi ruim, imagine algo mais
complicado como uma cirurgia.”

Gisele afirma, ainda, que nunca se sentiu pertencente ao movimento transexual. Não
participa de movimentos sociais LGBT, pois não se sente vinculada aos mesmos. Relata que
sempre foi mulher. “A única coisa que eu não digo “eu sou realmente uma mulher” é a
genitália, mas nunca tive dúvida.” Gisele considera que há diferenças entre ela e os
transexuais e travestis.
“Nem aos transgêneros me vinculo ou me identifico. Não passei por um processo.
Olha só, quando você é homossexual e quer passar para trans... hum... deixa eu ver,
eu tenho um amigo que é homossexual e começou a passar a ser travesti, mas ele

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tem um pensamento masculino, ele tem a mentalidade masculina, jeito de falar. Se
você reparar, eu sou feminina, tenho mentalidade de mulher, eu choro muito, tem
vezes que começo a chorar do nada, que nem mulher, porque mulher é emotiva.
Porque homem não chora, porque homem tem aquele negócio de pegar no saco e
coçar, falar gíria.”
“Transexual é aquele homem que quer tirar o órgão e virar mulher. Travesti é aquele
que quer parecer com uma mulher, mas continua homem, quer ter o sexo, quer usar,
já a transexual quer tirar o sexo. Como fui criada desde pequena como menina,
descarto a possibilidade de ser travesti e transexual. Travesti é o homem que se
traveste, que quer parecer com mulher... eu não, eu já nasci mulher, com corpo de
mulher, semelhança de mulher.”

Gisele afirma que uma transexual só pode ser considerada mulher, se não apresentar
feições masculinas. Considera vulgar homens que colocam roupas femininas e apresentam
corpo masculino. Conta que aconselha o vizinho a não se travestir, pois “ele pode ser gay,
mas não pode ser mulher, que ficasse isso para ele.” Afirma que tal atitude faz com que as
pessoas tirem “chacotas” e partam para a agressão.
“Você já viu mulher com barba e voz grossa? Para mim, mulher... se tá pensando em
ser mulher, que tome hormônio logo no começo, antes da puberdade. Não acho
bonito, uma pessoa que se parece com homem e coloca um vestido, como tem um
aqui nessa rua, lá no final. Ele coloca um vestido, mas com marca de barba, altão,
bonito até, mas é motivo de chacota. Daqui a pouco, ela passa por aqui, com as
putarias dela, de sainha, porque ela tem... melhor, ele tem 27 anos, eu falo ele,
porque pra mim, ele não é ela...é ele. Pode tá de saia o que for, de barba na cara, é
homem.”

Gisele almeja terminar seus estudos no curso técnico de Moda, juntar dinheiro para
sua cirurgia de transgenitalização e se casar com seu noivo. “Quando terminar meus estudos,
vou fazer a faculdade de moda, quero unir minha profissão de modelo aos estudos.”

4.2 Joana

“Eu queria me vestir de mulher, me maquiar, aí nisso eu fui fazendo aos poucos,
para não chocar minha família e meus amigos.”

Joana é a representante da geração do meio, tem 30 anos, é universitária, militante de
movimentos LGBT. Mora com familiares - em uma cidade do Nordeste - que são evangélicos
e sente-se excluída. “Porque você sabe, a família no lugar de ajudar é a primeira que tem
preconceito, que acaba com a vida e detona a vida do homossexual e transexual.”

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Quando criança relembra que era diferente dos outros meninos e não gostava de
brincadeiras masculinas. Alega que sempre preferiu andar com grupos mistos, de meninas e
meninos.
“Eu brincava mais... na verdade, eu não brincava com meninas. Até hoje eu não
gosto muito de andar com meninas, não sei porque, pois a maioria gosta, vê logo que
é gay, aquele rapaz no meio de um monte de menina. Eu não, não gostava. Eu
gostava de andar com menina e menino, tudo junto. Mas na hora das brincadeiras,
era assim... homem só gosta de brincar de bola, né? Mas eu não queria, não vejo
graça, em ficar olhando e correndo atrás de uma bola. Aí inventava que o pé tava
doente, eu ficava olhando os meninos jogando bola. Ai eu ia brincar com as meninas
de boneca, tava nem aí, até porque as meninas são mais compreensivas, né? Eu
brincava de boneca, de casinha, escondido, quando ia na casa delas. Era assim a
minha brincadeira.”

Joana, nos passeios com amigos, ia à praia olhar os garotos jogar futebol. Caso
quisesse olhar para algum rapaz bonito, certificava-se que ninguém a estava observando, pois
tinha medo que a descobrissem.
“Quando eles falavam de meninas, eu ficava voando, tapeava: “- ah... é bonitinha
essa menina”, mas parava por aí, não tentava me aprofundar no assunto. Aí quando
aparecia um cara bonitinho... e isso quando eu era criança, que sempre rola isso, né?
Eu tinha que primeiro olhar para todo mundo, para poder olhar para aquele cara,
para ver se alguém tava olhando, para não descobrirem, pois eu tinha medo que
descobrissem.”

Recorda que, durante a infância até a adolescência, escondia a sua orientação sexual e
afetiva por rapazes. “Foi desde a infância até a adolescência assim, escondendo, escondendo.
Só que aos poucos eu fui vendo que tinha pessoas que eram iguais a mim.” Sua rotina diária
incluía o mesmo trajeto. “Então eu era um pouco reprimida, não tinha contato, era da igreja
pra casa, da casa pra escola.”
Aos 17 anos desconfiava que um amigo fosse homossexual, resolvendo, então,
conversar com o mesmo e confirmar as suas suspeitas. Encontrou-se com o colega e
perguntou sobre a sua homossexualidade. O amigo confirmou que era homossexual e isso fez
com que Joana se assumisse como gay. “Eu olhava para ele e tinha um pressentimento que
ele era igual a mim, que era gay... nessa época, eu pensava que eu era gay.”
Na adolescência andava com muitos rapazes gays, mas se sentia diferente deles. “Eu
era transexual, porque eu saía com gay e tudo, usava o cabelo curtinho, que nem menino e
tal, só que era diferente, porque eu tinha vontade de me vestir de mulher.” Ao final dos 17
anos resolveu assumir para si mesma que era transexual.

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“Eu só não sabia definir, o que era. Eu comecei a me definir que não era gay, que
não deveria me vestir como homem e nem gostava de viver como homem, na
adolescência... que eu queria me vestir que nem mulher e ser mulher.”

Relembra que estava começando a sofrer perseguições e ser hostilizada por membros
da sua família. Joana alega que tal fator fez com que iniciasse o processo de transexualização
de forma gradativa, para “não chocar”. Alternava entre roupas masculinas e femininas no
cotidiano. “Ai eu fui vestindo uma blusinha feminina, com calça masculina ou uma blusinha
masculina com uma calça feminina.” Em seguida, aos 18 / 19 anos, aderiu ao uso de sapatos
femininos e permitiu o crescimento dos cabelos, além da utilização de hormônios. Conta que
constantemente era alvo de preconceito. Com o passar do tempo, devido a orientações de
colegas, resolveu iniciar a transformação corporal e visual.
“Eu achava que deviam me aceitar na marra, se alguém me chamasse de viado... aff,
ninguém ousasse me chamar de viado, que eu partia pra briga... mesmo super
maquiada, louca, deslumbrada, eu queria respeito. A violência diminuiu, hoje em
dia, eu entro em bar, show, passo despercebida, ninguém me reconhece como
transexual, travesti... só se eu falar, aí o povo reconhece pela voz.”
“Aí eu fui amadurecendo, conhecendo pessoas que me orientassem, revi meu
comportamento, que não era pra tá andando vulgar, aí já comecei a ver meu modo de
vestir, aos poucos para não chocar o povo, fui tendo um pouco de noção, me dei ao
respeito para ter o respeito.”
“Eu acho necessário esse processo de transformação, uso de hormônios, para que
ela, a transexual, tenha uma certeza, se autoafirmar. Ela tem que modificar o corpo,
ela não pode... pronto, já que tocamos nesse assunto... eu acho ridículo esses caras
que se dizem travesti e transexual e tem um corpo totalmente masculino, barba, não
tem nem a decência de tirar a barba. Coloca vestido, se maquia... fica com marca de
barba, músculos, isso é ridículo. Servem de mangação pra o povo. O processo de
hormonização para que seu corpo fique feminino e não sirva de mangação para os
outros. O processo de transformação é importante para você e para as pessoas que
vão te ver. Agora o que acontece, isso na maioria dos casos, os travestis e
transexuais não tem dinheiro para a transformação e fazem por conta própria.”

Joana conta que devido ao processo de transformação foi instigada a se retirar de sua
residência, pelos familiares residentes, além de sofrer violência física.
“[...] queria que eu fosse embora, que eu fosse expulsa. Mas eu fui resistindo. [...] Eu
me defendia, ia para a agressão... se eu não fizesse isso, baixasse a cabeça, eu ia
acabar como muitas transexuais e... ou seja, GLBT, porque engloba tudo, na rua. Se
eu não me defendesse eu ia tá morta, porque eu não ia fazer programa, eu não me
prostituo, eu posso morrer de fome, mas não me prostituo.”

Segundo Joana, as transexuais e travestis encontram grandes dificuldades de adentrar
no mercado de trabalho, pois há preconceito por parte da sociedade.
“Na questão do emprego, você vê muitos gays em lojas trabalhando, mas você não
vê uma travesti, uma transexual, porque as pessoas acham que chocam. Apesar de

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ser pouca hipocrisia, porque choca na hora, porque vá na orla, nos bares de beira de
esquina, uma transexual coloca um vestido e fica com vários caras. Choca na hora,
no meio dito familiar, o shopping...”

Conta que prefere relacionar-se com homens heterossexuais, ao invés de
homossexuais. Segundo Joana, caso um homem apresente trejeitos femininos, é descartado,
pois não atende aos requisitos. Desconsidera pretendentes que não estejam seguros de sua
sexualidade e não a vejam como mulher. “A transexual tem a cabeça feminina, ela não vai
ser ativa na relação, o parceiro vai ser o homem e ela a mulher.”
Aos 26 anos resolveu submeter-se ao vestibular, sendo aprovada. Na universidade não
sofreu nenhum tipo de discriminação, o que considera “sorte”. Entretanto, no inicio, notou um
“estranhamento” por parte de professores e alunos, principalmente porque na caderneta de
chamada seu nome estava no masculino.
“Eu pedi meses depois que me chamassem pelo nome feminino, porque toda vez que
chamavam o nome de batismo na chamada, todo mundo me olhava e dizia que
pensava que eu era mulher.”
“Tem gente que não se acostuma e esquece e chama pelo nome masculino. Eu acho
assim, eu tenho uma aparência de mulher, me comporto como mulher, sou muito
feminina, eu passo despercebida em shopping, loja, show, exceto quando eu falo... aí
vem um cara me chamar pelo nome de batismo, é demais, né? Mas é normal,
algumas pessoas se atrapalham, mas é normal. Mas você ser referida como homem é
chato, me dá raiva e me magoa, o pessoal pensa que não, mas magoa, é
desrespeitoso.”

Aos 30 anos, além de estudante universitária, Joana é militante dos direitos LGBT,
participando de movimentos atinentes aos transexuais. Ainda não realizou a cirurgia de
transgenitalização, mas está iniciando um processo de reabertura de um núcleo – com
profissionais capacitados – que desempenha esse tipo de intervenção cirúrgica. Mesmo
lutando pelo funcionamento desse espaço, Joana alega que existem algumas dificuldades
relacionadas às limitações no serviço ofertado. “Iria ter atendimento com psicólogo,
psiquiatra... e ginecologista, nem sei pra que, né? Porque ginecologista é pra coisas
femininas, médico pra mulher... devia ser era urologista.
Joana sonha ser independente e poder expressar a sua identidade, sem precisar
responder às agressões e preconceitos em casa. “-Meu Deus, eu vou aguentar, vou tolerar,
vou estudar, vou fazer uma faculdade, não vou deixar que me humilhem”.

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4.3 Bridget

“Eu sou assim, bem vestida e mais caseira, com meu marido, porque quero, porque
acredito que uma mulher casada deve ser discreta e deve respeito a si mesma e
ao marido.”

Bridget é a representante da geração mais velha, tem 48 anos, nasceu em uma capital
do Sudeste, atualmente reside em uma cidade do interior aonde é microempresária. É casada e
seu marido a vê como mulher, assim como as pessoas da comunidade em que vive.
Quando criança, mais ou menos com 07 anos, lembra que gostava de assistir televisão,
principalmente desenhos que tivessem personagens femininas e desde esta época, apesar de se
considerar um menino, se percebia como diferente. Esse hábito era questionado por seu pai
que a obrigava a brincar na rua com outros meninos. No entanto, se achava diferente dos
outros meninos, por ser delicada e não gostar de jogar futebol e bolinhas de gude. Relata que
os outros garotos estranhavam seu comportamento, mas que nunca a bateram, por a
considerarem fraca. Preferia jogar amarelinha, mas em grupos mistos, pois “não queria ser
chamada de maricas por brincar apenas com meninas.”
Aos 12 anos começa a frequentar cinemas da capital, assistindo a vários filmes de
atrizes como Bridget Bardot e Marylin Monroe. Relembra que repetia poses e gestos dessas
artistas em frente ao espelho, imaginando ser igual às mesmas. Esse comportamento era um
misto de sentimento de culpa e satisfação por imitar essas atrizes.
Narra que na adolescência, olhava revistas de conteúdo erótico junto aos seus amigos,
mas que sentia excitação em ver os amigos excitados e não com as figuras das mulheres nuas.
Nessa época, começou a questionar que poderia ter “algo ruim no corpo”, procurando ajuda
de um familiar que indica que procure um padre. Este solicita que rezasse demasiadamente.
Bridget conta que cogitou em se tornar padre e todos os dias rezava, principalmente quando
assistia ao seriado das “Panteras” e imaginava-se sendo a atriz Farrah Fawcett. Recorda que
no período dos 14 aos 20 anos, sempre rezava a cada pensamento que remetesse a se imaginar
como uma mulher. Afirma que era um garoto confuso, pois na época não tinha acesso a
informações sobre transexualidade, travestilidade e homossexualidade.
Bridget conta que aos 20 anos foi forçada a ir a um bordel com seu pai, pois ainda era
virgem e não tinha namorada. Relata que não gostou da experiência, pois não queria manter

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relações sexuais com a prostituta, mas ser aquela mulher. “Eu não gostava de mulher, eu
queria ser uma... olha o dilema.” Afirma que manteve relações com uma mulher por conta do
pai que a esperava do lado de fora do quarto. Segundo Bridget, depois desse episódio, seu pai
parou de “ficar em cima”, fazendo cobranças.
Aos 23 anos, conclui seu curso de nível superior, iniciado aos 19 anos. Relata que
nessa época, foi a uma boate com uma prima e que se assusta com uma travesti que encontra
no bar e resolve ir embora. Ao procurar a prima, a encontra beijando outra mulher. Esse fato a
faz entender que a prima é lésbica e esta afirma que Bridget é gay. Nesse mesmo dia, Bridget
encontra um rapaz e mantem relações sexuais. Considera que essa foi sua primeira perda de
virgindade, porque não era algo forçado.
Dois anos depois, é aprovada em um concurso público e decide dividir apartamento
com uma pessoa da família e assumir ser homossexual, sendo hostilizada pela maioria deles,
exceto sua mãe. Nesse meio tempo, Bridget narra que resolveu travestir-se e sofreu
preconceito por parte dos seus superiores no trabalho, mesmo trajando roupas sociais como
blazers femininos, saias longas e coque nos cabelos. Este fato faz com que peça exoneração,
aos 29 anos de idade e com 04 anos de exercício profissional.
Bridget conta que uma reportagem na televisão da cirurgia de uma transexual
brasileira famosa faz com que decida viajar para o exterior para realizar a transgenitalização.
No exterior teve que se prostituir, pois não conseguiria outro emprego por ser travesti.
Relembra que a maioria dos clientes procurava travestis masculinizadas e ativas, o que não a
satisfazia, pois não gostava de penetrar. Suas economias eram guardadas para investir em
hormonização e próteses de silicone para ficar mais feminina.
Aos 30 anos, é pedida em casamento por um de seus clientes. Este questionou se
Bridget era homossexual, travesti ou mulher. Bridget responde que se considerava mulher.
Seu marido financiou os custos da cirurgia de transgenitalização, antecedido por dois anos de
um processo transgenitalizador, seguido de tratamento com fonoaudiólogo para feminilizar a
voz. Conta que ao se casar, tornou-se dona de casa. Entretanto, antes do casamento solicitou a
mudança do prenome, entrando na justiça e conseguindo a causa.
Aos 34 anos, resolve retornar ao Brasil e entra em contato com os familiares, sendo
bem recebida pela mãe e uma prima, enquanto que os demais a consideram uma

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“aberração.” Aos 39 anos, Bridget resolve fazer a raspagem do pomo de adão, pois acredita
que uma mulher não apresenta essa característica corporal. “Resolvi fazer a raspagem do
pomo de adão, por questões estéticas, sabe? Mulher de gogó não existe, né?” Esse período
pode comprar uma casa onde reside e trabalha. Seu marido também é empresário.
Bridget prefere ser conhecida como mulher e não como transexual. Para isso mantém
contas em redes sociais verdadeiras e “fakes”. Nestas apresenta fotos de atrizes e nomes
fictícios com contatos de outras transexuais. Entende que deve se proteger, pois será tratada
de forma diferente e julgada.
“Lutei muito para ser feminina e ser mulher, não acho interessante que comecem a
me tratar mal porque no passado fui uma pessoa de corpo masculino e cabeça de
mulher... As pessoas julgam sem saber, pensam que trans é homem que cortou o
pênis e não é... parece que ser homem tem que nascer com pênis e mulher com
vagina, não entendem o interior. Por isso prefiro viver no anonimato e contar a
poucas pessoas que sou transexual.”

Para ela o processo de autoidentificação foi como gay, depois como travesti e por
último, como transexual.
“Sim..sou uma mulher transexual... não fico dizendo que nasci com corpo de mulher
e acho que ser mulher ou homem é tornar-se, sabe? Eu tive o azar de nascer com
corpo masculino, mas sempre tive alma feminina, o problema é que demorei pra
notar que era trans, acho que o medo não permitia. Eu acho que primeiro me vi
como gay, depois travesti e por último trans, mas até quando eu era gay e me
travestia, eu via que queria era mesmo ser mulher, entende?”

Narra que nunca participou de movimentos LGBT, pois acredita que não há militância,
mas desentendimentos entre seus membros. Segundo Bridget, há discriminação entre
homossexuais, travestis e transexuais. Afirma que não tem preconceito contra homossexuais e
travestis, pois cada um tem suas características e modos de pensar. “Eu não critico homens
afeminados que rebola, usam vestidos e falam fino mesmo com barba, porque tenho que levar
críticas por modelar meu corpo de acordo com o que acredito que sou?” Afirma que apenas
não tolera comportamentos vulgares como uso de palavrões ou exposição sexual. Considerase uma mulher empresária, casada, discreta, que deve cuidar do marido e da sua casa.

4.4 Arthur

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“Quando eu era criança, fiz uma historinha, e coloquei o nome do personagem do
menino de Arthur. Era um livrinho de cartolina que você abria as páginas e as
figuras ficavam em pé. Aí eu fiz a história do Arthur, que crescia, casava, tinha
filhos e era médico... e vivia feliz.”

Arthur é transexual masculino, representante da geração mais nova, tem 22 anos e
reside em uma cidade do Nordeste. Militante LGBT, luta pela visibilidade dos transexuais
masculinos.
Conta que na infância se sentia diferente das outras meninas, mas não sabia explicar o
motivo. Nessa época não se considerava menino ou transexual. Recorda que se considerava
uma menina, pelo fato de ser criado como uma garota por seus pais. “Eu sabia que era
menina, porque fui criado como menina, com nome de menina, então achava que era
menina.” Lembra que as outras crianças questionavam se era “menino ou menina”, devido ao
seu jeito masculino. Preferia participar de brincadeiras relacionadas ao universo masculino.
Relembra que até os onze anos de idade evitava se expressar, com medo das pessoas
acharem que era masculinizado. Ao completar onze anos, resolve cortar os cabelos, deixandoos bem curtos. Alega que não foi uma atitude consciente, pois a intenção não era ficar igual a
um menino, mas era algo que queria fazer. “Eu não sabia que ia parecer um menino, mas eu
queria cortar o cabelo daquele jeito, não sei por que, vai ver era algo inconsciente.” A
família não aprovou a mudança de visual de Arthur, afirmando que o mesmo parecia um
homem com o novo corte de cabelo. A partir desse episódio, Arthur passou a tentar se
“encaixar no universo feminino.”
Conta que não se sentia confortável em desempenhar um papel ao qual não se
identificava, passando a apresentar um quadro de depressão. Recorda que se autoidentificava
como uma mulher heterossexual, devido à “cultura heteronormativa” a qual fazia parte.
Narra que aos 16 anos, resolveu parar de tentar ser feminino. Relembra que na escola, não
sofreu preconceito por parte dos colegas, pois era um grupo em que havia diversidade de seus
membros.
“E eu já vivia em um ambiente LGBT, pouco heteronormativo, porque meus amigos
a maioria era mais tranquilo, a gente estudava em um colégio que havia diversidade,
no grupo tinha negros, pessoas de baixa renda, classe média, heteros, gays, lésbicas,
era como se fosse uma família, não sofri preconceito durante esses 10 anos de escola
e mesmo depois de terminar, tendo contato com esses colegas, não sofri preconceito
por parte deles.”

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Ao completar 18 anos, descobre que sente atração por garotas e se autoidentifica como
lésbica. Segundo Arthur, o fato de se assumir lésbica, fez com que tivesse maior liberdade em
apresentar trejeitos masculinos. Afirma que não teve problemas com a família, pois sempre
criou autonomia perante a mesma. Relembra que convidava a namorada para sua residência e
a beijava na frente dos pais. Entretanto, alega que a autoidentificação como lésbica durou um
ano.
Segundo Arthur, ao assistir um seriado televisivo, se identificou com um personagem
transexual masculino. Desde então, iniciou o seu processo transexualizador, passando a vestir
roupas masculinas, usar “colete compressor” para esconder os seios, tomar hormônios e
procurar serviços de saúde que ofertassem intervenções cirúrgicas para “transformações
corporais”. Recorda que deixou de tomar antidepressivos e a sentir-se melhor consigo
mesmo. “Parei de tomar antidepressivos, comecei a me equilibrar mais, me encontrar dentro
de mim mesmo.” Devido à sua transexualização, não obteve apoio dos familiares, sendo
ofendido pelos mesmos, culminando em sua saída definitiva da casa dos pais.
Narra que ao longo do processo, sentiu dúvidas em relação a sua identidade transexual
e passou a pesquisar em sites sobre a temática, redes sociais e blogs acerca da existência de
outros transexuais masculinos e se apresentavam as mesmas características. Conta que as
dúvidas cessaram ao observar que havia características suas em outros transexuais.
“Eu comecei a pesquisar em sites na internet, em blogs coisas relacionadas à
transexualidade, conheci outros transexuais em redes sociais, comecei a conversar
com eles, pesquisar, para saber mais, porque como era uma coisa que não esteve
desde sempre na minha cabeça, eu comecei a ter dúvidas, mesmo começado o
processo de transexualização com 6 meses, eu ainda tinha dúvidas se era transexual
ou não, eu procurava características em outros homens transexuais para ver se eu
também as tinha e se era transexual mesmo.”

Arthur conta que - durante o início da transexualização - não se relacionou
sexualmente com outras pessoas. Meses depois, descobriu que sentia atração, também, por
rapazes, passando a relacionar-se com homens homossexuais. Arthur acredita que o fato de se
autoidentificar primeiramente como mulher heterossexual, depois lésbica e, por fim,
transexual bissexual, o faz subverter a ideia de que todo transexual masculino deve seguir
uma masculinidade estereotipada. Afirma que expressões exageradas de masculinidade por
parte de alguns transexuais soam forçadas. Alega que sua geração parece ter a “mente mais
aberta” em relação a outras gerações.

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“Tem transexuais que tem problemas com isso, que acham que devemos ser os mais
masculinos ou machões possíveis, algo bem estereotipado. Eu acho até que eu
subverto isso, porque veja só, eu antes achava que era uma mulher heterossexual,
depois comecei a me assumir como lésbica, ai depois me descobri como transexual.
E durante um tempo, passei a não ficar com ninguém, na transexualização... Aí
quando voltei a ficar com alguém, voltei ficando com homens... homens gays.”
“Mas acho que esse meu pensamento e de alguns amigos meus é mais da nossa
geração mesmo, a gente tem uma cabeça mais aberta em relação a isso. Acho que
não tem a necessidade de ficar provando que é homem, uma masculinidade
exagerada, acho que a minha masculinidade é o suficiente para acreditar que sou
homem. Eu acho um absurdo quem exagera e tenta ser algo que vai além dos seus
limites. Eu não tenho um corpo totalmente masculino, é como se eu não tivesse
autoestima suficiente para me expressar com minha autoidentificação por completo,
mas também eu não vou forçar, entende?”

Arthur acredita que a transexualidade é um fenômeno cultural, social, natural e não um
transtorno mental. “Um fenômeno natural também, não acho que seja totalmente social e
cultural porque não acho que a sexualidade e o gênero sejam exclusivamente cultural e
social”. Discorda de argumentos relacionados a “anomalias cerebrais” ou tendências automutilatórias e de ideação suicida. Alega que há conflitos entre o corpo e mente devido às
pessoas tentarem se ajustar a normas “hetenormativas.”
“Não acho que seja doença mental, acho que seja um fenômeno... se existe uma
doença mental, seria atrelada a isso, uma decorrência de fatores psicossociais de
preconceito e que a cultura da gente nos obriga a fazer parte de uma norma
heteronormativa e a gente se sente obrigado a seguir e acreditar nessas normas.”

Acredita que a invisibilidade dos transexuais masculinos se deve à sociedade ser
machista, sexista e heteronormativa. Afirma que homens transexuais não são “uma identidade
sexual visível” por não apresentarem um “falo biológico”, e, portanto não são nem “objeto de
desejo” e nem são representativos de uma sexualidade “existente”. Segundo Arthur, o mesmo
preconceito sofrido pelas mulheres, os homens transexuais também sofrem, por essa ausência
do falo biológico. Acredita, ainda, que homens transexuais apenas ganham notoriedade ao
desempenharem atividades consideradas femininas, como o caso do homem grávido ou do
ator pornô transexual masculino que vende sua imagem como o homem que é penetrado pela
vagina por outros homens nas relações sexuais.
“O homem é visto como sexualizado e a mulher não, por causa do falo biológico... e
nós trans masculinos somos considerados e colocados na categoria feminina. A
nossa sexualidade não é vista, porque nós não temos um falo biológico, um pênis
biológico.... e as trans femininas se tornam um objeto de desejo das
heterossexualidades masculinas, porque elas são figuras femininas, portanto objeto
de desejo de uma masculinidade dominante e sua sexualidade existe, porque elas
têm o falo. Já nós, trans masculinos, acontece ao contrário, não somos objeto de
desejo... e nem existimos, não temos o falo.”

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Arthur conta que essa invisibilidade auxilia aqueles que preferem viver no anonimato,
pois considera que a transexualização de transexuais masculinos apresenta uma discrição
maior que o das transexuais femininas. Afirma que os resquícios de traços masculinos em
transexuais femininas apresentam maior evidência que os femininos em transexuais
masculinos.

“Fora que é muito mais fácil a gente viver anônimo, porque podemos

transformar nosso corpo e obter um resultado sem que os outros percebam que somos trans.”
Expõe que muitos buscam o anonimato para não sofrerem preconceito e discriminação.
Em relação aos movimentos sociais LGBT, Arthur conta que há preconceito entre os
mais diversos segmentos, entre gays masculinos e afeminados; lésbicas criticando transexuais,
transexuais com travestis, transexuais homens com transexuais mulheres e vice-versa etc.
Afirma que não concorda com esse tipo de discriminação, pois seus membros deveriam
desconstruir preconceitos. “Muitas pessoas que são do movimento dizem que querem
desconstruir essa heteronormatividade, mas não conseguem por completo, sem nem
perceberem.”
Narra que há mais ou menos 01 ano, os transexuais masculinos foram ganhando
visibilidade graças à publicação de uma obra auto-biográfica de um transexual masculino, sua
decorrente aparição na mídia e à participação em eventos como o XVIII Encontro Nacional de
Travestis e Transexuais. Considera a união e o desenvolvimento da cultura transexual
masculina preponderante para a inserção do seguimento no movimento social e na sociedade.
Entretanto, afirma que a construção dessa cultura é algo que deve surgir naturalmente ao
longo do processo de edificação do movimento dos transexuais masculinos e do
estabelecimento do seguimento populacional como identidade socialmente reconhecida e auto
reconhecida.
“Isso cabe a nós trans homens, nos unimos e construirmos uma cultura, de todo esse
movimento... eu acho que isso vai contribuir para que muitos construam esse
posicionamento político enquanto homem trans, com significado social e político.”
“Mas quando criarmos um grupo e for unido, acho que vai surgir naturalmente.
Como as trans femininas que tem as culturas delas associadas a coisas artísticas
como shows de drag, toda uma cultura que vem do iorubá e da cultura de terreiro... a
gente ainda não tem isso, mas na união, com o grupo, pode ser que surja.”

Aos 22 anos, Arthur participa da criação de uma associação que tem como objetivo
promover os direitos humanos da população transmasculina e LGBT em todo território
nacional. Além disso, participa de sessões particulares com psicólogo e psiquiatra com o

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intuito de produção do laudo para acesso à sua cirurgia, visto que se encontra em processo de
hormonização e transexualização há mais de dois anos. Afirma que ao resolver as pendências
atinentes ao processo de transexualização, dará prosseguimento a seus projetos de vida
maiores, como cursar o ensino superior nas áreas das ciências humanas ou de saúde e se
estabelecer no mercado de trabalho formal.

4.5 Zé

“Me chame de Zé.....eu sou um dos tantos zés desse Brasil, um anônimo das
oportunidades.”

Zé é o representante da geração do meio, tem 48 anos, nasceu em uma cidade do
interior do Nordeste. É funcionário público e militante em movimentos LGBT. Mora com a
esposa em uma região metropolitana de uma capital nordestina.
Estudou, quando criança, em um colégio católico, apesar de sua família pertencer à
outra religião. Recorda que se sentia diferente das outras crianças. Era obrigado a usar roupas
femininas e comportar-se como uma menina, por medo de represálias dos pais. Relembra que
suas brincadeiras infantis se resumiam ao universo feminino, não podendo brincar com
brinquedos e jogos considerados para meninos. Afirma que desde pequeno sentia atração por
moças.
“Desde cedo descobri q eu era diferente e as pessoas que me cercavam também...
lembro quando eu tinha 4 anos minha mãe foi chamada no colégio que eu estudava,
pela direção... o colégio era de irmãs, e a freira se dirigiu pra minha mãe e falou que
eu tinha um problema, que eu era uma criança estranha...eu nunca esqueci o olhar e
as palavras daquela freira... Eu sinto assim, desde criança eu olhava para o meu
interior e encontrava um menino... mesmo que quando eu tomava banho e me via
diante do espelho lá refletido um corpo de mulher. Eu tinha inveja dos gestos e
brincadeiras mais simples dos meus irmãos, eles eram livres no ser. Eu era um
prisioneiro de meu próprio corpo. Eu não sei onde aprendi até certos hábitos e
maneiras masculinas, elas vinham naturalmente de dentro de mim.”

Zé afirma que desde pequeno sentia atração por moças. Relembra que ficava fascinado
pelas mulheres que frequentavam os cultos da igreja que participava. Conta que ao descobrir
que era “homossexual”, passou a sentir vergonha e culpa.
“Mergulhei na igreja nas doutrinas , nas cobranças e julgamentos...e cada vez mais
forte eu sentia a divisão dentro de mim...o homem q existia , e as origens e doutrinas

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q foram plantadas dentro de mim. Eu procurava ser bom em tudo que eu fazia... ser
o melhor da sala de aula...ser o melhor filho... ótimo amigo...eu precisava preencher
a vergonha, o vazio , e a voz que gritava dentro de meu ser... que eu era um homem
em um corpo errado, um corpo de mulher, porque eu nunca tive um corpo
feminino.”

Aos treze anos recorda que seduziu uma moça, mas ficou nervoso durante a relação
sexual, pois não sabia como agir naquele momento. Um ano depois ingressou no movimento
estudantil, tornando-se líder político com o passar da experiência. “E quando alcancei o nível
de líder, mais forte o homem vivia dentro de mim.” Alega que sempre lutou por seus direitos
e ideais.
Dois anos depois, esteve preso por questões políticas e, quando foi libertado, foi para
o interior para evitar perseguições. Nesse meio tempo, Zé passou a adotar uma postura mais
masculina.
“Passei alguns meses no interior... lá conheci uma jovem, linda religiosa que tinha
missão de me converter. Só que terminou eu convertendo a moça e vivemos um
lindo caso de amor. Por esse amor, eu enfrentei o mundo e rasguei a bolha que me
envolvia, assumi minha homossexualidade, minha orientação e meu amor por essa
moça. Abandonei tudo e passei a morar na cidade do interior com essa moça. A
partir dai assumi minha aparência masculina: postura, roupas, comecei a fumar.”

Recorda que durante esse período, não tinha muito contato com seus familiares. Certo
dia, Zé descobre que sua mãe estava doente e dormia seguidamente vários períodos do dia e
da noite. Afirma que se sentiu culpado e com remorso pelo estado em que sua mãe se
encontrava.
Foi nessa época que decidiu engravidar e permitir que seus pais adotassem e criassem
sua criança, pois assim poderia oferecer à sua família a filha que eles queriam. Como sua
companheira não concordou, terminaram o relacionamento e Zé, então, voltou para a capital,
precisamente para a casa dos pais.
“Na minha cabeça eu era o errado... eu que tinha escolhido ser assim. Pensei, e
resolvi que se eu tivesse uma filha ela ocuparia o meu lugar e meus pais ficariam
felizes. Meu pai rejeitou a gravidez. Foi uma gravidez difícil, toda acompanhada,
porque eu só fiz sexo uma vez, não tinha abertura para nascimento do bebê. Enfim,
nasceu uma menina e ela foi registrada por eles e mora com eles, e cresceu
conhecendo e convivendo com minhas conquistas e descobertas.”

Aos dezoito anos retorna aos movimentos políticos, principalmente LGBT. Fundou
um grupo de resistência, mas este não obteve reconhecimento nacional, devido a “disputas de
poder”. Ainda nessa época, recorda que continuava questionando a sua sexualidade. Resolve

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prestar vestibular e obtêm êxito. Alega que a escolha do curso de Humanas era para
“compreender melhor as coisas, mas que aprendeu menos lá do que na rua”. Cursou durante
quatro anos, mas não concluiu o mesmo. Tempos depois, resolve prestar outro vestibular, para
outro curso e novamente consegue aprovação.
Aos 22 anos conhece uma moça heterossexual que estava noiva. O namoro manteve-se
em segredo durante três meses. Recorda que faltando um mês para o casamento da namorada,
os dois resolvem fugir de ônibus para o Sudeste. A viagem durou nove dias e ambos passaram
muitas dificuldades.
Chegando à cidade de destino, com suas economias, Zé e sua companheira abrem um
negócio. Este relacionamento durou três anos. Sua namorada precisou retornar, pois a mãe
estava doente. Algum tempo depois, Zé descobre que foi traído e há a separação. Com o fim
do relacionamento, passou a trabalhar em uma empresa privada, sendo funcionário desta
durante seis anos. Alega que sempre teve dificuldades para arranjar emprego.
“As oportunidades nunca caminham com as condições... em minha vida, pelo
menos, ou vinha uma ou nenhuma. É muito difícil oportunidade de emprego para o
homem trans... o cara vê um homem , e no documento uma mulher, ele rejeita logo.
As oportunidades surgem sempre nos empregos informais, cozinhas, costuras, salão
de beleza. Trabalhos manuais pesados. E minha vida foi sempre muito difícil a luta
pela sobrevivência, ao ponto de não fazer muita diferença ser formado \ ou não. Eu
precisava trabalhar, por ter uma aparência que estava fora do perfil "senso
comum"... nunca arranjava colocação alguma. Sempre descartado pela aparência
masculina, só me restava a inteligência e criatividade... para sobreviver. E como eu
deve ter milhares de homens trans vivendo à margem da sociedade, mas muito mais
grave, à margem da vida: a família não nos quer, a empresa nos exclui, a sociedade
nos discrimina”.

Recorda que aos 25 anos concluí o nível superior. Após três anos, consegue emprego
em um jornal local, mas em cargo diferente do almejado. Descobre que mesmo possuindo um
currículo excelente, sua aparência não era o que os empregadores consideravam “compatível”
para o cargo, sendo remanejado para o setor de telemarketing. Entretanto, Zé afirma que
obteve ótimo desempenho, elogios e sucesso neste cargo.
Nesse mesmo período, ao visitar sua família, a mãe pede, que sempre avise quando for
visitá-la, pois queria evitar que outras pessoas o vissem. Esse é o motivo que o leva a mudarse de cidade. Conhece outra moça e resolve relacionar-se novamente. Aos 33 anos, compra
uma casa em um conjunto residencial no interior.

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Zé conta que é aprovado em um concurso público, aos 32 anos, conseguindo sua
estabilidade. Continua fazendo parte dos movimentos LGBT, mesmo sofrendo preconceito
por parte de outros membros. Considera que os transexuais são os que mais sofrem
preconceitos devido à aparência e a reivindicação de suas identidades. Afirma que se
autoidentificou como homem transexual aos 40 anos.
“O conhecimento transexual é muito novo, vem de 8\9 anos pra cá. Eu tenho trinta
anos de luta LGBT e sete de transexual. Não conhecíamos este termo homem trans,
para nós éramos homossexuais, anos depois se dividiu... lésbicas\gays\travestis.
Depois vieram os bissexuais e transexuais. Foram anos de lutas, para se chegar às
letrinhas e definições. E eu, pessoalmente, sofri e sofro até hoje muita rejeição até
em meio dos lgbt's. Ouvi, muitas vezes, risos e gente fazendo pouco caso, me
chamando de ela e depois pedindo desculpas. Mas depois repetindo a situação.”

Afirma que a invisibilidade dos transexuais masculinos deve-se a pouca organização
dos movimentos dos próprios homens transexuais. Considera, também, que a falta de
conhecimento e consciência do que é a transexualidade, faz com que alguns não se
reconheçam enquanto transexuais. Acredita, ainda, que o preconceito faz com que muitos
transexuais resolvam não se assumirem, para não sofrerem represálias da família e sociedade,
resultando no abandono de suas casas, da escola e trabalho.
“Há meninos trans que são jovens e apareceram agora recente... é muito difícil
assumir quando se dar a cara é pesado, por isso muitos não aceitam aparecer. Hoje
eu percebo como a vida foi e é dura conosco, os diferentes. Hoje eu sou um cara 40
anos mais duro, que fala alto... sempre na defensiva, e sempre na espera. O
preconceito maltrata tanto que cria um ser à parte dentro de cada um de nós
homossexuais e transexuais, criando que está sempre de guarda, pronto para o
combate, ou em outros casos molda na pessoa uma personalidade covarde,
amedrontada, furtiva, sorrateira. Desde cedo isso ocorre, desde a infância... ou para
enganar a família ou para ser aceito pelos amigos. Somos o que todos querem
colocar embaixo do tapete. Não enxergam dentro delas, seres humanos. Vocês
estudiosos buscam em conversas com os trans , entender....e nós trans procuramos
também com profissionais da Saúde, da Psicologia...e o que encontramos são
profissionais que não querem nos receber, respondem que desconhece, outros dizem
que não estão preparados para tratar o assunto. Hoje a tarde, eu dirigia e pensava
sobre nossa conversa e dentro de mim, eu desejava que seu mestrado possa ser lido,
ou avaliado e ao final ele sirva de reflexão e de que forma os educadores, senhores "
mestres, doutores, estudiosos " possam mudar a temática da educação, curriculares,
as regras metodológicas da educação e dos educadores, pois ainda somos o
segmento que mais abandona a escola. Eu sei que sou muito inteligente, trago
comigo o dom da oratória, falo com muita fluência em público (perdoe-me a falta de
modéstia) mas também reconheço que eu poderia ser um cara bem sucedido caso
não fosse um trans”.

O uso de hormônios faz parte do seu processo de transexualização, porém, segundo
Zé, não há um acompanhamento por profissionais na sua hormonização, sendo algo por conta
própria. Conta que ainda não mudou o prenome no registro civil e em outros documentos, por
ter que alterá-lo em inúmeros registros da universidade e do concurso aprovado.

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Segundo Zé, a transexualidade não está relacionada somente à cirurgia de mudança de
sexo ou ao uso de roupas masculinas / femininas. Entretanto, acredita que grande parte da
população pensa o contrário. Alega que mesmo afirmando ser homem, algumas pessoas de
seu convívio, não o respeitam. Conta que alguns professores não aceitam seu nome social ao
realizarem chamadas em sala de aula.
“Ser transexual independe da roupa que você esta usando ou até mesmo com quem
você está transando... ser transexual é ter uma identidade mental, diferente da que
seu corpo apresenta. Eu por muitos anos só usei vestidos e roupas longas, mesmo
assim, eu me sentia homem e desejava usar calças. A obrigatoriedade de mudar o
corpo é muito pessoal... vai de cada um. E desejo sim, minha masculinização total...
quero cirurgia, desejo hormonoterapia e tudo mais. Tenho amigos que não desejam
passar por cirurgia, só hormonizados. A reconstrução do corpo ou da genitália é
mais cobrança pessoal de cada um... e aí eu consigo acreditar pelo conhecimento e
convivência que nós vivemos tantos anos sendo maltratados por todos, família,
escola, sociedade, trabalho, que quando você cresce, você traz enraizado em seu
intimo uma cobrança de ser e parecer. Esse ser e parecer é isso de ter peito tem q ter
identidade fêmea....tem pênis é identidade macho... se não tem nada físico que seja
palpável, tocável....não é fêmea ou não é macho. Nascer trans é tão dolorido, você
evitar ir a um banheiro, você evitar falar em público porque tem voz fina, você
comprar prótese plástica para usar dentro da cueca, se envenenar com hormônios
para ter pelos ou trejeitos masculinos. A sociedade vê um corpo de mulher vestido
de homem, é como se você afrontasse, violentasse. Somos a quebra do que já é
estabelecido, somos a prova de que as regras não comprovam nada, de que o certo e
o errado é só ponto de vista, masculino / feminino é pouco, existe algo mais. Para
alguns somos só o que eles veem: roupas!”.

Aos 48 anos, Zé está cursando sua terceira faculdade e continua participando de
movimentos LGBT e políticos.

4.6 Sansão

“Gosto muito da história do Sansão... era um homem forte, integro. A diferença que
ele perdia força quando cortavam o cabelo, no meu caso eu perco a força quando
tenho muito cabelo.”

Sansão é o representante da geração mais velha, tem 61 anos, nasceu em uma cidade
do Norte e é funcionário público. Atualmente reside - com sua namorada - em uma capital do
Nordeste. Afirma que sua autoidentificação enquanto homem transexual ocorreu após os 50
anos de idade.

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Recorda que quando criança, detestava brincadeiras que envolvessem bonecas, fogão e
panelas, considerando “frescuras” de mulher. Preferia correr e pular com os meninos. Relata
que sua mãe o obrigava a usar vestidos e “cachinhos e laços” nos longos cabelos.
“Mas ela sempre me forçava a usar cachinhos, eu odiava cabelo grande. Até que um
dia....você vai até rir.... pra você ver como eu me irritava com cabelos grandes... eu
vi que meus irmãos tiveram que raspar o cabelo porque pegaram piolho, pois eu fiz
questão de brincar pertinho do piolhento da rua pra pegar piolhos e raspar a cabeça...
e foi tão bom não ter que usar cabelo grande, laços. Mas ai o cabelo cresce, mas por
sorte, minha mãe cortou meu cabelo um pouco abaixo da orelha... era menos pior.”

Segundo Sansão, a adolescência ficou marcada pela leitura de gibis de faroeste e pela
obrigação de vestir roupas femininas. Caso não usasse “roupa de mulher”, sofreria castigo
por parte de sua mãe. Relata que seu pai não se preocupava com seu comportamento. Nessa
época, considerava-se diferente das outras garotas e parecido com os homens.
“Meu pai sempre me tratou bem, nunca ficava no meu pé, até porque eu nem
namorava, a preocupação dele era que eu ficasse grávida e mal falado.... acho que
por isso ele nem notava que eu era masculino demais. Mamãe notava, porque vez ou
outra me empurrava pretendentes. Foi passando o tempo e saímos da nossa cidade e
fomos estudar fora, eu e meus dois irmãos... nossa família era rica... quer dizer,
ainda é rica. Aí nessa época fui notando que era diferente de garotas e mais parecido
com homens. Foi quando ouvi na rua me chamarem de Maria Homem... e eu nem
fiquei ofendido.”

Aos 17 anos, Sansão foi morar - com seus irmãos – em uma capital do Sudeste do
país. Durante esse tempo, namorou uma moça, colega de sala de aula no Ensino Médio, a qual
considerava uma “ladyzinha”. Ao terminar o segundo grau, passa no vestibular e consegue
emprego em uma loja, enquanto terminava os estudos. Nessa época, se autoidentificava como
lésbica.
“E fui levando a vida, eu usava cabelo curto, usava calça feminina e blusa social
masculina, usava regata pra esconder, tentava misturar, sabe? Vai que o povo me
olhasse torto... mais do que já olhavam. E já namorava muita mulher, nesse tempo
eu fiquei de caso com uma coroa casada... ela dizia que eu era o menino dela... Aí
sai desse emprego, porque terminei a faculdade e fui trabalhar na área, porque passei
em concurso.”

Aos 26 anos, resolve namorar um rapaz, por insistência da mãe que suspeitava da sua
homossexualidade. Mantêm relações sexuais e termina por engravidar. Sansão afirma que a
relação sexual com um homem “não foi ruim, mas também não foi bom.” Relembra que a
gravidez inesperada fez com que seu pai o tratasse de forma diferente. “Meu pai disse que eu
era uma puta em dar antes do casamento, mas minha mãe parecia feliz, acho que ela pensou:
- amém, não é sapatão.”

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Conta que foi forçado, por seus pais, a casar com o pai do seu filho. Foram casados
durante 11 anos, sendo que ambos mantinham relacionamentos extraconjugais. Sansão alega
que seu marido sempre suspeitou que fosse “lésbica”. Em 1991, separou-se do marido e não
brigou pela guarda do filho, preferindo que o mesmo ficasse com o ex-cônjuge, afirmando
que não tinha vocação paterna ou materna.
“Foi quando assumi que era lésbica porque nessa época, na minha cabeça eu era
lésbica. Foi quando comecei a usar roupas mais masculinas ainda e usar cuecas. Me
senti livre e bem comigo mesmo. Minha família aceitou, porque no fundo sabiam,
todos os pais sabem.... não tem como.”

Em 1997, pediu transferência do emprego público para uma capital do Nordeste, pois
tinha se apaixonado por uma moça dessa região. Moraram juntos durante dez anos e logo após
esse período, houve a separação. Durante esse relacionamento, Sansão questionou à
companheira se a mesma o via como homem ou mulher.
“Comecei a me identificar como homem trans já coroa, antes eu pensava que era
lésbica machona, caminhoneira. Mas depois fui lendo reportagens e assisti
documentários na tv por assinatura, sobre transexualismo e vi que eu era um. Foi
quando perguntei a aeromoça que namorei, na época, se pra ela eu era homem ou
mulher. Ela disse que eu tinha corpo de mulher, mas atitude de homem.... foi aí que
eu vi e pensei: sempre fui homem e não sabia. Mas só tomei coragem de modificar o
corpo, uns anos atrás, antes pesquisei muito e entrei em contato com outros
transexuais e profissionais para saber se era o que eu queria. E vi que é sim, sou
homem, tenho jeito de homem e traços de homem, só falta ter corpo mais masculino,
pra eu me sentir bem e completo. E pra as pessoas não me olharem torto. Ouça a
minha voz, ela é masculina, sempre foi grave e grossa, acho que sempre fui macho,
o problema que demorei a entender que era um.”

Recorda que, após a afirmação da ex-companheira e da autoidentificação como
transexual, resolveu viajar a uma capital do Sudeste, buscando explicações acerca da cirurgia
de transgenitalização, mastectomia e retirada do útero. Narra que o cirurgião especialista
explica o caráter experimental da cirurgia de mudança de sexo para homens transexuais,
aconselhando a retirada das mamas e do útero.
“Mas ainda fiquei com medo, sabe? Por isso, estou pedindo transferência para essa
cidade no Sudeste, porque faço o acompanhamento psicológico lá, porque precisa
pra fazer a mastectomia e faço a hormonização. Documentação também irei fazer lá,
pra mudar o nome. Minha descoberta como homem trans é nova, sou um
“adolescente” nessa área.”

Conta que aos 55 anos resolveu usar colete para esconder os seios e solicitou que no
emprego, os colegas o chamassem pelo nome masculino. Segundo Sansão, alguns colegas
ainda o chamam pelo nome feminino, o que considera uma falta de respeito.

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“Alguns se negam e chamam pelo nome feminino, aí corrijo e mando chamar no
masculino, senão chamo o nome deles no gênero oposto ao deles... aí terminam
chamando o nome masculino. Porque é chato, acho desrespeitoso, eu todo macho,
todo homem, sendo chamado com nome de mulher. Sou mulherengo, grosso, casca
dura, forte e ainda vem me chamar pelo nome masculino?”

Sansão diz que sofre bastante preconceito por ser transexual, sendo xingado na rua de
“sapatão” e “homem de mentira”. Relembra que começou a usar banheiros masculinos - aos
55 anos - e sofreu preconceito por parte dos homens que frequentavam esse ambiente. Narra
que, certa vez, foi expulso de um banheiro de shopping por um segurança do local.
“Geralmente são homens que tem inveja de mim, mal sabem eles que “pego” mais mulheres
que eles e bem bonitas.”
Afirma que não tem interesse de participar de movimentos LGBT, pois não apresenta
perfil para o ativismo e prefere a discrição e invisibilidade. Considera-se um homem
heterossexual por apresentar atração sexual e afetiva por mulheres. “Porque somos homens e
homens gostam de mulheres.” Conta, ainda, que todo transexual deve investir na
transformação visual e corporal para ter respeito e não sofrer preconceito.
“Eu sou homem, sempre fui, mas não tinha consciência. Acho que tem que se
transformar, tem que tirar peito, tomar hormônio, ser homem mesmo, porque se não
transforma você fica parecendo uma lésbica masculina, uma mulher máscula que
gosta de outra mulher, eu não, eu sou homem trans, sou um homem que tem um
corpo feminino, mas que precisa modelar seu corpo pra ser masculino e igual a sua
mente de homem... Homem tem pênis, não tem peito, tem barba, é rude, macho...
mulher é frágil, tem vagina, peitos, bundão, tem as diferenças... Eu sou o primeiro
tipo, um homem, só que com corpo errado, apenas.”

Aos 61 anos, Sansão reside com sua atual companheira e pretende mudar-se para o
Sudeste, para iniciar sua transformação corporal.

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5 OS SENTIDOS E SIGNIFICADOS DE TRANSEXUALIZAÇÃO

O presente capítulo pretende responder a alguns questionamentos acerca do processo
de transexualização dos seis representantes transexuais: como se dá o processo de
autoidentificação transexual? Quais são os sentidos experienciados no processo de
transexualização?

Quais são os movimentos identitários que são recordados? Existem

indícios de ruptura intergeracional? Quais os elementos de significação que permanecem em
suas histórias?
A apresentação da análise realizada implica necessariamente em fazer opções que, por
sua vez, trazem algumas consequências. Importante destacar que o recorte aqui descrito é
apenas para fins de apresentação, podendo parecer menos complexo do que realmente é. As
etapas de vida também são formas de se contar uma vida entrelaçada na memória. Tomar as
histórias de pessoas nas mãos e refletir sobre a unicidade delas, buscar proximidades,
permanências e rupturas não é tarefa fácil. Por outro lado, revelar sua unicidade sem perder de
vista seu emaranhado com e no contexto sócio-histórico.

5.1 Intergeracionalidade e o processo de transexualização feminina

O processo de transexualização apresenta alguns elementos de intergeracionalidade a
partir das histórias de representantes de três gerações. Elementos que são evidenciados nas
histórias de vida: brincadeiras de criança, estratégias de disfarce da transexualização, uso de
vestimentas femininas, aplicação de hormônios, procedimentos cirúrgicos para transformação
corporal e relacionamento com a família e amigos.
Brincadeiras de criança vividas por Gisele foram facilitadas por possuir uma
aparência feminina, apesar de ter nome masculino e usar roupas masculinas, que podiam
adquirir feminilidade com o artifício de encurtar as blusas. O uso de cabelos longos e a
aparência feminina lhe permitem uma participação no mundo das brincadeiras de boneca,
evitando o mundo dos carrinhos. Contrariamente, as representantes das outras gerações
parecem ter tido mais dificuldade: Joana precisava aparentar ser menino, brincar de bonecas

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às escondidas e se percebia diferente dos meninos, que preferiam jogar futebol. Seus amigos
eram meninos e meninas. Bridget também brinca com crianças e relembra ter preferências por
assistir desenhos femininos e jogar amarelinha, evitando jogar futebol ou bolinha de gude,
embora tenha sido forçada pelo pai a participar desses jogos. Joana ainda se permitia disfarçar
o olhar ao se interessar por outro menino e elogiava as meninas para evitar uma possível
identificação como homossexual. Podemos verificar esses relatos de experiências nos
fragmentos a seguir:
“Não queria ser chamada de maricas por brincar apenas com meninas” (Bridget).
“Eu brincava mais... na verdade, eu não brincava com meninas. Até hoje eu não
gosto muito de andar com meninas, não sei porque, pois a maioria gosta, vê logo que
é gay, aquele rapaz no meio de um monte de menina. Eu não, não gostava. Eu
gostava de andar com menina e menino, tudo junto. Mas na hora das brincadeiras,
era assim... homem só gosta de brincar de bola, né? Mas eu não queria, não vejo
graça, em ficar olhando e correndo atrás de uma bola. Aí inventava que o pé tava
doente, eu ficava olhando os meninos jogando bola. Ai eu ia brincar com as meninas
de boneca, tava nem aí, até porque as meninas são mais compreensivas, né? Eu
brincava de boneca, de casinha, escondido, quando ia na casa delas. Era assim a
minha brincadeira” (Joana).
“Quando eles falavam de meninas, eu ficava voando, tapeava: “- ah... é bonitinha
essa menina”, mas parava por aí, não tentava me aprofundar no assunto. Aí quando
aparecia um cara bonitinho... e isso quando eu era criança, que sempre rola isso, né?
Eu tinha que primeiro olhar para todo mundo, para poder olhar para aquele cara,
para ver se alguém tava olhando, para não descobrirem, pois eu tinha medo que
descobrissem” (Joana).
“Sempre diziam: ei, parece uma menina, de cabelão e tudo” (Gisele).
“Sempre ganhei boneca, brinquedo de menina... meu pai ainda trouxe, uma vez, um
carrinho... eu quebrei e disse que queria boneca e não brinquedo de menino. Sempre
brinquei de boneca e ganhava boneca” (Gisele).
“Eu comecei a pesquisar mesmo, quando comecei a ter um raciocínio, com meus 15
anos que comecei a procurar, porque antes você pensa como criança, não liga para
saber sobre isso” (Gisele).
“A diferença entre eu e uma menina, é porque ela tem uma vagina e eu não tenho”
(Gisele).

Podemos observar que na infância nenhuma delas se percebia como transexual. Joana
e Bridget se percebiam diferente e fora dos padrões. No entanto, Gisele tem convicção que era
pertencente ao grupo das meninas. O mundo das brincadeiras parece demarcar as diferenças e
marcam as lembranças. Estes estereótipos reproduzem e evidenciam permanências no
processo de identificação (BENTO, 2006, 2009). Estes estereótipos de gênero compõem o
processo de significação que são registros culturais compartilhados e revelam as
permanências desses significados sociais que se mantiveram de uma geração para a outra.

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A preocupação de Joana e de Bridget em não ser consideradas diferentes e
“homossexuais” parece ser um aspecto importante no processo identificação. Ser pela
negação. O fato de brincar em grupos mistos era uma forma das “diferenças” não serem
apontadas. Esse momento é identificado como homossexual, por desconhecer, ainda, o que
era a transexualidade. Gisele se diferencia, pois se percebe como menina desde pequena.
Descreve uma facilidade no processo de autoidentificação.
As recordações das brincadeiras da infância trazem para Joana, a percepção de maior
tolerância e compreensão das garotas, constituindo-se uma experiência afetiva importante. A
característica da delicadeza, fraqueza e passividade feminina marca a infância de Bridget,
evitando retaliação por parte dos outros meninos. Parece que, contingencialmente, não houve
violência dos colegas para consigo: por ser frágil, ocasiona um tratamento de piedade por
parte dos outros garotos. Gisele não teve problemas relacionados às brincadeiras infantis com
outras crianças, entretanto os pais a proibiam de usar roupas femininas. Essa proibição é
entendida e explicada porque a mesma não tinha corpo desenvolvido, sendo inadequado o uso
de vestimentas para meninas.
As recordações de criança de Joana permitem a possibilidade de admirar os rapazes na
praia. Para Gisele, está relacionada à imaturidade e ao desinteresse pelo mundo dos adultos.
Podemos compreender, em consonância com Vigotski (1993; 2007), que o sentido não é algo
inerente ao ser humano ou que é estritamente individual. Ao contrário, só é possível através
de uma relação dinâmica e interdependente sócio – historicamente com o meio externo e
interno. Os sentidos podem ser os mais diversos, a depender dos diferentes contextos. É
pessoal, experiencial, afetivo e não exclusivamente individual.
Autoidentificação de Gisele é relembrada como algo sem problemas, porque sempre
se identificou como pertencente ao gênero feminino, enquanto Joana e Bidget passaram por
um “caminho” de autodenominações. Joana considerava-se homossexual até o final da
adolescência e a partir daí se autoidentificou como transexual. Bridget se reconhecia enquanto
homossexual no início da fase adulta, depois como travesti e, por último, transexual.
O processo constante de autoidentificação vem ao encontro da relação interdependente entre
sujeito e contexto sóciocultural (VIGOTSKI,1993; 2007). Nesse sentido, podemos
compreender que o entorno de experiências de Gisele em relação à sua transexualização
permite que desde pequena se perceba como mulher. No caso de Joana e Bridget, esse

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processo permitiu, especialmente no caso da segunda, que apenas se autodenominassem
transexuais na fase adulta. Podemos considerar, ainda, que a transexualidade de Joana está
vinculada a se perceber como transexual e não mulher.
Bento (2006; 2009) entrevistou diversas transexuais, e algumas se consideravam
como pertencentes à categoria mulher desde crianças, deste modo as suas transexualizações
eram vistas como correções a algo incorreto em seu corpo. Semelhante ao ocorrido com
Gisele, os dados indicam que há a permanência dessa significação da transexualização
atinente a uma correção corporal e ao pertencimento à categoria mulher desde a infância. Nos
casos de Joana e Bridget, as suas transexualizações estão relacionadas a uma alteração estética
corporal, aceitabilidade social e coesão com o papel social de gênero identificado. Não há
alusão à doença, anomalia genital ou a um transtorno mental, mas um sentir-se “diferente”,
como vemos a seguir:
“Transexual é aquele homem que quer tirar o órgão e virar mulher. Travesti é aquele
que quer parecer com uma mulher, mas continua homem, quer ter o sexo, quer usar,
já a transexual quer tirar o sexo. Como fui criada desde pequena como menina,
descarto a possibilidade de ser travesti e transexual. Travesti é o homem que se
traveste, que quer parecer com mulher... eu não, eu já nasci mulher, com corpo de
mulher, semelhança de mulher” (Gisele).
“A única coisa que eu não digo “eu sou realmente uma mulher” é a genitália, mas
nunca tive dúvida” (Gisele).
“Aí fui chegando no ponto também que eu fui amadurecendo mais, conhecendo
outras pessoas e fui vendo o que eu realmente era e que eu não era gay, eu era... ia
mais além disso, do homossexualismo, do homossexual em si, entende? Eu era
transexual, porque eu saía com gay e tudo, usava o cabelo curtinho, que nem menino
e tal, só que era diferente, porque eu tinha vontade de me vestir de mulher. O
homossexual em si, se veste como homem, vive como homem, mas tem atração por
pessoa do mesmo sexo que ele, o que diferencia é o comportamento, a roupa, a vida
que é... masculina, masculinizada. A transexual não. Eu queria me vestir de mulher,
me maquiar [...]” (Joana).
“O processo de hormonização, para que seu corpo fique feminino e não sirva de
mangação para os outros” (Joana).
“Eu não gostava de mulher, eu queria ser uma... olha o dilema” (Bridget).
“Sim... sou uma mulher transexual... não fico dizendo que nasci com corpo de
mulher e acho que ser mulher ou homem é tornar-se, sabe? Eu tive o azar de nascer
com corpo masculino, mas sempre tive alma feminina, o problema é que demorei
pra notar que era trans, acho que o medo não permitia. Eu acho que primeiro me vi
como gay, depois travesti e por último trans, mas até quando eu era gay e me
travestia, eu via que queria era mesmo ser mulher, entende?” (Bridget).
“Resolvi fazer a raspagem do pomo de adão, por questões estéticas, sabe? Mulher de
gogó não existe, né?” (Bridget).

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Aparência de menina foi facilitada pelo uso de roupas femininas. Assim, vimos que
Gisele e Joana, na adolescência, sendo a última de forma gradativa, e Bridget, mais tarde, na
fase adulta podem experimentar a vestimenta como uma extensão corporal. Nesse sentido, a
blusa feminina, escolhida por Joana está relacionada ao universo feminino e a sua
reivindicação identitária. Para contrastar e ser aceita mantém o uso da calça masculina.
Bridget usava roupas femininas sociais no trabalho, porque sentia que as mesmas eram
adequadas ao ambiente e expressavam sua identidade. Gisele adaptava blusas masculinas em
femininas como forma de afirmar que era uma garota e que deveria usar vestes que fossem
coerentes com o que acreditava ser pertencente ao gênero feminino.
Segundo os postulados de Vigotski (1993; 2007), o homem, ao contrário dos outros
animais, possui a capacidade de produzir a sua realidade e interferir em seu processo. A sua
adaptação não seria vinculada à reprodução ou repetição de um estímulo apenas, mas a uma
reflexão e problematização acerca do que o rodeia. Na sua relação com o meio, que seria
interdependente, em uma forma de adaptar-se ao mesmo, o ser humano modificaria este meio
e a si mesmo.
Podemos observar, então, que houve uma reflexão anterior e partilhada acerca desses
trajes - que foi passada geracionalmente - e uma nova ponderação dos mesmos, através do
contato com o meio. Vigotski (1993; 2007) afirma que o ser humano incorpora as ideias
apreendidas do meio externo e as reinterpreta e resignifica, criando outra opinião. É um
acesso processual, simbólico e adaptativo. Como podemos observar nos trechos a seguir.
“Eu dava nó na blusa pra ficar curtinha, que nem mulher” (Gisele).
“Eu fui vestindo uma blusinha feminina, com calça masculina ou uma blusinha
masculina com uma calça feminina” (Joana).

Transformação corporal complementa a aparência e a autoafirmação identitária.
Assim o uso de hormônios para o desaparecimento de pelos no rosto, peito, costas e
surgimento dos seios. Como podemos perceber nos fragmentos a seguir:
“Você já viu mulher com barba e voz grossa? Para mim, mulher... se tá pensando
em ser mulher, que tome hormônio logo no começo, antes da puberdade” (Gisele).
“Pode tá de saia o que for, de barba na cara, é homem” (Gisele).
“Não acho bonito, uma pessoa que se parece com homem e coloca um vestido, como
tem um aqui nessa rua, lá no final. Ele coloca um vestido, mas com marca de barba,
altão, bonito até, mas é motivo de chacota. Daqui a pouco, ela passa por aqui, com

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as putarias dela, de sainha, porque ela tem... melhor, ele tem 27 anos, eu falo ele,
porque pra mim, ele não é ela...é ele” (Gisele).
“Eu acho necessário esse processo de transformação, uso de hormônios, para que
ela, a transexual, tenha uma certeza, se auto-afirmar. Ela tem que modificar o corpo
[...]” (Joana).
“[...] eu acho ridículo esses caras que se dizem travesti e transexual e tem um corpo
totalmente masculino, barba, não tem nem a decência de tirar a barba, coloca
vestido, se maquia.. fica com marca de barba, músculos, isso é ridículo” (Joana).
“Eu achava que deviam me aceitar na marra, se alguém me chamasse de viado... aff,
ninguém ousasse me chamar de viado, que eu partia pra briga... mesmo super
maquiada, louca, deslumbrada, eu queria respeito. Aí eu fui amadurecendo,
conhecendo pessoas que me orientassem, revi meu comportamento, que não era pra
tá andando vulgar, aí já comecei a ver meu modo de vestir, aos poucos para não
chocar o povo, fui tendo um pouco de noção [...]” (Joana).
“A violência diminuiu, eu entro em bar, show, passo despercebida, ninguém me
reconhece como transexual, travesti... só se eu falar, aí o povo reconhece pela voz”
(Joana).
“O processo de transformação é importante para você e para as pessoas que vão te
ver” (Joana).
“Resolvi fazer a raspagem do pomo de adão, por questões estéticas, sabe? Mulher de
gogó não existe, né?” (Bridget).
“Eu não critico homens afeminados que rebolam e falam fino mesmo com barba,
porque tenho que levar críticas por modelar meu corpo de acordo com o que acredito
que sou?” (Bridget).
“Lutei muito para ser feminina e ser mulher, não acho interessante que comecem a
me tratar mal porque no passado fui uma pessoa de corpo masculino e cabeça de
mulher... As pessoas julgam sem saber, pensam que trans é homem que cortou o
pênis e não é... parece que ser homem tem que nascer com pênis e mulher com
vagina, não entendem o interior. Por isso prefiro viver no anonimato e contar a
poucas pessoas que sou transexual” (Bridget).

A aceitação social se dá pela mudança na aparência. As três transexuais apostam na
transformação visual e corporal para ser o mais feminina possível, estando associada a uma
forma de não sofrer preconceito, nem ser ridicularizada pelos outros. É, pois, na relação com
o outro, que seu comportamento vai sendo produzido (VIGOTSKI, 1993; MOLON, 2003,
PINO, 2005). Desse modo, podemos entender que a necessidade de parecer mulher é um
significado de permanência entre as gerações. A transformação visual e corporal se justifica
necessária para aceitação social e não sofrer retaliações e preconceito. Estas permitem evitar o
choque, xingamento, bem como passar despercebida e aceitação forçada.
O sentido da transformação corporal e visual não totalizada – marca de barba, rosto
ainda masculino em contraste com roupas femininas - está vinculado a um sentimento de

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“choque”, deslumbramento e loucura, para Joana. Já para Bridget, – o tratamento com
fonoaudiólogo para feminilizar a voz, raspagem do pomo de adão e uso de hormônios, – está
vinculado a invisibilidade de seu processo de transexualização, possibilitando viver no
anonimato.
O corpo impõe ainda dois sentidos: um de expressão de identidade – de modelação
corporal, com o uso de hormônios, maquiagens e vestes femininas modelação corporal –, e
outro de impedimento de identidade – da voz e do pomo de adão, visto que denunciam a
transexualidade de Joana e Bridget. Temos assim afecções advindas do corpo que se
expressam na alma (ESPINOSA, 1971). O corpo negado como expressão do sofrimento
psíquico de Joana e Bridget. Por outro lado, a modelação corporal é uma forma de expressão
da identidade. Desse modo, a ação sobre o seu corpo, através da transformação visual e
corporal, permite às três transexuais favorecer a expressão das suas identidades. Para esse
mesmo autor, todo corpo é constituído por uma ideia e esta é um modo de expressão do
sujeito. Alma e corpo devem estar juntos e em consonância, se um sofre, o outro também
padece. Um corpo é recusado porque não é expressão da alma desse alguém.
Parecer feminina diminui a possibilidade de sofrer preconceito e violência, Joana e
Bridget passam “despercebidas” pelas outras pessoas, pois visualmente são femininas.
Entretanto, para Joana, sua voz pode denunciar a sua transexualidade. Gisele sente-se acolhida
no Nordeste, atribuindo o sentido de estar amparada como em “uma barriga materna”.
Acredita que não sofre preconceito por “intervenções divinas”. O fragmento abaixo evidencia
o sentido de “intervenção divina” ao não preconceito sofrido por Gisele.
“Aí eu perguntei por que e ele disse que não era para mexer. E as meninas também
são bonitas, mas sabe... foi Deus que me protegeu, até hoje ele me protege” (Gisele).

Joana e Gisele acreditam que a transformação corporal e visual das transexuais deve
ser padronizada. Afirmam que uma transexual deve ser discreta em sua imagem e
comportamento, devendo transparecer feminilidade. Caso a transexual resolva se comportar
de forma vulgar e sua aparência seja ambígua, estará contribuindo para que sofra preconceito
por parte da sociedade. Uma ambiguidade corporal e visual que possa ser percebida é vista
como agressiva e como forma de forçar o meio a aceitá-las. Bridge parece romper com essa
ideia de padronização, afirmando que a transformação corporal é necessária para a própria
transexual sentir-se bem, mas não precisando haver um padrão a ser seguido.

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Podemos perceber, então, que para Joana e Gisele, o preconceito sofrido por algumas
transexuais é justificado por seus comportamentos e visuais fora dos padrões. Alegam que
uma transexual vulgar ou com resquícios de masculinidade força a sociedade a aceitá-la.
Entretanto, se a transexual comporta-se de forma discreta e “decente”, o meio tende a
respeitá-la. É uma busca por uma aceitabilidade social que, por conseguinte, desautoriza as
expressões de suas identidades. Nesse caso, parece contraditório que a geração mais velha
seja mais tolerante em relação a outras formas de expressão de identidade transexual do que a
geração mais nova e do meio. Estas defendem a transformação corporal para atender aos
padrões.
Os ideais normativos de comportamento são edificados a partir do que o meio externo
demanda. Este pode ser modificado pela história e experiências humanas (LANE, 2007;
VIGOTSKI, 1993; 2007). Dessa forma, as rupturas expressam mudanças e podem favorecer
novos modos de existir.
Nesse sentido, o corpo adolescente revela para Joana a condição de ser homossexual,
enquanto Bridget considerava-se anormal e, no contato com uma familiar lésbica, na fase
adulta, se autodenominou homossexual, passando alguns anos a se considerar travesti e
através do acesso e comunicação com mídias que abordavam a temática da transexualidade,
passou a procurar hormonização e transformação corporal. Gisele se percebia como mulher,
desde a infância, ao ter contato com as outras meninas e adaptar seu visual do masculino para
o feminino. Ao ter contato com outros corpos, Joana, Gisele e Bridget se autoidentificam e
seus corpos ganham outros sentidos. Ou seja, o corpo é definido a partir da disposição de ser
afetado por outros corpos (ESPINOSA, 1973). Assim, são produzidos, desconstruídos e
reconstruídos os corpos. Destarte, através das interações com os outros, que os corpos e
identidades das três transexuais femininas foram sendo produzidos.
Mudança no prenome é importante aspecto de semelhança e defesa de direitos no
processo de transexualização das três transexuais: Bridget mudou os documentos, Gisele,
alterou listas de chamada no ambiente escolar e Joana retificou lista de frequência na
Universidade.

Assim, o prenome feminino reconfirma e assegura as suas identidades.

Entretanto, se para Gisele não há problema a chamarem pelo prenome masculino, para Joana
o nome masculino denuncia o resquício de uma masculinidade negada. Ser chamada por outro
nome é o mesmo que não ser aceita, e ao mesmo tempo, evocar algo que é recusado. Podemos
observar tal questão no trecho abaixo:

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“Tem gente que não se acostuma e esquece e chama pelo nome masculino. Eu acho
assim, eu tenho uma aparência de mulher, me comporto como mulher, sou muito
feminina, eu passo despercebida em shopping, loja, show, exceto quando eu falo... aí
vem um cara me chamar pelo nome de batismo, é demais, né? Mas é normal,
algumas pessoas se atrapalham, mas é normal. Mas você ser referida como homem é
chato, me dá raiva e me magoa, o pessoal pensa que não, mas magoa, é
desrespeitoso” (Joana).

A mudança do prenome, parecer feminina e mudar o corpo são acompanhados da
definição de papéis do outro na relação. Esta parece reafirmar a reprodução de papéis
sociais normativos. O fato de Gisele, Joana e Bridget separarem em ativo – homem
heterossexual - e passiva – mulher transexual - um relacionamento afetivo, mantêm uma ideia
de relação heterossexual normativa e padrão, por meio do seu acesso a regras e normas dos
papéis sociais de gênero (BUTLER, 2010; SILVA, 2008). Já o homem homossexual é aquele
que apresenta trejeitos femininos, que tem atração afetiva e sexual por pessoas do mesmo,
mas que ainda mantém uma vida “masculina”. Os significados de experiências homossexuais
são compartilhados pelas três gerações e expressam os elementos culturais fossilizados no
processo de significação (VIGOTSKI, 1993; 2007). Vejamos a seguir:
“A transexual tem a cabeça feminina, ela não vai ser ativa na relação, o parceiro vai
ser o homem e ela a mulher” (Joana).
“Eu tenho um amigo que é homossexual e começou a passar a ser travesti, mas ele
tem um pensamento masculino, ele tem a mentalidade masculina, jeito de falar. Se
você reparar, eu sou feminina, tenho mentalidade de mulher, eu choro muito, tem
vezes que começo a chorar do nada, que nem mulher, porque mulher é emotiva.
Porque homem não chora, porque homem tem aquele negócio de pegar no saco e
coçar, falar gíria” (Gisele).
“Ele pode ser gay, mas não pode ser mulher, que ficasse isso para ele” (Gisele).
“Com meu noivo não sou ativa, sempre como mulher, a genitália eu não uso”
(Gisele).

Em relação à genitália associada ao “ser mulher”, de igual modo às transformações
corporais, Joana e Gisele acreditam que só podem ser consideradas “realmente mulheres” se
apresentarem uma vagina. Joana afirma que ginecologista é “médico de mulher”, no intuito
de criticar a não contratação de um urologista para o núcleo que trabalha no processo de
transgenitalização. Gisele não afirma que é “realmente mulher” pelo fato de ainda apresentar
genitália masculina. Diferentemente, Bridget acredita que ser homem ou ser mulher vai além
de suas genitálias.
Família demarca experiência importante no processo de transexualização das três
transexuais: Joana relata situações de preconceito, violência e desrespeito. As experiências

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ruins com seus familiares marcam lembranças de discriminação e intolerância aos transexuais,
travestis e homossexuais; Bridget, lembranças de dominação e repressão, visto que era
forçada pelo pai a brincar com os meninos (infância) e a manter relações sexuais com
mulheres (fase adulta). Diferente destas gerações, Gisele confere um sentido positivo a
família. Pelo fato de fazer parte de um ambiente familiar mais permissivo, Gisele não sofreu
preconceito por parte dos familiares. Essa ocorrência nos alerta para a experiência mais aberta
que a representante da geração mais nova parece ter vivido com seus familiares.
A família que reprime o comportamento, por exemplo, de imitar trejeitos e poses de
mulheres, se faz acompanhar de castigos expiados por meio de orações a fim de cura e
obtenção de perdão divino, ou de aconselhamento de um padre e uma familiar religiosa, como
vimos na lembrança de uma de nossas personagens.
Por último, a participação política em movimentos sociais LGBT é divergente. A
representante da geração mais nova, Gisele não se reconhece como pertencente ao movimento
dos transexuais e travestis. A geração do meio, Joana é militante e acredita que a participação
nos movimentos é uma forma de lutar por seus direitos enquanto transexual. Por outro lado,
as experiências da representante da geração mais velha, Bridget acredita que os movimentos
sociais LGBT são locais permeados por discriminação e desunião entre seus próprios
componentes.
Em síntese, as experiências relatadas e produzidas nas histórias de vida possibilitaram
problematizar o universo de sentidos experimentados, mutáveis ao longo da vida e os
significados compartilhados pelas representantes das três gerações de transexuais. O caráter
de mobilidade das identidades transexuais apresenta uma mobilização inicial “ser o mais
feminina possível”, que se diferenciam pela unicidade experiencial: Gisele nasceu para ser
mulher e ocorreu um erro; Joana foi mudando aos poucos para não agredir a família e Bridget
mudou para ser mulher casada e respeitadora.

5.2 Intergeracionalidade e o processo de transexualização masculina

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As recordações relatadas para a produção das histórias de vida dos transexuais
masculinos apresentam importantes aspectos referentes às brincadeiras de criança, à
autoidentificação, à aparência de menino, às transformações corporais, ao relacionamento
com a família e às experiências políticas em movimentos organizados.
Brincadeiras de criança são percebidas como um momento marcante de não
pertencimento ao universo feminino. Quando crianças, Arthur, Zé e Sansão não se
consideravam meninos, entretanto, não se sentiam satisfeitos com brincadeiras, roupas e
gestos considerados de menina. As estratégias de disfarce para adentrar ao universo
masculino, seja nas brincadeiras ou na adaptação visual, foram utilizadas por Arthur e Sansão.
O primeiro cortou os cabelos curtos e, o segundo ficava perto de meninos com piolhos, para
ter que raspar o cabelo. Para Zé, essas táticas não foram possíveis, devido ao medo e grande
vigilância de seus pais extremamente religiosos. Estas experiências foram assim narradas:
“Eu não sabia que ia parecer um menino, mas eu queria cortar o cabelo daquele
jeito, não sei por que, vai ver era algo inconsciente” (Arthur).
“Eu sinto assim, desde criança eu olhava para o meu interior e encontrava um
menino... mesmo que quando eu tomava banho e me via diante do espelho lá
refletido um corpo de mulher. Eu tinha inveja dos gestos e brincadeiras mais simples
dos meus irmãos, eles eram livres no ser. Eu era um prisioneiro de meu próprio
corpo. Eu não sei onde aprendi até certos hábitos e maneiras masculinas, elas
vinham naturalmente de dentro de mim” (Zé).
“Mas ela sempre me forçava a usar cachinhos, eu odiava cabelo grande. Até que um
dia....você vai até rir.... pra você ver como eu me irritava com cabelos grandes... eu
vi que meus irmãos tiveram que raspar o cabelo porque pegaram piolho, pois eu fiz
questão de brincar pertinho do piolhento da rua pra pegar piolhos e raspar a cabeça...
e foi tão bom não ter que usar cabelo grande, laços (Sansão).

Autoidentificação foi experiência permeada pela culpa e pela confusão na vida dos
três personagens. Arthur entrou em depressão por ter que agir como uma mulher; Zé buscou
refúgio na religião por sentir-se culpado e Sansão fingia ser heterossexual para seus pais, com
medo de represálias. As histórias de autoidentificação de Zé e de Sansão são semelhantes
entre si: se consideravam lésbicas e posteriormente como transexuais heterossexuais. O
processo de autoidentificação, na experiência de Artur, se diferencia: inicialmente, se percebia
como heterossexual, ao final da adolescência, como homossexual e atualmente se percebe
como transexual bissexual. Esse modo permanente de autoidentificação se modifica na
experiência deste representante da geração mais nova e essa amplitude de possibilidades
permite inúmeras experiências.

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Para Arthur, ser transexual e bissexual é uma forma de subverter a ideia de que todo
transexual masculino deve seguir o estereótipo de homem “machão” e heterossexual. O
sentido atribuído a sua bissexualidade é de subversão a regras que começam a ser
estabelecidas aos próprios transexuais. Podemos perceber que o fato de ser transexual
bissexual evidencia que a transexualização não está vinculada à orientação sexual, mas a uma
reivindicação da identidade, como podemos ver nos trechos a seguir:
“Eu sabia que era menina, porque fui criado como menina, com nome de menina,
então achava que era menina” (Arthur).
“E eu já vivia em um ambiente LGBT, pouco heteronormativo, porque meus
amigos a maioria era mais tranquilo, a gente estudava em um colégio que havia
diversidade, no grupo tinha negros, pessoas de baixa renda, classe média, heteros,
gays, lésbicas, era como se fosse uma família” (Arthur).
“[...] eu ainda tinha dúvidas se era transexual ou não, eu procurava características em
outros homens transexuais para ver se eu também as tinha e se era transexual
mesmo” (Arthur).
“Tem transexuais que tem problemas com isso, que acham que devemos ser os mais
masculinos ou machões possíveis, algo bem estereotipado. Eu acho até que eu
subverto isso, porque veja só, eu antes achava que era uma mulher heterossexual,
depois comecei a me assumir como lésbica, ai depois me descobri como transexual.
E durante um tempo, passei a não ficar com ninguém, na transexualização.. Aí
quando voltei a ficar com alguém, voltei ficando com homens... homens gays”
(Arthur).
“O conhecimento transexual é muito novo, vem de 8\9 anos pra cá. Eu tenho trinta
anos de luta LGBT e sete de transexual. Não conhecíamos este termo homem trans,
para nós éramos homossexuais, anos depois se dividiu... lésbicas\gays\travestis.
Depois vieram os bissexuais e transexuais. Foram anos de lutas, para se chegar às
letrinhas e definições” (Zé).
“Foi quando assumi que era lésbica, aos meus 37 anos... porque nessa época, na
minha cabeça eu era lésbica. Foi quando comecei a usar roupas mais masculinas
ainda e usar cuecas. Me senti livre e bem comigo mesmo” (Sansão).
“Comecei a me identificar como homem trans já coroa, antes eu pensava que era
lésbica machona, caminhoneira” (Sansão).

A informação, via meios de comunicação, e a participação em movimentos
organizados permitiu a Arthur, Sansão e Zé a se autoidentificarem como transexuais.
Aparência de menino era uma meta a ser conquistada: Para Zé, o uso de vestimentas
e gestos masculinos era sinônimo de liberdade do ser. Roupas e brincadeiras femininas eram
doloridas. Sansão considerava tudo relacionado ao universo feminino “irritante” e cheio de
“frescuras”, enquanto que Arthur preferia brincar e agir como menino de forma
“inconsciente”, porque se sentia bem. Fumar e participar como líder em movimentos

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estudantis, para Zé, ganham sentido e foram modos de evidenciar masculinidade; Sansão
alterna vestes masculinas e femininas para não ser notado até que, adulto, passou a usar
roupas masculinas, pois se sentia livre ao vesti-las. Mundo masculino e livre ganha sentido
para ele. Nessa época, Sansão se identificava como uma “lésbica machona”. Os trechos a
seguir evidenciam esses pontos:
“A partir dai assumi minha aparência masculina: postura, roupas, comecei a fumar”
(Zé).
“E quando alcancei o nível de líder, mais forte o homem vivia dentro de mim” (Zé).
“E fui levando a vida, eu usava cabelo curto, usava calça feminina e blusa social
masculina, usava regata pra esconder, tentava misturar, sabe? Vai que o povo me
olhasse torto... mais do que já olhavam” (Sansão)

Transformações corporais não requerem para Arthur, obrigatoriamente, que se siga
um estereótipo masculino exacerbado apoiado em regras já estabelecidas de gênero. Afirma
que a transformação corporal é uma ação com o intuito de se sentir bem consigo mesmo e não
para atender a uma norma. Para Zé, a modificação do corpo auxilia o transexual atender aos
requisitos impostos do que é “ser homem”, pela sociedade. O “parecer” ser homem é
importante para não se sofrer preconceito e ser tratado como representante do universo
masculino. Sansão considera que a modelação corporal é relevante para que o transexual
tenha a imagem mais próxima o possível de um corpo masculino. Acredita, ainda, que mente
e corpo devem ser os mesmos e estar em sintonia, tornando-se necessárias e obrigatórias às
cirurgias.
A transexualidade é vista como um fenômeno social, natural e cultural por Arthur.
Este não considera uma anomalia cerebral ou um transtorno, porém afirma que alguns
transexuais ainda se prendem às normas heteronormativas homem – hetero – pênis e mulher –
hetero - vagina. Zé considera que é uma identidade mental, produzida no seu contato com o
corpo e com o meio. Sansão não apresenta uma opinião sobre o termo transexualidade em si,
mas afirma que um transexual masculino somente é homem se o corpo apresentar pelos, pênis
e músculos. Podemos perceber nos fragmentos abaixo:
“Acho que não tem a necessidade de ficar provando que é homem, uma
masculinidade exagerada, acho que a minha masculinidade é o suficiente para
acreditar que sou homem. Eu acho um absurdo quem exagera e tenta ser algo que
vai além dos seus limites. Eu não tenho um corpo totalmente masculino, é como se
eu não tivesse autoestima suficiente para me expressar com minha autoidentificação
por completo, mas também eu não vou forçar, entende?” (Arthur).

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“Não acho que seja doença mental, acho que seja um fenômeno... se existe uma
doença mental, seria atrelada a isso, uma decorrência de fatores psicossociais de
preconceito e que a cultura da gente nos obriga a fazer parte de uma norma
heteronormativa e a gente se sente obrigado a seguir e acreditar nessas normas”
(Arthur).
“Ser transexual independe da roupa que você esta usando ou até mesmo com quem
você está transando... ser transexual é ter uma identidade mental, diferente da que
seu corpo apresenta. Eu por muitos anos só usei vestidos e roupas longas, mesmo
assim, eu me sentia homem e desejava usar calças. A obrigatoriedade de mudar o
corpo é muito pessoal... vai de cada um. E desejo sim, minha masculinização total...
quero cirurgia, desejo hormonoterapia e tudo mais. Tenho amigos que não desejam
passar por cirurgia, só hormonizados. A reconstrução do corpo ou da genitália é
mais cobrança pessoal de cada um... e aí eu consigo acreditar pelo conhecimento e
convivência que nós vivemos tantos anos sendo maltratados por todos, família,
escola, sociedade, trabalho, que quando você cresce, você traz enraizado em seu
intimo uma cobrança de ser e parecer. Esse ser e parecer é isso de ter peito tem q ter
identidade fêmea....tem pênis é identidade macho... se não tem nada físico que seja
palpável, tocável....não é fêmea ou não é macho. Nascer trans é tão dolorido, você
evitar ir a um banheiro, você evitar falar em público porque tem voz fina, você
comprar prótese plástica para usar dentro da cueca, se envenenar com hormônios
para ter pelos ou trejeitos masculinos. A sociedade vê um corpo de mulher vestido
de homem, é como se você afrontasse, violentasse. Somos a quebra do que já é
estabelecido, somos a prova de que as regras não comprovam nada, de que o certo e
o errado é só ponto de vista, masculino / feminino é pouco, existe algo mais. Para
alguns somos só o que eles veem: roupas!” (Zé).
“Eu sou homem, sempre fui, mas não tinha consciência. Acho que tem que se
transformar, tem que tirar peito, tomar hormônio, ser homem mesmo, porque se não
transforma você fica parecendo uma lésbica masculina, uma mulher máscula que
gosta de outra mulher, eu não, eu sou homem trans, sou um homem que tem um
corpo feminino, mas que precisa modelar seu corpo pra ser masculino e igual a sua
mente de homem... Homem tem pênis, não tem peito, tem barba, é rude, macho...
mulher é frágil, tem vagina, peitos, bundão, tem as diferenças... Eu sou o primeiro
tipo, um homem, só que com corpo errado, apenas” (Sansão).

O modo como a família se relaciona com eles tem peculiaridades: Arthur levava as
namoradas para casa, com o consentimento da família, para que estes tivessem conhecimento
de sua vida amorosa; Zé passou a se empenhar nos estudos, no trabalho e na relação com a
família, procurando “ser o melhor em tudo” para merecer o amor dos pais. Engravidou para
poder dar a seus pais a filha que eles nunca tiveram e, Sansão namorou um rapaz para
despistar as desconfianças da mãe. Parece que o representante da geração mais nova, Artur,
teve mais facilidade para assumir a homossexualidade. Zé aceita ser mãe para poder doar uma
filha aos pais como uma maneira de “compensar” o sofrimento que considera ter causado à
sua família. Para o representante da geração mais velha, ganha sentido, manter um
relacionamento heterossexual, como uma tática de ocultação da sua homossexualidade, e ser
melhor aceito pela mãe. Os fragmentos abaixo evidenciam essas peculiaridades:
“Eu procurava ser bom em tudo que eu fazia... ser o melhor da sala de aula...ser o
melhor filho... ótimo amigo...eu precisava preencher a vergonha, o vazio , e a voz
que gritava dentro de meu ser...” (Zé).

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“Na minha cabeça eu era o errado... eu que tinha escolhido ser assim. Pensei, e
resolvi que se eu tivesse uma filha ela ocuparia o meu lugar e meus pais ficariam
felizes” (Zé).
“Meu pai disse que eu era uma puta em dar antes do casamento, mas minha mãe
parecia feliz, acho que ela pensou: - amém, não é sapatão” (Sansão).

A mudança no prenome tem um significado e permanece entre as três gerações. O
nome social masculino no ambiente cotidiano foi adotado pelos três transexuais masculinos.
Entretanto, não houve mudança e formalização do prenome em documentos e registros civis.
Além desse fator, Zé e Sansão consideram desrespeitoso serem chamados pelo nome batismo,
visto que desautoriza a afirmação de suas identidades masculinas. Como podemos observar
nos trechos abaixo:
“E eu, pessoalmente, sofri e sofro até hoje muita rejeição até em meio dos lgbt's.
Ouvi, muitas vezes, risos e gente fazendo pouco caso, me chamando de ela e depois
pedindo desculpas. Mas depois repetindo a situação” (Zé).
“Alguns se negam e chamam pelo nome feminino, aí corrijo e mando chamar no
masculino, senão chamo o nome deles no gênero oposto ao deles... aí terminam
chamando o nome masculino. Porque é chato, acho desrespeitoso, eu todo macho,
todo homem, sendo chamado com nome de mulher. Sou mulherengo, grosso, casca
dura, forte e ainda vem me chamar pelo nome masculino?” (Sansão).

A definição de papéis do outro na relação em conformidade com a autoidentificação
apresenta indícios de ruptura nas experiências dos representantes das últimas duas gerações:
Arthur e Zé afirmam que seus parceiros (as) não devem ter papéis estabelecidos em suas
relações. No entanto, para Sansão, homens e mulheres apresentam funções, sentimentos e
papéis definidos e estabelecidos, como podemos ver logo abaixo:
“[...] Homem tem pênis, não tem peito, tem barba, é rude, macho... mulher é frágil,
tem vagina, peitos, bundão, tem as diferenças [...]” (Sansão).

O olhar do outro também implica sobre suas figuras, trazendo mudanças para a
adequação dos corpos e da aparência visual, além de conflitos entre o que é necessário
mostrar ou se deseja evidenciar (LIMA, 2011). O contato com o outro os fazem perceber o
que deve ser comparado e transformado em seus corpos e visuais, podendo ser evidenciado
nos trechos a seguir.
“Eu comecei a pesquisar em sites na internet, em blogs coisas relacionadas à
transexualidade, conheci outros transexuais em redes sociais, comecei a conversar
com eles, pesquisar, para saber mais, porque como era uma coisa que não esteve
desde sempre na minha cabeça, eu comecei a ter dúvidas, mesmo começado o
processo de transexualização com 6 meses, eu ainda tinha dúvidas se era transexual
ou não, eu procurava características em outros homens transexuais para ver se eu
também as tinha e se era transexual mesmo” (Arthur).

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“[...] você comprar prótese plástica para usar dentro da cueca, se envenenar com
hormônios para ter pelos ou trejeitos masculinos. A sociedade vê um corpo de
mulher vestido de homem [...]” (Zé).
Mas depois fui lendo reportagens e assisti documentários na tv por assinatura, sobre
transexualismo e vi que eu era um. Foi quando perguntei a aeromoça que namorei,
na época, se pra ela eu era homem ou mulher. Ela disse que eu tinha corpo de
mulher, mas atitude de homem.... foi aí que eu vi e pensei: sempre fui homem e não
sabia. Mas só tomei coragem de modificar o corpo, uns anos atrás, antes pesquisei
muito e entrei em contato com outros transexuais e profissionais para saber se era o
que eu queria. E vi que é sim, sou homem, tenho jeito de homem e traços de homem,
só falta ter corpo mais masculino, pra eu me sentir bem e completo. E pra as pessoas
não me olharem torto. Ouça a minha voz, ela é masculina, sempre foi grave e grossa,
acho que sempre fui macho, o problema que demorei a entender que era um”
(Sansão).

Por último, a participação política em movimentos organizados LGBT. Segundo
Arthur, o desconhecimento de grande parte da população acerca da existência dos transexuais
masculinos deve-se ao fato de não possuírem uma imagem sexualizada e ligado ao “falo”,
além dos próprios homens transexuais preferirem o anonimato para não sofrerem preconceito.
Zé compactua da mesma opinião de que um anônimo ou pessoa que não tenha a
transexualidade exposta sofrerá menos preconceito, fazendo com que muitos prefiram se
esconder. A falta de consciência do que é ser transexual e a ausência de organização ainda são
apontados como agravantes para essa invisibilidade dos movimentos transexuais masculinos.
Sansão não demonstra interesse em participar dos movimentos organizados e diz preferir o
anonimato. Este, por sua vez, é preferível para evitar sofrer preconceito.
Zé enfatizou a dificuldade em arranjar emprego. A transexualidade é vista como um
entrave para crescimento profissional. A discriminação também é sentida no ambiente de
trabalho e nos movimentos organizados LGBT. A evocação do prenome feminino é
considerada uma afronta. Para ele, as pessoas o tratam com preconceito por possuir um corpo
feminino, mas apresentar postura masculina e afirmar que é um homem. Arthur cita a
discriminação no meio LGBT, enfatizando que a mesma enfraquece o grupo como um todo.
Sansão também citou o desconforto de ser chamado pelo nome de batismo. Entretanto, o
sentido atribuído ao preconceito sofrido é de que as pessoas, principalmente os homens,
sentem inveja de sua capacidade de relacionar-se com muitas mulheres. Sentidos diferentes
produzidos acerca do preconceito sofrido. Os fragmentos abaixo evidenciam o que foi
analisado:
“O homem é visto como sexualizado e a mulher não, por causa do falo biológico... e
nós trans masculinos somos considerados e colocados na categoria feminina. A
nossa sexualidade não é vista, porque nós não temos um falo biológico, um pênis
biológico.... e as trans femininas se tornam um objeto de desejo das

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heterossexualidades masculinas, porque elas são figuras femininas, portanto objeto
de desejo de uma masculinidade dominante e sua sexualidade existe, porque elas
têm o falo. Já nós, trans masculinos, acontece ao contrário, não somos objeto de
desejo... e nem existimos, não temos o falo” (Arthur).
“Fora que é muito mais fácil a gente viver anônimo, porque podemos transformar
nosso corpo e obter um resultado sem que os outros percebam que somos trans”
(Arthur).
“Muitas pessoas que são do movimento dizem que querem desconstruir essa
heteronormatividade, mas não conseguem por completo, sem nem perceberem”
(Arthur).
“Isso cabe a nós trans homens, nos unimos e construirmos uma cultura, de todo esse
movimento... eu acho que isso vai contribuir para que muitos construam esse
posicionamento político enquanto homem trans, com significado social e político”
(Arthur).
“As oportunidades nunca caminham com as condições... em minha vida, pelo
menos, ou vinha uma ou nenhuma. É muito difícil oportunidade de emprego para o
homem trans... o cara vê um homem , e no documento uma mulher, ele rejeita logo.
As oportunidades surgem sempre nos empregos informais, cozinhas, costuras, salão
de beleza. Trabalhos manuais pesados. E minha vida foi sempre muito difícil a luta
pela sobrevivência, ao ponto de não fazer muita diferença ser formado \ ou não. Eu
precisava trabalhar, por ter uma aparência que estava fora do perfil "senso
comum"... nunca arranjava colocação alguma. Sempre descartado pela aparência
masculina, só me restava a inteligência e criatividade... para sobreviver” (Zé).
”Eu sei que sou muito inteligente, trago comigo o dom da oratória, falo com muita
fluência em público (perdoe-me a falta de modéstia) mas também reconheço que eu
poderia ser um cara bem sucedido caso não fosse um trans” (Zé).
“Geralmente são homens que tem inveja de mim, mal sabem eles que “pego” mais
mulheres que eles e bem bonitas” (Sansão).

As histórias das três gerações nos permitiram refletir que ao contrário das transexuais
femininas, os masculinos parecem (exceto Sansão) não estar empenhados em atender aos
pressupostos heteronormativos, apoiados nos binarismos masculino / macho e feminino /
fêmea. A geração mais nova e do meio acreditam que a transexualidade não deve ser
sustentada em estereótipos. A transformação corporal é necessária para o bem-estar do
transexual ou para não sofrer preconceito. O ser transexual não está pautado na cirurgia de
mudança de sexo ou na mastectomia, indo além desse pensamento reducionista. Para esses
dois transexuais, a transexualização é um terceiro elemento e não uma imitação de um homem
ou mulher.

5.3 A intrageracionalidade na geração mais nova

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Os representantes da geração mais nova, Artur e Gisele, experimentam situações
diferentes nas brincadeiras de criança. Gisele preferia brincar de bonecas. Essas
preferências não recebem objeção por parte dos familiares. No contexto infantil, Gisele
também não encontra dificuldades: as outras crianças consideravam Gisele como ela se
apresentava, uma menina, mesmo que usando roupas masculinas. Artur tinha dúvidas, não se
considerava um menino, se apresentava as outras crianças como seus pais diziam que era.
Os seguintes fragmentos de narrativas dessas experiências ilustram:
“Sempre ganhei boneca, brinquedo de menina... meu pai ainda trouxe, uma vez, um
carrinho... eu quebrei e disse que queria boneca e não brinquedo de menino. Sempre
brinquei de boneca e ganhava boneca” (Gisele).
“Sempre diziam: ei, parece uma menina, de cabelão e tudo” (Gisele).
“Eu sabia que era menina, porque fui criado como menina, com nome de menina,
então achava que era menina” (Arthur).

Parecer menino ou menina se constitui importante demarcador de sentido
(VIGOTSKI, 1993, 2007) das experiências transexuais: Gisele moldava suas roupas
masculinas para que ficassem femininas e confirmassem o sentido de sua feminilidade,
enquanto Arthur cortou os cabelos bem curto, aparentando uma masculinidade, de modo
“inconsciente”, sem a intenção de parecer um menino. Estar e sentir-se inserido no contexto
traz desafios e estratégias de ação, que foram assim relatadas:
“Eu dava nó na blusa pra ficar curtinha, que nem mulher” (Gisele).
“Eu não sabia que ia parecer um menino, mas eu queria cortar o cabelo daquele
jeito, não sei por que, vai ver era algo inconsciente” (Arthur).

Na autoidentificação transexual as experiências são peculiares: Gisele nunca se
autoidentificou como transexual, mas sim como mulher, desde criança. Já Arthur passou por
um processo, identificando-se primeiramente como mulher heterossexual no início da
adolescência, com forte marca da vontade da família; lésbica, ao conviver com outros colegas
homossexuais e simpatizantes da diversidade sexual, social e étnica; e homem
transexual/bissexual ao ter contato com outros transexuais, filmes e textos sobre
transexualidade. O processo de transexualização para Arthur tem um sentido de liberdade e de
felicidade consigo mesmo. Para Gisele é necessário uma reparação a algo incorreto no corpo.
Vejamos abaixo:

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“Transexual é aquele homem que quer tirar o órgão e virar mulher. Travesti é
aquele que quer parecer com uma mulher, mas continua homem, quer ter o sexo,
quer usar, já a transexual quer tirar o sexo. Como fui criada desde pequena como
menina, descarto a possibilidade de ser travesti e transexual. Travesti é o homem
que se traveste, que quer parecer com mulher... eu não, eu já nasci mulher, com
corpo de mulher, semelhança de mulher” (Gisele).
“[...] eu antes achava que era uma mulher heterossexual, depois comecei a me
assumir como lésbica, ai depois me descobri como transexual. E durante um tempo,
passei a não ficar com ninguém, na transexualização.. Aí quando voltei a ficar com
alguém, voltei ficando com homens... homens gays” (Arthur).

O acesso às informações foi importante para ambos: para atender a curiosidade de
Gisele, porque esta se considera mulher ou para Artur ter certeza de sua condição transexual,
conforme se vê a seguir:
“Eu gosto muito de ler, adoro ler, na minha casa tem muito livro, gosto muito de ler
sobre transexual e travesti, não descarto falar sobre isso. Eu comecei a pesquisar
mesmo, quando comecei a ter um raciocínio, com meus 15 anos que comecei a
procurar” (Gisele).
“Eu comecei a pesquisar em sites na internet, em blogs coisas relacionadas à
transexualidade, conheci outros transexuais em redes sociais, comecei a conversar
com eles, pesquisar, para saber mais, porque como era uma coisa que não esteve
desde sempre na minha cabeça, eu comecei a ter dúvidas, mesmo começado o
processo de transexualização com 6 meses, eu ainda tinha dúvidas se era transexual
ou não, eu procurava características em outros homens transexuais para ver se eu
também as tinha e se era transexual mesmo” (Arthur).

Nesse sentido, a relação com o contexto, por meio do olhar do outro e do que se
produz na cultura, a autoidentificação encontra significados que vão reverberando sentidos e
vice-versa. O homem necessita do olhar e contato com o outro, em uma relação
interdependente, para produzir sentidos e os significados (VIGOTSKI, 1993).
Os significados da compreensão e definição de papéis do outro na relação, ou seja,
ser homem e o ser mulher – para Gisele – estão pautados em modelos delineados e binários. O
primeiro é visualizado como agressivo, rude e frio, em contrapartida o segundo é considerado
passivo, emotivo e delicado. Esses modelos tem força e permanecem na cultura e são
mantidos fossilizados. Por outro lado, Arthur considera que atender a “papéis” apoiados em
binarismos seria o mesmo que reproduzir regras heteronormativas, podendo indicar elementos
de ruptura a essas regras. Como podemos observar nos fragmentos abaixo:
“Olha só, quando você é homossexual e quer passar para trans... hum... deixa eu
ver, eu tenho um amigo que é homossexual e começou a passar a ser travesti, mas
ele tem um pensamento masculino, ele tem a mentalidade masculina, jeito de falar.
Se você reparar, eu sou feminina, tenho mentalidade de mulher, eu choro muito, tem
vezes que começo a chorar do nada, que nem mulher, porque mulher é emotiva.

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Porque homem não chora, porque homem tem aquele negócio de pegar no saco e
coçar, falar gíria” (Gisele).
“Tem transexuais que tem problemas com isso, que acham que devemos ser os mais
masculinos ou machões possíveis, algo bem estereotipado” (Arthur).
“Acho que não tem a necessidade de ficar provando que é homem, uma
masculinidade exagerada, acho que a minha masculinidade é o suficiente para
acreditar que sou homem. Eu acho um absurdo quem exagera e tenta ser algo que
vai além dos seus limites” (Arthur).
“Não acho que seja doença mental, acho que seja um fenômeno... se existe uma
doença mental, seria atrelada a isso, uma decorrência de fatores psicossociais de
preconceito e que a cultura da gente nos obriga a fazer parte de uma norma
heteronormativa e a gente se sente obrigado a seguir e acreditar nessas normas”
(Arthur).

Transformações corporais, por sua vez, também apresentam diferentes sentidos:
Gisele considera que devem seguir modelos estabelecidos e apoiados em ideais de corpo e
comportamentos femininos/masculinos. Parte de uma ideia de que o corpo deve ser o mais
parecido com o que é considerado natural. Arthur acredita que a transexualidade deve atender
às necessidades da pessoa transexual e não se apoiar em arquétipos estabelecidos pela
sociedade. Considera, ainda, que sua transexualização e bissexualidade são formas de
subversão às regras de gênero. Entretanto, afirma que a pouca visibilidade dada aos
transexuais masculinos se mantêm pelo fato dos mesmos não possuírem um “falo biológico”.
Assim nos falam:
“Você já viu mulher com barba e voz grossa? Para mim, mulher... se tá pensando
em ser mulher, que tome hormônio logo no começo, antes da puberdade. Não acho
bonito, uma pessoa que se parece com homem e coloca um vestido, como tem um
aqui nessa rua, lá no final. [...] Pode tá de saia o que for, de barba na cara, é homem”
(Gisele).
“O homem é visto como sexualizado e a mulher não, por causa do falo biológico... e
nós trans masculinos somos considerados e colocados na categoria feminina. A
nossa sexualidade não é vista, porque nós não temos um falo biológico, um pênis
biológico” (Arthur).

Nessa direção, Aran e Murta (2009) e Fausto-Sterling (2002) afirmam que a imposição
da naturalização dos corpos, baseada em um discurso médico, termina por ser predominante
no processo de transexualização. A transgenitalização e procedimentos de hormonização são
vistos como formas de correção a um corpo “anormal” e que deve ser coerente às normas dos
dois modelos de corpos biológicos: homem e mulher. Caso o sujeito queira se “transformar
em mulher”, a sociedade e a medicina irão exigir que essa transformação e as características
físicas sejam concernentes a esses modelos estabelecidos. Gisele permanece nesse discurso
apoiado em modelos biológicos.

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Concordante com essa reflexão, Nicholson (2000) afirma que essa diferenciação
precisa dos corpos em masculino e feminino, macho e fêmea, origina-se da ideia de uma
identidade sexual. Esta última se baseia na visão fisiológica de que homens e mulheres
possuem corpos diferentes, e por isso, comportamentos diferenciados. Seria uma forma de
dizer que o corpo é determinado apenas biologicamente e a “identidade dos sexos” é
originada a partir do que esse mesmo corpo apresenta. O corpo equivaleria a um “porta-voz”
da distinção binária de homem e mulher.
Por outro lado, Gagnon (2006) afirma que a ideia de sexo biológico, a forma de se
fazer sexo e as sexualidades sofrem influências históricoculturais. Segundo esse autor, em
cada cultura existem seus “roteiros sexuais”. Estes podem ser adaptados pelos indivíduos a
partir dos seus contextos. Há roteiros sobre cada sexualidade, mas que a depender de cada um
pode ser reproduzido ou modificado. Nesse caso, o que se entende sobre sexo hoje e no
passado, pode ser recurso para se reproduzir a sexualidade no futuro. A ideia acerca do sexo é
algo estrutural, que apresenta uma origem, mas que pode ser afetada e contextualizada, a
depender da situação e momento histórico.
A mudança do prenome na documentação e registros civis é uma pretensão para
ambos. Não relatam dificuldades em serem tratados/as pelo nome de batismo, embora no
cotidiano já sejam tratados por nomes escolhidos.
A reação da família parece ir ao encontro de significados culturalmente difundidos
que associam a transexualização a um transtorno mental. O pai de Gisele a levou,
inicialmente, a um psiquiatra. A mãe de Arthur entende que ele estava com problemas
mentais. Entretanto, a forma como as famílias lidaram foi diferente: os pais de Gisele
aceitaram sua transexualidade, respeitando a utilização do prenome escolhido pela mesma. Os
familiares de Arthur toleravam que o mesmo fosse homossexual, mas não transexual. Para a
mãe de Arthur, a sua transexualidade estava associada a fazer papel de palhaço perante aos
outros. Podemos perceber as nuances desse processo nos fragmentos a seguir:
“Bem, ele pensava que eu era doida, mas o psiquiatra disse que eu não tinha
problema mental nenhum, que eu apenas pensava como menina, tinha cabeça
feminina. Depois que o psiquiatra falou isso para ele, ele caiu em si e começou a me
ver como menina totalmente” (Gisele).
“Como fui criada desde pequena como menina, descarto a possibilidade de ser
travesti e transexual. Travesti é o homem que se traveste, que quer parecer com
mulher... eu não, eu já nasci mulher, com corpo de mulher, semelhança de mulher”
(Gisele).

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Em relação à participação em movimentos de transexuais, os dois representantes
apresentam concepções conflitantes: Gisele não demonstra interesse, porque se considera
mulher e não se sente pertencente à categoria dos transexuais. Lutar por direitos está
incoerente com o que pensa de si mesma. Contrariamente ao posicionamento de Arthur, pois
acredita que ser militante é uma forma de exigir seus direitos e visibilizar os transexuais
masculinos, apesar do anonimato oferecer uma vida sem violência. Parece que uma
contradição está presente: ao mesmo tempo em que a participação política e a visibilidade
indicam indícios de ruptura elas também trazem a possibilidade de sofrer preconceito. Estar
anônimo tem razões defensivas. Vejamos, a seguir:
“Nem aos transgêneros me vinculo ou me identifico. A única coisa que eu não digo
“eu sou realmente uma mulher” é a genitália, mas nunca tive dúvida” (Gisele).
“Isso cabe a nós trans homens, nos unimos e construirmos uma cultura, de todo esse
movimento... eu acho que isso vai contribuir para que muitos construam esse
posicionamento político enquanto homem trans, com significado social e político”
(Arthur).
“Mas quando criarmos um grupo e for unido, acho que vai surgir naturalmente.
Como as trans femininas que tem as culturas delas associadas a coisas artísticas
como shows de drag, toda uma cultura que vem do iorubá e da cultura de terreiro... a
gente ainda não tem isso, mas na união, com o grupo, pode ser que surja” (Arthur).

Em síntese, podemos destacar que os dois representantes da mesma geração indicaram
permanência nas significações de adequação do visual para menino (Arthur) e menina
(Gisele) quando crianças e mudança do prenome, e importantes indícios de ruptura nesse
processo: autoidentificação transexual, transformação corporal e definição de papéis para
homem e mulher, relação com a família, participação política em movimentos transexuais.

5.4 A intrageracionalidade na geração do meio

Os representantes da geração do meio, Joana e Sansão, relembram que na infância
sentiam-se diferentes das outras crianças. Desde cedo, Joana paquerava os rapazes na praia,
enquanto que Zé ficava fascinado pelas moças religiosas. Nas brincadeiras com as outras
crianças preferiam jogos infantis diferentes dos esperados e propostos: Joana não gostava de
jogar futebol e nem de brincar com brinquedos masculinos, enquanto que Zé considerava que
as brincadeiras dos meninos eram sinônimos de liberdade. Joana criava estratégias de disfarce

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para transitar entre os dois grupos e participar de brincadeiras femininas. Zé tinha medo de
brincar com os meninos, então preferia, forçadamente, participar de jogos femininos. Parece
ter sido mais fácil para Joana transitar disfarçadamente entre os meninos e as meninas.
A autoidentificação inicial é a de homossexual para ambos e apresentou permanência
em seus processos: na adolescência e com sentimentos de medo e de culpa por sentirem
atração homoafetiva. Frequentar e praticar preceitos religiosos são sentidos diferentes: Zé
buscava uma forma de aliviar sua culpa, enquanto que Joana frequentava obrigatoriamente
como forma de agradar a família e evitar represálias. Contato com outros homossexuais
auxiliaram no processo de autoidentificação: Zé passou a se considerar lésbica ao ter seu
primeiro relacionamento com mulheres e Joana cogitou ser gay ao conversar com um amigo
homossexual. Passaram a se considerarem transexuais em idades diferentes: Zé se reconheceu
como transexual após os 40 anos, enquanto que Joana se autoidentificou como transexual no
final da adolescência. O primeiro alega que seu reconhecimento enquanto transexual
masculino foi tardio devido à invisibilidade da transexualidade masculina nos meios
midiáticos e movimentos organizados, visto que não teve muito contato com outros
transexuais masculinos. Já a segunda alega que notava diferenças entre seu comportamento e
dos amigos homossexuais, pois não sentia atração homoafetiva apenas, mas queria ser e
comportar-se como uma mulher.
Nesse sentido, as narrativas ressaltam que o contato com o outro auxilia na produção
de suas identidades e edificação de sentidos e significados. Podemos perceber nos trechos
abaixo:
“Eu brincava mais... na verdade, eu não brincava com meninas. Até hoje eu não
gosto muito de andar com meninas, não sei por que, pois a maioria gosta, vê logo
que é gay, aquele rapaz no meio de um monte de menina. Eu não, não gostava. Eu
gostava de andar com menina e menino, tudo junto. Mas na hora das brincadeiras,
era assim... homem só gosta de brincar de bola, né? Mas eu não queria, não vejo
graça, em ficar olhando e correndo atrás de uma bola. Aí inventava que o pé tava
doente, eu ficava olhando os meninos jogando bola” (Joana).
“Foi desde a infância até a adolescência assim, escondendo, escondendo. Só que aos
poucos eu fui vendo que tinha pessoas que eram iguais a mim” (Joana).
“Então eu era um pouco reprimida, não tinha contato, era da igreja pra casa, da casa
pra escola” (Joana).
“Eu olhava para ele e tinha um pressentimento que ele era igual a mim, que era
gay... nessa época, eu pensava que eu era gay” (Joana).

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“Eu só não sabia definir, o que era. Eu comecei a me definir que não era gay, que
não deveria me vestir como homem e nem gostava de viver como homem, na
adolescência... que eu queria me vestir que nem mulher e ser mulher” (Joana).
“Eu sinto assim, desde criança eu olhava para o meu interior e encontrava um
menino... mesmo que quando eu tomava banho e me via diante do espelho lá
refletido um corpo de mulher. Eu tinha inveja dos gestos e brincadeiras mais simples
dos meus irmãos, eles eram livres no ser” (Zé).
”Mergulhei na igreja nas doutrinas, nas cobranças e julgamentos... e cada vez mais
forte eu sentia a divisão dentro de mim... o homem q existia , e as origens e
doutrinas q foram plantadas dentro de mim. Eu procurava ser bom em tudo que eu
fazia... ser o melhor da sala de aula...ser o melhor filho... ótimo amigo...eu precisava
preencher a vergonha, o vazio , e a voz que gritava dentro de meu ser... que eu era
um homem em um corpo errado, um corpo de mulher, porque eu nunca tive um
corpo feminino” (Zé).

Aparência para compor a transformação visual tem peculiaridades: Joana ao se
identificar enquanto transexual, preferiu alternar entre usar uma peça masculina e outra
feminina, como forma de não chocar. Zé - mesmo não se identificando como transexual na
adolescência e em grande parte da fase adulta - adotou uma postura masculina. Acreditava
que o fato de fumar e tornar-se líder em movimentos políticos o tornava masculino e
fortaleceria o homem dentro de si. A liderança e o poder político ganham sentido de
masculinidade, para Zé. Algumas estratégias de adaptação foram utilizadas para superarem a
dificuldade no relacionamento com a família e comunidade: Joana, além de alternar o uso de
roupas masculinas e femininas, passou a comportar-se de forma menos vulgar. Zé procurava
ser competente em todos os papéis sociais que desempenhava: filho, estudante, religioso e
militante. Engravidou para que seus pais pudessem adotar sua filha e terem o prazer de criar
uma criança que não fosse transexual. Estratégias utilizadas no sentido de serem aceitos. A
maneira de vestir-se ou uma gravidez planejada ganham contornos, funções e sentidos além
dos significados sociais compartilhados.
Consideramos, no entanto que, ao adotarem roupas e posturas as quais se identificam,
atendem às suas reivindicações identitárias, todavia subvertem as normas e regras
estabelecidas dos binarismos masculino e feminino. Decididamente, porque suas genitálias
estão assinaladas e significadas em uma cultura que associa pênis – homem – masculino e
vagina – mulher – feminina, em uma lógica exclusivamente biológica e naturalista, as
estratégias de adaptação utilizadas estão também presas a esta mesma cultura e tem a
finalidade de evitar sofrimento e represálias. O nosso corpo está inserido culturalmente em
papéis determinados, sendo o diferente considerado estranho e anormal (STADLER;
CARMO, 2011).

90

Cultura esta que define também a aparência como critério de inserção no mundo do
trabalho: as duas narrativas evidenciam sofrimento e preconceito: Zé acredita que a sua
imagem de transexual masculino impossibilitou conseguir trabalhos formais antes de ser
concursado. Joana alega que as transexuais femininas não arrumam emprego porque a
sociedade quer escondê-las. Resta então, a inserção no mercado informal.
Transformação corporal é vista como necessária para evitar discriminação e
preconceito: Joana afirma que um comportamento mais reservado, sem vulgaridades e o corpo
transformado são ações necessárias para que as transexuais não sofram discriminação e
violência. O “portar-se de acordo com uma mulher”, seguindo seus papéis sociais é uma
maneira de adentrar ao universo feminino e, concomitantemente, não ser agredida. O
preconceito a tornou mais cautelosa e reservada. Zé está concordante que as modificações do
corpo e da imagem auxiliam no anonimato e evitam preconceito. Contudo, reconhece que a
invisibilidade e a manutenção do que é estabelecido - nos binarismos homem/masculino e
mulher/feminino - dificulta, a reivindicação dos direitos dos transexuais. Sentir-se

homem

transexual é mais importante do que a transformação corporal. Esta se torna importante
apenas para “parecer ser homem” e não sofrer preconceito. No caso de Joana, a
transexualidade é uma consonância entre a mente e o corpo, onde ambos devem estar em
conformidade. A cirurgia de transgenitalização e o uso de hormônios para desaparecimento
dos pelos corporais são obrigatórios para ser uma mulher transexual. Os sentidos nas
narrativas abaixo evidenciam esses pontos de vista peculiares e diferentes:
“Ai eu fui vestindo uma blusinha feminina, com calça masculina ou uma blusinha
masculina com uma calça feminina” (Joana).
“Aí eu fui amadurecendo, conhecendo pessoas que me orientassem, revi meu
comportamento, que não era pra tá andando vulgar, aí já comecei a ver meu modo de
vestir, aos poucos para não chocar o povo, fui tendo um pouco de noção, me dei ao
respeito para ter o respeito” (Joana).
“Eu acho necessário esse processo de transformação, uso de hormônios, para que
ela, a transexual, tenha uma certeza, se autoafirmar. Ela tem que modificar o corpo,
ela não pode... pronto, já que tocamos nesse assunto... eu acho ridículo esses caras
que se dizem travesti e transexual e tem um corpo totalmente masculino, barba, não
tem nem a decência de tirar a barba. Coloca vestido, se maquia... fica com marca de
barba, músculos, isso é ridículo. Servem de mangação pra o povo. O processo de
hormonização para que seu corpo fique feminino e não sirva de mangação para os
outros. O processo de transformação é importante para você e para as pessoas que
vão te ver. Agora o que acontece, isso na maioria dos casos, os travestis e
transexuais não tem dinheiro para a transformação e fazem por conta própria”
(Joana).

91

“Na questão do emprego, você vê muitos gays em lojas trabalhando, mas você não
vê uma travesti, uma transexual, porque as pessoas acham que chocam. Apesar de
ser pouca hipocrisia, porque choca na hora, porque vá na orla, nos bares de beira de
esquina, uma transexual coloca um vestido e fica com vários caras. Choca na hora,
no meio dito familiar, o shopping...” (Joana).
“Na minha cabeça eu era o errado... eu que tinha escolhido ser assim. Pensei, e
resolvi que se eu tivesse uma filha ela ocuparia o meu lugar e meus pais ficariam
felizes” (Zé).
“Eu procurava ser bom em tudo que eu fazia... ser o melhor da sala de aula...ser o
melhor filho... ótimo amigo...eu precisava preencher a vergonha, o vazio , e a voz
que gritava dentro de meu ser...” (Zé).
É muito difícil oportunidade de emprego para o homem trans... o cara vê um homem
, e no documento uma mulher, ele rejeita logo. As oportunidades surgem sempre nos
empregos informais, cozinhas, costuras, salão de beleza. Trabalhos manuais
pesados. E minha vida foi sempre muito difícil a luta pela sobrevivência, ao ponto
de não fazer muita diferença ser formado \ ou não. Eu precisava trabalhar, por ter
uma aparência que estava fora do perfil "senso comum"... nunca arranjava colocação
alguma. Sempre descartado pela aparência masculina, só me restava a inteligência e
criatividade... para sobreviver. E como eu deve ter milhares de homens trans
vivendo à margem da sociedade , mas muito mais grave, à margem da vida: a
família não nos quer, a empresa nos exclui, a sociedade nos discrimina” (Zé).
“Eu sei que sou muito inteligente, trago comigo o dom da oratória, falo com muita
fluência em público (perdoe-me a falta de modéstia) mas também reconheço que eu
poderia ser um cara bem sucedido caso não fosse um trans” (Zé).
Eu por muitos anos só usei vestidos e roupas longas, mesmo assim, eu me sentia
homem e desejava usar calças. A obrigatoriedade de mudar o corpo é muito
pessoal... vai de cada um. E desejo sim, minha masculinização total... quero cirurgia,
desejo hormonoterapia e tudo mais. Tenho amigos que não desejam passar por
cirurgia, só hormonizados. A reconstrução do corpo ou da genitália é mais cobrança
pessoal de cada um... e aí eu consigo acreditar pelo conhecimento e convivência que
nós vivemos tantos anos sendo maltratados por todos, família, escola, sociedade,
trabalho, que quando você cresce, você traz enraizado em seu intimo uma cobrança
de ser e parecer. Esse ser e parecer é isso de ter peito tem q ter identidade
fêmea....tem pênis é identidade macho... se não tem nada físico que seja palpável,
tocável....não é fêmea ou não é macho. Nascer trans é tão dolorido, você evitar ir a
um banheiro, você evitar falar em público porque tem voz fina, você comprar
prótese plástica para usar dentro da cueca, se envenenar com hormônios para ter
pelos ou trejeitos masculinos. A sociedade vê um corpo de mulher vestido de
homem, é como se você afrontasse, violentasse. Somos a quebra do que já é
estabelecido, somos a prova de que as regras não comprovam nada, de que o certo e
o errado é só ponto de vista, masculino / feminino é pouco, existe algo mais. Para
alguns somos só o que eles veem: roupas!” (Zé).

A mudança no prenome, no cotidiano, apresentou importante permanência nessa
geração: Joana e Zé pretendem ter seus nomes sociais registrados nos documentos civis. Joana
solicitou aos professores que fosse colocado seu prenome social na caderneta de chamada e
exigiu aos colegas e familiares que a chamassem pelo nome feminino. Zé também pediu aos
amigos, colegas de trabalho, de partido político e familiares que o referisse com o nome

92

masculino. Ambos consideram desrespeitoso e doloroso serem chamados pelo prenome de
batismo e serem associados ao gênero ao qual não se identificam.
Definição de papéis do outro na relação indica algumas nuances de gênero: Joana
considera que uma transexual deve ser mais delicada e passiva, sendo seu parceiro mais ativo.
Para ela, todo companheiro de uma transexual deve ser um homem heterossexual e não
homossexual. Zé afirma que o ser ativo e a liderança em movimentos políticos faz crescer o
homem que existe dentro de si. Considera ainda que há algumas posturas que são mais
masculinas, como fumar. Há definições, em ambos os casos, de papéis masculinos e
femininos que são compartilhados culturalmente.
A relação com a família indica aspectos de permanências: os familiares de Joana e Zé
não aceitaram suas transexualizações, sendo a primeira vítima de violência física por parte de
um familiar. Zé não sofreu agressão física dos familiares, contudo não era respeitado por sua
mãe que solicitava que o mesmo não tivesse contato com suas amigas e seus vizinhos, pois
tinha vergonha da transexualidade do filho. As estratégias para serem aceitos indicam
permanência e manutenção - Zé engravidou e permitiu que seus pais adotassem sua filha,
enquanto Joana alternava entre roupas masculinas e femininas para não chocar os familiares.
Participação política indica elementos e permanências intrageracionais: os dois
representantes da geração do meio, Joana e Zé, são militantes de movimentos LGBT e
acreditam que as pessoas transexuais devem ser mais politizadas, com intuito de garantirem
seus direitos.
O processo de transexualização da geração do meio apresentou algumas rupturas: os
sentidos produzidos acerca da transformação corporal e dos comportamentos normativos
esperados para um transexual, bem como permanências em relação à significação do
preconceito, da relação com a família e no ambiente de trabalho.

5.5 A intrageracionalidade na geração mais velha

As lembranças narradas pelos representantes da geração mais velha, Bridget e Sansão,
destacam que as brincadeiras de crianças marcaram suas histórias: Bridget não se sentia a

93

vontade com os meninos, enquanto que Sansão preferia a companhia dos amigos nas
brincadeiras e jogos, por achar que as meninas eram “frescas”. Entretanto, Sansão tinha
liberdade para brincar com os meninos, ao contrário de Bridget que era proibida de brincar
com meninas.
A aparência e as estratégias de disfarce, para ambos, foram utilizadas para situações
distintas: Bridget brincava com grupos mistos para poder participar e ter liberdade de
brincadeiras junto às meninas e não ser considerada “maricas”. Sansão pegava "piolhos” para
poder raspar os cabelos e sentir-se mais menino e adequado visualmente. Ambos tentavam
passar despercebidos perante o olhar das outras crianças e dos seus pais. Esses sentimentos
perduram até a adolescência. Os dois representantes da geração mais velha não participavam
de paqueras juntos aos amigos, preferindo estarem em refúgio: Bridget preferia ir ao cinema
assistir filmes com atrizes famosas – e imitá-las em seu quarto –, mesmo que se sentindo
diferente, como algo ruim e Sansão colecionava revistas de faroeste. Os fragmentos abaixo
evidenciam o que foi exposto até esse momento:
“Mas ela sempre me forçava a usar cachinhos, eu odiava cabelo grande. Até que um
dia....você vai até rir.... pra você ver como eu me irritava com cabelos grandes... eu
vi que meus irmãos tiveram que raspar o cabelo porque pegaram piolho, pois eu fiz
questão de brincar pertinho do piolhento da rua pra pegar piolhos e raspar a cabeça...
e foi tão bom não ter que usar cabelo grande, laços. Mas ai o cabelo cresce, mas por
sorte, minha mãe cortou meu cabelo um pouco abaixo da orelha... era menos pior”
(Sansão).
“Meu pai sempre me tratou bem, nunca ficava no meu pé, até porque eu nem
namorava, a preocupação dele era que eu ficasse grávida e mal falado.... acho que
por isso ele nem notava que eu era masculino demais. Mamãe notava, porque vez ou
outra me empurrava pretendentes. Foi passando o tempo e saímos da nossa cidade e
fomos estudar fora, eu e meus dois irmãos... nossa família era rica... quer dizer,
ainda é rica. Aí nessa época fui notando que era diferente de garotas e mais parecido
com homens. Foi quando ouvi na rua me chamarem de Maria Homem... e eu nem
fiquei ofendido” (Sansão).
“Algo ruim no corpo” (Bridget).

Essas estratégias de sobrevivência e de inserção no contexto social e cultural são
permeadas de sofrimento, pois ao mesmo tempo em que devem seguir normas externas,
devem atender aos desejos e inquietações como sujeito (PINO, 2005).
A autoidentificação inicial para ambos foi como homossexual: Bridget assumiu ser
gay aos 25 anos e Sansão considerava-se lésbica aos 18 anos. A relação com outros
homossexuais permitiu essa identificação. Entretanto, Bridget, também se percebia como
travesti, antes de se autoidentificar transexual. Podemos perceber nos trechos abaixo:

94

“Comecei a me identificar como homem trans já coroa, antes eu pensava que era
lésbica machona, caminhoneira. Mas depois fui lendo reportagens e assisti
documentários na tv por assinatura, sobre transexualismo e vi que eu era um”
(Sansão).
“Eu acho que primeiro me vi como gay, depois travesti e por último trans, mas até
quando eu era gay e me travestia, eu via que queria era mesmo ser mulher,
entende?” (Bridget).

As transformações corporais e visuais foram gradativas: Sansão alternava entre
peças masculinas e femininas e Bridget usava roupas femininas sociais no ambiente de
trabalho. A modelação corporal é vista, para ambos, como uma forma de tornar seus corpos
coerentes com os “modelos naturais” de homem e mulher. A afirmação do “corpo errado” é
recorrente em suas narrativas. Além disso, com as intervenções cirúrgicas, Bridget e Sansão
podem passar despercebidos aos julgamentos das outras pessoas, podendo, assim, viver no
anonimato. Este último serve como uma proteção contra o preconceito e homofobia,
tornando-se uma alternativa comum adotada por vários transexuais (BENTO, 2006).
Podemos observar que esse olhar sobre o corpo torna-se um instrumento político, visto
que atende às necessidades e funcionamentos de determinados grupos. Nesse caso, não
adiantaria apenas o sujeito afirmar “eu sou mulher” ou “eu sou homem”, mas sim atender ao
pressuposto do gênero como representante do biológico (LAQUEUR, 2001). Assim, Bridget
acredita que transexuais são vítimas de transfobia por serem considerados diferentes e Sansão
afirma que os homens o tratam com agressividade e intolerância por terem inveja de sua sorte
com as mulheres. Como podemos perceber no trecho abaixo:
“Geralmente são homens que tem inveja de mim, mal sabem eles que “pego” mais
mulheres que eles e bem bonitas” (Sansão).
“Lutei muito para ser feminina e ser mulher, não acho interessante que comecem a
me tratar mal porque no passado fui uma pessoa de corpo masculino e cabeça de
mulher [...]” (Bridget).

O acesso às informações sobre a transexualidade para ambos ocorreu pelos meios de
comunicação midiáticos: reportagens e documentários na televisão; por pesquisas na internet
e em livros específicos sobre o tema; contato com outros transexuais e a procura por
profissionais especialistas na área da transexualização.
Os fragmentos de narrativas a seguir retratam o processo de transformação corporal:
“Resolvi fazer a raspagem do pomo de adão, por questões estéticas, sabe? Mulher de
gogó não existe, né?” (Bridget).

95

“As pessoas julgam sem saber, pensam que trans é homem que cortou o pênis e não
é... parece que ser homem tem que nascer com pênis e mulher com vagina, não
entendem o interior” (Bridget).
“Sim..sou uma mulher transexual... não fico dizendo que nasci com corpo de mulher
e acho que ser mulher ou homem é tornar-se, sabe? Eu tive o azar de nascer com
corpo masculino, mas sempre tive alma feminina, o problema é que demorei pra
notar que era trans, acho que o medo não permitia” (Bridget).
“Eu não critico homens afeminados que rebolam e falam fino mesmo com barba,
porque tenho que levar críticas por modelar meu corpo de acordo com o que acredito
que sou?” (Bridget).
“E fui levando a vida, eu usava cabelo curto, usava calça feminina e blusa social
masculina, usava regata pra esconder, tentava misturar, sabe? Vai que o povo me
olhasse torto... mais do que já olhavam” (Sansão).
“Foi quando assumi que era lésbica, aos meus 37 anos... porque nessa época, na
minha cabeça eu era lésbica. Foi quando comecei a usar roupas mais masculinas
ainda e usar cuecas” (Sansão).
“Mas só tomei coragem de modificar o corpo, uns dois anos atrás, antes pesquisei
muito e entrei em contato com outros transexuais e profissionais para saber se era o
que eu queria. E vi que é sim, sou homem, tenho jeito de homem e traços de homem,
só falta ter corpo mais masculino, pra eu me sentir bem e completo. E pra as pessoas
não me olharem torto. Ouça a minha voz, ela é masculina, sempre foi grave e grossa,
acho que sempre fui macho, o problema que demorei a entender que era um”
(Sansão).
“Porque é chato, acho desrespeitoso, eu todo macho, todo homem, sendo chamado
com nome de mulher. Sou mulherengo, grosso, casca dura, forte e ainda vem me
chamar pelo nome masculino?” (Sansão).
“Eu sou homem, sempre fui, mas não tinha consciência. Acho que tem que se
transformar, tem que tirar peito, tomar hormônio, ser homem mesmo, porque se não
transforma você fica parecendo uma lésbica masculina, uma mulher máscula que
gosta de outra mulher, eu não, eu sou homem trans, sou um homem que tem um
corpo feminino, mas que precisa modelar seu corpo pra ser masculino e igual a sua
mente de homem... Homem tem pênis, não tem peito, tem barba, é rude, macho...
mulher é frágil, tem vagina, peitos, bundão, tem as diferenças... Eu sou o primeiro
tipo, um homem, só que com corpo errado, apenas” (Sansão).

O discurso de Bridget e Sansão acerca da modelação corporal está associado à
necessidade de aceitabilidade social e coerência entre psiquismo e corpo. Alguns transexuais
acreditam que a intervenção cirúrgica é uma forma de conter um corpo sexuado e serem
aceitos pela sociedade, visto que sua estrutura corporal visualmente seria a mais feminina, ou
masculina, possível. Essa ideia pode estar também associada às regras normativas de gênero,
visto que a concepção de masculino e feminino está definida pela genitália (BENTO, 2006;
2009). Desse modo, seriam ideais impostos por normas sociais e repetida, reafirmada,
contraditoriamente, pelos sujeitos que gostariam de romper com essas mesmas normas.

96

Mudança no prenome está presente nas narrativas dos dois transexuais da geração
mais velha: Bridget mudou o prenome nos registros civis e casou-se no exterior, de forma
legalizada. Para Sansão, este processo ainda será empreendido. Este pretende mudar o nome
de batismo para o social em seus documentos, após as primeiras transformações corporais em
uma instituição em outro estado.
A definição de papéis do outro na relação, ser homem e ser mulher refletem a
permanência dos significados compartilhados culturalmente: Bridget considera que uma
mulher deve ser discreta e passiva e Sansão acredita que o corpo masculino deve apresentar
virilidade e agressividade. Para este, todo homem transexual é heterossexual, pelo fato de ser
homem. Reafirma assim, valores pautados em regras heteronormativas que privilegia os
binarismos masculino e feminino com suas características e funções construídas histórica,
social e culturalmente.
Nesse sentido, Hennigen (2006) destaca como o controle e modelações de
comportamento atendem as normatizações, negando as diferenças, as pluralidades, contextos
e experiências dos sujeitos. A transexualidade questiona o binarismo - masculino e feminino –
e incomoda as “transgressões” a essas normatizações.
A relação com a família indica aspectos de permanência: os dois representantes dessa
geração foram obrigados pelos pais a brincarem com meninas (Sansão) e meninos (Bridget).
Ambos, na adolescência e início da fase adulta, foram morar e trabalhar longe da família,
distanciando-se dela. A reação da família ao saber de suas transexualidade, segundo as
narrativas foi de preconceito e distanciamento.
A participação política em movimentos transexuais evidencia a opção pelo
anonimato ou a visibilidade: Sansão e Bridget não participam da militância LGBT por
preferirem viver no anonimato, e Bridget considera que há discriminação entre os próprios
membros desses movimentos.
Em síntese, as análises intergeracionais e intrageracionais aqui apresentadas
evidenciaram alguns elementos de manutenção: o significado dos papéis sociais de homens e
mulheres mostrou-se bastante pertinente nas falas das três transexuais femininas, podendo ser
considerado um elemento fossilizado na cultura e transmitido intergeracionalmente: Gisele,

97

Joana e Bridget compartilham a ideia de que homem deve ser o mais masculino, rude e ativo
possível, enquanto mulheres devem ser reservadas, delicadas e passivas.
Os elementos de manutenção no processo de autoidentificação transexual: Joana e
Bridget se percebem homossexual para depois, se considerarem transexuais. Todas, no
entanto, compartilham a ideia de que devem seguir regras de comportamento para adentrarem
ao universo feminino. O mesmo ocorre com os transexuais que se identificavam como
homossexuais e, em seguida, transexuais. Apenas Gisele não se considera transexual, mas
uma mulher com um erro na genitália.
O processo de transexualização masculina permite detectar rupturas nos seguintes
sentidos: Arthur e Zé mostraram-se contrários à reprodução de estereótipos masculinos,
considerando que a transexualidade vai além desses rótulos. Apenas Sansão, representante da
geração mais velha, não concorda desta opinião.
Na análise intrageracional, percebemos que houve importantes sinais de rupturas entre
os representantes da geração mais nova e do meio acerca das significações de transexualidade,
homem, mulher e auto-identificação transexual. Na geração mais velha, há mais elementos de
manutenção dos significados sociais do ser homem e ser mulher.
Os transexuais da geração mais nova e a transexual feminina da geração do meio se
autoidenficaram como transexuais - ou mulher, no caso de Gisele – mais cedo devido ao
acesso a meios midiáticos. O transexual masculino e os transexuais da geração mais velha
apresentaram autoidentificação transexual mais tarde.
As rupturas estão presentes nos sentidos de adequação visual, à opinião acerca da
transfobia, à orientação sexual e participação em movimentos transexuais. As permanências
estão relacionadas às brincadeiras de criança, estratégias de disfarce, relação com a família,
significado de ser homem e ser mulher, acesso à temática da transexualidade e a modelação
corporal para auxiliar no anonimato.

98

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Consideramos que as contribuições teóricas e metodológicas da Psicologia SócioHistórica, estudos de gênero, corpo e identidade são férteis para a compreensão da
complexidade do processo de transexualização. Trata-se de um processo autoidentitário que
envolve mais do que travestilidade, transformação corporal e mudança de prenome social.
Esse processo deve considerar os aspectos de inserção em contexto social, histórico e político,
os quais permitem a expressão de identidades mutantes. A expressão destas pode ser
viabilizada por meio de entrevistas narrativas, na produção de história de vida como método
de pesquisa qualitativo.
Nesse sentido, consideramos a riqueza da produção das histórias de vida, visto que
estas permitem uma lembrança que se presentifica na narração, expressando assim,
experiências individuais/sociais e históricas. Permitem ainda um encontro profícuo entre
pesquisador/contador de história de um outro e sujeito/narrador de história de si. A alteridade
se torna um exercício constante e desafiador. As histórias expressam a complexidade da vida,
impregnam-se de fatos, de nuances e de experiências. A flexibilidade da pesquisa qualitativa
permite algumas mudanças durante o processo da pesquisa. Neste estudo, o uso da internet foi
fundamental para o registro virtual de uma das narrativas – a de Zé - em função da distância
geográfica.
Desse modo, a história oral – ou escrita – acessada através da memória permite a
expressão do processo de transexualização com a identificação da manutenção de significados
e a produção de novos sentidos. Assim, os aspectos históricos de manutenção do conceito
puderam ser analisados na produção histórica, a partir do levantamento bibliográfico da
temática. A conceituação de transexualidade produzida na primeira metade do século XX
caracteriza-se pelos diagnósticos de psicose sexual nos anos 50, modificando-se recentemente
no DSM IV para “Transtorno de Identidade de Gênero”. Estes usos e termos contribuem para
a sedimentação e fossilização de significados compartilhados e podem alimentar preconceitos.
O recorte de análise intergeracional, nas histórias de vida, permite observarmos a
manutenção de aspectos do conceito de transexualidade em diferentes períodos e contextos
históricos relembrados pelos sujeitos privilegiados. Proporciona, ainda, visualizarmos as
permanências de significados compartilhados e fossilizados e as possíveis rupturas.

99

A intrageracionalidade permite percebermos as nuances e experiências de gênero entre
os representantes da mesma geração. Nesse caso, torna possível o acompanhamento do
processo de produção de sentido e de ressignificação de suas transexualizações.
Consideramos que no processo de transexualização, descritos pelos (as) transexuais
participantes, não há uma decisão abrupta dessa transformação, nem um entendimento de que
seus corpos não estavam em “consonância” com o gênero identificado. Ocorre sim, uma
mudança complexa, ao longo de suas histórias, em que estão configurados os significados
compartilhados e resistentes às mudanças, os quais permanecem e sustentam os preconceitos.
Os significados mantêm-se fossilizados na cultura, transmitidos intergeracionalmente.
Convivem, por outro lado, nesse mesmo processo, como a outra face da mesma moeda, as
experiências cotidianas que permitem uma modificação e, quiçá, uma ruptura por meio de
novos sentidos. Os sentidos, portanto, não são elementos fixos, mas sim, produzidos através
da linguagem e da sua função comunicativa estabelecidas pelas interações sociais, simbólicas
e históricas. Por ser algo experiencial e repleto de cargas afetivas, o sentido é pessoal e
mutante.

As categorias de sentido temáticas permitiram a visão de um mundo permissível ou
não da criança e das brincadeiras: aqueles que tiveram contexto menos livre, como os três
transexuais masculinos e as duas transexuais da geração do meio e mais velha, precisaram
adotar estratégias de disfarce para não sofrerem preconceito por parte dos pais e das outras
crianças. O sentir-se diferente das outras crianças, o desejo de participar de brincadeiras, usar
roupas e cortes de cabelos contrários ao seu “papel social de gênero” manteve-se em todos os
relatos.
A aparência é um elemento bastante pontual no processo de transexualização dos seis
sujeitos da pesquisa. Ter que parecer menino ou menina, estar conforme os padrões de gênero
heteronormativos, leva os/as seis transexuais entrevistados a transformarem o corpo e
mudarem o visual. A autoimagem torna-se importante para que o outro o aceite. O olhar do
meio interfere nas visões de que Gisele, Bridget, Joana, Zé e Sansão possuem sobre seus
corpos. A aparência e o parecer ser fazem parte de uma negociação social com a família e
comunidade. O ideal de corpo está pautado em normas sociais do que é uma estrutura
corpórea de um homem e de uma mulher e seus respectivos comportamentos, mantendo-se o
binarismo.

100

Observamos, ainda, que o “parecer ser homem/ mulher” auxilia no anonimato da
pessoa transexual, e, por conseguinte, a defende do preconceito. Entretanto, Arthur e Zé
consideram que a obscuridade de suas transexualidades impossibilita as reivindicações por
seus direitos. Os outros entrevistados veem a invisibilidade como uma forma de não sofrer
preconceito. O não ser percebido torna-se uma defesa e resguardo. O parecer ser transformase em uma estratégia de reinvindicação identitária, concomitantemente de proteção ao
preconceito e aceitabilidade social.
Essa invisibilidade, no caso dos transexuais masculinos, pode ser considerada
semelhante à invisibilidade histórica das mulheres. Arthur considera que os transexuais
masculinos não são visíveis, por não apresentarem um pênis, e, por conseguinte, ainda serem
considerados mulheres. No próprio processo de seleção dos entrevistados para a pesquisa,
tivemos como argumento para a negativa ao convite "não queremos exposição, preferimos o
anonimato". Em comunidades específicas para transexuais, em redes sociais, a grande maioria
é de transexuais femininos. Os três transexuais masculinos entrevistados afirmaram que o
autorreconhecimento da transexualização masculina é algo novo.
A transformação corporal é vista, ainda, como uma forma de expressão de suas
identidades e da sexualidade. Esta última enfatizada por Gisele, Joana e Sansão em suas falas.
Em diversos momentos a relação entre transexualidade e orientação sexual é destacada.
Entretanto, a reinvindicação identitária é o principal elemento em todas as narrativas. O corpo
torna-se um componente de suas identidades. A ambiguidade corporal e visual foi um fator
apontado pelos entrevistados, principalmente pelas transexuais femininas e pelo transexual
masculino da geração mais velha. Um corpo ambíguo não é considerado natural e, destarte,
não sendo bem visto. Não há espaço, ainda, para um terceiro gênero ou sexo, restando uma
adequação ao que se encontra “errado”. O estético – baseado em uma visão apenas biológica
– se adiciona ao corpo. Há uma lógica de “defesa inclusiva”, como forma de fazer parte de um
padrão. Assim, os discursos de Gisele, Joana, Bridget, Sansão estão pautados na busca de um
marido/esposa ideais para viver como homem/mulher com um corpo sexuado apenas com a
transgenitalização, satisfazendo às regras normativas dos papéis sociais de gênero.
Por outro lado, Zé e Arthur discordam e buscam a não reprodução dos estereótipos
sociais. Esta reprodução, entretanto, é reafirmada na Psiquiatria em que os transexuais e
travestis ainda são vistos como indivíduos com comportamentos desviantes, pois defendem
ideias de um corpo naturalizado, aquele de nascimento e que deve ser conservado.

101

A autoidentificação mostrou-se ser um processo em mutação nas histórias dos seis
participantes.

Observamos que no processo de transexualização ocorre a passagem de

autoidentificação homossexual para a transexual. As duas transexuais femininas das gerações
do meio e mais velha e os três transexuais masculinos consideravam que as suas
identificações com o gênero “oposto” eram advindas de uma orientação sexual. Com o passar
do tempo e o contato com outros transexuais e o acesso a informações se autorreconhecem
enquanto transexuais. Gisele, representante feminina da geração mais nova, se diferencia dos
demais por se perceber como mulher e não homossexual ou transexual.
A família também marcou as histórias de vida dos personagens privilegiados dessa
pesquisa. Estratégias de adaptação, de saída de casa ou da cidade natal para evitar
constrangimentos. Apenas Gisele, a representante feminina mais nova, relembra que não
sofreu preconceito dos pais, parentes e colegas, o que facilitou a expressão de sua
transexualidade.
A reivindicação de prenome manteve-se em todas as histórias transexuais. A adoção
do nome social no lugar do de batismo esteve presente na trajetória dos seis participantes. O
nome escolhido faz parte de suas autoidentificações. Evocar o nome de batismo é desrespeitar
as suas identidades. A reivindicação do nome social no ambiente escolar e universitário foi
um ponto abordado nas histórias de Gisele, Joana e Zé.
A

participação

política

apresenta

indícios

de

rupturas

intergeracionais

e

intrageracionais. Gisele não participa de movimentos LGBT, porque não se sente pertencente
ao mesmo. Bridget e Sansão acreditam que há discriminação dentro da própria categoria,
ocasionando o desinteresse de ambos em ingressar em movimentos organizados. Arthur, Zé e
Joana são militantes, sofrem preconceito, mas acreditam que a luta por seus direitos é o que os
torna visíveis e cidadãos.
Em síntese, os elementos de permanência presentes no processo de significação
parecem ser: transformação seguindo os papéis heteronormativos e identidades aceitos
socialmente como forma de buscarem uma "normalidade" e evitarem o preconceito. A
significação presente na cultura nomeia os corpos em modelos pré-estabelecidos do que é ser
homem e ser mulher, seus papéis, funções e imagens. Gisele, Joana, Bridget, Arthur e Sansão
não se veem como “revolucionários do gênero” com suas transexualidades. Zé afirma que a
transexualidade é um fenômeno que ocasiona rupturas às normas do corpo e gênero, mas traz

102

consigo alguns pensamentos dessas mesmas regras dos papéis sociais: “fumar é uma postura
masculina”. Gisele, Joana, Bridget e Sansão repetem os estereótipos do que é ser homem e ser
mulher, pautados em determinismos biológicos mantidos culturalmente.
Indícios de ruptura presente na produção de sentido parecem ser: experiência de
múltiplas formas sem definição de papéis predefinidos e um contexto familiar e social com
mais liberdade para a experiência da diversidade. Os sentidos podem expressar duas funções:
romper com as determinações culturais, como no caso da transexualização de Arthur não
atender a padrões heteronormativos, visto que é transexual e bissexual, bem como sedimentar
novos preconceitos e normatizações, presente nas falas de Gisele, Joana e Sansão que
consideram que um corpo ambíguo é vulgar e fora dos padrões.
A produção do conceito de transexualização encontra-se em constante movimento,
evidenciando seu caráter flexível e de práxis, em conformidade com as mudanças sóciohistóricas. As experiências narradas em histórias permitiram compreender a relação entre
identidade e processo de transexualização. A modelação corporal é uma maneira de expressão
da identidade que atende a si mesmo/a, bem como ao olhar do outro. À medida que os valores
da convivência com a diversidade são compartilhados socialmente, e veiculados nos meios de
comunicação, embora ainda de forma estereotipada e caricata, impulsionam mudanças e
expressões de identidades, e vice-versa.
Consideramos que a Psicologia deve refletir sua prática estando em consonância com
as mudanças sociais. Uma questão relevante surgiu durante o processo de seleção de
participantes para a pesquisa e em uma das entrevistas, devendo ser objeto de reflexão para
nós, psicólogos: durante as tentativas com diversos transexuais, grande parte sequer cogitou
participar da pesquisa, sob a alegação de que a Psicologia apenas os cataloga e não os ajuda.
Particularmente e de forma emblemática, Zé expressa seu descontentamento em relação à
postura de psicólogos no atendimento a transexuais e travestis. Assim se refere ele: “[...]
procuramos também com profissionais da Saúde, da Psicologia... e o que encontramos são
profissionais que não querem nos receber, respondem que desconhece, outros dizem que não
estão preparados para tratar o assunto.” Esperamos que a presente

dissertação possa

contribuir com essa reflexão.
Por fim, consideramos que as reflexões aqui apresentadas permitiram o surgimento de
outras questões: a transexualidade nos meios midiáticos e artísticos voltados para o público
infantil. Como a mídia voltada às crianças trata desta temática? A utilização de personagens
transexuais no cinema, quadrinhos, desenhos animados possibilitaria uma relação com a
diversidade sexual e atingiria os significados perpetuados por meio dos preconceitos? Qual a

103

relevância política da criação de personagens transexuais e travestis em quadrinhos e
desenhos infantis? Esses são questionamentos que poderão ser melhor investigados em um
futuro projeto.

104

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110

APÊNDICES

111

APÊNDICE A – Fragmento da transcrição de entrevista.

Entrevista com Joana (nome fictício escolhido pela entrevistada).
Duração: 37 minutos.
Data: 08.09.2011 (Primeiro encontro)

Eu gostaria que você contasse a história da sua vida desde quando você era pequena até o
momento atual, principalmente fatos relacionados à sua transexualidade.

Bom... desde a infância, né? Bem, a minha infância é... em relação a minha
transexualidade, né? Que não é uma opção, mas uma condição... Eu sempre me achei desde
nova... assim... diferente, né? Você se acha diferente de tudo, se acha estranha... e isso eu
percebia desde nova, mas eu não tinha coragem de falar, mas quando eu saía assim...com os
colegas...por exemplo, pra uma praia, jogar futebol..eles que jogavam, eu só olhava, porque
eu não gostava de futebol. Quando eles falavam de meninas, eu ficava voando, tapeava: “ah... é bonitinha essa menina”, mas parava por aí, não tentava me aprofundar no assunto. Aí
quando aparecia um cara bonitinho... e isso quando eu era criança, que sempre rola isso, né?

112

APÊNDICE B – Fragmento de entrevista seguido da produção da História de Vida.

Fragmento da entrevista:
“Eu não me sentia e ainda não me sinto atraída por gay, só me interesso por homem
heterossexual. Se eu vejo um homem e me sinto atraída e ele apresenta trejeitos, a vontade
passa na hora, não quero nem saber. A transexual tem a cabeça feminina, ela não vai ser ativa
na relação, o parceiro vai ser o homem e ela a mulher, o cara tem que tá muito seguro da sua
sexualidade.”

Fragmento da história de vida produzida:

Conta que prefere relacionar-se com homens heterossexuais, ao invés de
homossexuais. Segundo Joana, caso um homem apresente trejeitos femininos, é descartado,
pois não atende aos requisitos. Desconsidera pretendentes que não estejam seguros de sua
sexualidade e não a vejam como mulher.

113

APÊNDICE C – Fragmento de análise de conteúdo de uma das entrevistas.
“Eu acho necessário esse processo de transformação, uso de hormônios, para que ela, a
transexual, tenha uma certeza, se autoafirmar. Ela tem que modificar o corpo, ela não pode...
pronto, já que tocamos nesse assunto... eu acho ridículo esses caras que se dizem travesti e
transexual e tem um corpo totalmente masculino, barba, não tem nem a decência de tirar a
barba. Coloca vestido, se maquia... fica com marca de barba, músculos, isso é ridículo.
Servem de mangação pra o povo. O processo de hormonização para que seu corpo fique
feminino e não sirva de mangação para os outros. O processo de transformação é importante
para você e para as pessoas que vão te ver.”
Transformação corporal= autoafirmação,
disfarçar, parecer ser mulher, olhar do
outro

“Eu brincava mais... na verdade, eu não brincava com meninas. Até hoje eu não gosto muito
de andar com meninas, não sei por que, pois a maioria gosta, vê logo que é gay, aquele rapaz
no meio de um monte de menina. Eu não, não gostava. Eu gostava de andar com menina e
menino, tudo junto. Mas na hora das brincadeiras, era assim... homem só gosta de brincar de
bola, né? Mas eu não queria, não vejo graça, em ficar olhando e correndo atrás de uma bola.
Aí inventava que o pé tava doente, eu ficava olhando os meninos jogando bola. (Joana)

Brincadeiras de criança: estratégias
de disfarce, inventar, esconder.

114

APÊNDICE D – Trecho de Diário de Campo

Diário de Campo - 08/09/2011
Alexsander Lima
Entrevistada: Transexual feminina geração do meio
Entrei em contato com a entrevistada, uma semana antes da data da entrevista, para
marcar o encontro. Expliquei qual era o tema e a minha formação. A. perguntou se haveria
algum problema em relação ao sigilo e qual seria o tipo de entrevista. Esclareci que seria
mantido o sigilo, que a mesma não seria identificada e qual o tipo de entrevista. Marcamos
para o dia 08/09, uma quinta-feira, às 15h, a primeira entrevista narrativa.
No dia marcado, cheguei às 14h30 no local. Esperei até umas 15h10 e entrei em
contato com a entrevistada, pois pensei que ela poderia ter esquecido a entrevista. A mesma
atendeu e disse que estava saindo de casa, porque houve um imprevisto. Ás 16h, recebo uma
ligação dela, dizendo que tinha pego o ônibus, que havia demorado a chegar e perguntando se
eu ainda iria esperar. Confirmei que iria esperar. A. chegou às 17h10, pedindo desculpas pelo
atraso e dizendo que foi culpa do ônibus.
Entramos na sala onde seria realizada a entrevista e expliquei como seria a entrevista,
a produção da história de vida e mostrei o termo de consentimento livre e esclarecido. A
entrevistada pediu para levar uma cópia para casa, porque queria ler com calma, já que era um
documento que constaria sua assinatura, mas que não me preocupasse, pois assinaria.
Perguntei se teria algum problema em utilizar o gravador para a entrevista e a mesma disse
que não teria problema, apesar de não gostar da sua própria voz. Percebi que, apesar da
aparência muito feminina e delicada, sem marcas de barba, seios, maquiagem, roupas e
trejeitos, a sua voz ainda tem resquícios de masculinidade.
Pedi que narrasse a sua história de vida, desde a infância até o momento atual, em
especial relacionada à sua transexualidade. Falou de forma resumida esses acontecimentos da
vida. Então pedi que detalhasse mais alguns fatos da infância e adolescência, se possível, para
depois falarmos do seu momento atual.

115

APÊNDICE E – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (T.C.L.E.)
(Em 2 vias, firmado por cada participante - voluntári(o,a) da pesquisa e pelo responsável)
“O respeito devido à dignidade humana exige que toda pesquisa se
processe após consentimento livre e esclarecido dos sujeitos, indivíduos
ou grupos que por si e/ou por seus representantes legais manifestem a
sua anuência à participação na pesquisa.” (Resolução. nº 196/96-IV, do
Conselho Nacional de Saúde)

Eu,

_____________________________

tendo sido convidad(o,a) a participar como voluntári(o,a) do estudo “Os Significados e
Sentidos na Identidade de Gênero – Histórias de Vida com Transexuais” recebi da Professora
Drª. Adélia Augusta Souto de Oliveira e do mestrando Alexsander Lima da Silva do Programa
de Pós-Graduação em Psicologia, do Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes da
Universidade Federal de Alagoas, responsável por sua execução, as seguintes informações
que me fizeram entender sem dificuldades e sem dúvidas os seguintes aspectos:



Que o estudo se destina a:

- Conhecer e compreender o fenômeno da transexualidade e sua relação com a identidade de
gênero.



Que a importância deste estudo é a de:

- Investigar a significação e os sentidos atribuídos à transexualidade, identidade de gênero e
processo transexualizador a partir das experiências e histórias de vida das (os) transexuais;



Que os resultados que se desejam alcançar são os seguintes:

116

- Produção científica em forma de banco de dados com acesso a estudantes e outros
profissionais a conhecer e explorar temas ligados ao universo transexual e à diversidade
sexual.

- Informações relacionadas à transgenitalização, as diferenciações entre transexuais, travestis
e a historicidade do fenômeno transexual para profissionais da área de ciências humanas e da
saúde.

- Contribuição para o esclarecimento do fenômeno junto aos movimentos sociais, em especial,
ao Movimento Transexual e pesquisadores da área da Sexualidade e Gênero.

- Contribuição para a elaboração de estudos da Psicologia relacionados à transexualidade.

- Desenvolvimento de espaços de discussões e diálogos científicos acerca da problemática
transexual no Brasil.



Que esse estudo começará após aprovação no CEP-UFAL e terminará em 2012.



Que o estudo será feito da seguinte maneira:

- Os procedimentos metodológicos e estudo apenas serão realizados após o consentimento dos
participantes para a realização da investigação empírica. Logo após será informado (a) dos
objetivos do estudo, será entregue um Termo de Esclarecimento Livre (TCLE) e com a
assinatura será realizada a entrevista com o mesmo.

 Que eu participarei das seguintes etapas:
- Da entrevista realizada após meu consentimento. Esta será gravada em áudio.



Que os outros meios conhecidos para se obter os mesmos resultados são as seguintes:

- Através da pesquisa bibliográfica para mapeamento da produção acadêmico-científica na
área de ciências humanas atinentes à transexualidade e identidade de gênero.

117



Que os incômodos que poderei sentir com a minha participação são os seguintes:

- Desconforto emocional no decorrer da entrevista. Caso houver, esta será interrompida e
retomada assim que o participante permitir.


Que os procedimentos utilizados nesta pesquisa não apresentam riscos à minha
saúde física e mental.

Que deverei contar com a seguinte assistência: se necessário o participante poderá ser
acompanhado no Serviço de Psicologia Aplicado do Curso de Psicologia-UFAL.


Que os benefícios que deverei esperar com a minha participação, mesmo que não
diretamente são:
- O conhecimento de um estudo acerca do fenômeno transexual e sua relação com a
identidade de gênero no Brasil.


Que a minha participação será acompanhada do seguinte modo: permitindo o direito
de confidencialidade, onde minhas informações serão usadas para fins científicos.

Que, sempre que desejar, serão fornecidos esclarecimentos sobre cada uma das
etapas do estudo.

Que, a qualquer momento, eu poderei recusar a continuar participando do estudo e,
também, que eu poderei retirar este meu consentimento, sem que isso me traga qualquer
penalidade ou prejuízo.

Que as informações conseguidas através da minha participação não permitirão a
identificação da minha pessoa, exceto aos responsáveis pelo estudo, e que a divulgação das
mencionadas informações só será feita entre os profissionais estudiosos do assunto.
Finalmente, tendo eu compreendido perfeitamente tudo o que me foi informado sobre a minha
participação no mencionado estudo e estando consciente dos meus direitos, das minhas

118

responsabilidades, dos riscos e dos benefícios que a minha participação implicam, concordo
em dele participar e para isso eu DOU O MEU CONSENTIMENTO SEM QUE PARA ISSO
EU TENHA SIDO FORÇADO OU OBRIGADO.

Endereço d(o,a) participante-voluntári(o,a)
Domicílio: (rua, praça, conjunto):
Bloco: /Nº: /Complemento:
Bairro: /CEP/Cidade: /Telefone:
Ponto de referência:

Contato de urgência: Sr(a).
Domicílio: (rua, praça, conjunto:
Bloco: /Nº: /Complemento:
Bairro: /CEP/Cidade: /Telefone:
Ponto de referência:

Endereço d(os,as) responsáve(l,is) pela pesquisa (OBRIGATÓRIO):
Profª Dra Adélia Augusta Souto de Oliveira
Mestrando Alexsander Lima da Silva
Instituição: Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes da Universidade Federal de
Alagoas
Endereço: Campus A. C. Simões - Av. Lourival Melo Mota
Bloco: /Nº: /Complemento: S/N
Bairro: /CEP/Cidade: Tabuleiro do Martins - Maceió - AL, CEP: 57072-970
Telefones p/contato: 32141336

119

ATENÇÃO: Para informar ocorrências irregulares ou danosas durante a sua
participação no estudo, dirija-se ao:
Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Alagoas:
Prédio da Reitoria, sala do C.O.C., Campus A. C. Simões, Cidade Universitária
Telefone: 3214-1041
Maceió,

(Assinatura ou impressão datiloscópica

Nome e Assinatura do(s) responsável(eis)

d(o,a) voluntári(o,a) ou responsável legal

pelo estudo (Rubricar as demais páginas)

- Rubricar as demais folhas)

120

ANEXOS

121

ANEXO A - Carta de Aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa

122

ANEXO B - Parecer de Aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa